Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

aurelius

aurelius

Amados e envolvidos pelo Amor Trinitário

aureliano, 02.06.23

Santíssima Trindade - 07 de junho 2020.jpg

Solenidade da Santíssima Trindade [04 de junho de 2023]

[Jo 3,16-18]

O Mistério Trinitário

Celebramos neste domingo a solenidade da Santíssima Trindade, o mistério de um só Deus em três Pessoas. Não se trata de uma realidade matemática, pois então pediria uma solução, mas trata-se de um Mistério que nos é superior e nos envolve, uma realidade que não cabe dentro de nossa cabeça, mas que nos convida a colocar nossa cabeça dentro desse Mistério.

 O Pai ama o Filho e o gera desde toda a eternidade; e desse amor entre o Pai e o Filho procede o Espírito Santo. O Pai enviou seu Filho ao mundo pela ação do Espírito Santo. Cumprida sua missão nessa terra, o Filho volta ao Pai e nos envia, da parte do Pai, o Espírito Consolador para animar e santificar a Igreja, Sacramento de Cristo no mundo.

O que o texto nos diz

O evangelho deste domingo está no contexto do encontro de Jesus com Nicodemos. Jesus lhe mostra a necessidade de um novo nascimento para se entrar no Reino de Deus. Um caminho que se faz a partir da fé no Filho de Deus, aquele que desceu do céu para dar vida ao mundo (cf. Jo 3, 7.13.15).

Jo 3, 16-18 é o núcleo do evangelho de João, o anúncio fundamental que mostra o imenso amor do Pai que envia seu Filho para salvar o mundo.

"Mundo" no evangelho de João significa aquela realidade que se opõe ao projeto de Jesus, ao Reino de Deus. São todas as forças de morte, toda a maldade que destrói a vida, que afirma a ganância, a mentira, a violência, a sede desordenada do lucro e da dominação, a sedução do dinheiro, do poder e do prazer (cf. 1Jo 2,16).

Mas Deus vem, em seu amor manifestado em Jesus Cristo, salvar este mundo. O Pai não quer a morte das pessoas, mas quer que todos sejam salvos pela fé em Jesus, aquele que ele enviou "não para julgar, mas para salvar".

O gesto do Pai de "entregar" o Filho nos remete ao gesto de oferta de sua própria vida. É o gesto eucarístico de Jesus que celebramos todos os domingos: "Isto é o meu corpo entregue por vós". No encalço deste gesto eucarístico, queremos também nós colaborar na salvação do mundo. Quando participamos da Eucaristia nós estamos dizendo com Jesus também: "Ofereço minha vida, minhas energias, minhas possibilidades e dons para participar na salvação do mundo". O 'dom' do Pai na pessoa de Jesus deve conter também nosso 'dom', isto é, nossa pessoa, nossas atitudes 'conformadas' ao gesto de Jesus: "Tenham em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus" (Fl 2, 5).

Deus quer contar conosco

Deus não precisa de nós, nem de nossas coisas. “Ainda que nossos louvores não vos sejam necessários, vós nos concedeis o dom de vos louvar. Eles nada acrescentam ao que sois, mas nos aproximam de vós por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso” (Prefácio Comum IV). Deus quer que sejamos no mundo a sua imagem, que manifestemos a sua presença. Cada atitude de acolhida, de perdão, de denúncia da maldade, de renúncia a vantagens espúrias, de apoio a iniciativas que promovem a justiça  e a paz; cada esforço de fidelidade à família, de cuidado com os filhos, com os idosos, com os pais, com os doentes, com a Criação; cada palavra que fortalece, que acalenta, que conforta; tudo isso é “oferenda” unida à “entrega” de Jesus, é gesto eucarístico para a salvação e libertação do mundo.

Não crer em Jesus Cristo é recusar-se a se colocar em favor da vida. Por isso "Quem não crê já está julgado", pois se coloca numa atitude de morte, de trevas, de recusa a reconhecer a Luz que veio a este mundo: "Quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis" (Jo 3, 20).

Crer na Trindade Santa é orientar a vida pelo amor. Não bastam palavras bonitas, definições dogmáticas, afirmações fantásticas a respeito de Deus. O Mistério que celebramos hoje nos transcende, está para além de nossa capacidade de compreensão racional. A razão não dá conta do mistério senão quando se deixa banhar por ele. Por isso Santo Agostinho afirmava: Credo ut intelligam. Ou seja, para entender o mistério - que é razoável e não racional – eu, primeiro, creio. Uma vez conformadas nossa inteligência e vontade a essa realidade que nos transcende e nos envolve, começamos a compreender a beleza, a grandeza e profundidade dessa realidade de nossa fé cristã.

Pai, dai-nos a graça de realizarmos em nossa vida de família e de comunidade aquela comunhão que procede do Seio de vossa vida Trinitária. Comunidade Santíssima, na qual fomos mergulhados pelo batismo, inspirai e fortalecei nossa comunidade terrestre. Amém.

----------xxxxx----------

UM POUCO DE DOUTRINA

 “O credo elaborado nos concílios ecumênicos de Nicéia (325) e Constantinopla (381) encontrou fórmulas que se tornaram depois dogmas. O dogma básico acerca da Santíssima Trindade reza assim: Em Deus há uma única natureza divina que subsiste em três Pessoas realmente distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Essa formulação abstrata não quer exprimir outra coisa senão aquilo que Jesus experimentou: que estava sempre em comunhão com o Pai, sentia-se Filho amado e que agia e falava com uma Força que o tomava, o Espírito Santo.

O importante não é afirmar os divinos Três. Isso até pode nos levar a uma heresia, vale dizer, a um erro na compreensão da fé, a heresia do triteísmo, como se houvessem três deuses. A centralidade se encontra na relação entre eles. As próprias palavras já supõem relação. Assim não existe pai simplesmente. Alguém é pai porque tem filho. Ninguém é filho simplesmente. É filho porque tem pai. Espírito, no sentido originário, significa sopro. Não há sopro sem alguém que assopre. O Espírito é o sopro do Pai para o Filho e do Filho para o Pai. Como se depreende, os Três sempre vêm juntos e se encontram eternamente entrelaçados. Em outras palavras, dizer Trindade é dizer relação, como disse o Papa João Paulo II quando esteve pela primeira vez na América Latina em 1979, em Puebla, no México: ‘A natureza íntima de Deus não é solidão, mas comunhão, porque Deus é família, é Pai, Filho e Espírito Santo’. Esse entrelaçamento foi expresso pela tradição teológica pela palavra grega pericorese que significa ‘a interrelação entre as Pessoas divinas’. Elas são distintas para poderem se relacionar. E essa relação mútua é tão profunda e radical que elas se uni-ficam. Elas ficam um só Deus-comunhão, um só Deus-amor, um só Deus-relação.

Precisamos superar a terminologia tradicional com a qual se pretendia expressar a natureza íntima de Deus. Ela é, para nossos ouvidos contemporâneos, demasiadamente formal e abstrata. No nível da experiência de fé diríamos de forma mais simples e compreensível: Deus que está acima de nós e que é nossa origem chamamos de Pai-e-Mãe eternos; Deus que está  conosco e que se faz companheiro de caminhada se chama Filho; e Deus que habita nosso interior como entusiasmo e criatividade se chama Espírito Santo. Como se depreende, não são três deuses, mas o mesmo e único Deus-comunhão que atua em nós e nos insere em sua rede de relações. Dentro de nós se realiza a eterna relação de amor e de comunhão entre Pai, Filho e Espírito Santo. Deus-comunhão está sempre nascendo dentro de nós. Por isso somos seres de comunhão e um nó permanente de relações. No início de tudo está a comunhão dos divinos Três” (L. Boff, Experimentar Deus, p. 108-110).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O perdão e a paz vencem o medo

aureliano, 27.05.23

Pentecostes 2020 - 31 de maio.jpg

Solenidade de Pentecostes [28 de maio de 2023]

[Jo 20,19-23] 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Inicialmente celebrada pelos israelitas, Pentecostes era a comemoração da colheita dos primeiros frutos do trigo. Porque marcava o 50º dia depois do início da colheita, era, por esse motivo, chamada de Pentecostes. (Confira Ex 23, 14-17; 34, 22; Lv 23,15-21; Dt 16, 9-12). É a festa da colheita. Portanto, tempo de muita alegria e fartura.       

A narrativa de At 2, 1-11 mostra a importância que ganhou na Igreja esta festa. Fazendo uso de um recurso literário, Lucas faz o Pentecostes cristão coincidir com o Pentecostes judaico. O Espírito se manifesta confirmando a missão que os discípulos haviam recebido do Mestre. Pentecostes marca o nascimento da Igreja. É a celebração dos frutos do Ressuscitado: o perdão e a paz que brotam de seu Coração bondoso, superando o egoísmo e a maldade do coração humano.

A MENSAGEM DO EVANGELHO

No próprio dia da Páscoa Jesus vem entregar o Dom do Espírito Santo aos seus discípulos. Este Dom garante a continuação da missão de Jesus no mundo. A missão de dar a paz e de tirar o pecado do mundo: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19); “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23). É o próprio Jesus agindo por meio de sua Igreja.

“As portas estavam fechadas por medo dos judeus”: Esse relato nos faz pensar no medo que tomava conta dos discípulos antes de serem revestidos do Dom do Pai. Como o medo nos paralisa, nos fecha em nós mesmos, nos impede de servir! O medo é um sentimento que precisa ser assumido e trabalhado em nós. Quando agimos movidos pelo medo fazemos muito mal a nós e aos outros. Medo de assumir um trabalho na comunidade; medo de arriscar; medo de assumir a própria vida; medo de romper com relações que escravizam e destroem a própria vida e a vida dos outros; medo de falar e de viver a verdade; medo movido pela preocupação excessiva com a própria imagem: o que vão pensar ou dizer? Medo de chamar para conversar sobre dificuldades interrrelacionais. Medo da doença, medo da morte, medo de ser abandonado, desprezado, ridicularizado. É preciso vencer o medo! O medo fecha a porta para Deus e para os irmãos! “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33).

Mas há o outro lado da moeda: aqueles que querem amedrontar, causar pânico, intimidar os outros, gritar, esbravejar, calar a boca. Quantas pessoas se satisfazem provocando medo para dominar! Querem se impor pela força física, pela pressão psicológica, pelo cargo que exercem, pelas ameaças que fazem, pelo poder financeiro. Há muitas pessoas que sofrem terrivelmente debaixo de gente perversa, dominadora, satânica. Há gente que domina os outros até mesmo servindo-se da religião ou da boa-fé da pessoa. Crianças, mulheres, idosos, pobres, pessoas vulneráveis e indefesas são as principais vítimas dos dominadores. Um pecado que brada aos céus e pede a Deus vingança! Jesus nunca se impôs aos outros, nunca amedrontou ninguém. Pelo contrário, sempre mostrou-se afável, acolhedor, doador do perdão e da paz.

“Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Palavra de Jesus aos discípulos antes de comunicar-lhes do Dom do Espírito Santo. É um elemento essencial na missão. O Pai enviou o Filho para comunicar seu amor ao mundo. Agora o Filho envia aqueles que ele escolheu e consagrou com essa mesma missão: o Pai nos ama e quer salvar a todos. Quer comunicar-nos o perdão e a paz. A Igreja é a mensageira e portadora dessa Boa Nova.

ABRIR O CORAÇÃO PARA A MISSÃO

Ao longo de seu ministério Jesus havia prometido o Espírito Santo aos seus discípulos para auxiliá-los na tarefa que lhes confiaria. Ele teria a missão de inspirá-los, fortalecê-los, lembrar-lhes o que lhes havia ensinado. Desde então lhes restava plantar, pois o Pai garantiria a colheita.

Compete a nós abrir o coração para a ação do Espírito Santo em nossa vida a fim de que nossa vida e nossas comunidades se renovem. Aquele vigor concedido aos primeiros discípulos continua sendo dado a quem se abre à sua ação libertadora. Deixemos o Espírito agir em nós, pois sem a sua força a Igreja fica estéril e confusa, sem ternura e sem missão.

-----------xxxxx-----------

A FORÇA DO ALTO PERDOA E ANIMA

A festa de Pentecostes tem sua história na comunidade israelita. Inicialmente era o agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Uma festa agrícola. Posteriormente foi associada à entrega da Lei no Sinai, tornado-se assim a festa da Aliança de Deus com seu povo.

No cristianismo, Pentecostes celebra a manifestação pública da Igreja. Embora, segundo João, o Espírito Santo seja dado no dia da Páscoa, na Ressurreição, a comunidade lucana a coloca cinquenta dias depois da Páscoa, para evocar e celebrar a manifestação pública da Igreja. Em forma de “línguas de fogo” para dizer do testemunho e da palavra dos discípulos de Jesus manifestando a ação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. No Sinai foi entregue a Lei a Moisés, escrita em tábuas de pedra. Aqui celebramos a Lei derramada nos nossos corações.

 O evangelho deste domingo mostra a comunidade dos discípulos acuada, medrosa. Os discípulos não tinham iniciativa nem coragem de anunciar a experiência que haviam feito de Jesus. Aquele em quem haviam depositado a esperança frustrou-lhes as expectativas: morrera na cruz como um malfeitor. Porém, a divina “Ruah” do alto, aquele Sopro vital os encheu de novo ânimo, de coragem. Começam então a anunciar, com todo ardor e entusiasmo, aquela realidade que haviam experimentado: a vida de Jesus e a vida em Jesus é o caminho para se viver de maneira justa, alegre e mais feliz.

Soprou sobre eles e disse...”. Esta passagem nos faz lembrar aquele sopro vital que o Criador fez penetrar no homem formado da argila: “Ele insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo” (Gn 2,7). Ou mesmo aquele Sopro de vida de que fala o profeta Ezequiel: “Porei meu sopro em vós para que vivais” (Ez 37,14). Somos cristãos leigos de barro, padres de barro, bispos de barro. É o Sopro Santo de Deus que nos comunica vida. Jesus comunica a nova vida que ele veio trazer do Pai: o Espírito Santificador que nos inspira, nos ilumina, nos fortalece para darmos testemunho da ressurreição do Senhor.

É interessante notar que o Espírito Santo não desceu somente sobre os “Onze”. Ele veio sobre todos que estavam no Cenáculo. Ali havia muitas outras pessoas além dos Apóstolos. O Espírito de Jesus penetra no coração daquelas pessoas e lhes dá novo vigor, novo sentido de vida. Sem o Espírito Santo a vida fica sem sentido, vazia, deslocada daquele centro vital para o qual o Pai nos criou. Desfocada, a vida começa a perder o sentido e o pecado encontra guarida dentro de nós. É a destruição de nossa vida. A alegria dá lugar à tristeza, a paz cede a brigas e intrigas, a partilha perde terreno para o egoísmo, o perdão é substituído pelo desejo de vingança, a fraternidade é suplantada pela dominação e coisificação das pessoas, a fé perde para a dúvida e o ceticismo.  Quando Jesus sopra sobre os discípulos e lhes dá o Espírito Santo com o poder de perdoar os pecados, ele quer mostrar que a missão da Igreja, pela força do Espírito Santo, deve ser a de tirar o pecado do mundo.

O pecado, segundo Pe. Antônio Pagola, é a “força de gravidade que nos impede de ir a Deus”. Muito mais do que culpa, é peso, escravidão. Mais do que falar de perdão, é preciso, pois, falar de libertação. Por isso chamamos a Jesus de Salvador. Nota-se, pois, uma vez mais, que o Evangelho não é um ligeiro verniz que se passa no ser humano, mas é tomá-lo a partir do seu ser mais profundo, assim como é, e tornar possível sua volta para Deus. Este é o primeiro fruto do Espírito de Jesus: a libertação. Este é o Espírito, o Espírito do Filho, o Espírito dos filhos, aquele que nos resgata da escravidão da terra e nos abre o horizonte luminoso de filhos.

Esse Espírito traz e atualiza a novidade de Cristo: “Sem o Espírito Santo, Deus está distante; o Cristo permanece no passado; o evangelho, uma letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um poder; a missão, uma propaganda; o culto, um arcaísmo; e a ação moral, uma ação de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é enobrecido pela geração do Reino, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho se faz força do Reino, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a ação humana se deifica” (Atenágoras I, Patriarca de Constantinopla).

Todos nós sentimos dificuldades. Todos sentimos a fraqueza na fé, a fragilidade da existência, a força do pecado em nós. Por vezes o mal parece prevalecer. O bem fica apagado. Fazemos o bem, nos empenhamos na construção de um mundo melhor, mas parece que nossa luta é em vão. Então peçamos ao Espírito Santo que, como aos discípulos e discípulas no Cenáculo, nos encha de seu amor, de sua luz, de sua força:

Vem Espírito Santo e liberta-nos do pecado, fortalece nossa pequenez, dá-nos tua força contra o mal. Não nos deixes desanimar, desistir de caminhar na direção do bem. Mais do que fazer o bem, ajuda-nos a ser bons, justos, solidários, fraternos. Enche-nos de tua bondade, de tua sabedoria para reproduzirmos em nossa vida as ações de Jesus que passou pelo mundo “fazendo o bem”. Faze que nossa vida manifeste a todos o amor do Pai, manifestado em Jesus de Nazaré. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

A missão de Jesus é nossa missão

aureliano, 19.05.23

Ascensção do Senhor - A - 24 de maio.jpg

Ascensão do Senhor [21 de maio de 2023]

[Mt 28,16-20]

Este relato do evangelho de Mateus aparece após a cena do túmulo vazio, as aparições às mulheres e a corrupção dos soldados que vigiavam o sepulcro de Jesus. A cena se situa na Galiléia dos gentios, fato de per si suficiente para apontar o caráter do mandato missionário de Jesus com dimensões universais.

Quarenta dias depois da Páscoa a Igreja celebra a Ascensão do Senhor. O relato de Mateus e o relato de Lucas (At 1, 1-11), referindo o mesmo acontecimento em locais diferentes – Galiléia dos gentios e Jerusalém – querem mostrar uma realidade que está muito além de uma aparição de Jesus e sua subida aos céus à vista dos discípulos. O sentido mesmo destes textos é expressar o que proclamamos ao longo dos séculos em nossa fé: “Está sentado à direita do Pai”. Em outras palavras, Jesus ressuscitado não veio retomar as suas atividades de antes, nem para implantar um reino político como alguns discípulos esperavam. Ele assume a vida na glória e entrega a missão aos seus discípulos, a nós: “Sede minhas testemunhas... até aos confins da terra” (At 1,8). Portanto, não se trata de uma despedida, mas de um novo modo de presença. Ele continua sendo o Emanuel, o Deus conosco, de modo novo.

Retorno à Galileia. Lugar onde Jesus iniciou seu ministério (Mt 4, 17). Regressar aí é retomar o começo para uma nova caminhada vocacional e missionária. Os discípulos missionários entenderam que o Ressuscitado é o mesmo que os chamou na beira do mar da Galiléia.

A montanha. Lugar de encontro com Deus. Crescer e aprofundar com Deus e em Deus a missão confiada por Jesus que o discípulo agora deve assumir. A partir do encontro com Deus o discípulo missionário se restabelece e continua animado pela força do alto: o Espírito Santo.

A primeira tarefa não é fazer alguma coisa, mas encontrar-se com o Ressuscitado. Missão não é convocação para realizar determinadas atividades, mas é, acima de tudo, fruto de uma experiência com o Ressuscitado. O conteúdo da missão brota da experiência com Ele. Daí a importância de não nos preocuparmos tanto com o resultado, com o “fazer” coisas, mas de nos deixarmos encharcar por Deus neste encontro com Jesus, para que outros experimentem essa ação divina em nós.

Ao prostrarem-se diante de Jesus os discípulos expressaram com esse gesto sua fé na pessoa de Jesus ressuscitado. Pois foram acometidos pela dúvida que revela a fraqueza deles diante das dificuldades da missão na comunidade. Sabemos, porém, que eles não se deixaram abater pela dúvida, isto é, pelas dificuldades, pois a história os mostra como verdadeiras testemunhas do Ressuscitado.

A autoridade conferida por Jesus aos discípulos é de serviço ao Reino e nunca em beneficio próprio. São servidores do Reino e participantes da mesma missão de Jesus. É bom trazer à memória o relato do Lava-pés. Aí Jesus se desveste do manto da autoridade e se reveste da toalha do serviço, lavando os pés dos discípulos: “Dei-vos o exemplo para que, assim como eu vos fiz, também vós o façais” (Jo 13,15). Autoridade, na dinâmica de Jesus, se dá no serviço fraterno aos pequeninos do Reino.

A missão de Jesus não conhece fronteiras. É serviço a todas as nações. E o principal objetivo da missão é promover a adesão à pessoa de Jesus. Não se trata de marketing da fé. É ser testemunha do Ressuscitado. Nem se trata tampouco de uma adesão etérea, desencarnada, mas de comprometimento com a causa de Jesus: “para que todos tenham vida plenamente” (Jo, 10,10).

Jesus está com os discípulos. É Deus morando no meio de nós. Jesus ressuscitado é uma presença viva e não mero personagem do passado.

Batizar é “mergulhar” a pessoa na dinâmica do evangelho e introduzi-la na comunidade dos seguidores de Jesus, a Igreja. Ao enviar seus discípulos para “fazer discípulos” mediante o batismo, Jesus manifesta seu desejo de ampliar a comunidade daqueles que acolhem sua mensagem e assumem o projeto do Reino.

As leituras da Festa de hoje convidam a deixarmos de olhar para cima. Ou seja, não ficarmos desligados da realidade. O olhar deve se voltar para a realidade na qual pisamos e o coração deve estar “no alto”, em Deus. Um ‘espiritualismo mundano’ de que fala o Papa Francisco pode nos alienar, bem como um olhar materialista e consumista para a vida nos afasta dos caminhos de Deus. O Senhor, na celebração de hoje, nos convida a ter o coração no alto e os pés no chão.

-----------xxxxx-----------

Celebramos, neste domingo, o Dia Mundial das Comunicações Sociais. É oportuno refletir sobre o uso que fazemos desses meios para evangelizar e para nos formarmos e nos informarmos também. Como os utilizamos? Que canais buscamos? A que assistimos? Que sites acessamos? Temos o costume de compartilhar falsas notícias (fake news)? Como formamos nossos filhos para o uso da internet? As mídias estão aí! Podem ser um instrumento de evangelização, mas podem ser também um instrumento de disseminação de ódio, de mentira, de maldades. É preciso valorizá-las nos aspectos que ajudam, e ter discernimento no uso para não prejudicar os valores evangélicos já tão escassos em nosso meio.

O Papa Francisco, na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, nos exorta a falar com o coração. Significa tirar do bom tesouro do nosso coração uma palavra boa capaz de edificar, de consolar, de fortalecer. Sobretudo pede que trabalhemos nossa comunicação a fim de que nossas palavras sejam geradoras de paz e de fraternidade: “Num período da história marcado por polarizações e oposições – de que, infelizmente, nem a comunidade eclesial está imune – o empenho em prol duma comunicação ‘de coração e braços abertos’ não diz respeito exclusivamente aos agentes da informação, mas é responsabilidade de cada um. Todos somos chamados a procurar a verdade e a dizê-la, fazendo-o com amor. De modo particular nós, cristãos, somos exortados a guardar continuamente a língua do mal (cf. Sl 34, 14), pois com ela – como ensina a Escritura – podemos bendizer o Senhor e amaldiçoar os homens feitos à semelhança de Deus (cf. Tg 3, 9). Da nossa boca, não deveriam sair palavras más, ‘mas apenas a que for boa, que edifique, sempre que necessário, para que seja uma graça para aqueles que a escutam’” (Ef 4, 29) (Mensagem para o 57º Dia Mundial das Comunicações Sociais).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

O Espírito Santo nos ajuda a amar

aureliano, 13.05.23

6º Domingo da Páscoa - A - 17 de maio.jpg

6º Domingo da Páscoa [14 de maio de 2023]

[Jo 14,15-21]

Estamos no chamado ‘discurso de despedida’ de Jesus segundo o quarto Evangelho: capítulos 13 a 17.  Aí estão os relatos da “Hora” de Jesus: “Sabendo Jesus que a sua hora tinha chegado, a hora de passar deste mundo para o Pai, ele que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até o extremo ” (Jo 13,1). Jesus então dá o seu testamento, aquilo que não poderão esquecer jamais, seu último desejo. E garante que não os abandonará. No evangelho deste domingo a Igreja nos apresenta o tema dos mandamentos de Jesus e o dom do Espírito.

Mandamentos de Jesus:

Nós ouvimos sempre falar sobre os “Mandamentos da Lei de Deus” (cf. Ex 20, 1-17). Mas hoje estamos tratando sobre os mandamentos de Jesus que são: crer no Pai, crer em Jesus, guardar a sua palavra, permanecer nele, amar uns aos outros como ele amou, realizar as obras dele, praticar a verdade, trabalhar pelo alimento que permanece para a vida eterna. Esses mandamentos, no entanto, se resumem naquelas palavras que dirige aos seus, antes da paixão: “Como eu vos amei, assim também deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 15, 35). A prova de que amamos a Jesus é vivência de seus mandamentos: “Se me amais, observeis meus mandamentos” (Jo 14,14).

Esse amor a Jesus não se dá de modo sensível. Ele não está mais no meio de nós como viveu em Nazaré. Ele continua conosco, mas ressuscitado. Não é amor de sentimento. É amor de atitude, que brota da vontade, da decisão. A pessoa decide acolher o amor de Deus em meu coração e reparti-lo com seu irmão. Independente de ele merecer ou não, de agradecer e reconhecer ou não. É a palavra de Jesus que nos abre para acolher esse amor e nos move a levá-lo aos outros. Esse amor se manifesta quando ‘guardamos sua palavra’. Ou seja, quando o vemos e o servimos na pessoa dos mais pobres e abandonados: “Tudo o que fizerdes a um desses mais pequeninos foi a mim que o fizestes” (Mt 25, 40).

O dom do Espírito Santo:

A ausência física de Jesus é substituída pelo Espírito Santo, o Paráclito. É pela força deste Consolador, Advogado (advoga nossa causa contra o mundo) que nós continuamos a missão de Jesus. Essa força nós a recebemos no Batismo e se completa, se ‘confirma’ na Crisma, com o dom do Espírito Santo que nos amadurece e encoraja para a missão (cf. At 8, 5-8.15-17, primeira leitura de hoje).

Para muitos a passagem de Jesus pela história não fez diferença. A vida de Jesus não deixou nenhum rastro em sua vida. Não “viram” nem “conheceram” a Jesus (cf. Jo 14,17). Nossa missão é mostrar, com nossa vida, que a vida em Deus como Jesus a viveu faz a diferença no mundo. Mas somos incapazes de realizar essa missão por nós mesmos. É a força do Espírito Santo, consolador, advogado, defensor que nos sustentará na defesa da verdade manifestada, não em doutrinas, mas na vida e atuação de Jesus de Nazaré.

Dessa forma nossa vida, pela ação do Espírito, será um contínuo louvor a Deus, conforme ensinava  Santo Agostinho: “Na verdade, louvamos a Deus agora que nos encontramos reunidos na igreja. Mas logo ao voltarmos para casa, parece que deixamos de louvar a Deus. Não dixes de viver santamente e louvarás sempre a Deus. Deixas de louvá-lo quando te afastas da justiça e do que lhe agrada. Mas, se nunca te desviares do bom caminho, ainda que tua língua se cale, tua vida clamará; e o ouvido de Deus estará perto do teu coração. Porque assim como nossos ouvidos escutam nossas palavras, assim os ouvidos de Deus escutam nossos pensamentos” (Ofício das Leituras, sábado da 5ª semana da páscoa).

-----------xxxxx------------

O ESPÍRITO DA VERDADE NÃO NOS DEIXARÁ ÓRFÃOS

Elemento fundante de nossa fé cristã é a consciência de não sermos abandonados por Deus, jamais: “Ele (o Pai) vos dará outro Defensor que ficará para sempre convosco” (Jo 14,16). É importante notar que essa verdade tem consequências para nossa vida cotidiana: essa presença de Jesus em nós e em nosso meio precisa ser percebida, captada, vista por aqueles que nos rodeiam: “Vós sois uma carta de Cristo confiada a nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo; não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos vossos corações” (2Cor 3,3). Em outras palavras, nossa vida deve manifestar nossa fé e a presença de Jesus pelo seu Espírito em nós.

Este Espírito que nos é dado é cognominado “Espírito da verdade”. Essa verdade de que fala Jesus não é uma verdade filosófica, científica, racional, mas teológica. Uma verdade que pode ser traduzida por ‘fidelidade’. Na relação com Deus, podemos afirmar que uma pessoa verdadeira é uma pessoa fiel. E essa fidelidade não tem consistência apenas na opção de vida ética da pessoa, mas no Dom do Pai. É o “Espírito da Verdade que o mundo não pode acolher” que garante a fidelidade do discípulo de Jesus.

A gente tem medo da verdade. Dizer a verdade, ouvir a verdade não é tarefa fácil. Por vezes preferimos levar uma vida falsa, de aparência, enganando-nos a nós mesmos a vida inteira por medo de enfrentar a realidade da verdade. A verdade tira a capa, desmascara. Dizer a verdade não é desrespeitar, ofender, gritar com os outros, machucar. Dizer e viver a verdade é sair do casulo, é buscar uma vida coerente, é reconhecer a própria pequenez, é dizer e expressar com sinceridade o que se sente e o que se pensa na busca de comunhão, de paz, de harmonia verdadeira. “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).

Viver no ‘Espírito da Verdade’ não é tornar-se dono da verdade nem atacar e derrubar adversários, mas viver como testemunha de Jesus. É manifestar o amor a Jesus ‘observando’ seus mandamentos.

O ‘Espírito da Verdade’ nos convida a viver a verdade no meio de uma sociedade mentirosa, enganadora, marcada por uma vida de aparência. Não nos deixemos levar pela mediocridade, pelo ‘todo mundo faz’, pela preguiça e comodismo que não nos deixam trabalhar nem ajudar a ninguém; por uma gatunagem descarada que leva alguns a valerem-se até mesmo da boa fé dos ‘pequenos’ para sugar-lhes as forças e o pouco que têm para sobreviver.

Abramos nosso coração ao Defensor, Auxiliador enviado pelo Pai por meio de seu Filho, para que nele possamos nos fortalecer sempre mais contra as forças da mentira, da desilusão, da ganância, do mal.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Jesus: caminho que conduz ao Pai; verdade que liberta; vida que enche de alegria

aureliano, 05.05.23

5º Domingo da Páscoa [07 de maio de 2023]

[Jo 14,1-12]

O relato de hoje está no contexto da narrativa do ‘lava-pés’, traição de Judas e a negação de Pedro. Após narrar esses últimos fatos (traição e negação), João mostra Jesus consolando seus discípulos e despertando-lhes a confiança para que não desanimassem nas adversidades e decepções da missão. É uma narrativa dentro do discurso de despedida de Jesus que traz aos discípulos uma palavra de conforto e uma exortação à intimidade com o Mestre, tal como este está na intimidade do Pai: “Eu estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo 14,11). Esta vida de união profunda com Jesus é que vai dar condições aos discípulos de realizarem as “obras de Deus”.

  1. “Não se perturbe o vosso coração! ... pois vou preparar-vos um lugar”. Os discípulos não precisavam ficar preocupados com o que iria acontecer. Jesus estava com eles. Podiam confiar nele: “Eu vos levarei comigo (...) para que onde eu estiver estejais também vós”. Essa é a grande promessa aos discípulos: Jesus não os abandona. Preocupa-se com eles. Está com eles. – Nos momentos difíceis da vida, nas desilusões e desencantos, sobretudo quando lutamos por um bem que parece não se concretizar, lembremo-nos destas consoladoras palavras de Jesus. Não desistamos jamais de continuar no caminho do bem, mesmo que as forças do mal pareçam prevalecer.
  2. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. No evangelho do domingo passado (Jo 10) ouvimos Jesus dizer: “Eu sou a porta”. Hoje ele diz: “Eu sou o caminho”. Foi uma resposta à pergunta de Tomé que manifestava seu desconhecimento do caminho para o Pai. Não existe outro caminho para o Pai a não ser Jesus. A vida de Jesus nos mostra por onde devemos trilhar para chegarmos ao Reino do Pai. Mesmo que não se professe explicitamente a fé cristã, mas implicitamente se deve viver a partir dos valores evangélicos. – Jesus é o Caminho que conduz ao Pai. Aquele que vive como Jesus ensinou está no caminho que conduz à vida. Para o ser humano há somente dois caminhos: um que conduz à morte e outro que conduz à vida (cf. Dt 30,15-20). A escolha é de cada um. O caminho que conduz à vida é estreito. E são poucos os que entram por ele (cf. Mt 7,14). Peçamos ao Pai a coragem suficiente para entrarmos por ele. – Jesus é a Verdade. Em meio a tantas teorias que se pretendem verdades absolutas, presentes nas propostas do capitalismo, do materialismo, do lucro a qualquer preço, do prazer absoluto, e confundidos por tantas notícias falsas (fake news), Jesus Cristo resplandece como a única verdade que ilumina o ser humano. – Jesus é a Vida. O sistema político, econômico, eleitoral, judiciário de nosso País, a sede de poder e de ter a qualquer preço, tiram muitas vidas e assassinam muitos sonhos e esperanças. Jesus é vida que nos salva e nos enche de alegria.
  3. “Quem me vê, vê o Pai”. Respondendo a uma pergunta de Felipe, Jesus faz uma revelação fantástica de si: ele é o rosto do Pai. Em Jesus nós contemplamos Deus. Ele é a resposta às nossas perguntas; é a luz da verdade para nosso espírito ameaçado pela mentira e falsidade que campeiam por toda parte; é fonte de vida para nossas angústias. As palavras “quem me vê, vê o Pai”, pronunciadas na véspera da cruz, nos lembram que, encarar os rostos dos pobres e reconhecer neles o rosto desfigurado de Cristo, nos torna capazes de ver a glória do Pai no rosto coroado de espinhos daquele homem de Nazaré.
  4. “Quem crê em mim fará as obras que faço, e fará até maiores do que elas”. O discípulo de Jesus, confirmado pelo Espírito Consolador, que depositou sua confiança em Jesus e vê o mundo com o olhar de Jesus realiza obras ainda maiores do que as que Jesus realizou. Jesus era único, num território delimitado, numa época determinada, estava com possibilidades reduzidas. Já seus discípulos, aqueles que crêem nele e o seguem, estão com maiores possibilidades; é um grupo maior; se estendem a outros territórios, se renovam no decurso da história, atingem maior número de pessoas. Por isso têm possibilidade de realizar obras ainda maiores.

A confiança em Jesus, Caminho único que leva ao Pai, Rosto revelador do Pai amoroso e expresso nos rostos sofridos, deve nos renovar para que nossas obras revelem o rosto do Pai que quer a vida para todos, e reproduzam as mesmas atitudes de Jesus que acolhia, amparava, perdoava, curava, dava vida nova, novo vigor àqueles que dele se aproximavam. Para isso renovemos nossa confiança em Jesus que continua conosco, que age em nós e através de nós e que nos garante levar para junto dele na glória do Pai.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Jesus é a Porta da salvação

aureliano, 29.04.23

4º Domingo da Páscoa - A - 03 de maio.jpg

4º Domingo da Páscoa [30 de abril de 2023]

[Jo 10,1-10]

Estamos no capítulo 10º do Evangelho de João. É interessante notar que o capítulo 9º trouxe o relato da cura do cego de nascença com toda aquela realidade de discussão e expulsão daquele homem da sinagoga. No final, porém, Jesus o acolhe junto a si. Vale a pena retomar aquele diálogo: “Jesus ouviu dizer que o haviam expulsado. Encontrando-o, disse-lhe: ‘Crês no Filho do Homem?’ Respondeu ele: ‘Quem é, Senhor, para que eu nele creia?’ Jesus lhe disse: ‘Tu o estás vendo, é quem fala contigo’. Exclamou ele: ‘Creio, Senhor!’ E prostrou-se diante dele” (Jo 9,35-38).

No relato do evangelho de hoje Jesus se apresenta como o bom Pastor, como a Porta do redil. O redil representa, nesse contexto, o povo oprimido que Jesus veio libertar. Ele é a porta. Quem passar por ele tem a vida. Porque ele veio “para que todos tenham vida”. Os que vieram antes dele se portaram como ladrões e assaltantes, não lhes interessando o bem das ovelhas. Ele veio, porém, para garantir-lhes o bem, a salvação.

Outro aspecto que vale ressaltar provém das seguintes palavras de Jesus: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo”. Isso significa que todos, pastores e ovelhas, a partir de Jesus devem entrar por Ele. Devem passar por essa “porta”. E quem não passa pela “porta” é ladrão e assaltante. Esse ensinamento de Jesus ajuda a dar critérios de avaliação daqueles que se dizem ou foram feitos pastores e líderes de comunidades. Se o que fazem não demonstra que eles passaram pela “porta”, ou seja, se sua prática de vida não confere com o modo de vida de Jesus, então, cuidado! São assaltantes, ladrões, que buscam o próprio interesse, e não o das ovelhas. São falsos pastores, falsos mestres.

Outro elemento: a porta não é um indivíduo, mas a comunidade em torno e em comunhão com Jesus. Jesus e sua comunidade que vive unida a ele são a porta que dá acesso ao Pai. A comunidade cristã deve se constituir como “porta” que permite aos fiéis ter acesso ao Pai. Isso nos leva a concluir que, quando a comunidade não permite e nem ajuda o fiel cristão a aproximar-se do Pai, fazer a experiência do Deus da vida, ela está naquela situação de assaltante, de falso pastor ou pastora. Uma porta falsa, mentirosa, enganadora.

Cabe aqui também uma palavra para todos que ocupam cargos ou ministério de liderança na comunidade e na sociedade. Padres, religiosos e religiosas, pastores, pais e mães, coordenadores, catequistas, administradores, secretários de pastas públicas, prefeitos, vereadores, deputados e senadores, chefes executivos, juízes e advogados, enfim, todos que têm função de gestão e administração, que têm pessoas sob seus cuidados, deveriam lançar um olhar para as atitudes de Jesus e conferir seu modo de gerir bens e pessoas.

Ainda mais: é preciso superar a imagem da parábola. “Ovelha”, “rebanho”, metáforas do texto, não significa submissão subserviente como se o pastor mandasse porque só ele sabe onde está a melhor pastagem. Como se as ovelhas fossem meros fantoches, sem vontade própria, sem liberdade, sem interação. Os limites da linguagem da parábola precisam ser transpostos para que haja interlocutores de ministério do pastoreio, mais do que destinatários. Ou seja, é preciso desenvolver e qualificar nas pessoas sua capacidade de pensar por si, de agir por si; que tenham opinião própria para que participem efetivamente do processo de transformação da sociedade, da comunidade. Que possam interagir, somar, sugerir etc. Todos precisam “passar pela porta”!

-----------xxxxx-----------

LADRÕES E MERCENÁRIOS

“Jesus tornou a dizer-lhes: ‘Em verdade, em verdade vos digo: eu sou a porta das ovelhas. Todos quantos vieram antes de mim foram ladrões e salteadores, mas as ovelhas não os ouviram. Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo; tanto entrará como sairá e encontrará pastagem. O ladrão não vem senão para furtar, matar e destruir. Eu vim para que as ovelhas tenham vida e para que a tenham em abundância’” (Jo 10,7-10).

Parece que Jesus está falando para o Brasil nestes tempos de extorsão, sonegação de impostos, de queimadas criminosas e destruição do meio ambiente; de disseminação de falsas notícias e de instigação à violência; de entrega dos bens nacionais ao mercado financeiro; de disputas pelo poder, de indiferença aos mais pobres. As negociatas noturnas, os acordos espúrios, os jogos de poder e de dominação... Quem é mesmo que está interessado na vida das ovelhas sofridas, maltratadas, doentes, desgarradas? Parece que engordam ainda mais as ovelhas “gordas” às custas do sufocamento das magras e doentes!

Na primeira leitura de hoje Pedro faz uma advertência excepcional: "Salvai-vos do meio dessa geração perversa!" (At 2,40). As palavras de Jesus e as palavras de Pedro são uma chave de leitura para o momento político e econômico que estamos vivendo. Há pouca gente levando em consideração aquela palavra que resume a vida de Jesus: “Eu vim para que todos tenham vida em abundância”. A perversidade ainda encontra ressonância e adeptos entre muitos que se dizem cristãos e católicos. Uma lástima!

*Hoje é Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Isso é motivo de preocupação sua? Você pede ao Senhor da messe que envie operários para a vinha? Como você vê e vive a realidade da messe? Como você vê e o que você faz para que se multiplique e aumente o número de servidores e trabalhadores na messe do Senhor? O que você está fazendo pelas vocações? Que lugar você ocupa na história da salvação?

Por fim, sugiro a leitura das palavras do Papa Francisco para o 60º Dia Mundial de Oração pelas Vocações:

“Como dissemos, a chamada de Deus inclui o envio. Não há vocação sem missão. E não há felicidade e plena autorrealização sem oferecer aos outros a vida nova que encontramos. A chamada divina ao amor é uma experiência que não se pode calar. «Ai de mim, se eu não evangelizar!»: exclamava São Paulo (1 Cor 9, 16). E a I Carta de João começa assim: «O que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida [feito carne] (…), isso vos anunciamos (…) para que a nossa alegria seja completa» (1, 1.3.4).

Há cinco anos, na exortação apostólica Gaudete et exsultate, dizia eu a cada batizado e batizada: «Também tu precisas de conceber a totalidade da tua vida como uma missão» (n. 23). Sim, porque cada um de nós, sem exceção, pode dizer: «Eu sou uma missão nesta terra e para isso estou neste mundo» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 273)”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Jesus é reconhecido no pão repartido

aureliano, 21.04.23

3º Domingo da Páscoa - A - 26 de abril.jpg

3º Domingo da Páscoa [23 de abril de 2023]

[Lc 24,13-35]

Esse relato de Lucas traz muitos elementos para serem refletidos e rezados.  Mostra a experiência de uma comunidade em relação à morte e à ressurreição de Jesus e consequente missão. Essa experiência faz reconhecer Cristo nas Escrituras e na celebração do pão repartido. Para além da materialidade do pão partido está a presença de Jesus. Por isso ele ficou invisível aos discípulos. Jesus abriu-lhes os olhos e eles o reconheceram, mas não o viram. A experiência de fé é algo que brota da ação de Deus em nós através de algum sinal. Mas transpõe o sinal. Por isso a Igreja proclama na celebração eucarística: “Eis o Mistério da Fé”.

É interessante acompanhar os passos de Jesus nessa dinâmica de formar o discípulo. Dois discípulos que haviam estado com os Onze na manhã de domingo dirigem-se a Emaús depois de ouvir o relato das mulheres e de Pedro. Jesus é tomado por eles como outro peregrino que volta da festa de Jerusalém. Os dois discípulos não o reconhecem. Seus olhos “estavam impedidos” pela cegueira espiritual. Os discípulos estão angustiados pela morte de Jesus e têm dificuldade para acreditar que outro peregrino não saiba do acontecimento trágico. Descrevem Jesus como profeta poderoso em palavras e obras. Esperavam dele algo mais: o libertador de Israel. O relato do “túmulo vazio” não os levou a concluir que ele havia ressuscitado, pois a ressurreição esperada pelos judeus era a vitória geral de todos os justos, e não uma ressurreição individual no meio da história.

A cegueira dos discípulos é repreendida e ao mesmo tempo curada pelo estranho peregrino. Explica-lhes as Escrituras e eles ficam impressionados com o que Jesus dizia, a ponto de convidá-lo para ficar com eles. Este ficar ou permanecer remete-nos a Jo 15, 4-10: “Permanecei em mim como eu em vós. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto.  Permanecei no meu amor”.

Jesus partilha com eles o pão que recorda a multiplicação dos pães e a Última Ceia. Nessa “fração do pão”, nome que se dava à Eucaristia nos inícios da Igreja, eles o reconhecem. Então se lembram de que o coração “ardia” quando ele lhes falava pelo caminho. É a experiência que fazem do Ressuscitado. Essa experiência não pode ser guardada, mas compartilhada, proclamada. Por isso voltam para Jerusalém. Se antes voltavam da Cidade nas trevas, impossibilitados de enxergar, imersos em profunda angústia, decepcionados, agora retornam à Cidade cheios de ardor e de entusiasmo, iluminados.  É o que deve realizar em nós a Eucaristia, a Celebração, o encontro com Jesus Cristo na Palavra, no Pão Eucarístico. Se saímos da Celebração acabrunhados, desanimados, tristes, desencantados há alguma coisa errada. Não deveria ser assim.

Foi no “partir o pão” que eles reconheceram o Senhor. A esse propósito é oportuno recordar uma exortação de São João Crisóstomo a respeito das consequências da Eucaristia na vida do discípulo de Jesus:

“De que serve ornar de vasos de ouro a mesa do Cristo, se ele mesmo morre de fome? Começa por alimentá-lo quando está faminto, e então poderás decorar sua mesa com o supérfluo. Dize-me: se, vendo alguém privado do sustento indispensável, o deixasses em jejum e fosses enfeitar sua mesa com vasos de ouro, achas que ele te seria agradecido? Ou não ficaria indignado? Ou ainda, se vendo-o vestido de andrajos e trêmulo de frio, o deixasses sem roupa para erigir-lhe monumentos de ouro, pretendendo assim honrá-lo, não diria ele que estarias zombando dele com a mais refinada ironia?

Confessa a ti mesmo que ages assim com o Cristo, quando ele é peregrino, estrangeiro e está sem abrigo, e tu, em lugar de recebê-lo, decoras os pavimentos, as paredes e os capitéis das colunas. Suspendes candelabros com correntes de prata, e quando ele está acorrentado, não vais consolá-lo. Não digo isto para reprovar esses ornamentos, mas afirmo que é necessário fazer uma coisa sem omitir a outra; ou melhor, que se deve começar por esta, isto é, por socorrer o pobre”.

Esta exortação do “Boca de Ouro” do século IV em Antioquia/Constantinopla deveria retumbar naquelas realidades de nossas comunidades que promovem bingos, festas, quermesses e dízimo em função preponderantemente de construções, obras e reformas, ou mesmo para ornamentos e materiais litúrgicos de preços exorbitantes, reservando-se, por vezes, uma migalha para ações sociais e missionárias. A postura e as homilias de Crisóstomo deveriam ser retomadas em nossas paróquias e comunidades!

Mais do que nunca esta palavra vale também para ações governamentais de gestão dos bens públicos. Há verdadeira espoliação dos pobres, desperdício criminoso e pecaminoso do erário público brasileiro, desgoverno total em nosso País. Um pecado que brada aos céus! O que se desperdiça, se rouba, se frauda, se estorque, se destrói criminosamente em nosso País seria mais do que suficiente para dar perfeitas condições de vida digna para todos os brasileiros e brasileiras como saúde, moradia, segurança, alimentação.

São João Paulo II, na Carta Mane nobiscum, Domine, refletindo sobre este relato do Evangelho, diz: “Quando os corações são aquecidos e as mentes, iluminadas, os sinais falam”. Se permitimos que a Palavra de Deus seja a única luz a iluminar nossas decisões e a aquecer nossos corações, conseguiremos perceber os sinais de Deus na História: nos gestos simples de um pobre invisível, no olhar de uma criança, no clamor de um doente sobrante, num rio poluído que pede socorro, numa planta vicejante, na mulher oprimida e maltratada, nos direitos ameaçados. Realidades que atraem nosso olhar e imploram uma atitude de ação contemplativa e de contemplação ativa.

A Eucaristia que celebramos cotidianamente, cujos traços aparecem claramente no relato evangélico de hoje, parece estar distante de nossas ações cotidianas. Ainda a religião de rito, da fé mágica e supersticiosa, ou mesmo do moralismo fala mais forte do que a religião de vivência das realidades celebradas. Uma fé madura, esclarecida e comprometida com Jesus Cristo e seu Reino pode ser uma possibilidade de transformação de nossa história marcada pela violência, pelo ódio, pela mentira, pelo terrorismo. Deixemos que a Palavra o e Pão façam parte de nossa mesa, de nossa vida.

O texto diz que “os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles” (Lc 24,31). É preciso sair, partir, olhar pra frente, encontrar-se com os irmãos de comunidade na busca da confirmação da fé e da missão. Participar da Eucaristia e ser no mundo sinal do amor de Deus. A missão de Jesus agora é nossa. Corações aquecidos, mente iluminada, olhos abertos e firmeza no seguimento de Jesus. “Caminheiro, não existe caminho. Caminhando, o caminho se faz”. É por aí!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Luz que dissipa as trevas e afasta o medo

aureliano, 14.04.23

2º Domingo da Páscoa - A - 16 de abril.jpg

2º Domingo da Páscoa [16 de abril de 2023]

[Jo 20,19-31]

“Era noite e as portas estavam fechadas por medo”. Não nos pode passar despercebida essa realidade vivida pelos discípulos logo após a tragédia do Calvário. Para eles não havia luz: era noite. Não tinham horizonte. Não podiam vislumbrar novas possibilidades. Aquele em quem depositaram sua confiança “fracassara na cruz”.

As portas estavam fechadas. A missão lhes era impossível. Não tinham coragem de sair.  Portas fechadas para que ninguém entrasse. Também ninguém podia se beneficiar da ação deles, pois se prenderam dentro da casa. Quem está de portas fechadas não sai nem permite alguém entrar. Uma espécie de morte: sem presença, sem oxigenação, sem vida. No Apocalipse temos aquelas provocadoras palavras: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele” (Ap 3,20). Comunidade cristã, discípulo de Jesus não combina com porta fechada. Aliás, o Papa Francisco tem alertado para nossos templos católicos com portas fechadas: “A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais concretos dessa abertura é ter, por todo lado, igrejas com portas abertas” (EG, 47).

E o medo? Realidade terrível! Esse sentimento paralisa as pessoas. Impede que se façam boas ações. Muitas vezes reduz a pessoa dentro de seu eu, tornando-a ensimesmada. O medroso não arrisca. Mantém a porta fechada. Investe em sua própria segurança, por vezes em detrimento dos demais. O medo não permite amar. Impede de amar o mundo como Jesus amou. Não lhe confere o ‘sopro’ da vida e da esperança.

Eis que Jesus entra na casa. Para ele não há noite nem portas fechadas nem, muito menos, medo. Ele vem libertar os discípulos desses males que emperram a missão que lhes confiara. Não lhes impõe as mãos nem lhes dá a bênção, como sói fazer aos doentes. Jesus sopra sobre eles o sopro da força que vence o medo e lhes comunica a esperança. O sopro santo que tira o pecado e os envia em missão. As portas então se abrem, o medo se dissipa, pois a Luz venceu a escuridão que os envolvia.

É Jesus ressuscitado que salva a Igreja. É ele que vence o medo que nos envolve e paralisa. É ele que abre as portas do egoísmo e da indiferença. É ele que dá a esperança. Na força dele realizamos a missão. Cremos que ele continua vivo em nosso meio. Conhecedor de nossa fragilidade, ele continua a nos dizer: “Recebei o Espírito Santo”.

------------xxxxx------------

ACOMUNIDADE BROTA E SE ALIMENTA DO RESSUSCITADO

O evangelho narra a aparição de Jesus aos Apóstolos no dia da Páscoa, primeiro dia da semana, e o episódio de Tomé oito dias depois. Por isso, ao primeiro dia da semana, chamamos Domingo: o dia do Senhor. É o dia da Ressurreição de Jesus, dia da Criação, dia do descanso do Homem/Mulher criados por Deus à sua imagem. Dia em que a comunidade cristã se reúne para dar graças ao Pai na celebração eucarística.

O relato mostra a identidade entre aquele que ressuscitou e o que foi crucificado. Por isso o Ressuscitado mostra a Tomé as marcas da paixão. Tomé representa a comunidade que duvida e que depois acredita. Aqueles que devem crer no testemunho dos apóstolos. Se no início a comunidade é acometida pelo medo, agora é tomada pelo novo vigor e alegria de crer no Cristo ressuscitado, presente em seu meio.

“Bem-aventurados os que crerem sem terem visto”. Em vez de provas palpáveis, nos é transmitido o testemunho escrito das testemunhas oculares de tudo quanto Jesus fez e ensinou. Vivemos num mundo em que se exigem provas para acreditar. Muitos correm atrás de “milagres”. Se para acreditar precisamos de provas, de sinais do céu, restar-nos-ia acreditar em quê? Nossa fé não vem de provas palpáveis, mas das “testemunhas designadas por Deus” (At 10, 41). Nós acreditamos naquelas realidades que elas acreditaram e no-las anunciaram. Sabemos que seremos felizes se crermos sem ter visto.

Acreditamos na comunidade que os Apóstolos fundaram a partir da fé na ressurreição. É nesta comunidade que somos iniciados na fé, no discipulado. “A fé e o tesouro da mensagem evangélica são realidades que não se recebem pessoalmente, mas através da comunidade. A iniciação cristã pressupõe uma comunidade de fé” (Dom A. Possamai). Não é possível ser cristão sem estar inserido numa comunidade de fé. Nossa fé não é privada, mas apostólica e eclesial. “Para ser fiel a Cristo não basta orar e celebrar; é preciso fazer o que ele fez: repartir a vida com os irmãos. Crer não é somente aceitar verdades. É agir segundo a verdade do ser discípulo e seguidor de Cristo” (Pe. J. Konings).

Mais. Enquanto Tomé não fizera o encontro com o Senhor Ressuscitado tocando-lhe a chaga, não acreditara naquele a quem seguira por anos. O texto não diz que Tomé tocou a chaga do Mestre, mas permite perceber que ele a vira: “Estende tua mão e põe-na no meu lado... Porque viste, creste...” (Jo 20,27.29). Concluímos que, somente aquele que “tocar” a chaga do Ressuscitado poderá fazer uma profissão de fé que brota de dentro, isto é, verdadeira e comprometida. E que “chaga” é esta? Os pobres, preferidos do Senhor com quem ele se identifica: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Em outras palavras: quem diz crer em Jesus Ressuscitado e não o reconhece (“toca”) nos pobres e sofredores, mostra uma fé cristã imatura e inadequada. E se Tomé representa a comunidade cristã, o que foi dito vale para a comunidade que se diz cristã, mas não “toca” os pobres.

A propósito ainda de Tomé, esta figura controvertida do evangelho de João, podemos afirmar que suas dúvidas e objeções transformaram-se em bênçãos para nós. Quando na Ceia Jesus afirmou: “Para onde eu vou, vós já conheceis o caminho”, Tomé responde: “Senhor, não sabemos para onde vais; como podemos conhecer o caminho?” Esta objeção de Tomé arrancou de Jesus uma das mais sublimes palavras do evangelho: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,4-6). São Gregório Magno, a propósito de Tomé, escreveu em uma de suas homilias: “A incredulidade de Tomé foi para nós mais útil do que a fé dos discípulos que haviam acreditado”. Suas dúvidas beneficiaram a fé na ressurreição.

Mais um pouquinho de Tomé. O Mestre, naquele encontro com seu apóstolo “incrédulo”, faz com que eleve seu nível de fé. Restabelecido pela presença do Ressuscitado, Tomé pronuncia aquelas palavras que ainda nenhum apóstolo atrevera a dizer, ao menos que se tenha registrado nos Evangelhos, a respeito de Jesus: “Meu Senhor e meu Deus”.

Peçamos ao Senhor que nos ajude na nossa pouca fé para que as sombras da dúvida, as incertezas e mesmo a perseguição ou o fracasso não nos dominem impedindo de levar a alegria da boa nova àqueles que jazem no desencanto, na desesperança, no isolamento. A experiência do encontro com o Ressuscitado deu novo vigor à comunidade para que pudesse continuar a missão de Jesus. E, já que não podemos “tocar” ou “ver” as chagas do Ressuscitado, Ele, como fizera ao leproso que lhe suplicara: “Senhor, se queres podes curar-me”, ao que responde: “Quero; fica curado!” (cf. Mt 8,2-3), toque e cure nossas chagas, incontestavelmente diversas das suas, pois produzidas pelo pecado ou pela nossa própria condição humana. Que a Eucaristia que celebramos, encontro com o Ressuscitado, nos liberte do medo, nos encha de alegria e de ardor para partilharmos com os mais necessitados o pão, a palavra, o afeto, a acolhida, a solidariedade, o perdão.

----------xxxxx-----------

UM ENCONTRO QUE TRANSFORMA

O evangelho deste domingo nos convida a lançar um olhar sobre nossas assembleias dominicais: como celebramos e que sentido continua tendo o domingo para nós cristãos? As celebrações não precisam ser teatrais nem shows para “atrair” as pessoas. Nem se destinam a isso! Precisamos de celebrações que ajudem os fiéis a fazer uma verdadeira experiência de Deus. E o domingo, o dia do Senhor, dia do descanso, dia da Criação, dia da Ressurreição, precisa recuperar seu sentido na vida do cristão.

Vivemos um tempo de crise sem precedentes na história da Igreja. Também a trajetória política e econômica de nosso País nos desencanta e entristece. Se não nos voltarmos para Jesus Cristo, realizando um encontro profundo com ele, um encontro capaz de renovar nossas estruturas mentais, de romper as dobras de nosso coração, não se manterá viva na história a memória de Jesus Ressuscitado. Pois há motivos de sobra para nos desacorçoarmos e desistirmos de nossa missão profética na história. Assim a Igreja ficaria omissa na sua missão de continuadora e atualizadora, pela força do Espírito Santo, dos gestos e palavras de Jesus.

O encontro com Jesus ressuscitado transformou a vida dos discípulos. E Tomé foi movido por aquela alegria contagiante de seus companheiros que lhe disseram: “Vimos o Senhor!” Embora tenha, inicialmente, relutado a crer, a fé dos seus irmãos o motivou a continuar dentro da comunidade. E Jesus lhe confirma a fé.

Tomé duvidou. O relato tem duas intenções: primeiro, quer mostrar que fora da comunidade é muito difícil de se crer e se salvar; segundo, esse relato quer dizer que é preciso crer no testemunho dos discípulos. Não é preciso ver para crer. Confirma o que ocorreu ao discípulo que Jesus amava: viu o túmulo vazio e creu (cf. Jo 20,8). Sem ter visto o Senhor ressuscitado, acreditou. Quem ama, crê. Isso veio desfazer uma mentalidade crescente, na época, que todos os que quisessem aderir à fé cristã precisavam “ver” o Ressuscitado. De ora em diante se confirmou: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto”.

Ainda um elemento que não pode ser esquecido no relato de hoje é o dom da Paz que Jesus dá aos discípulos e o dom do Perdão, grande presente pascal. A alegria da comunidade é experimentar, em meio ao medo da perseguição das autoridades judaicas, a paz que brota do coração amoroso de Cristo. E Jesus, sabendo das fraquezas humanas e dos pecados que daí provinham, oferece a “segunda tábua de salvação”, o sacramento da Reconciliação: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados”.

Mais do que nunca é urgente reafirmar nossa fé no Ressuscitado e na sua presença em nosso meio. Não se trata de pregar, de falar, de tentar convencer com afirmações doutrinais apenas, num proselitismo fanático. Isso vale muito pouco para o mundo em que vivemos. É preciso fazer experiência de um encontro verdadeiro. É notável quando uma comunidade está verdadeiramente imbuída do espírito de Jesus Ressuscitado. Ela procura viver como Jesus viveu: sabe escutar, tem sensibilidade, está atenta ao mais sofrido e necessitado. Não se rege por normas e leis, mas pela misericórdia. Não tem medo de enfrentar dificuldades e perseguições por causa de Cristo e em defesa dos pequenos e sofredores. Essa comunidade não se deixa levar pelo medo nem pela mania de grandeza nem pela ganância do dinheiro, do poder e da competição. Ela manifesta, no seu agir, o agir de Cristo. A comunidade se torna um espaço em que se experimenta a presença viva do Ressuscitado.

Sem a força do Cristo ressuscitado continuaremos com medo e de portas fechadas. Se não buscamos nele a força e orientação de como lidar com os desafios atuais, não conseguiremos alimentar a esperança daqueles que ainda permanecem em nossas comunidades e, muito menos, atingiremos os ‘de fora’.

A paz, o perdão e a alegria são frutos da ressurreição. Quando participamos das celebrações e atividades de nossas comunidades precisamos voltar para casa mais animados, mais apaixonados por Jesus Cristo, mais confiantes, mais seguros de que estamos no caminho certo, mais vibrantes em nossa fé, mais dispostos a colaborar e em construir fraternidade. Se isso não estiver acontecendo, precisamos rever nossas celebrações, nossas comunidades e nossa vida.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Um ano depois: ressignificando memórias do papai

aureliano, 13.04.23

18664290_1047063755427576_3842704319493543481_n.jp

Há exatamente um ano papai partia para a eternidade: 13/04/2022. Estava relativamente bem, sofrendo falta de ar com certa frequência. Internado, foi definhando progressivamente. Embora consciente, foi perdendo a capacidade de respirar sem auxílio de aparelho. Foram apenas 13 dias de hospital. Ficaram apenas as memórias inesquecíveis. Algumas histórias e fatos vão sendo relembrados, ressignificados.

Sou o sétimo filho, dividindo exatamente o meio da prole: seis acima de mim, dos quais dois morreram ainda criancinhas; e seis abaixo. Portanto não tenho tantas lembranças, mas trago algumas no coração. Como cada pessoa é única e experimenta a vida de modo peculiar, registro aqui alguns episódios que, para quem está fora do contexto, podem parecer pitorescos, para mim, porém, são altamente significativos.

Nos tempos passados papai era um homem sisudo. De pouco sorriso. Sobretudo com os filhos mantinha um ar de bravo, fechado, sério. Hoje releio essa postura a partir das dificuldades que ele vivia. Esposa doente, filhos aos montes, situação financeira difícil, precaríssima. Certamente acordava todos os dias pensando como iria garantir o alimento para a filharada. Nunca o ouvi se lamentar, comentar sobre as dificuldades econômicas. Sempre trabalhador. Sem desespero. Sem aflição. Notava que sempre confiou no Pai do céu. Sua devoção a Nossa Senhora parecia ser sua grande âncora da vida. Depois da aposentadoria, quando a vida lhe sorriu com leveza, seu ar de sisudez diminuiu. Tornou-se mais aberto, afável. Sobretudo com os netos: gostava de brincar, de jogar baralho, de se comunicar nas redes sociais, de contar histórias. Escreveu três livrinhos autobiográficos. Ficou tão feliz com a publicação! Então papai não era um homem infeliz, mas as intempéries da vida o faziam sisudo.

Naqueles tempos difíceis, a roupa era surrada, rasgada, às vezes remendada, escassa. Pés no chão. Parece que ele se sentia bem assim. Livre. Ia pra roça e pra cidade assim, pés descalço. Quando o serviço era mais longe de casa, costumava dormir por lá. Não tinha nenhum meio de transporte. Sempre a pé ou de carona. Quando era mais perto saía bem cedo, sem café, ou tendo tomado uma água doce de rapadura, e partia para o duro trabalho diário para salvar o pão das crianças. Voltava, às vezes, à noite, desfiando o rosário, seu fiel companheiro. Chegava, sentava no banco de tábua da cozinha: os menores disputavam seu colo. Nunca espaventou os pequenos! Mostrava-se afetuoso. Terço na mão, cansaço, sono nos olho; terço caía, e ele pegava de volta e retomava. Lamparina acesa, fogão a lenha normalmente apagado ou na cinza quente. Janta? Quando tinha, um feijão cozido...

E quando as crises da mamãe apertavam? Mal epilético repetitivo, um atrás do outro; ou a braveza quase enlouquecida; ou quando estava para dar à luz a mais um filho? Papai longe de casa... Os mais velhos, que ainda eram novos, por vezes saíam, altas horas da noite, para chamar o papai. Era o único “médico”, o recurso possível. Lamparina na mão ou mesmo na escuridão ou à luz da lua, lá iam, normalmente dois, um fazendo companhia ao outro, encorajando contra o medo de assombração. Meu Deus! Sem energia elétrica, sem água encanada, sem transporte, e o pior, comida pouca, pouquíssima! No máximo um almoço e uma jantinha mais ou menos. O resto era por conta de Deus e da natureza. Vida difícil! Mas o papai estava por ali, um baluarte, um esteio, uma segurança pra todos nós!

Gente, não tem outra explicação senão sua vida de oração, de comunhão com Deus, de fé inabalável, de confiança inquebrantável. Ele tinha uma experiência de Deus tão profunda que os “mistérios dolorosos” não suplantavam os “mistérios da glória” em sua vida. Pelo contrário, fortaleciam sua esperança: “Seja feita a vontade de Deus”, não se cansava de repetir. Sua vida foi cuidar da família, ajudar a quem precisava, trabalhar e participar das coisas da Igreja, na sua consciência possível de experiência de fé.

Não tinha vaidade de seus conhecimentos profissionais. Não se exibia. Não escolhia serviço. Plantava milho, feijão arroz. Roçava o pasto. Trabalhava de pedreiro, bombeiro, eletricista, carpinteiro, carapina. Administrava turmas de serviço em construção civil na condição de mestre de obras. Era craque também na gambiarra: recurso do pobre.

As memórias da vida do papai me revigoram nas lides da vida. A presença dele era discreta, porém marcante. Sobretudo para a mamãe, que tem reclamado solidão depois da morte dele. Embora não tenhamos dito a ela que o papai se foi, ela sempre reclama, não obstante sua demência: “Estou sozinha!”. “Não sei como é que vou arrumar!”. Mas parece que Deus tem confortado a ela de alguma forma, quando ela diz, vez por outra: “Ele (marido) estava aqui”. “Zé Lopes acabou de sair” etc. Papai foi o guardião da mamãe. Sempre zelou por ela. Quando a mamãe estava internada e ele também, exatamente há um ano atrás, perguntava por ela. Quando ela recebeu alta e foi pra casa, ficando ele internado em quadro mais agravado, perguntou por ela etc. E dizia em outros tempos: “Gostaria de morrer depois da Juracy, para ela não sofrer muito, pois eu compreendo ela”.

Sempre atento em ajudar os filhos. Nas minhas visitas à família, quando ia pedir a bênção para viajar, ele perguntava: “Está precisando de dinheiro? Não tenho muito, não, mas posso ajudar”. Normalmente pegava um valor e me dava. Ainda depois de padre, sempre ele oferecia alguma coisa. Eu dizia que não precisava, mas ele fazia questão de entregar e dizia que era para ajudar nas despesas do Seminário, da Congregação. Tinha sempre a consciência de colaboração, de partilha, de serviço.

Por falar em dinheiro, meus irmãos todos sabem disso: papai nunca escondeu dinheiro. Antigamente ele guardava os trocados numa latinha sobre a mesa do quarto ou numa prateleira etc. depois que teve condições de comprar uma cômoda, ele sempre guardava na gaveta da cômoda. Nunca, mas nunca, debaixo de chave. Que eu saiba, também nunca brigou por conta dinheiro nem por conta de herança. Por ocasião da divisão da herança da vovó Luzia, sua mãe, ele, primogênito, deixou os irmãos escolherem para anexarem o terreno que já tinham. O dele ficou totalmente fora de mão. Foi opção dele para o bem e a paz entre os irmãos. Homem desapegado. Prova disso é que, ainda em vida, doou aos filhos o cantinho de terra que herdara dos pais, fazendo ele mesmo a demarcação e todos os registros em cartório. Morreu sem ter nada. Um dinheirinho guardado para cuidar da mamãe, como ele mesmo havia asseverado à Maria Marta, filha mais velha, que esteve sempre ao lado dele e da mamãe.

São algumas memórias que faço esses dias ao celebrar o primeiro aniversário de sua Páscoa definitiva. Sei que ele está no Coração do Pai. Sei que ele pede a Deus e a Nossa Senhora por nós, particularmente pela mamãe. Sei que ele está ao lado dela, como sempre esteve. Ele vive envolvido pelo Amor Eterno. E nesse Amor, que é o próprio Deus, somos envolvidos e guardados até o dia em que também formos chamados. E a cada dia que passa, essa hora se aproxima.

Obrigado, papai, pela sua vida dedicada a nós, seus filhos! Obrigado por cada esforço, luta, renúncia, trabalho pelo nosso bem! Sua vida de entrega a Deus e de empenho para incutir em nós os princípios do Evangelho, tais como a concórdia, o perdão, a honestidade, a caridade, a justiça, a verdade, o respeito, a partilha, a serenidade, a busca da vontade de Deus, o espírito de fé e de confiança, a humildade, o desprendimento, é recompensada por Deus e guardada por nós!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Pajuçara/Maracanaú, 13 de abril de 2023

Alegrem-se: a morte foi vencida!

aureliano, 08.04.23

Domingo da Ressurreição - 09 de abril.jpg

Páscoa do Senhor [09 de abril de 2023]

[Jo 20,1-9; Mt 28,1-10]

Pedro e Madalena representam, aqui, a comunidade que ainda duvidava da ressurreição de Jesus. Estavam em busca de provas e elementos que dessem sentido à vida deles, uma vez que, aquele em quem confiavam, morrera na cruz.

Quando o evangelho menciona “o primeiro dia da semana”, remete o leitor à criação do mundo, narrada no livro do Gênesis, para mostrar que a Ressurreição de Jesus é a Nova Criação. O fiel cristão, batizado, entra numa vida nova, na Nova Criação de Deus. O mundo velho passou. Agora, é tudo novo.

A “madrugada” lembra o alvorecer que desfaz as trevas da morte. Agora a vida brilhou no horizonte. A madrugada, embora traga em si o sinal do dia, possui também uma penumbra que impede de enxergar com clareza. É o que acontecia com Maria Madalena: “ainda estava escuro”. A comunidade ainda estava temerosa.

A “pedra removida” e o “túmulo vazio” são sinais de que algo novo aconteceu. É um sinal negativo da ressurreição. Esses sinais indicavam que Jesus não estava ali, porém não garantiam sua ressurreição.  A “pedra removida” significa que a morte foi vencida. O túmulo não é o último lugar do ser humano. Este, pelo Cristo ressuscitado, vence também a morte e entra na vida que não tem fim, a vida eterna que já começara aqui, a partir da vida vivida em Deus, à semelhança de Cristo.

O “túmulo vazio” não é prova da ressurreição. A fé na ressurreição não vem da visão, mas da experiência de fé. As “aparições” de Jesus ressuscitado é que vão consolidar a fé dos discípulos. É o dado da fé. Uma realidade que transcende a razão. Não contradiz a razão, mas está para além da compreensão puramente racional. Por isso Santo Agostinho dirá: “Credo ut intelligam”: creio para compreender. Nós cremos pelo testemunho de fé da comunidade. A fé nos é transmitida. Cremos a partir da experiência que outros fizeram. Fazendo nós também essa experiência, transmitimo-la àqueles que a buscam. Porém, tudo é ação da Graça de Deus.

Pedro e o “outro discípulo” vão correndo ao túmulo. O “discípulo amado” chega primeiro que Pedro. Quem ama tem pressa. Ele “viu, e acreditou”. É o amor que faz reconhecer na ausência (túmulo vazio) a presença gloriosa do Cristo ressuscitado. Agora os discípulos entendem o que significa “ressuscitar dos mortos”. Agora eles vêem, não com os olhos humanos, mas com os olhos da fé. Agora estão iluminados pelo sopro do Espírito Divino que animou Jesus.

Nenhum evangelista se atreveu a narrar a ressurreição de Jesus. Não é um fato “histórico” propriamente dito, como tantos outros que acontecem no mundo e que podemos constatar e verificar, empiricamente. É um “fato real”, que aconteceu realmente. Para nós cristãos, é o fato mais importante e decisivo que já aconteceu na história da humanidade. Um acontecimento que traz sentido novo à vida humana, que fundamenta a verdadeira esperança, que traz sentido para uma das realidades mais angustiantes do ser humano: a morte. Esta não tem mais a última palavra. A pedra que fechava o túmulo foi retirada. A ressurreição é um convite, em última instância, a crer que Deus não abandona aqueles que o amaram até o fim, que tiveram a coragem de viver e de morrer por Ele.

O núcleo central da ressurreição de Jesus é o encontro que os discípulos fizeram com ele, agora cheio de vida, a transmitir-lhes o perdão e a paz. Daqui brota a missão: transmitir, comunicar aos outros essa experiência nova e fundante de suas vidas. Não se trata de transmitir uma doutrina, mas despertar nos novos discípulos o desejo de aprender a viver a partir de Jesus e se comprometer a segui-lo fielmente.

---------xxxxx---------

ELE VIVE PARA ALÉM DA MORTE

O Senhor ressuscitou em verdade (cf Lc 24, 34). A Igreja celebra a ressurreição do Senhor no primeiro dia da semana, o domingo. Domingo vem de dominus, senhor. Ele dominou a morte e o pecado. Por isso é Senhor. Ele exerce o senhorio sobre nós. Nós somos seus servos, servidores do Reino de Deus que Jesus inaugurou.

O evangelho diz que Maria Madalena foi ao túmulo “quando ainda estava escuro”. Essa escuridão simboliza as sombras (angústias) vividas pelos discípulos após a morte de Jesus. Era como se todo o sonho tivesse acabado. Não sabiam o que fazer. Estavam na escuridão.

O testemunho da ressurreição inclui dois elementos: o sepulcro vazio e a aparição do Ressuscitado. O sepulcro vazio constitui um sinal negativo. Só fala ao “discípulo que ele amava”: “Ele viu e acreditou”. Ou seja, os sinais falam quando o coração está aquecido pelo amor. É preciso ser amigo de Jesus para compreender seus sinais. Já a aparição do Ressuscitado acontece no caminho de Emaús (Lc 24), aos discípulos desejosos de ver o Senhor e auscultar sua Palavra. No gesto da partilha do pão seus olhos se abrem e eles o reconhecem. Em seguida assumem a missão: “Naquela mesma hora, levantaram-se e voltaram para Jerusalém” (Lc 24, 33).

A escuridão da madrugada e o túmulo vazio nos dizem que por vezes ficamos confusos diante da maldade humana, diante de tantos abusos do poder, de tanta violência e morte, de tanta corrupção que desencanta e desestimula o poder do voto nas eleições, diante do sofrimento sem fim dos refugiados de guerras civis, diante das vítimas desassistidas do covid-19, diante da fome e do desmonte das políticas públicas; e somos levados a perguntar: “Deus, onde estás?”. Mas a experiência de fé nos diz que na morte (‘túmulo vazio’, ‘noite’) há sinais de vida; na escuridão há lampejos de luz. Para isso é preciso ser “amigo de Jesus” (discípulo amado), ou seja, ser próximo dele, conviver com ele, reclinar-se sobre seu peito (cf. Jo 13,25).

Esse tempo pascal nos convida a assumir a vida nova que Jesus Ressuscitado veio nos trazer sendo uma presença de luz, de testemunho vivo contra toda maldade junto àqueles que o Pai colocou no nosso caminho.

Ressurreição é luta contra o tráfico de seres humanos, contra as injustiças sociais, contra a prostituição e abuso de crianças e adolescentes. É dizer não ao desrespeito aos povos indígenas, ao mundo das drogas, à indiferença ecológica. Ressurreição é se contrapor, ainda que à semelhança de alguém que ‘clama no deserto’, a esse mar de corrupção e mentiras, ganância e deslealdade que pervadem nossa sociedade brasileira; é dizer não aos desmandos de quem se julga no direito de retirar o pão da mesa dos trabalhadores pobres, das mulheres sofridas, das crianças sem amparo, negando-lhes o salário mínimo do benefício da Previdência Social. Páscoa é libertação de tudo o que oprime, maltrata e fere.

Ressurreição é ser testemunha da esperança numa sociedade materialista e desumana, onde o túmulo está vazio e as sombras da morte parecem prevalecer. Páscoa é continuar afirmando com a vida: “Ele vive e está no meio de nós!”. A obscuridade e o desalento trazidos pelo coronavírus, levando as pessoas ao desencanto e ao adoecimento emocional, bem como a realidades de dor e sofrimento, não são o fim. O Senhor está vivo e caminha conosco. Como aos discípulos de Emaús, ele abre nossos olhos para enxergarmos o mundo com um novo olhar: “Então seus olhos se abriram e eles o reconheceram” (Lc 24,31). Somente o encontro com o Senhor Ressuscitado é capaz de nos devolver a verdadeira alegria de viver, como ao etíope, funcionário de Candace, rainha da Etiópia: “Prosseguiu na sua jornada alegremente” (At 8,39).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN