Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

aurelius

aurelius

Caminhos de santidade

aureliano, 01.11.24

Solenidade de todos os Santos 2019.jpg

Solenidade de Todos os Santos e Santas [03 de novembro de 2024]

[Mt 5,1-12]

Na profissão de fé que fazemos todos os domingos, confessamos: “(Creio) na comunhão dos santos”. Muitas vezes rezamos assim sem saber bem o que isso significa. A solenidade de hoje nos ajuda a entender o conteúdo dessa afirmação: cremos que todos aqueles que confessaram o Cristo e o testemunharam em suas vidas, que todos aqueles que já nos precederam na fé e que procuraram viver neste mundo a comunhão de vida com o Pai, estão juntos de Deus e juntos de nós. Em outras palavras: há um intercâmbio de dons e de orações entre aqueles que crêem no Cristo. “O termo ‘comunhão dos santos’ tem dois significados, intimamente interligados: ‘comunhão nas coisas santas (sancta)’ e ‘comunhão entre as pessoas santas (sancti)’” (Catecismo da Igreja Católica, 948).

Há pessoas que passaram por esta vida e que foram proclamadas pela Igreja como santas, dadas à comunidade como exemplo/inspiração de vida cristã e intercessoras junto a Deus. A Igreja quer afirmar também que elas estão, com certeza, na luz de Deus. Há, porém, uma infinidade de pessoas que viveram neste mundo uma vida santa, fazendo o bem, doando-se aos outros e que são anônimas: não tiveram nem têm nenhum reconhecimento, seus nomes não são lembrados. Muitas delas, às vezes, foram nossos vizinhos, parentes, colegas de trabalho etc. Pois bem, hoje é dia delas também: celebradas no Santo de Deus, Jesus Cristo, que se oferece em cada Eucaristia para nos santificar.

Quando Jesus proclama as Bem-aventuranças, ele está apresentando um programa de vida para aqueles que se dispõem a segui-lo. Em outro lugar ele diz que quem quiser segui-lo deve ‘tomar a cruz’, cotidianamente. Aqui ele não diz coisas muito diferentes. Viver uma vida pobre (desprendida) em favor dos pobres, promover a paz, suportar tribulação e aflição, ser sedento da justiça do reino, ser puro numa sociedade que só vê no outro uma possibilidade de “comê-lo=consumi-lo”, ser perseguido por causa da justiça, são realidades que necessitam de um permanente convívio com o Mestre para aprendermos dele, sermos fortalecidos por ele nesse caminho. São os caminhos da santidade.

A posse de bens e sucesso não é sinônimo de felicidade. Quem tem tudo e não precisa de nada nem de ninguém é a pessoa mais pobre que existe porque ela não tem sequer a si mesma, não se pertence, mas pertence àquelas coisas que julga possuir. Não é ela que tem dinheiro e bens, mas são os bens e o dinheiro que a têm. É uma situação triste, objetal, de escravidão! É idolatria.

Feliz não é o elogiado por todos, o aprovado por todos os poderosos do mundo, o aplaudido, que vive a fama nos palcos e nos palácios. Feliz não é aquele que por ninguém é perseguido, pois é uma pessoa que não tem nada para dizer, em nada colabora, nada acrescenta, só sabe negar-se a si mesmo e à própria consciência para agradar aos que têm poder e dinheiro. Parece agradar a todos, só não agrada a si mesmo. Vive em torno de si, num narcisismo desgraçado que o faz afogar-se na sua própria imagem, morrendo desesperado e desiludido.

Felizes são o pobre (humilde) e o perseguido por causa da justiça do Reino. Como eles, muitos outros também serão felizes. Isso é ser santo.

---------xxxxx----------

EM QUE CONSISTE A FELICIDADE?

O evangelho de hoje nos ajuda a encontrar o caminho da verdadeira felicidade. Por vezes julgamos que felicidade é viver bem, é sentir-se bem, é ter muitas posses e riquezas, é posar ao lado de gente famosa, é curtir festas, praias, churrascos e bebidas, noitadas e boemias.

A busca da felicidade revela um desejo divino dentro do coração humano. O problema é que nos enganamos com facilidade, identificando felicidade com realização de desejos pessoais puramente mundanos e egoístas. Todas as vezes que nos entregamos aos instintos egoístas, nos afastamos dos caminhos da felicidade. Por outro lado, todas as vezes que saímos de nós mesmos em busca da defesa da vida, de devolvermos a alegria aos tristes, de incluirmos os oprimidos e marginalizados, de nos colocarmos ao lado dos pequenos e sofredores estamos trilhando os caminhos da felicidade verdadeira. Foi o caminho de Jesus.

Quando lançamos um olhar para a comunidade judaica do tempo de Jesus, podemos identificar o que significava felicidade para aquelas pessoas: terra, filhos, prática religiosa, saúde, vida longa, abundante colheita, paz com os vizinhos.

Mas quando olhamos para a vida de Jesus notamos que seu ideal de felicidade ia além de posses e realizações puramente materiais e individuais. Nesse aspecto ele se distanciava do ideal de felicidade presente na cultura de seus correligionários. O modo de vida de Jesus era diferente. Suas buscas não estavam dentro de si mesmo, mas no cumprimento da vontade do Pai, no cuidado com os pequenos e pobres, no perdão dado aos pecadores, na cura dos doentes e sofredores. Sua vida não girava em torno de si mesmo. Sua felicidade consistia em fazer felizes os outros. Pois essa era a vontade do Pai. Não sabia ser feliz sozinho. Neste sentido era contracultural, remava contra a maré.

Jesus veio nos ensinar que a felicidade está no empenho em atender aos interesses e necessidades dos pequeninos do Reino. Pede que não busquemos felicidade nos próprios interesses nem mesmo nos interesses da própria religião, mas fazendo da religião um modo de viver que promova o bem e a alegria de todas as pessoas.

Felizes os que têm coração de pobre, que sabem viver com pouco. Felizes os que trabalham pela paz. Felizes os que choram diante do sofrimento de alguém e lhe prestam auxílio. Felizes os que se empenham por ter um coração puro e um olhar divino: sem preconceito, sem ganância, sem julgamento. Felizes os que são perseguidos por promoverem a justiça e a fraternidade. Felizes aqueles que não guardam ódio e rancor no coração e que perdoam com generosidade. Felizes os que sabem partilhar o que têm com quem passa necessidade. Felizes os que dispõem do seu tempo para ajudar alguém. Felizes são todos aqueles que procuram conformar sua vida com a vida de Jesus: serão consolados, saciados, alcançarão misericórdia, reinarão com Cristo na vida em que toda lágrima será enxugada.

-------xxxxx--------

“Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra. És uma consagrada ou um consagrado? Sê santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado? Sê santo, amando e cuidando do teu marido ou da tua esposa, como Cristo fez com a Igreja. És um trabalhador? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho ao serviço dos irmãos. És progenitor, avó ou avô? Sê santo, ensinando com paciência as crianças a seguirem a Jesus. Estás investido em autoridade? Sê santo, lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais” (Gaudete et Exsultate, 14).

---------xxxxx----------

O que há em comum nos santos? Uma vida focada em Deus. Uma busca permanente de viverem o evangelho. As bem-aventuranças estão sempre no seu horizonte: mansidão, humildade, honestidade, partilha, simplicidade, generosidade, entrega, serviço. Assim deixaram para nós rastros profundos de vida e de experiência de Deus.

O que há de diferente entre eles? São diferentes entre si: jovens, mulheres, anciãos; uns no mundo e outros nos conventos e eremitérios. Uns nos campos e outros nas cidades. Uns no comércio e outros nas salas de aula, nos espaços de decisões políticas, uns casados e outros celibatários etc. Cada santo ou santa vivendo o amor de Deus à sua maneira, na sua circunstância, na sua vocação.

Não há santos de primeira categoria e outros de segunda. Participam todos da santidade de Deus. Não são santos individualistamente , mas na comunhão dos santos.

Não é busca de “medalha”, de conquista, de competição, de merecer mais do que o outro. É vivência do amor de Deus para o bem do próximo e da humanidade. Santos são aqueles que acolheram o dom de Deus e procuraram viver essa saída de si em favor de quem mais precisa.

A Igreja precisa voltar a anunciar a alegria, a felicidade: “Felizes os pobres...”. E deixar para trás a proclamação da dor, do sofrimento, do perfeccionismo, do moralismo, da vida eterna como “conquista” ao invés de dom e graça. As pessoas precisam voltar a experimentar a alegria de ser cristãs, de ser católicas, de participar, de viver sua santidade no cotidiano de maneira leve como propôs Jesus: “Vinde a mim todos vós que estais cansados... Meu fardo é leve”. Ser santo é buscar ser humano, bastante humano, gente como Jesus.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Finados: a volta para a casa do Pai

aureliano, 30.10.24

finados 2019.jpg

Comemoração de todos os fiéis defuntos [02 de novembro de 2024]

[Mt 11,25-30 ou Mt 25,31-46 ou Jo 6,37-40]

Para o cristão, celebrar Finados é o mesmo que celebrar a Esperança. A vitória de Cristo sobre o pecado e a morte é critério para o cristão no momento decisivo de sua partida, ou na participação na morte de alguém. “O último inimigo a ser vencido é a morte” (1Cor 15, 26). O mistério da vinda do Filho de Deus a este mundo (Encarnação) e sua Morte e Ressurreição colocou um ponto final sobre a nossa morte.

“A vontade daquele que me enviou é esta: que eu não perca nada do que ele me deu, mas que o ressuscite no último dia” (Jo 6,39). Quando Jesus faz essa afirmação na sinagoga de Cafarnaum, numa belíssima palavra sobre sua vinda a esse mundo como “pão da vida”, deixa claro o desígnio do Pai a respeito do ser humano: fomos criados para a comunhão plena com Deus, participando de uma vida que não tem ocaso. A ressurreição para a vida é a meta de todo aquele que empenha suas forças em ser bom à semelhança de Jesus de Nazaré: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Ele põe abaixo aquela ideia existencialista de que o ser humano é um “ser para a morte”.

A morte para o cristão é um mistério. Isto é, ela só pode ser compreendida à luz do que aconteceu com Jesus de Nazaré. Assim como Ele foi aprovado por Deus, assim também aquele que procura viver como ele viveu será aprovado, ressuscitado pelo Pai. Ressurreição é passagem da morte para a vida (cf. Jo 20,1-18); do pecado para a graça (cf. Cl 1,21-22). É chegar à comunhão com Deus para viver com ele eternamente (cf. Ap 21,1-7). Ressurreição é uma vida vivida em Deus, para Deus, a serviço dos pequeninos do Reino.

Finados ou o falecimento de pessoas queridas pode ser uma “pedra de toque” na nossa vida. Ajuda-nos a valorizar o que ultrapassa os limites da matéria. Lembra-nos a importância de morrermos para nós mesmos. A morte é uma realidade espiritual que confirma a definitiva e inabalável superação do homem confinado na perspectiva material.

Um texto que ajuda a despertar a esperança e a confiança são aquelas palavras de Isaías: “Por acaso uma mulher se esquecerá da sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem, eu não me esqueceria de ti!” (Is 49,15).

Aquele que nos deu a vida e nos fez sair do aconchegante ventre materno para a luz do dia, há de nos fazer sair deste mundo, demasiadamente limitado, para a luz e a paz de Deus. “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam” (1Cor 2,9).

-----------xxxxx------------

EM CRISTO, A VIDA PREVALECE SOBRE A MORTE - (Jo 11,17-45)

Defunto vem do particípio latino, defunctu, de+fungor, significa falecido, aquele que cumpriu inteiramente sua função. Quando, na Igreja, esta palavra é acrescida do termo ‘fiéis’, quer dizer que há algo mais do que uma mera função cumprida. O cristão e todo aquele que busca viver os valores do Evangelho não termina sua vida na morte. Não perde simplesmente uma função ao morrer. Sua vida está “escondida com Cristo em Deus” (cf. Cl 3,1-4). Para quem busca a vida, defende a vida, dá a vida pela vida, não há morte. Deus não o abandona na “sombra da morte”. O que o Pai fez com seu Filho, fará também com todo aquele que busca viver como Cristo viveu.

A liturgia de hoje propõe vários textos para escolha da equipe de liturgia. Escolhi este relato do evangelho de João. Julguei muito interessante trabalhar esta cena do evangelho, talvez pouco explorada na liturgia.

O capítulo 11 de João é uma catequese sobre a ressurreição. No evangelho de João encontramos Jesus realizando sete sinais. O primeiro aconteceu em Caná da Galileia, na transformação da água em vinho. O sétimo é o relato da revivificação de Lázaro. João não fala de milagres, mas de sinais. O que Jesus realiza é para levar o discípulo a confiar nele, a reafirmar sua fé no Cristo Ressuscitado. O relato de hoje prepara o discípulo para entrar confiante e esperançoso na cena da paixão. Em outras palavras, a paixão de Jesus, sua cruz e morte não devem ser motivo de desânimo nem de desencanto para o discípulo, mas motivo de se firmar no caminho da cruz (oferta da vida), pois esta leva à glória do Pai.

Uma afirmação central no relato de hoje deve sempre nos acompanhar: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11,25). Esta palavra tem sentido quando se torna viva e eficaz dentro de nós. A pergunta de Jesus à Marta e sua consequente resposta coloca nossa vida cristã em constante desafio de fidelidade, sobretudo nas situações-limite da vida. “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais. Crês isto?” (Jo 11,26). Marta, aqui, simboliza o discípulo que não desiste da fidelidade e da confiança em meio às tribulações, e professa sua fé: “Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Messias, o Filho de Deus que devia vir ao mundo” (Jo 11,27).

Outro elemento, relacionado ao que acabamos de comentar, é o do significado de Marta e de Maria neste relato. Maria, pela atitude de ficar em casa, mergulhada na tristeza, prisioneira do círculo da morte e do pranto, representa aquele que se fecha à possibilidade da fé. Marta, no entanto, embora triste e sofrida pela morte do irmão, se abre confiante ao Senhor como Aquele que pode libertá-la da prisão da morte. Sai do mundo da morte para ser mensageira d’Aquele que é o portador da vida. Uma vez alimentada e confirmada na esperança, vai confortar e animar sua irmã que jaz no círculo da morte. É a nossa missão!

Ainda uma breve palavra a respeito de Jesus nesta cena. Vemos claramente a humanidade de Jesus: “E Jesus chorou”. Dizem que este é o menor versículo da Sagrada Escritura. Jesus era um homem que tinha sentimentos. Chorou a morte do amigo! O interessante para nós é que Jesus não se prendia aos sentimentos. Nem os reprimia. O norte da vida de Jesus era a vontade do Pai. Tinha consciência de sua missão. Sabia que devia levá-la até o fim. Ao realizar aquele sinal da revivificação de Lázaro, no contexto do diálogo com Marta e Maria e na presença de seus inimigos, sabe que sua ação terá consequências em vista do Reino de Deus.

Então não há problema em chorar e lamentar a morte de alguém. Mas é preciso ressignificá-la na fé. Marta se torna para nós inspiração de abertura, de discipulado, de adesão firme e confiante ao Senhor que se nos revela nos acontecimentos dolorosos da história.

A morte permanece para o ser humano como um mistério profundo. Ainda não se descobriu a pílula da imortalidade! Todos morreremos: ricos e pobres, sãos e doentes, novos e velhos, religiosos e descrentes. É o fim de todos. O modo como cada um encara este momento é que varia. Para o cristão, a morte segue o caminho de Jesus. Pode ser um cálice amargo que se deve beber até o fim. Porém com aquela certeza de que, se cumprirmos a vontade do Pai, ele nos acolherá de braços abertos para a vida que não tem ocaso.

Como se dará isso, certamente, não o sabemos. Mas a Igreja reza assim: “Nele (Cristo) refulge para nós a esperança da feliz ressurreição. E aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola. Ó Pai, para os que creem em vós, a vida não é tirada, mas transformada, e desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível” (Prefácio da missa).

----------xxxxx-----------

Cemitério vem do grego koimetérion (dormitório, quarto de dormir), pelo latim coemeterium. O conceito ajuda a interpretar a morte como “sono eterno”. Para nós, cristãos, as pessoas que morreram em Deus, não caíram no abismo eterno, mas adormeceram no Senhor: “Felizes os mortos, os que desde agora morreram no Senhor. Sim, diz o Espírito, que descansem de suas fadigas, pois suas obras os acompanham” (cf. Ap 14,13). E, mais adiante: “Ele (Deus) enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais” (Ap 21,4).

Essa fundamentação semântica e bíblica da morte pode ajudar-nos a viver melhor. A redescobrir o sentido da vida. A visita ao cemitério, que normalmente se faz nesse dia, deve adquirir novo sentido. Não estamos visitando os mortos. Estamos, sim, reafirmando nossa fé na “comunhão dos santos”, rezando por aqueles que já partiram antes de nós.

A Igreja celebra Todos os Santos no dia 1º de novembro (cuja solenidade no Brasil foi transferida para o domingo seguinte) e Finados no dia 02 com o intuito de juntar essas duas realidades post-mortem à nossa de peregrinos em Cristo. Na linguagem tradicional: Igreja militante ou peregrina (os vivos em peregrinação), Igreja padecente (os que terminaram sua peregrinação e passam pela purificação) e Igreja triunfante (aqueles que já estão na Luz que não se apaga, triunfam com Cristo no céu).

Mas nota-se que o povo se identifica mais com o cemitério, com a morte, com o sofrimento. Parece ser a realidade que ele conhece, experimenta. A Glória lhe é desconhecida. O importante, porém, é tentar fazer sempre o caminho da esperança, da conversão, da morte para a vida.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O salto confiante da fé

aureliano, 25.10.24

30º Domingo do TC - 28 de outubro.jpg

30º Domingo do Tempo Comum [27 de outubro 2024]

   [Mc 10,46-52]

Entender o que Jesus queria ensinar não foi tarefa fácil para seus discípulos. Os evangelhos mostram a dificuldade de compreensão por parte daqueles que ele chamara a seu seguimento a respeito da dinâmica do Reino de Deus.

No último domingo vimos Tiago e João disputando os primeiros lugares. Jesus, por sua vez, lhes dá a lição: “Vós sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam. Mas entre vós não deve ser assim” (Mc 10,42-43). Os discípulos mantinham uma incompreensão em relação à missão messiânica de Jesus. Estavam cegos. O relato de hoje vem mostrar, no cego Bartimeu, o estado de cegueira dos discípulos.

Jesus está a caminho de Jerusalém, onde deve entrar triunfalmente, antes de morrer. O caminho é para a morte, mas a entrada é triunfal. Um triunfo que por um lado revela a messianidade de Jesus, e, por outro, o equívoco da multidão em relação à missão do Filho de Deus. O relato de Marcos, colocando essa situação do cego Bartimeu exatamente nessa altura do evangelho, reveste-se de um significado profundo: aquele cego representa os discípulos de Jesus e o “salto” (“deixando sua capa, levantou-se = deu um salto”) que precisam ainda dar, bem como a cegueira de que precisam se curar.

Para aquele homem tudo ao seu redor era noite. Não vê nada! Mas ele ‘ouve’ uma luz. Surge uma possibilidade. E quanto mais o repreendiam, mais ele gritava! E Jesus, ouvindo seus clamores diz: “Chamai-o”. Esse chamado de Jesus remete a tantos chamados que o Senhor faz. Esse homem não via, mas ouvia. Estava atento aos sinais do Senhor. Por isso ouviu o ‘chamado’. Em meio a tantas “vozes” mundanas, não é fácil distinguir qual é a voz de Jesus!

Interessante notar que, enquanto alguns o repreendiam, outros o animavam: “Coragem, levanta-te, Jesus te chama!” Vejam a importância de se ter alguém que encoraje, que anime. Na comunidade é assim também: há pessoas que não querem o crescimento do irmão. Humilham, diminuem, marginalizam. Por outro lado, há também aqueles que transmitem esperança e coragem. É destes que precisamos nos aproximar. É nesses que devemos nos inspirar.

Os gestos realizados pelo cego revestem-se de uma riqueza maravilhosa! São três: “O cego jogou o manto, deu um pulo e foi até Jesus”. O que isso significa? Aquele manto era o lugar em que o mendigo dormia, se sentava, recolhia as esmolas etc. Era sua “casa”. Jogar o manto é romper com o passado, com o comodismo. É deixar aquela vida medíocre de esmoler, de dependência e assumir sua própria vida. Mais. Ser cego, na cultura daquele tempo, era ser castigado por Deus. O cara não podia ler as Sagradas Escrituras. Não podia caminhar até o Templo ou à sinagoga. Então era tido como uma escória social, totalmente discriminado, marginalizado. E “saltar” em direção a Jesus significa deixar este estado de ‘homem velho’, na expressão de São Paulo, e assumir uma vida nova.

Vejam que ele salta ainda cego, antes de receber a cura. É o salto da fé. Esta nos coloca num estado de esperança, de confiança. É um salto no escuro! Mas sabendo que não se há de ser desamparado. Há Alguém que nos acolhe, nos ampara, não nos deixa cair e nos dá a vida nova. Este homem encontra a salvação por causa de sua fé.

O terceiro gesto, também é muito significativo. Complementa o segundo. “Foi até Jesus”. É o gesto da confiança, da simplicidade, da humildade, do caminho percorrido. Ele sabe que Jesus poderá dar-lhe a visão. Jesus era a única pessoa que poderia fazê-lo enxergar. E a palavra de Jesus unida à sua fé, devolveu-lhe a visão. Quem se aproxima de Jesus, deixando de lado as coisas, o desejo de posse, o comodismo, buscando assumir um caminho novo, certamente enxergará o mundo de uma forma nova, como Deus o vê. Enxergará o irmão!

E, finalmente, o coroamento. Aonde o evangelho quer chegar: “... ele foi seguindo Jesus pelo caminho”. Aquilo que faltava aos discípulos se realizou no cego Bartimeu. Os discípulos estavam como que cegos. Não conseguiam enxergar quem era Jesus. Estavam na procissão, mas não sabiam para quê. Os interesses escusos dos discípulos os colocavam em situação de trevas. Ainda mais: o medo e a falta de compreensão do projeto do Pai levavam-nos a ter atitudes egoístas e infantis.

O cego Bartimeu nos dá também a grande lição de que não podemos deixar passar a oportunidade da “passagem de Deus” pela nossa vida. Nem os opositores, nem o manto, nem a própria cegueira o impediram de lançar-se à busca de uma nova vida. Por isso foi salvo. A presença graciosa de Jesus transformou seu comodismo e seus medos em coragem, ousadia e nova visão de mundo. É o que acontece com quem se aproxima de Jesus e se deixa transformar por ele.

“Senhor, tu tens palavra de vida e de amor! Tu és a luz dos olhos meus! Brilhe essa luz nos passos meus seguindo os teus! Ajuda-me a deixar para trás o fechamento, os preconceitos, a dureza de coração e de mente. Abre meus olhos e meu coração ao teu amor para ajudar a tantas pessoas que vivem na escuridão da ganância e da mentira, da sede do poder e do ter, do desejo de fazer do semelhante um objeto em suas mãos. Dá-me um pouco de tua luz a fim de que, iluminado, possa também iluminar as situações de morte, de violência, de miséria, de insensibilidade, de indiferença e de mesquinhez que assolam nosso mundo. Jesus, tu és a luz, tu és o caminho, tu és a água viva que preenche o vazio do meu coração e me coloca em movimento de misericórdia e de perdão, de acolhida e de construção de um mundo mais justo humano e fraterno, na paz e no bem”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Salvação é graça, simplicidade e serviço

aureliano, 19.10.24

29º Domingo do TC - 21 de outubro.jpg

29º Domingo do Tempo Comum [20 de outubro 2024]

   [Mc 10,35-45]

No domingo passado, Jesus exortava a renunciar às riquezas. O apego a elas é empecilho para o seguimento de Jesus, para a salvação. Jesus propõe um caminho novo: a partilha com os pobres. Para que não haja necessitados (cf. At 4, 32-35).

Neste domingo, continuando o caminho para Jerusalém, onde se dará o desfecho de sua entrega total ao Pai por nós, Jesus continua ensinando aos seus discípulos, a partir do caminho que eles mesmos vão fazendo em que aparecem suas incompreensões, defeitos e pecados. Eles precisam mudar a mentalidade. E como é difícil mudar a maneira de pensar! Sobretudo quando se trata de pensar à maneira de Jesus: sair de si mesmo.

Os filhos de Zebedeu, do grupo dos primeiros discípulos, já pensavam nos privilégios de terem sido os primeiros! Pensando que Jesus seria um grande líder político, que entraria triunfalmente em Jerusalém, dominando e desbaratando o poder opressor, querem garantir uma fatia no bolo do poder: “Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória” (Mc 10,37).

Jesus se vale desse pedido para dar-lhes um ensinamento. É preciso “beber o cálice”. Ou seja, é preciso participar da mesma sorte de Jesus. É preciso “ser batizado” no mesmo batismo de Jesus. Isto é, terão que dar conta de experimentar, de imergir na paixão e sofrimento do Mestre. João e Tiago precisam estar dispostos a enfrentar a dor e o sofrimento, a percorrer o caminho da entrega da vida com o Mestre pela salvação da humanidade.

Na segunda parte do evangelho Jesus é bem claro no ensinamento a respeito do poder temporal buscado pelos filhos de Zebedeu: “Os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam. Mas, entre vós não deve ser assim: quem quiser ser grande, seja vosso servo; e quem quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos” (Mc 10, 42-44). Os discípulos poderiam recordar a tirania do império romano e de outros malvados de seu tempo como Herodes Antipas e seus familiares. Jesus propõe uma interrelação totalmente diferente. Agora a relação deve ser de fraternidade e de serviço: “Porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate por muitos” (Mc 10, 45).

“Entre vós não deve ser assim”. Essa palavra de Jesus deve nos acompanhar. Penso que ela resume todo o ensinamento de Jesus nesse relato. Ele exige que sejamos diferentes, que tenhamos atitudes diferentes daquelas que o mundo propõe. Enquanto a sociedade do consumo propõe como caminho de felicidade o sucesso, o dinheiro, a aparência, os aplausos, o acúmulo, o poder, a capacidade de influenciar, o gozo a todo custo, Jesus propõe um caminho de doação, de respeito, de solidariedade, de saída de si, de partilha dos bens, do serviço generoso, da alegre convivência, de cuidado para com o mais fraco.

Essa é a “política” de Jesus. É o Reino de Deus que ele inaugurou. Enquanto no mundo da política rasteira muitos estão preocupados com seus cargos em perigo, com os altos salários, com os acordos espúrios para tirar vantagem, com os primeiros lugares, com os privilégios, Jesus vem propor uma atitude de serviço, de lava-pés, de fazer valer o poder-serviço.

Ministro vem de minus ou minor, menor. Quem tem algum ministério, seja na Igreja, seja na sociedade, deve entender-se como servidor de todos. Em face do pequeno o homem revela o que tem no coração: bondade ou sede de poder. O pequeno, o fraco, o necessitado de minha ajuda pode ser um objeto para meus caprichos, como pode ser alguém que me ajuda a expressar a bondade e a misericórdia.

Para refletir: Como exerço meu ministério na comunidade: busco servir ou me sirvo do ministério? Como tenho atuado na política: estou à cata de vantagens pessoais, ou estou empenhado nas necessidades da comunidade? Ainda mais: os outros discípulos começaram a brigar com João e Tiago por causa de seu pedido. Fico disputando, brigando, competindo com os outros? Ou valorizo, respeito, admiro e mesmo incentivo aqueles que exercem bem seu ministério?

-----------xxxxx-----------

Certamente a palavra emblemática de Jesus: “Quem quiser ser o maior, se faça servidor de todos” encontre pouca repercussão em nossa sociedade atual. Hoje perdura a busca do triunfo. De modo geral, as pessoas querem vencer, ter sucesso a todo custo. Além de medir força com os outros, há também a busca do bem-estar pessoal, social. Bom salário, cartão de crédito quase sem limites, aplicação financeira em paraísos fiscais, o máximo possível de passeios e curtição, livrar-se de qualquer situação ou pessoa que ‘pese’ a vida. Um modo de vida que traga o máximo de prazer e conforto, e eliminação de toda pessoa ou situação que gere desconforto, mal-estar. Estabelecer poucas relações sociais para não ser incomodado: cada um cuide de si mesmo. Não complicar a vida. Quanto mais distante daqueles que me ‘incomodam’, melhor. Aproximações somente para tirar vantagens.

Bem. Diante de tal quadro é bem difícil fazer ecoar a palavra do Evangelho. Ser cristão, discípulo de Jesus, em meio a tanta indiferença humana talvez seja o grande desafio para nós, hoje.

----------xxxxx----------

O relato de hoje acena para a necessidade se refletir sobre a religião. Pe. Pagola fala de “Religião da autoridade” e “Religião do chamado”. A ‘religião de autoridade’ busca impor normas e doutrinas, exigindo obediência à autoridade que se impõe pelo medo, pela ameaça, pela coação. Já a “religião do chamado” não impõe, mas propõe um caminho de salvação; não atua pelo poder, mas pelo serviço; não julga nem condena, mas acolhe, perdoa e incentiva a caminhar. A fé cristã deve colocar-se no caminho de um serviço humanizador aos homens e mulheres de nosso tempo se quiser perdurar e influenciar a história.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Como você se relaciona com o dinheiro?

aureliano, 12.10.24

28º Domingo do TC - 09 de outubro.jpg

28º Domingo do Tempo Comum [13 de outubro 2024]

   [Mc 10,17-30]

No evangelho do domingo passado refletimos sobre Jesus orientando a vida familiar. A relação conjugal não se fundamenta numa relação de dominação, mas de respeito, de corresponsabilidade, de ajuda mútua. Em síntese, marido e mulher são co-criadores com o Pai.

Neste domingo, prosseguindo a leitura do evangelho de Marcos, Jesus continua a instruir seus discípulos para que a vida deles seja um marco diferencial na sociedade e na história. O cristão precisa fazer a diferença. Agora Jesus ensina a se relacionar com os bens. Realidade muito próxima do casamento. A gente sabe que muitas crises no relacionamento conjugal brotam da relação e gestão dos bens, da casa, do dinheiro. Quantas brigas por conta de dívidas, por conta de diferença de salários, por conta de compra e venda! Quanta confusão, depois da separação, por causa de bens e de pensão! Quanta confusão e, por vezes, morte por causa de herança! Então vamos acompanhar a orientação de Jesus a respeito desse caminho que o discípulo deve fazer.

Esse moço que recorre a Jesus se preocupa com a vida eterna. Não lhe interessa tanto a vida presente uma vez que os bens já lhe estão garantidos. Primeiramente Jesus faz com que sua atenção se volte para o Pai e não tanto para Jesus: “Só Deus é bom”. Os mandamentos da Lei relativos ao próximo ele os tem observado. Notamos, porém, que os Dez Mandamentos não foram citados. Apenas alguns e mesmo assim naquela conotação negativa: “não”. Então lhe faltava a dimensão positiva da vida. Ele observava a Lei, mas não sabia partilhar. Não tinha gratuidade. Não tinha plena consciência e conhecimento do que estava fazendo. Observava a lei por costume e tradição. Como aqueles casos muito comuns entre nós: “Por que você quer batizar seu filho?” Ou “Por que você é católico?” A resposta normalmente ecoa: “Porque todo mundo batiza” Ou “Porque meu pai é católico”. Ou simplesmente: “Por que nasci numa tradição católica”. E por aí se vai. Uma fé sem fundamento, sem gratuidade, sem generosidade, sem conhecimento, sem razão, sem convicção e decisão livre e consciente.

Jesus quis ajudar aquele homem a dar um passo decisivo na vida. É algo que faz parte integrante da fé cristã: o desapego dos bens e o espírito de partilha. “Vai, vende tudo o que tens. Dá o dinheiro aos pobres. Depois vem e segue-me”. Não basta, pois, dividir os bens com os pobres. É preciso seguir a Jesus. O seguimento de Jesus é que caracteriza o cristão. Poder-se-iam distribuir os bens por vaidade. E nesse aspecto Paulo já alertara: “Ainda que eu desse todos os meus bens aos pobres; se não tivesse amor, isso de nada valeria” (1Cor 13,3).

No desenrolar do texto Jesus percebe a dificuldade de o rico entrar no Reino. Jesus não está falando de vida depois da morte, não. Ele está falando do Reino de Deus. A vida eterna começa aqui, com a erupção do Reino de Deus. Quem não se desapega, como aquele moço que não teve coragem de se desvencilhar dos bens, não pode entrar na vida de Deus. A vida eterna é a vida em Deus.

A salvação é dom de Deus: “Para Deus tudo é possível”. Ninguém compra a vida de Deus, repartindo seus bens, fazendo caridade etc. Deus nos salva de graça. Porém nossos gestos de bondade, de generosidade, de partilha, de perdão, de tolerância, de respeito, de solidariedade são nossa resposta à bondade de Deus que nos salva. Quem vive preso às suas coisas, fechado em si mesmo, indiferente ao sofrimento alheio ou, pior ainda, buscando sempre oportunidades para aumentar suas posses, defraudando os outros, extorquindo, sonegando impostos, deixando de cumprir com as obrigações sociais de seus funcionários, está cada vez mais longe do Reino de Deus, da salvação. Sua vida está atravancando a ação salvadora de Deus. É uma pedra de tropeço, um escândalo, que impede a vida de florescer. Mata a alegria e as esperanças das pessoas.

Na prática, cada um de nós podia dar uma olhadinha no modo como lida com os bens e posses. O que fazemos com o dinheiro? Onde o guardamos? Em que o empregamos? Com que finalidade? O que estamos comprando? Para que compramos? Tem gente que renova as mobílias todos os anos. Compra sem necessidade nenhuma. Tem gente que está sempre na ponta da tecnologia. É necessário estar na “crista da onda”? Por outro lado, há pessoas que deixam de comprar coisas essenciais para a casa, que deixam de cuidar da saúde da família para guardar o dinheiro ou aumentar o patrimônio. E, muitas vezes, se endividando com prestações a perder de vista. Tem gente que nem consulta a família para fazer certos gastos. Tem gente que gasta o salário com jogos de azar, com prostituição e adultério, com bebedeira sem conta, com churrascada desmedida para amigos, com drogas de toda qualidade. Tem gente que vive uma vida miserável para aplicar o dinheiro em rendimentos bancários. Mas não é capaz de partilhar um centavo com os mais pobres!

Isso sem falar da agiotagem que assassina milhares de famílias. Um pecado que brada aos céus: o sujeito tem dinheiro; vê o irmão na pior; empresta-lhe a juros exorbitantes; escraviza o pobre coitado que nunca ou quase nunca consegue pagar (Cf. Sl 15,5). E o que dizer daqueles que transferem sua fortuna para os “paraísos fiscais”, deixando os pobres brasileiros a “ver navios”? Pior: muitos destes tais se dizem cristãos!

“A maneira sadia de lidar com o dinheiro é ganhá-lo de forma limpa, utilizá-lo com inteligência, fazê-lo frutificar com justiça e saber compartilhá-lo com os mais necessitados” (Pe. J. A. Pagola). O acúmulo de bens é idolatria. O reino pessoal, a busca de si mesmo não garante lugar no Reino de Deus.

Não está na hora de colocarmos a mão na consciência e rezarmos um pouco mais nosso ser cristão? Aquele homem do evangelho voltou triste porque possuía muitos bens. Conclui-se que a posse de muitos bens não traz alegria para ninguém. A verdadeira alegria está no bom uso dos bens, do dinheiro. Quando sabemos partilhar, distribuir, comprar ou vender dentro de critérios honestos e a partir de um diálogo respeitoso e cristão dentro de nossa casa, estamos no caminho do verdadeiro discipulado de Jesus. Então experimentaremos a verdadeira alegria que brota de uma vida vivida em Deus, na construção do Reino de partilha, de paz e de justiça.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O casamento é um dom e não uma lei

aureliano, 04.10.24

27º Domingo do TC - B - 03 de outubro.jpg

27º Domingo do Tempo Comum [06 de outubro 2024]

[Mc 10,2-16]

O ser humano é chamado, no amor, a realizar-se como pessoa. Porém essa realização não se dá sem a colaboração do outro que lhe diz quem ele é e por onde está caminhando. Ele deve realizar um encontro com alguém que seja capaz de comunhão com ele: “Então o homem exclamou: ‘Esta sim é osso de meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada ‘mulher’, porque foi tirada do homem’” (Gn 2,23). É aí que se dará um diálogo aberto e nobre para, juntos, descobrirem a plenitude de sua vocação.

Quando os fariseus, cheios de maldade e de dúvidas também, fazem a Jesus aquela pergunta crucial sobre o divórcio, ele responde com maestria remetendo-se à ordem da Criação: “Desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne. Assim já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe” (Mc 2,6-7).

Jesus quer dizer que a separação do casal não faz parte do projeto original de Deus. Homem e mulher foram criados em mesmo nível de igualdade. Para viverem juntos, constituindo família, segundo sua vocação, realizando-se no que fazem e vivem. A indissolubilidade do matrimônio é uma consequência do amor conjugal. A união livre e responsável do homem e da mulher em matrimônio é um dom, uma graça. Ou seja, indissolubilidade não vem primeiro, mas o amor conjugal. A indissolubilidade protege a parte mais frágil e fortalece o projeto original de Deus na criação do ser humano.

Aqui entra um elemento fundamental: Deus não fez o homem (varão) superior à mulher. Nem vice-versa. Jesus condena essa atitude e quer que todos tenham a mesma dignidade e igualdade nas relações. Jesus desautoriza explicitamente todo autoritarismo machista que permitia ao homem “despedir a mulher por qualquer motivo”.

Na verdade havia interpretações divergentes relativas a esse tema entre as duas escolas mais famosas do judaísmo de então: a de Hillel, mais liberal em relação ao divórcio, permitindo, por exemplo, que o marido poderia pedir carta de divórcio quando a mulher não cozinhasse de acordo com seu gosto, ou quando ele se cansasse da mulher e quisesse buscar outra. Já a escola de Shammai, mais rigorosa, só admitia o divórcio em caso de adultério ou má conduta da mulher. À mulher restava recorrer para separação se o marido tivesse contraído a lepra ou exercesse um ofício repugnante.

Por aí se vê que a discussão não era simples. E os fariseus ficavam meio engasgados diante de tamanho impasse. Queriam saber a opinião de Jesus. Ao invocar o projeto original de Deus, a Criação, Jesus convida a uma reflexão mais profunda. Não se trata somente de continuar com a mulher ou abandoná-la. Em primeiro lugar trata-se de perceber que Deus os fez homem e mulher. São iguais perante Deus. Depois é preciso notar que o casamento é um projeto divino. É um dom para a humanidade. É o cuidado de um pelo outro e de ambos pelos filhos. Não se pode invocar a lei para justificar projetos egoístas. A Lei que deve prevalecer no coração humano é a Lei do amor.

O sonho de Deus é que o casal entre num projeto de vida estável e indissolúvel. O divórcio não faz parte do projeto do Pai, porque ele traz em si as marcas da dor, do golpe, da ferida quase incurável, da morte. As facilidades oferecidas por Moisés “por causa da dureza de vossos corações” estão em alta, nos últimos tempos. Sabemos por experiência que, sempre que o egoísmo prevalece, o sofrimento intensifica-se na vida humana. Mas todas as vezes que o amor-ágape encontra guarida no coração humano, o sofrimento é minimizado pelo alento da generosidade, do cuidado e do perdão.

Quando Moisés pede que se dê “carta de divórcio” entende-se que o homem deve deixar a mulher ir em paz. Por vezes o homem despedia a mulher e ficava vigiando pra ver com quem ela iria ficar. Ou para impedi-la de arranjar outra pessoa. Não é o que costuma acontecer até hoje? Homens que se julgam donos das mulheres, perseguindo, maltratando, assassinando as mulheres. É um horror o que se vê por aí! A violência contra as mulheres grita aos céus. O amor de Deus ainda está muito longe de nossas realidades familiares e sociais.

Ainda mais. Cabe aqui também levar em consideração os casos de fracasso no casamento. Podemos dizer que não faz parte do projeto ideal de Deus. Mas a continuidade da convivência sob o mesmo teto por vezes se torna insustentável. Quando o egoísmo toma conta de uma parte ou de ambas, a situação vai se tornando insuportável, chega a ser desumana. Sem mencionar aquelas situações em que uma das partes é, simplesmente, abandonada (com os filhos). Se a parte fiel, sadia, encontra amparo de alguém que valoriza, que respeita, que cuida, resta-lhes atirarem-se confiantes nos braços da providência e da misericórdia divinas. Sabendo-se, no entanto, que a questão da separação do casal não deve estar sempre sobre a mesa, como insistem muitos por aí nas redes sociais e telenovelas. O casal que se faz discípulo de Jesus empenha todas as forças para levar adiante essa relação que significa o amor eterno que Deus tem por todos nós. Amor manifestado na entrega de seu Filho Unigênito pela nossa salvação. Amor expresso na entrega de Cristo pela sua Igreja.

Cabe considerar também a necessidade de acolhermos e oferecermos nosso ombro aos casais em nova união. Eles não estão excomungados, não foram expulsos da Igreja. Estão em situação irregular, mas continuam em comunhão eclesial. Devem ser acolhidos. Devem participar da celebração, dos serviços da Igreja. Se a Igreja lhes retira o direito de receber a comunhão é porque “seu estado e condição de vida contradizem objetivamente a união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e atualizada na eucaristia” (São João Paulo II). Mas isso não autoriza ninguém condená-los, discriminá-los, rejeitá-los. Precisam ser acolhidos e amados em sua nova condição. É preciso ter para com eles o espírito de Jesus. Podem não participar do Pão Eucarístico, mas participam da Eucaristia.

Escutemos o Papa Francisco: “Quanto às pessoas divorciadas que vivem em uma nova união, é importante fazer-lhes sentir que fazem parte da Igreja, que ‘não estão excomungadas’ nem são tratadas como tais, porque sempre integram a comunhão eclesial. Estas situações ‘exigem um atento discernimento e um acompanhamento com grande respeito, evitando qualquer linguagem e atitude que as faça sentir discriminadas e promovendo a sua participação na vida da comunidade. Cuidar delas não é, para a comunidade cristã, um enfraquecimento da sua fé e do seu testemunho sobre a indissolubilidade do matrimônio; antes, ela exprime precisamente neste cuidado a sua caridade” (Amoris Laetitia, 243).

“Essa sublime vocação do matrimônio indissolúvel é hoje fonte de violentas críticas à Igreja. Que fazer com os que fracassam? Objetivamente falando, sem inculpar ninguém – pois de culpa só Deus entende, e perdoa – devemos constatar que há fracassos, e que fica muito difícil celebrar um ‘sinal eficaz do amor inquebrantável de Jesus’ na presença de um matrimônio desfeito... Por isso, a Igreja não reconhece como sacramento o casamento de divorciados. Teoricamente, se poderia discutir se o segundo casamento não pode ser aceito como união não-sacramental (como se faz na Igreja Ortodoxa). E observe-se que muitos casamentos em nosso meio são, propriamente falando, inválidos, porque contraídos sem suficiente consciência ou intenção; poderiam, portanto, ser anulados (como se nunca tivessem existido). Em todo caso, o matrimônio cristão, quando bem conduzido em amor inquebrantável, é uma forma de seguir Jesus no caminho do dom total” (Pe. J. Konings).

O que importa aqui é nos colocarmos diante do Pai como a criança, porque “o Reino de Deus é dos que são como elas”. Ou seja, em qualquer circunstância, é preciso de nos colocarmos diante do Pai com o coração aberto, com disponibilidade de alma, desarmados, confiantes na misericórdia d’Ele, como aprendizes, com transparência e sinceridade de coração.

-----------xxxxx-----------

TRÊS PALAVRAS MÁGICAS PARA FAZER O CASAMENTO DURAR

Papa Francisco esclarece que o "para sempre" não é só questão de duração. "Um casamento não se realiza somente se ele dura, sua qualidade também é importante. Estar juntos e saber amar-se para sempre é o desafio dos esposos".

E fala sobre a convivência matrimonial: "Viver juntos é uma arte, um caminho paciente, bonito e fascinante (…) que tem regras que se podem resumir exatamente naquelas três palavras: 'posso?', 'obrigado' e 'desculpe'".

"Posso? é o pedido amável de entrar na vida de alguém com respeito e atenção. O verdadeiro amor não se impõe com dureza e agressividade. São Francisco dizia: 'A cortesia é a irmã da caridade, que apaga o ódio e mantém o amor'. E hoje, nas nossas famílias, no nosso mundo amiúde violento e arrogante, faz falta muita cortesia."

"Obrigado: a gratidão é um sentimento importante. Sabemos agradecer? (…) É importante manter viva a consciência de que a outra pessoa é um dom de Deus, e aos dons de Deus diz-se 'obrigado'. Não é uma palavra amável para usar com os estranhos, para ser educados. É preciso saber dizer 'obrigado' para caminhar juntos."

"Desculpe-me: na vida cometemos muitos erros, enganamo-nos tantas vezes. Todos. Daí a necessidade de utilizar esta palavra tão simples: 'desculpe-me'. Em geral, cada um de nós está disposto a acusar o outro para se desculpar. É um instinto que está na origem de tantos desastres. Aprendamos a reconhecer os nossos erros e a pedir desculpa. Também assim cresce uma família cristã.

Finalmente, o Papa acrescenta com bom humor: "Todos sabemos que não existe uma família perfeita, nem o marido ou a mulher perfeitos. Isso sem falar da sogra perfeita…".
E conclui: "Existimos nós, os pecadores. Jesus, que nos conhece bem, ensina-nos um segredo: que um dia não termine nunca sem pedir perdão, sem que a paz volte à casa. Se aprendemos a pedir perdão e a perdoar aos outros, o matrimônio durará, seguirá em frente" -https://pt.aleteia.org/2014/03/12

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Deus está onde se pratica o bem

aureliano, 27.09.24

26º Domingo do TC - B - 29 de setembro.jpeg

26º Domingo do Tempo Comum [29 de setembro 2024]

   [Mc 9,38-43.45.47-48]

O evangelho de hoje nos faz pensar nossas relações de grupo eclesial que, muitas vezes, se pretende dono da verdade, senhor e monopolizador do próprio Jesus.

Vejam o que diz João (e não Pedro, que normalmente assume esse posto dianteiro): “Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue”. E a resposta de Jesus é firme e decisiva: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor”.

João e o grupo de discípulos entenderam que eram um grupo seleto. E somente eles poderiam fazer o bem, expulsar os demônios, curar os enfermos. Não passava pela cabeça deles que alguém de fora do grupo pudesse também fazer o bem.

Não costuma ocorrer fatos parecidos dentro de nossas comunidades? Quantas vezes nos julgamos melhores do que os outros, excluímos muita gente boa, nos fazemos donos das “coisas da comunidade”, donos da verdade, donos de Deus? E as normas, regras e preconceitos que matam a vida das pessoas?

Como é difícil o diálogo ecumênico entre nós cristãos, parecendo tomar conta de nós aquela superioridade que nos torna soberbos, petulantes e mesmo desaforados em relação a outros grupos cristãos ou não. Mas nem precisamos ir muito longe: dentro de nossos grupos e pastorais as disputas são ferrenhas, desumanas até, quando julgamos esse grupo ou essa pessoa “certinha” e a outra “errada”.

A divisão e a falta de reconhecimento de valores nos irmãos dentro de nossas comunidades é uma lástima. A disputa, a competição para ver quem faz melhor, quem brilha mais, quem foi mais elogiado ou aplaudido, quem teve mais sucesso ou quem se deu mal emperram a evangelização. O evangelho não penetra, com a força e a eficácia que lhe são próprias, o coração da assembleia celebrante quando quem o anuncia está contaminado pelo orgulho e vaidade.

A palavra enfática de Jesus “não o proibais” deve ecoar forte dentro de nosso coração para que possamos aprender a acolher a ação de Deus em outros grupos e pessoas, dentro e fora da Igreja, e somarmos força para ajudarmos as pessoas a fazerem um encontro verdadeiro com o Senhor. Em qualquer lugar onde se pratica o bem, onde a bondade tem lugar, onde a vida é amparada e cuidada, Deus está aí amando e abraçando as pessoas. Deus não é monopólio de ninguém.

A segunda parte do evangelho de hoje, que mostra Jesus condenando a atitude de quem escandaliza os “pequenos que crêem”, tem ligação muito estreita com a primeira.

Fomos acostumados a associar a palavra ‘escândalo’ com ‘roupas indecentes’, filmes inconvenientes, adultérios, prostituição enfim, com algo sempre relacionado à sexualidade. Convém ampliar esse horizonte de compreensão.

A palavra ‘escândalo’ significa originariamente ‘pedra de tropeço’. Ou seja, escandaliza alguém aquele que, com suas atitudes, faz a pessoa tropeçar e cair. Ainda mais, aquele que faz a pessoa agir contra a sua consciência. Ou seja, alguém que aprendeu a agir de forma correta, de acordo com a consciência é levado a agir de modo perverso movido por alguém que o faz desviar-se do caminho certo.

Notem que Jesus fala de “pequeninos que creem”. Isto nos faz entender que primeiramente é escandalosa aquela atitude que me faz agir contra a minha fé. Aqui podemos mencionar as incoerências, as ambições, o culto vazio de atitudes que se lhe correspondam, as mentiras e desonestidades no mundo dos negócios e do trabalho (desde as operações da polícia federal até às pequenas extorsões, fraudes, mentiras, “rachadinhas”, propinas e ‘compras’ desonestas do dia a dia). Também os escândalos sexuais que pervertem e fazem sofrer terrivelmente os “pequeninos” do Reino.

As mãos que roubam, que assassinam precisam ser cortadas. Os pés que oprimem e dominam precisam ser cortados. Os olhos ambiciosos e gananciosos que invejam e condenam precisam ser arrancados. Tudo que em nossa vida for instrumento de satanás para fazer o mal precisa ser podado, arrancado, cortado e jogado fora.

O evangelho de hoje nos faz pensar e rezar a nossa vida eclesial, vivida como comunidade de fé, e também nossa vida pessoal do ponto de vista de nossas atitudes que podem escandalizar, fazer cair os pequenos do Reino.

*No próximo dia 30/09 celebramos São Jerônimo. Um santo considerado grosso, explosivo, estopim curto. Reconhecia seus limites e tentava melhorar. Mas não poupava a alta sociedade romana exortando os desordenados à mudança de vida. Foi chamada pelo Papa Dâmaso, em 382, para seu secretário a quem o Papa pediu que traduzisse a Bíblia do grego e do hebraico para o latim. Um santo nervoso recebeu a incumbência de um trabalho meticuloso, exigitivo de muita paciência. A tradução de São Jerônimo recebeu nome de Vulgata, referindo-se à língua vulgar, isto é, conhecida por todos na época. Foi para Belém. Ali, numa gruta, passou 35 anos dedicados à tradução e ao estudo das Sagradas Escrituras. Morreu no dia 30 de setembro de 420, aos oitenta anos.

Como você usou a Bíblia esse mês? Que você fez de extraordinário que mostra seu amor pela Sagrada Escritura? Você leu um pouco do livro de Ezequiel? Você presta atenção nas leituras da Palavra de Deus nas celebrações? Que lugar ocupa a Bíblia na sua vida?

Vamos aprender de São Jerônimo um amor profundo e afetuoso pela Sagrada Escritura, assumindo-a como norma de nossa vida, cuja leitura e meditação podem dar novo rumo à nossa vida. Uma afirmação bonita deste santo perpassa a história: “Ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Autoridade: ajudar a ser autor

aureliano, 21.09.24

25º Domingo do Tempo Comum [ 22 de setembro 2024]

   [Mc 9,30-37]

Pedro professou a fé dizendo: “Tu és o Messias”. Mas, em seguida não dá conta de viver o que professa. Busca uma saída, uma justificativa: repreender Jesus (cf. Mc 8, 32-33). Vê-se claramente que os discípulos têm muita dificuldade em viver a fé professada. Para nosso consolo não é dificuldade somente nossa!

Aliás, os discípulos – como nós, por vezes, – estão mesmo preocupados é com os primeiros lugares. Por isso têm medo de perguntar a Jesus o que significava aquele anúncio da paixão. Isso não coincide com suas buscas: quem será o primeiro? Se o ser humano não fizer caminhos de conversão, estará às voltas com a busca de si, de seus interesses pessoais em prejuízo da coletividade. Dêem uma olhadinha nas disputas eleitorais! A grande maioria está buscando seus próprios interesses. Projeção social, sucesso, dinheiro, garantia de altos salários, emprego e cargos para filhos e parentes. A proposta de Jesus é que seu discípulo se preocupe com o coletivo, com o bem comum, sobretudo com os mais pobres. Que todos estejam bem, sejam bem servidos, sejam bem cuidados. A religião que ensina ou insiste na busca de interesses privados não anuncia o Deus de Jesus de Nazaré, mas um ídolo.

Não são, muitas vezes, nossas também essas mesmas preocupações quando assumimos um encargo de liderança? As brigas e rixas nas comunidades provêm daí: “Das paixões que estão em conflito dentro de vós” (Tg 3,2). A inveja, a vaidade e a cobiça são males terríveis! Destroem qualquer comunidade. Elas só podem ser vencidas pela conversão do coração a partir do encontro e seguimento de Jesus. Quando nos empenhamos em tornar nossa vida semelhante à de Jesus.

Na verdade o que está em jogo aqui é agir ou ‘segundo a lógica do mundo’ ou ‘segundo a lógica de Deus’; incorporar a ‘sabedoria do mundo’ ou a ‘sabedoria de Deus’. Jesus não abandona o projeto do Pai. Permanece firme, não obstante a oposição e indiferença dos seus discípulos. Permanece firme, pois sabe que este é o caminho da vida. Ao passo que seus discípulos são fascinados pela lógica do mundo. Não admitem que uma vitória possa vir pela vida entregue, a morte. Esta, para eles, é fracasso total. Sobretudo porque tinham em vista a chegada a Jerusalém e a vitória total do mestre Jesus sobre os dominadores da Cidade Santa.

Abraçando e apresentando uma criança Jesus quis mostrar que a lógica de Deus passa pela acolhida aos mais frágeis, uma vez que as crianças naquele tempo não tinham nenhum prestígio ou reconhecimento. Representavam os indefesos, fracos, abandonados, marginalizados. Por isso, todas as vezes que abraçamos, acolhemos, ajudamos, colaboramos com a causa dos indefesos, representados pelas crianças do evangelho, estamos acolhendo Jesus e o seu Reino. Uma Igreja que acolhe os pequenos, que se compromete com os pobres, abandonados, migrantes, desempregados, pessoas em situação de rua está acolhendo o próprio Deus. Por outro lado, uma Igreja que se aproxima e se associa aos poderosos da terra, aos latifundiários e empresários gananciosos, aos detentores do poder político e econômico está traindo a Boa Nova de Jesus.

Algumas perguntas poderiam nos acompanhar ao longo desta semana: Qual é a lógica/sabedoria que nos orienta: a sabedoria do mundo ou a sabedoria de Deus? Deixo-me levar pela ganância do ter e do poder? Qual é minha maior preocupação: ocupar os primeiros lugares, incomodar-me com quem está nos primeiros lugares (porque penso que o lugar deveria ser meu)? Luto por um mundo mais igualitário, mais democrático, mais dialógico, começando por mim? Estou disposto a enfrentar desafios, desafetos, desprezos, humilhações, fracassos por causa de minha fidelidade ao evangelho?

--------xxxxx--------

A PROPÓSITO DAS CRIANÇAS

Jesus “tomou uma criança, colocou-a no meio deles e, pegando-a nos braços, disse-lhes...” Essa atitude de Jesus pode nos ajudar a refletir sobre muitas situações por que passam as crianças na sociedade atual.

Uma delas é o abandono. Certamente são mais do que justas e necessárias as ausências dos pais que saem todos os dias em busca do pão de cada dia. As crianças ficam nas creches, com as avós ou em outras situações. Mas o fato é que a presença norteadora dos genitores deixa a desejar. Quem são mesmo os verdadeiros orientadores, educadores dos seus filhos? Muitas vezes se busca compensar a ausência com presentes. Uma espécie de compra do afeto. Isso mais tarde se transformará em ódio contra os pais. Nunca compre o amor de seu filho/a. Dê presença e carinho gratuitamente. Seja sempre verdadeiro, honesto, sincero!

Outra realidade é a da tecnologia da comunicação. Ocupados com as mídias e redes sociais, alguns pais deixam os filhos abandonados. Até costumam oferecer-lhes de presente um aparelho também. Assim fica ótimo! Cada um na sua. Ninguém incomoda a ninguém. Você sabe o que seu filho vê na internet? Sabe com quem ele faz contato? Sabe por onde navega? Há histórias terríveis em relação a isso. Pare, pense e confira!

Você que é cristão, católico, ensina as primeiras orações a seu filho/a? Ensina a ele/ela os valores do evangelho? Dá bom exemplo de partilha, de solidariedade, de respeito, de justiça, de verdade? – Outro dia ouvi uma história linda: Aproximava-se o aniversário do filho: 10 anos. O pai, professor e possuidor de uma condição econômica razoável, perguntou-lhe o que gostaria de ganhar como presente de aniversário. Para surpresa do pai, o filho pediu uma boa quantidade de pães a fim de fazer sanduíches e distribuir com os pobres da rua! Esse gesto brotado do coração de um menino de classe média diz muito pra nós!

Outro fato evidenciado pela mídia, e, infelizmente, muito praticado em nosso meio, é o abuso sexual de crianças e adolescentes. Uma situação terrivelmente dolorosa e danosa para a criança, vítima indefesa e inocente, e para a família. E, no caso da Igreja, enquanto continuadora da missão de Jesus, uma mancha terrível. Leva a uma espécie de apagão de todo o trabalho e doação de milhares de padres e religiosos que entregam sua vida, sua força, suas energias para cuidar, educar, salvar as crianças nas famílias e comunidades. Quero reafirmar que os pais precisam acompanhar com muita solicitude seus filhos e filhas pequenos para que não sejam vítimas dessa perversão/perversidade de muitos adultos e que prejudica terrivelmente milhares de crianças. Com muita frequência as crianças são abusadas pelos de casa, mas a mãe ou quem tem conhecimento, ou não se importa ou não tem coragem de denunciar ou se deixa levar pelo medo. Enfim, é uma situação terrível. O melhor remédio é prevenir.

Alem disso há crianças espancadas, violentadas, maltratadas, passando fome, exploradas em trabalhos pesados nos semáforos e nos lixões, exploradas sexualmente nas ruas e rodovias...

Essa canção do Pe. Zezinho precisaria perder a vigência: Menores abandonados, / Alguém os abandonou. / Pequenos e mal amados / o progresso não os adotou.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Tomar a cruz é viver o Evangelho

aureliano, 13.09.24

24º Domingo do TC - B - 15 de setembro.jpeg

24º Domingo do Tempo Comum [15 de setembro 2024]

   [Mc 8,27-35]

O texto do evangelho para esse final de semana reflete um divisor de águas na vida de Jesus. O autor sagrado escreve de tal maneira que mostra, até aqui, que Jesus é o Messias libertador. As curas que realiza indicam a sua missão: proclamar o Reinado de Deus. O desfecho é o reconhecimento de que Jesus é o Filho de Deus. Porém não pode ser revelado como tal, pois a comunidade ainda não está preparada para entender a que veio e o que o espera pela frente. Na segunda parte do evangelho (Mc 8,31ss), Marcos desenvolve a sorte que esperava Jesus e, consequentemente, seu discípulo: a cruz. Não veio para triunfos e glórias humanas, mas para entregar sua vida ao Pai pela salvação da humanidade. Na conclusão da segunda parte encontramos a profissão de fé do centurião: “Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39).

Na primeira parte do evangelho de hoje notamos Jesus fazendo uma espécie de ‘enquete’ a respeito da opinião que tinham dele. As respostas foram variadas. De qualquer forma entendiam que Jesus era uma pessoa que se poderia identificar com personagens significativos da história precedente de Israel. Os discípulos, porém, tinham uma compreensão mais apurada de Jesus. Embora Pedro, em nome do grupo, confesse: “Tu és o Messias”, ainda não tinha plena noção do alcance dessas palavras. É que a fé em Jesus incide na vida do crente: o discípulo de Jesus deve procurar conformar sua vida com a do Mestre.

Ao proibir que se publique aquela profissão de fé, Jesus pretende preservar o chamado “segredo messiânico”. É uma característica do Evangelho de Marcos. A população (judaica) da época esperava um Messias com poder político para libertá-los do poder opressor dos romanos. De modo que a compreensão correta da pessoa e missão de Jesus se daria somente depois de sua morte. Na ressurreição os discípulos verão que o Pai está com ele.

Quando Jesus começa a orientar e prevenir seus discípulos sobre o que o esperava, Pedro parece não ter escutado as palavras: “ressuscitar depois de três dias”. Parecia ter aquela ideia que está muito presente no povo de modo geral: “Não se pode perder o voto... Então, deve-se votar em quem tem mais chances de ganhar”. Estar ao lado de um Messias derrotado, crucificado, jamais! Jesus então lhe diz com firmeza: “Vai para trás de mim, Satanás!”. Ou seja, coloque-se atrás de mim, no meu seguimento, carregando sua cruz, como discípulo! Ao chamá-lo de ‘satanás’, Jesus quer dizer que ele se coloca como um Adversário do projeto do Pai. Um opositor do caminho que Jesus deve trilhar. Suas ideias estão na contramão do querer do Pai.

Entenda-se bem: o Pai não queria que seu Filho sofresse ou morresse na cruz. Deus não é sado-masoquista. Há um hino muito cantado por aí que proclama assim: “Deus enviou seu Filho amado para morrer no meu lugar...” A teologia desse hino obscurece a Face do Deus que Jesus revelou. Deus Pai não enviou seu Filho para morrer, mas para nos salvar. A morte, e morte de cruz, foi consequência da rejeição e oposição que os donos do poder lhe fizeram. Não quiseram acolher o Reino de Deus trazido por Jesus. A morte trágica de Jesus foi consequência da sua fidelidade ao Pai, entregando-se livre e amorosamente por todos nós (cf. Jo 10,18). Ele entregou sua vida por amor.  Ele nos amou até o fim (cf. Jo 13,1). - Cuidado com as músicas que mutilam o Evangelho!

Portanto, o texto quer evidenciar que o Filho devia levar às últimas consequências o projeto da salvação da humanidade que o Pai lhe confiara. Se esse caminho passaria pela rejeição e pela cruz, então o Filho deveria enfrentar também isso. A grande prova de que o Pai não queria a destruição de seu Filho e aprovava a sua vida foi a Ressurreição: o mal e a morte não prevalecem! O Filho saiu vencedor!

A grande lição para nós: Para ser discípulo de Jesus é preciso segui-lo no caminho da cruz, isto é, da entrega, do amor generoso, da oferta da vida, da contestação de uma sociedade baseada no lucro, na fama, no sucesso, no consumismo, no exibicionismo, no poder, na posse de bens. Assumir uma vida de partilha, de solidariedade com os pobres, de serviço generoso. Uma cruz geradora de vida nova. Não basta dizer que acreditamos em Jesus. Palavras voam (Verba volant). Uma existência impregnada pelo Mistério de Cristo é que se torna indicativo de que acreditamos n’Ele. Aquilo que São Paulo chama de “configurar-se a Cristo”. Para compreendermos o mistério de Cristo precisamos entrar nele. Não se trata de colocar o Mistério dentro de nossa cabeça (com-preender). Isso seria tentativa de reduzi-lo à pura racionalidade. Mas é preciso en-tender, isto é, mergulhar dentro dele. Numa expressão teologica e mistagogicamente mais adequada: deixar-nos tomar/envolver por ele. Só então o compreenderemos.

Algumas considerações: Não poucas vezes nossa catequese insiste em ritos, em fórmulas, em práticas ultrapassadas de piedade, em determinadas obrigações legais, em doutrinação, em dinâmicas vazias. E pouco trabalha o mais importante: o seguimento de Jesus. Nossa identidade cristã deve ser construída em torno de Jesus. Ser cristão é bem mais do que ser batizado, crismado, casado na igreja, frequentador de missa ou culto, tarefeiro de igreja. É bem mais do que organizar a festa do santo padroeiro da paróquia, ou se dar bem com o padre, ou assumir um ‘cargo’ na comunidade. Ser cristão é seguir Jesus no caminho do amor, da oferta da vida, como os santos: São Maximiliano kolbe, Pe. Júlio Maria, Madre Teresa de Calcutá, Santa Dulce dos Pobres, São Francisco de Assis etc. O cristão é aquele que faz de Jesus a referência fundamental de sua vida. Ser cristão é renunciar a si mesmo e tomar a mesma cruz de Jesus a cada dia. É colocar os pés nos passos de Jesus.

Renunciar a si mesmo é não permitir que o egoísmo, o orgulho, o comodismo, o consumismo, a ganância de ter sempre mais, a autossuficiência, a mentira dominem nossa vida. O seguidor de Jesus não vive fechado no seu cantinho, a olhar para si mesmo, indiferente aos dramas que se passam à sua volta, insensível às necessidades dos irmãos, alheio às lutas, reivindicações e lágrimas dos sofredores. O seguidor de Jesus vive para Deus, na solidariedade, na partilha e no serviço aos irmãos. Ao saber que há pessoas desempregadas e passando fome, que há doentes sofrendo por falta de atendimento médico-hospitalar, que há pessoas sofrendo fome e desamparo em consequência das queimadas, criminosas em grande porcentagem, quem é cristão de verdade se sensibiliza, se mexe, deixa-se tocar. Isso significa “tomar a cruz” e “seguir a Jesus”.

Nossa fé, no dizer de Tiago (Tg 2,14-18), precisa ser comprovada pela nossa prática de vida. De que adianta dizer que temos fé, que praticamos a religião, se nossas atitudes não correspondem àquilo que professamos na igreja? “Tu, mostra-me a tua fé sem as obras, que eu te mostrarei a minha fé pelas obras!”. Não são as obras que nos garantem a salvação, pois esta é dom, é graça de Deus para nós. Mas as obras garantem que nós acolhemos a salvação que Deus nos deu. Elas mostram que somos gratos pela salvação e que somos colaboradores de Deus para que outras pessoas experimentem também esse dom maravilhoso que o Pai nos deu em Jesus Cristo.

Em síntese: renunciarmos aos projetos que se opõem ao Reinado de Deus; acolhermos de coração os sofrimentos que podem advir do fato de assumirmos a causa de Jesus.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Abri, Senhor, nossa mente e nosso coração!

aureliano, 07.09.24

23º Domingo do Tempo Comum [08 de setembro 2024]

   [Mc 7,31-37]

No relato de hoje Jesus ainda está em território pagão, retornando para a Galileia. Nesse texto Marcos prepara o leitor para acompanhar a profissão de fé de Pedro: “Tu és o Messias”. Por isso a multidão já fica impressionada: “Ele tem feito bem todas as coisas!”.

Ao trazerem aquele homem para que Jesus lhe impusesse a mão, aquelas pessoas demonstravam uma confiança que Jesus poderia fazer alguma coisa. Na verdade, notamos no relato de hoje, ligado à mulher siro-fenícia que “arrancou” de Jesus um milagre em favor de sua filha, e prestes já a entrar no relato da multiplicação dos pães, a ação misericordiosa de Deus manifestada em Jesus. Deus é bom e cuida de todos, particularmente dos mais abandonados e desprezados.

Jesus realiza um ritual com aquele homem: leva-o para fora da multidão, ou seja, mostra que quer se comunicar com ele. Jesus toca nos ouvidos e língua do surdo-mudo! Os doentes e pessoas com deficiência eram considerados amaldiçoados por Deus! E Jesus toca neles! Esse fato nos remete à Criação, no livro do Gênesis. É a recriação que Deus faz de nós em Jesus, seu Filho amado. Ele nos recria, nos faz ouvir e falar de modo novo. Ele abre nossos ouvidos e nossa boca. Quer que o escutemos com atenção. Quer que proclamemos sua bondade. Essa correlação com a Criação aparece claramente quando a multidão proclama: “Ele faz bem todas as coisas”. No relato da criação em Gênesis, lemos: “Viu que era muito bom” (Gn 1,31).

Jesus percebeu que apenas os gestos eram insuficientes para a recuperação daquele homem, volta-se para o Pai, como a nos indicar o que fazer nas situações em que nos deparamos com nossos limites ou com dificuldades que ultrapassam nossas forças. Olha para o alto e diz confiante: “Effathá!”. É a única palavra de Jesus no relato. Mas uma palavra recriadora, libertadora, expressiva de toda sua missão. Veio para “abrir” os ouvidos e o coração do ser humano. Se o pecado nos fecha a Deus e aos irmãos, a graça salvadora de Jesus nos abre a uma vida nova, à partilha dos dons e dos bens. Impele-nos a ver as necessidades dos outros e a ouvir o clamor dos pobres.

“Abre-te!”. Essa proclamação de Jesus continua ressoando dentro de nós, em nossa Igreja. Marcos quer lembrar aos cristãos das primeiras comunidades que precisam aprender a escutar. Escutar a Jesus. Escutar a Palavra de Deus. Escutar as necessidades dos irmãos. Mas não é possível escutar os irmãos se primeiro não escutamos a Jesus. Não podemos dizer uma palavra de conforto, de sabedoria, de estímulo ao sofredor, se antes não escutamos essa palavra de Jesus. Quantas pessoas desoladas, sofridas, desanimadas, tristes por falta de quem as escute com atenção e generosidade! Quem não se abre a Deus, não pode se abrir aos outros. Aquele “abre-te” foi pronunciado por Jesus ao coração daquele homem e não aos seus ouvidos, pois não escutava. E ele passou a ouvir com o coração. Como as pessoas necessitam de quem as ouça com o coração! A tecnologia da comunicação veio ajudar em muita coisa, mas perturbou terrivelmente as relações de proximidade, de afetividade, de sensibilidade, de solidariedade, de escuta profunda e respeitosa da partilha dos pequenos e sofredores!

Por vezes a Igreja diz grandes verdades, mas que não tocam o coração de ninguém. Por quê? Falta falar ao coração, com afeto, com interesse e sensibilidade pela situação de cada um. Tocar e curar as feridas, os ouvidos, os olhos, o coração, as dores das vítimas de uma sociedade que levanta muros e derruba as poucas pontes! Uma Igreja de mais proximidade aos que estão distantes, enxotados por um sistema que visa aos que produzem e exclui com perversidade aqueles que não dão lucro econômico.

A propósito do mês da bíblia, seria bom pensarmos na necessidade de abrirmos nosso coração e nossa vida à Palavra de Deus. Ler nossa vida no espelho do texto sagrado. Ali percebemos onde estamos, aonde precisamos ir e por onde caminhar. A Palavra de Deus nos possibilita um encontro com Jesus que nos transforma, que nos abre, que nos dá possibilidades novas, que abre diante de nós novos horizontes. Ajuda-nos a “falar sem dificuldade”, pois falamos daquilo que experimentamos em nosso coração.

Quando lemos o relato da criação em Gênesis, observamos que o autor sagrado repete várias vezes: “Deus viu que isso era bom”. No relato do evangelho de hoje a multidão exclama: “Ele tem feito bem todas as coisas”. Uma confirmação da ação recriadora de Jesus.

A Igreja, continuadora da missão de Jesus e com Jesus, deve colocar-se como ouvinte atenta, discípula fiel para aprender de Jesus a acolher, sem discriminação nem preconceito. Tiago, na segunda leitura de hoje, nos ensina “A fé que tendes em nosso Senhor Jesus Cristo glorificado não deve admitir acepção de pessoas” (Tg 2,1). Nós, Igreja, precisamos aprender a ouvir o clamor dos pobres. Ensinava Dom Pedro Casaldáliga: “Se a Igreja esquece a opção pelos pobres, esqueceu o evangelho”.

---------xxxxx---------

Mês da Bíblia:

O capitulo 18 de Ezequiel ajuda a clarear uma questão que sempre angustia o ser humano: o sofrimento, a dor, o mal. O justo deve pagar junto com os pecadores? A expressão que o profeta usa é aquela popular: “Os pais comeram uvas verdes e os filhos vão ficar com a boca travada?”.  Ou seja, os pais e Deus são os culpados pelo exílio e sofrimento do povo de Israel na Babilônia? O profeta vai responder que “cada um é responsável pelos seus próprios crimes” (Ez 18,13). Não se herda nem o bem nem o mal. Cada pessoa e cada comunidade é responsável pelo que lhes acontece. O que Deus quer é que cada um aproveite as oportunidades para a conversão, para fazer o bem: “O que quero é que o ímpio se converta dos seus maus caminhos e viva” (Ez 18,23). Quem se converter será salvo. Quem escolher a perversidade se perderá.

Ezequiel quer ajudar o povo a refletir sobre o esforço de cada um em superar as dificuldades pelas quais todos passamos. Não adianta chorar e transferir para os outros a responsabilidade sobre os males que enfrentamos. Para ajudar nesse processo de conversão desejado por Deus ele diz: “Eu não sinto prazer com a morte de ninguém (...). Convertam-se e terão a vida” (Ez 18,32).

As mídias sociais religiosas têm gastado saliva e tempo para falar de maldições. Uma tentativa de explicar os infortúnios e desafios pelos quais as pessoas passam. Alguns influenciadores sociais religiosos explicam que as maldições sofridas pelos ancestrais (gerações passadas) atingem a nós que vivemos hoje. E que é preciso “quebrar” essa maldição pra poder-se viver uma vida tranqüila e nova diante de Deus e da história.

Esse tipo de ensinamento parece tirar da pessoa a responsabilidade sobre seus próprios atos. Pior do que isso, parece negar a obra redentora de Cristo que salvou toda a humanidade, cumulando-a de bênção: “Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda sorte de bênçãos espirituais, nos céus, em Cristo (...) Nele também vós, tendo ouvido a Palavra da verdade - o evento da salvação - e nela tendo crido, fostes selados pelo Espírito da promessa, o Espírito Santo, que é penhor de nossa herança, para a redenção do povo que ele adquiriu para o seu louvor e glória” (Ef 1,3.13-14).

Então somos herdeiros da bênção e não da maldição. Somos abençoados para abençoar. De graça recebemos para distribuir graciosamente. Não podemos renegar a redenção de Cristo com elementos estranhos à fé cristã que vêm produzir medo e pavor nas pessoas. O Espírito que nos foi dado não é espírito de medo, mas de confiança e de liberdade em Cristo.

Portanto, cada um assuma sua responsabilidade diante de Deus. Quem tem responsabilidades sobre um grupo certamente influenciará esse grupo. Se for uma pessoa boa, fiel, coerente, promotora da paz e da justiça, será uma bênção para seus liderados; se for uma pessoa infiel, gananciosa, perversa, trará dor e sofrimento para seus liderados.

Deixemos o Senhor “abrir” nosso coração ao seu Amor! Assumamos nossas responsabilidades diante de Deus e da comunidade. Sejamos uma bênção para as pessoas que estão perto de nós. Afastemos de nossa mente e coração essa ideia danosa de “herança de maldição”. Somos herdeiros da bênção. Abençoados para abençoar.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN