Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

aurelius

aurelius

Sinais do Ressuscitado no Vale do Jequitinhonha

aureliano, 30.03.16

Um desejo antigo: conhecer o Vale do Jequitinhonha. A oportunidade veio. A Conferência dos Religiosos do Regional de Minas Gerais realiza, todos os anos, uma Missão na Semana Santa. E quase sempre contempla o Norte de Minas. Uma tentativa de presença missionária em regiões carentes.

Dezoito a vinte e sete de março: período agendado para a missão. Lá vou eu: esperançoso, desejoso de conhecer aquela realidade. De antemão já sabia para que comunidade iria: Virgem da Lapa, paróquia São Domingos. Aí permaneceria entre 19 (sábado) e 23 (quarta). De Quinta-feira Santa a Domingo da Ressurreição (25 a 27) iria para São João do Vacaria, distrito de Virgem da Lapa.

Não pretendo narrar fatos jornalísticos, mas falar de uma experiência: sair de mim mesmo, colocar-me junto a um perito e aprender dele aquela arte. E foi a tentativa que fiz.

O Vale do Jequitinhonha traz em seu seio um povo sofrido, explorado, por vezes discriminado, mas feliz. Ah! Sim! A felicidade ninguém lhes tira. Brota de dentro, do íntimo, de Deus. Não fosse a desfaçatez de ricaços sem piedade e dominados pela ganância, aquele povo viveria muito mais feliz. Não ouvi lamento sobre a falta de chuva, sobre as longas distâncias ou sobre outras intempéries quaisquer. A grande insatisfação é contra a exploração de que são vítimas: o plantio de eucalipto nas barragens e chapadas secou as fontes de água, ameaçando a vida das comunidades. A truculência dos poderosos não leva em conta um povo que ali luta pela sobrevivência. Como sói acontecer em outras regiões do país, não se leva em conta a vida do planeta e do ser humano, mas o lucro sórdido e assassino que enche os bolsos e as bolsas de alguns perversos e gananciosos.

Pude ter contato com várias comunidades: Matriz São Domingos (cidade), Chácara, Funil, Almas, Buritis, Lagoa da Manga, Rosário de Baixo, Pega. Algumas destas comunidades são quilombolas. Um povo simples, humilde, acolhedor, religioso, piedoso. O acesso é bastante difícil, mas a comunidade continua ali: viva, confiante, esperançosa. Celebram a Palavra, celebram suas festas, seus encontros, sua vida.

São João do Vacaria. Um distrito de Virgem da Lapa, situado a 47 Km da sede, e com acesso muito difícil. Que comunidade maravilhosa! Em meio à penumbra da “noite”, vi sinais claros de Ressurreição. O Senhor não abandona o justo!

A população do Distrito gira em torno de 1000 habitantes. Do ponto de vista econômico, um povo marcado pela falta de emprego, de perspectiva profissional, com um futuro incerto. A maioria dos jovens, terminado o Ensino Médio, migra para outras regiões, particularmente São Paulo, a busca de estudo e emprego. Outros, muitos outros da região, realizam aqueles trabalhos sazonais: no tempo do corte da cana-de-açúcar e da colheita do café, vão para o Sul de Minas, São Paulo ou Bahia para ganharem algum recurso a fim de defender o ‘pão das crianças’.

Uma comunidade que se organiza como rede. Rede forte, curtida pela dor, pela luta, pela teimosia em viver e cuidar da vida. A comunidade eclesial (católica), a Unidade de Saúde, a Escola, a Associação estão interrelacionadas. Os líderes comunitários, quase todos ligados à comunidade eclesial, estão nestas diversas instâncias preocupados com a vida e o bem-estar de toda a comunidade, independente de credo e condição social.

A comunidade eclesial tem um planejamento pastoral que engloba a todos. Um fato que me marcou: a Pastoral da Criança, em pleno Sábado Santo, realizando a Celebração da Vida! Sessenta e duas crianças acompanhadas mensalmente pela Pastoral, em parceria com a Unidade de Saúde. Há visitas planejadas aos idosos. Alguns são centenários como o Seu Cristiano que fará 103 anos em breve. Um homem lúcido, bem cuidado pela família e pela comunidade. Ao lado de Dona Geralda, com 91 anos, celebram neste ano 73 anos de vida conjugal. Um casal agradável, harmonioso e feliz. E assim outros como Dona Lody, uma senhora com 97 anos, que ainda tece colcha de retalhos, fia algodão e ajuda nos afazeres da casa, cuidada com um carinho enorme pela bisneta Jeane. Também Dona Lindaura e Seu Vicente, nonagenários, estão por ali. Dona Firmina, Seu Apolinário e Dona Maria, octogenários. E o Marcelo? Irmão do querido Nilinho, é um rapaz com deficiência física e mental, cercado de cuidados pela família, a começar por dona Adalgisa, mãe prestimosa e paciente!

Os agentes de saúde estão para além do soldo! Por vezes são acordados de madrugada por alguém que pede socorro “médico”. E lá vão eles prestar o serviço que sabem e que podem a fim de cuidarem e protegerem a vida.

Na escola, um esforço permanente de professores, serviçais e alunos para que todos sejam protegidos, bem formados, resguardados de qualquer violência ou maldade. Todos se preocupam com todos.

A Associação Comunitária está atenta às necessidades e possibilidades da comunidade, trabalhando em prol de todos. Quando julga necessário, não hesita em tomar medidas necessárias para coibir ações nefastas de exploradores  e malfeitores.

Minha Semana Santa foi muito abençoada. Pude experimentar sinais de ressurreição num ambiente aonde a morte campeia em dominar. Sinais de ressurreição nos jovens dedicados e organizados. Sinais de ressurreição nas pastorais, especialmente na Pastoral da Criança que zela pela saúde e bem-estar dos pequenos indefesos. Sinais de ressurreição no cuidado com os idosos e doentes quando visitados, encaminhados, acompanhados. Sinais de ressurreição nos agentes da saúde e nos profissionais da educação que zelam não somente para ensinar o bê-á-bá, mas olham pelas crianças, adolescentes e jovens no conjunto de sua vida. Sinais de ressurreição nos gestos de acolhida, na casa aberta, no coração generoso, no olhar atento, na mesa farta, na oferta de si mesmo, na tessitura da rede da vida contra as forças da morte que circundam a comunidade.

Ao Pe. Éderson Guedes, pároco prestimoso, ao Roberto Pereira, seminarista dedicado, ao Willian, também seminarista, à Neusa, à Chica, à Lia, à Karina, à Luísa e demais membros da comunidade, minha gratidão profunda pela acolhida e companheirismo em Virgem da Lapa.

Em São João do Vacaria, gratidão eterna à Dona Terezinha que me acolheu generosamente em sua casa, à Helena e Zezinho que acolheram Irmã Cida, companheira de missão, ao José Nilson e Lili, prestimosos no serviço e na acolhida. Grato também à Marlene, ao Gefferson, à Luana, ao Bruno, à Vanda, ao Sr. Rodolfo, à Dona Fatinha, à Silete, ao Marcus Eduardo e a tantos outros “anjos da guarda” da comunidade. Ao grupo de jovens, à Pastoral da Criança liderada por Tatiane Sandes, à equipe de liturgia (ministros, coroinhas e outros mais), minha prece ao Deus da vida para mantê-los na fidelidade e generosidade de coração. A Rede da Vida tecida pela Oração, pela Eucaristia, pela Palavra de Deus, pela Fraternidade, pelo Perdão e pela Generosidade será sempre vencedora das tramas do inimigo e da morte! Deus seja louvado pela beleza e riqueza destes dias!

A maioria das pessoas, ao planejar as férias, pensa em passeio a lugares paradisíacos ou coisas do gênero. E isto é mesmo muito bom e, por vezes, até necessário. Mas se pudessem reservar alguns dias para doarem um pouco de si em realidades em que o povo sofre, seria uma bela oportunidade de conversão pessoal e de serviço à humanidade. Pense nisso!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

A morte não tem mais a última palavra [Jo 20,1-9]

aureliano, 26.03.16

Páscoa do Senhor [27 de março de 2016]

 

Pedro e Madalena representam, aqui, a comunidade que ainda duvidava da ressurreição e Jesus. Estavam em busca de provas e elementos que dessem sentido à vida deles, uma vez que, aquele em quem confiavam, morrera na cruz.

Quando o evangelho menciona “o primeiro dia da semana”, remete o leitor à criação do mundo, narrada pelo Gênesis, para mostrar que a Ressurreição de Jesus é a Nova Criação. O fiel cristão, batizado, entra numa vida nova, na Nova Criação de Deus. O mundo velho passou. Agora, é tudo novo.

A “madrugada” lembra o alvorecer que desfaz as trevas da morte. Agora a vida brilhou no horizonte. A madrugada, embora traga em si o sinal do dia, possui também uma penumbra que impede de enxergar com clareza. É o que acontecia com Maria Madalena: “ainda estava escuro”. A comunidade ainda estava temerosa.

A “pedra removida” e o “túmulo vazio” são sinais de que algo novo aconteceu. É um sinal negativo da ressurreição. Esses sinais indicavam que Jesus não estava ali, porém não garantiam sua ressurreição.  A “pedra removida” significa que a morte foi vencida. O túmulo não é último lugar do ser humano. Este, pelo Cristo ressuscitado, vence também a morte e entra na vida que não tem fim, a vida eterna que já começara aqui, a partir da vida vivida em Deus, à semelhança de Cristo.

O “túmulo vazio” não é prova da ressurreição. A fé na ressurreição não vem da visão, mas da experiência. As “aparições” de Jesus ressuscitado é que vão consolidar a fé dos discípulos. É o dado da fé. Uma realidade que transcende a razão. Não contradiz a razão, mas está para além da compreensão puramente racional. Por isso Santo Agostinho dirá: “Credo ut intelligam”: creio para compreender. Nós cremos pelo testemunho de fé da comunidade. A fé nos é transmitida. Cremos a partir da experiência que outros fizeram. Fazendo nós também essa experiência, transmitimo-la àqueles que a buscam. Porém, tudo é ação da Graça de Deus.

Pedro e o “outro discípulo” vão correndo ao túmulo. O “discípulo amado” chega primeiro que Pedro. Quem ama tem pressa. Ele “viu, e acreditou”. É o amor que faz reconhecer na ausência (túmulo vazio) a presença gloriosa do Cristo ressuscitado. Agora os discípulos entendem o que significa “ressuscitar dos mortos”. Agora eles vêem, não com os olhos humanos, mas com os olhos da fé. Agora estão iluminados pelo sopro do Espírito Divino que animou Jesus.

Nenhum evangelista se atreveu a narrar a ressurreição de Jesus. Não é um fato “histórico” propriamente dito, como tantos outros que acontecem no mundo e que podemos constatar e verificar, empiricamente. É um “fato real”, que aconteceu realmente. Para nós cristãos, é o fato mais importante e decisivo que já aconteceu na história da humanidade. Um acontecimento que traz sentido novo à vida humana, que fundamenta a verdadeira esperança, que traz sentido para uma das realidades mais angustiantes do ser humano: a morte. Esta não tem mais a última palavra. A pedra que fechava o túmulo foi retirada. A ressurreição é um convite, em última instância, a crer que Deus não abandona aqueles que o amaram até o fim, que tiveram a coragem de viver e de morrer por Ele.

O núcleo central da ressurreição de Jesus é o encontro que os discípulos fizeram com ele, agora cheio de vida, a transmitir-lhes o perdão e a paz. Daqui brota a missão: transmitir, comunicar aos outros essa experiência nova e fundante de suas vidas. Não se trata de transmitir uma doutrina, mas despertar nos novos discípulos o desejo de aprender a viver a partir de Jesus e se comprometer a segui-lo fielmente.

ELE VIVE PARA ALÉM DA MORTE

O Senhor ressuscitou em verdade (cf Lc 24, 34). A Igreja celebra a ressurreição do Senhor no primeiro dia da semana, o domingo. Domingo vem de dominus, senhor. Ele dominou a morte e o pecado. Por isso é Senhor. Ele exerce o senhorio sobre nós.

O evangelho diz que Maria Madalena foi ao túmulo “quando ainda estava escuro”. Essa escuridão simboliza as sombras (angústias) vividas pelos discípulos após a morte de Jesus. Era como se todo o sonho tivesse acabado. Não sabiam o que fazer. Estavam na escuridão.

O testemunho da ressurreição inclui dois elementos: o sepulcro vazio e a aparição do Ressuscitado. O sepulcro vazio constitui um sinal negativo. Só fala ao “discípulo que ele amava”: “Ele viu e acreditou”. Ou seja, os sinais falam quando o coração está aquecido pelo amor. É preciso ser amigo de Jesus para compreender seus sinais. Já a aparição do Ressuscitado acontece no caminho de Emaús (Lc 24), aos discípulos desejosos de ver o Senhor e auscultar sua Palavra. No gesto da partilha do pão seus olhos se abrem e eles o reconhecem. Em seguida assumem a missão: “Naquela mesma hora, levantaram-se e voltaram para Jerusalém” (Lc 24, 33).

A escuridão da madrugada e o túmulo vazio nos dizem que por vezes ficamos confusos diante da maldade humana, diante de tantos abusos do poder, de tanta violência e morte, de tanta corrupção que desencanta e desestimula o poder do voto nas eleições, diante do sofrimento sem fim dos refugiados de guerras civis; e somos levados a perguntar: “Deus, onde estás?”. Mas a experiência de fé nos diz que na morte (‘túmulo vazio’, ‘noite’) há sinais de vida; na escuridão há lampejos de luz. Para isso é preciso ser “amigo de Jesus” (discípulo amado), ou seja, ser próximo dele, conviver com ele, reclinar-se sobre seu peito (cf. Jo 13,25).

Esse tempo pascal nos convida a assumir a vida nova que Jesus Ressuscitado veio nos trazer sendo uma presença de luz, de testemunho vivo contra toda maldade junto àqueles que o Pai colocou no nosso caminho.

Ressurreição é luta contra o tráfico de seres humanos, contra as injustiças sociais, contra a prostituição e abuso de crianças e adolescentes. É dizer não ao desrespeito aos povos indígenas, ao mundo das drogas, à indiferença ecológica. Ressurreição é se contrapor, ainda que à semelhança de alguém que ‘clama no deserto’, a esse mar de corrupção e mentiras, ganância e deslealdade que pervadem nossa sociedade brasileira. Páscoa é libertação de tudo o que oprime, maltrata e fere.

Ressurreição é ser testemunha da esperança numa sociedade materialista e desumana, onde o túmulo está vazio e as sombras da morte parecem prevalecer. Páscoa é continuar afirmando com a vida: “Ele vive e está no meio de nós!”

 

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Amou-nos até o fim

aureliano, 23.03.16

Quinta-feira Santa [24 de março de 2016]

[Jo 13,1-15]

Neste primeiro dia do Tríduo Pascal celebramos a instituição da Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do Senhor, que se desdobra em dois aspectos: a instituição do Sacerdócio Ministerial e o serviço fraterno da caridade.

Perpassando o evangelho de João, notamos que não há referências aos gestos rituais de Jesus sobre o pão e vinho como o fazem os outros evangelistas. O discurso de Jesus sobre a Eucaristia está no capítulo 6° de seu evangelho.

No discurso de despedida, João salienta o gesto de Jesus ao lavar os pés de seus discípulos. Não pede que seu gesto seja reproduzido ritualmente, mas que devemos “fazer como ele fez”. Ou seja, devemos refazer em nossas relações o que Jesus fez naquele gesto simbólico: amor gratuito que torna presente o “sacramento” do amor de Cristo por todos nós. O “lava-pés” deve ser o modo de proceder, o estilo de vida da comunidade dos seguidores de Jesus: “Dei-vos o exemplo para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 15,15).

O sacramento do amor

A Eucaristia, memorial do sacrifício de Jesus, é o sacramento do Corpo e Sangue de Cristo que nos é dado como alimento: “Todas as vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor até que ele venha” (1Cor 11,26). Esta presença real-sacramental do Senhor ressuscitado no pão e no vinho se estende também, de algum modo, aos irmãos. Por isto não se pode conceber a comunhão eucarística sem referência aos irmãos. Particularmente aos mais pobres e necessitados. E Paulo alerta: “Quando, pois, vos reunis, o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor; cada um se apressa em comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado” (1Cor 11,20).

Nesta perspectiva pode-se interpretar o relato joanino como profundamente eucarístico, pois os gestos de Jesus no ‘Lava-pés’, não foram outra coisa senão gestos eucarísticos.

Sacerdócio ministerial

Os gestos que Jesus realiza de “levantar-se”, “tirar o manto”, “vestir o avental”, “lavar os pés” revelam como devem ser as relações na comunidade: não de poder, mas de serviço. Portanto, o sacerdócio ministerial, para ser coerente com o dom recebido, deve ter como inspiração os gestos de Jesus no ‘Lava-pés’.

Quem preside à comunidade, preside também a eucaristia. Reúne a comunidade para a oração, para a escuta da Palavra, para o serviço aos pobres, distribui as tarefas e partilha os bens ofertados. Assim proclama o Concílio Vaticano II sobre a missão do sacerdote: “De coração, feitos modelos para o rebanho, presidam e sirvam de tal modo sua comunidade local, que esta dignamente possa ser chamada com aquele nome pelo qual só e todo o Povo de Deus é distinguido, a saber: Igreja de Deus” (LG, 28).

Neste dia, na Missa Crismal, o presbitério renova as promessas sacerdotais diante do Bispo. Uma destas promessas revela claramente a missão do padre. Ela reza assim: “Quereis ser fiéis distribuidores dos mistérios de Deus pela missão de ensinar, pela sagrada Eucaristia e demais celebrações litúrgicas, seguindo o Cristo Cabeça e Pastor, não levados pela ambição dos bens materiais, mas apenas pelo amor aos seres humanos?”

Cena simbólica

Vamos contemplar os gestos de Jesus e sua relação com nossa vida:

- vestir o avental: revestir-se de simplicidade, de ternura, de presença, de serviço desinteressado.

- tirar o manto: arrancar tudo que impede o serviço, a prontidão, a disponibilidade.

- levantar-se da mesa: estar à mesa é muito bom. Mas há sempre uma situação que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Levantar-se da mesa e sentar-se à mesa é uma dinâmica constante em nossa vida. Movimentos de partida e de chegada.

- levantou-se da mesa: não se pode servir permanecendo no comodismo. Algo precisa ser feito. O Senhor “precisa” de mim, como precisou do jumentinho: “O Senhor precisa dele”.

- ficar de pé: é a atitude que tomamos quando ouvimos o evangelho na celebração. Significa prontidão para deslocar-se, para sair em qualquer direção. Prontidão para viver a Boa Nova do Reino de Deus. Estar à mesa é sinal de fraternidade, mas é preciso saber a hora certa de se levantar e sair para servir.

- tirou o manto: é abrir mão do poder. Algo que brota de dentro. O manto impede a liberdade dos movimentos. Ele traz a aparência de poder. Há “mantos” que prendem e amarram. O Senhor trocou o manto pelo avental. Quais são meus “mantos”? Costumo colocar o avental?

- colocou água na bacia...: Jesus não faz serviço pela metade. Não tem receio de se inclinar até o chão para lavar os pés dos seus discípulos. Não faz distinção de ninguém. Lava os pés de todos.

- depois, voltou à mesa: retomou o manto, mas não tirou o avental. Ele quer mostrar que seu discípulo deve ser sempre servidor. Não se pode tirar o avental do serviço. Qualquer posto ou cargo ou ministério que se ocupar deve estar ali, sob o manto do poder, o avental do serviço. Então deve ser poder-serviço. Todo exercício de poder sem a dimensão do serviço (avental) está fadado a oprimir, a se corromper, a sacrificar vidas.

Vê-se, pois, que a Eucaristia foi instituída para formar um só Corpo. O corpo sacramental de Cristo no pão consagrado deve transformar o comungante no Corpo eclesial. O Espírito Santo transforma o pão e o vinho no Corpo e Sangue de Cristo, para que a assembléia celebrante e comungante se transforme no Corpo do Senhor, a Igreja. Provém daí a expressão clássica: a Eucaristia faz a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia. Isto tem consequências profundas em nossa vida. A comunhão eucarística nos compromete com os membros (do corpo) que sofrem, que passam fome, que pecam, que estão afastados, que experimentam o abandono, que padecem por causa de nossas omissões e covardias. O senhor deu-nos o exemplo para que façamos o mesmo que ele fez: amou-nos até o fim!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Um Deus crucificado

aureliano, 18.03.16

Domingo de Ramos [20 de março de 2016]

[Lc 9,28-40;22,14 – 23,56]

Estamos entrando na Semana Santa! Esta Semana passou a ser celebrada com a intenção de rememorar a Paixão do Senhor. Na Idade Média ela tomou corpo e fôlego, sobretudo pela tentativa de reviver o episódio da Paixão do Senhor descrito pelos evangelistas. Esta semana era até chamada de Semana Dolorosa, pelo fato de se dramatizarem os sofrimentos de Cristo.

Parece simples, mas o conhecimento desse dado histórico é interessante porque pode nos ajudar a entender o porquê das vias sacras e outras representações da Paixão do Senhor. Ficaremos então atentos para não nos perdermos nos folclores e dramatizações, mas adentrarmos mais profundamente no Mistério profundo da entrega de Jesus, manifestação do amor do Pai, e nos atermos ao Mistério fundante de nossa fé cristã, a Ressurreição do Senhor, vitorioso sobre o pecado e a morte.

Este domingo se chama, na verdade, Domingo da Paixão nos Ramos. Jesus entra triunfante em Jerusalém para sofrer a Paixão. Portanto celebramos dois acontecimentos: a aclamação de Jesus como o “Bendito que vem em nome do Senhor”, e a contemplação de sua Paixão. É o único domingo do ano em que a Igreja celebra a Paixão propriamente dita de Jesus, proclamando no Evangelho os relatos da Paixão.

Jesus pediu aos discípulos para buscar um jumentinho. Deviam dizer aos interrogantes: “O Senhor precisa dele”. O Senhor quer também precisar de nós. Somos os “jumentinhos” do Senhor. Nós temos nos colocado à disposição dele? Ou costumamos “empacar”?

Ainda mais: as pessoas espalhavam roupas e ramos pelo caminho aclamando a Jesus. E nós? Aplaudimos Jesus até à sua Ressurreição? Temos dado algo de nós para Jesus passar? Notamos que ele passa diante de nós no irmão que sofre?

Algumas considerações:

No Crucificado vemos, não somente um inocente condenado, mas nele, nós cristãos, contemplamos todas as vítimas do preconceito, da maldade e da injustiça de todos os tempos. Na cruz com Jesus estão as vítimas da fome, as crianças abandonadas e exploradas, as mulheres maltratadas, os explorados por nosso bem-estar, os esquecidos por nossa Igreja, os espoliados pela cultura da corrupção descarada.

Esse Deus crucificado não é o Deus controlador, que está em busca de honra e glória. Não! É o Deus paciente e humilde que respeita a liberdade de seus filhos e lhes quer sempre o bem, a felicidade e a alegria. Não é um Deus vingativo, justiceiro. Mas um Deus que manifesta sempre o perdão e a misericórdia.

Nós cristãos continuamos a celebrar o Deus crucificado porque vemos nele o Deus “louco” de amor por todos nós. Ele é a força que sustenta nossa esperança e nossa luta pela justiça e pela paz. Acreditamos que Deus não passa ao largo de nossas lágrimas, sofrimentos, lutas e fracassos. Ele está no calvário de nossa existência. A cruz erguida entre as nossas cruzes nos lembra que Deus sofre conosco.

Nesta semana a Igreja nos convida a contemplar Jesus que oferece sua vida como dom ao Pai. Ele não vai à cruz porque gosta de sofrer ou porque quer morrer. Jesus não é nenhum suicida! A paixão e sofrimento por que passa são conseqüências de sua fidelidade ao Pai. A contemplação de Cristo na cruz deveria nos levar a agradecer ao Pai por nos ter dado Jesus como Salvador. O Pai olha para seu Filho, vítima da maldade humana, como a olhar para todos aqueles que são injustiçados, vitimados por uma sociedade que sacrifica, particularmente, os jovens.

Jesus continua passando pelas nossas ruas e praças. Por vezes aplaudimos Jesus em uma celebração ou culto, depois o insultamos no rosto do desvalido! Isso é muito grave! Precisamos de um sério exame de consciência nesta Semana Santa.

Portanto, a celebração da entrada de Jesus em Jerusalém deve valorizar não tanto os ramos, mas o mistério expresso pela procissão que proclama a realeza messiânica de Cristo.

Campanha da Fraternidade: “Seria bom se todos pudessem dizer: Na minha casa tem tudo. O terreno da minha casa é legalizado, ninguém virá despejar-me. Não há esgoto a céu aberto na rua onde moro e a coleta de lixo é feita todos os dias. Minha casa é limpa. A qualidade do material utilizado no teto, no piso e no banheiro não é de luxo, mas é bom. A água encanada de boa qualidade chega até à torneira da pequena cozinha. Temos energia, canais de televisão. É fácil ter transporte bom, barato e de qualidade, correio e telefone. Assim, me sinto uma pessoa respeitada, a quem são garantidos os direitos fundamentais para viver com dignidade” (Texto-Base, 113). – Hoje é dia da coleta nacional da Campanha da Fraternidade!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

 

De um coração petrificado a um olhar cristificado

aureliano, 11.03.16

5º Domingo da Quaresma [13 de março de 2016]

[Jo 8,1-11]

Estamos nos aproximando da celebração da Páscoa do Senhor. Esse tempo da quaresma quer-nos ajudar a perceber onde estamos e por onde devemos caminhar. A conversão é a palavra central, pois sem este exercício não se vive a proposta de Jesus. A proposta para desviar-nos do caminho de Jesus é-nos feito constantemente pelas forças do mal. Os textos bíblicos deste tempo vêm-nos ajudar a rever nossa caminhada batismal. Que diferença tem feito em nossa vida sermos batizados ou não?

O relato do evangelho deste domingo é muito conhecido. Está dentro do evangelho de João, mas certamente não é escrito joanino, pois seu gênero literário não coincide com o de João. A crítica literária o coloca mais próximo de Lucas, sugerindo que ele deveria estar em Lc 21,38. Nem todos os manuscritos trazem esse relato dentro do evangelho de João.

Uma vez que esse texto foi reconhecido pela comunidade cristã como texto inspirado por Deus, o que nos interessa mesmo no evangelho de hoje é que traz um grande ensinamento para nós e nossas comunidades. Fazendo memória do evangelho do domingo passado (parábola do Pai misericordioso), notamos aqui mais uma confirmação do rosto misericordioso do Pai que Jesus nos veio revelar. É uma realização prática daquelas palavras da Escritura: “Quero a misericórdia e não o sacrifício” (Mt 12,7). E ainda: “Não quero a morte do pecador, mas que ele se converta e viva” (Ez 33,11).

Quando o evangelho diz que o povo ficava em volta de Jesus para escutá-lo significa que ele tinha algo de novo, que fazia a diferença na vida daquelas pessoas. Como diz Marcos: “Ele ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas” (Mc 1,22).

Trazem uma situação para Jesus resolver: uma mulher surpreendida em flagrante adultério. (Só não trouxeram o homem que adulterava com ela!). Aliás, já estava resolvido para os mestres da Lei e os fariseus: “Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres”. O gesto de Jesus de se inclinar e escrever com o dedo no chão pode indicar que estava dando um tempo e pensando como iria responder àquela pergunta capciosa. É a indicação de que a gente não deve responder sem pensar a perguntas e situações que envolvem a vida dos outros. É preciso parar, pensar, rezar, pedir inspiração ao Espírito Santo. Foi o que fez Jesus.

E a resposta sábia de Jesus colocou todos ‘contra a parede’: “Quem dentre vós não tiver pecado seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. Com essa resposta Jesus quis dizer que a ninguém é permitido tirar a vida do outro, por maior que seja o seu pecado ou o seu crime. É a condenação à pena de morte. Não se combate o mal com violência. Não há notícia na face da terra de que alguma violência tenha trazido algum benefício. Já a tolerância, a misericórdia, o perdão, sim. É preciso quebrar a corrente da violência. É preciso mudar de lente e de coração. Muito interessante observar o olhar de Jesus. Não condena, mas salva. Enquanto os homens viam uma adúltera, Jesus via uma mulher.

O perdão de Deus antecede nosso arrependimento: Esse relato nos quer fazer compreender também que o perdão de Deus é gratuito. Deus não nos perdoa porque nos arrependemos. Não! Na verdade nós nos arrependemos porque Deus nos perdoa. Em Lucas 7,47 encontramos Jesus na relação com aquela mulher pecadora que demonstra muito amor porque foi perdoada. Ou seja, Deus não nos perdoa porque amamos muito, mas nosso amor é resposta ao perdão que ele já nos deu. Deus nos perdoa sempre e sem condições. Se não fosse assim estaríamos esvaziando a Encarnação e a Cruz de Jesus. Não teria sentido sua vinda ao mundo! A salvação dependeria de nós e não da graça de Deus! Não precisamos de ocultar nossa condição de pecadores, mas aceitá-la como lugar de perdão e de encontro profundo com Deus misericordioso.

Jesus não vê uma adúltera, mas uma mulher: Para o judeu piedoso, a santidade de Deus não admite diante de si qualquer realidade impura. E o Código de Santidade protegeu as mulheres em alguns aspectos, mas em outros trouxe muito embaraço devido à compreensão que se tinha de pureza. Vamos acompanhar o comentário de Frei Mesters, Ir Mercedes Lopes e Francisco Orofino:

“Desde Esdras e Neemias, a tendência oficial era de excluir a mulher de toda a atividade pública e de considerá-la inapta para qualquer função na sociedade, a não ser para a função de esposa e mãe. O que mais contribuiu para a sua marginalização foi a lei da pureza. A mulher era declarada impura por ser mãe, por ser esposa, por ser filha, por ser mulher. Por ser mãe: dando à luz, ela se torna impura. Por ser filha: o filho que nasce traz 40 dias de impureza; mas a filha, 80 dias! (cf. Levítico 12) Por ser esposa: a relação sexual a torna impura durante um dia (Levítico 15,18). A mulher menstruada ficava sete dias impura. E quem a tocasse também se tornava impuro por contágio (Levítico 15,19-23). E não havia meio para uma mulher manter sua impureza em segredo, pois a lei obrigava as outras pessoas a denunciá-la. Esta legislação tornava insuportável a convivência diária em casa. Durante sete dias em cada mês, a mãe de família não podia deitar na cama, nem sentar-se numa cadeira, nem tocar nos filhos ou no marido, se não quisesse contaminá-los! Esta legislação é fruto de uma mentalidade segundo a qual a mulher era inferior ao homem. Alguns provérbios revelam essa discriminação da mulher. A marginalização chegou ao ponto de se considerar a mulher como a origem do pecado e da morte e a causa de todos os males (Eclesiástico 25,24).

Desta maneira se justificavam e se mantinham o privilégio e a dominação do homem sobre a mulher. Por exemplo, se um homem depois de algum tempo de casado, não gostasse mais da sua mulher, podia livrar-se dela dizendo que ela já não era virgem quando se casaram. Se os pais da mulher não conseguissem provar o contrário, ela seria apedrejada (Deuteronômio 22,13ss). A lei em relação ao divórcio é outro exemplo do privilégio do homem, pois somente ele tinha o direito de pedir o divórcio, mandando a mulher embora se já não a quisesse (Deuteronômio 24,1-4). A lei previa a morte do casal adúltero, mas na prática somente a mulher era julgada e condenada por adultério” (www CEBI).

Felizmente, há outros textos e livros da Sagrada Escritura que mostram a ação de Deus no mundo através da mulher. Temos o livro do Cântico dos Cânticos, Rute, Judite, Ester. Maria, mãe de Jesus, tem uma participação ímpar nessa história de salvação! Então é preciso mudar a mentalidade em relação à mulher, romper com o machismo ainda tão presente na sociedade e construirmos uma sociedade de igualdade de direitos e deveres. Isso precisa começar dentro de nossa casa, de nossa Igreja. Os pequenos gestos de acolhida, de reconhecimento, de perdão, de respeito podem transformar a maneira de pensar e de viver da sociedade. Isso é conversão: de um coração de pedra a um olhar transformado por uma vida em Cristo.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

               

               

 

“O Pai o avistou e teve compaixão”

aureliano, 04.03.16

 4º Domingo da Quaresma [06 de março de 2016]

[Lc 15,1-3.11-32]

O evangelho de hoje situa-se num contexto de dois grupos em torno de Jesus. Por um lado verifica-se a proximidade de Jesus dos publicanos e pecadores. Por outro, estão os escribas e fariseus em constantes críticas a Jesus por acolher essa “gentalha”.

O capítulo 15 de Lucas contém três parábolas que expressam a misericórdia de Deus. A escolhida para hoje, o Pai misericordioso que nos ajuda a identificar as intenções de Jesus e daqueles que estão à sua volta.

Não podemos perder de vista os três personagens principais da parábola: o pai, o filho mais novo e o filho mais velho. Aqui Jesus quer mostrar o rosto misericordioso de Deus. Se a gente quer saber quem é Deus, essa parábola no-lo revela.

O filho mais novo: ao longo da história esse personagem ocupou o centro das homilias e reflexões. Tanto é verdade que a parábola recebeu a alcunha de “parábola do filho pródigo”. Acentuou-se muito a atitude “errada” do filho mais novo. Foi um esbanjador, desnaturado, inconsequente. E ainda volta para casa pedindo pão depois de ter esbanjado os bens com sem-vergonhice! O acento sobre os erros do moço obnubilavam o amor do pai.

O pai: a figura mais importante do relato. Não se importou que o filho o considerasse morto - só se distribui a herança após a morte! Tendo recebido a herança, saiu de casa. E o pai nada se lhe opôs. E depois que partira, o aguardava compassivo: “Quando ainda estava longe, o pai o viu e ficou comovido”. O abraço, as sandálias, o anel, o banquete, a festa...! Sinais da alegria pelo retorno do filho. Não lhe faz nenhuma cobrança, nenhum acerto de contas. “Este meu filho estava morto e tornou a viver. Estava perdido e foi encontrado”.

É assim que Jesus experimenta Deus. Qualquer teologia ou catequese que não experimenta nem comunica o Deus manifestado nesta parábola e impede as pessoas de experimentar Deus como um Pai respeitoso e bom, que acolhe e perdoa o filho perdido, não provém de Jesus nem transmite a Boa Notícia que Ele pregou.

O filho mais velho: normalmente ficava esquecido nos comentários tradicionais. Sua atitude, na parábola, revela a postura daqueles que estão “dentro de casa”, mas com o coração longe. Cumpridores de normas e regras, sem nenhum sentimento de amor e de fraternidade.

“Esta é a tragédia do filho maior. Nunca saiu de casa, mas seu coração está sempre longe. Sabe cumprir mandamentos, mas não sabe amar. Não entende o amor de seu pai ao filho perdido. Ele não acolhe nem perdoa, não quer saber de seu irmão” (Pe. Antônio Pagola). O retorno do irmão não lhe causa alegria como a seu pai, mas raiva. Fica indignado e recusa-se a “entrar” na festa.

É preciso notar que o pai tem, também para com ele, uma atitude de carinho, de acolhida. Insiste para que “entre”. Manifesta-lhe o motivo da alegria. Esse filho passou toda a vida cumprindo ordens do pai, mas não aprendeu a amar seu irmão. Só tem palavras para diminuir o irmão que errou.

O “filho mais velho” nos interpela a nós que acreditamos viver juntos do Pai. O que fazemos, nós que não “abandonamos” a Igreja? Sabemos compreender quem “saiu”, quem vive na “irregularidade” matrimonial? Compreendemos as fraquezas e misérias de cada um? Como lidamos com os que vivem crise de fé? O que fazemos para atrair os afastados? E a festa do Pai, fica para quem? Ele não a preparou para todos?

Esta parábola nos revela que o Pai do céu não é propriedade de ninguém, de nenhuma religião, de nenhuma Igreja. Ele quer salvar a todos. Tem compaixão de todos, indistintamente. A única atitude que Ele pede é de abertura, de acolhida do seu amor.

Nossas atitudes se aproximam mais de quem? Do filho mais novo? Do filho mais velho? Do pai?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN