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aurelius

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Reconfigurar-nos à imagem do Filho

aureliano, 23.02.18

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2º Domingo da Quaresma [25 de fevereiro de 2018]

 [Mc 9,2-10]

O finalzinho do capítulo 8 de Marcos relata as exigências do seguimento de Jesus: “Se alguém quer vir em meu seguimento, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. Em seguida traz o relato da Transfiguração como a convidar o discípulo a dar uma ‘espiadinha’ no céu. É Jesus revelando sua glória a seus discípulos para que confiassem nele: é o Filho de Deus, Salvador.

No último domingo (1º da quaresma), acompanhamos Jesus, levado pelo Espírito ao deserto, sendo tentado pelo adversário do projeto salvífico e libertador do Pai. Na força do mesmo Espírito Jesus venceu o tentador. Aquele tempo de preparação para a sua missão foi árduo. Mas Jesus não se deixou abater. Venceu a tentação que queria desviá-lo da vontade do Pai.

Hoje Jesus sobe a montanha. Se no deserto ele passou pela tentação, aqui ele faz um encontro com o Pai. O Deserto é lugar da prova, da tentação: ouve-se a voz de Satanás. A Montanha é lugar do encontro com o Senhor: ouve-se a voz de Deus. Essa realidade nos remete à doutrina dos “dois caminhos” de que falava a Lei de Moisés: “Eu te proponho a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida para que vivas” (cf. Dt 30, 15-20). E também aquela divisão interna que há dentro de nós e que fazia Paulo exclamar: “Querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero” (cf. Rm 7, 14-20).

Na montanha, Moisés e Elias se encontraram com Deus e receberam d’Ele as instruções para a sua missão. Por isso o evangelista apresenta essas duas figuras memoráveis do Primeiro Testamento. Moisés representa a Lei e a libertação do povo das mãos do Faraó. Elias representa o profetismo, pois libertou o povo da idolatria que oprimia Israel. Jesus aparece na cena como alguém superior a Moisés e Elias. As roupas brilhantes, o fato de eles estarem conversando com ele, tudo mostra Jesus como centro do relato. Isso significa que Jesus está para além dessas figuras proeminentes do passado: é o “Filho amado do Pai”.

Pedro gostou daquela amostragem do paraíso. Queria ficar por ali. “É bom ficarmos aqui. Façamos três tendas”. Representa o discípulo acomodado, que quer experimentar a Páscoa sem passar pela Sexta-feira da Paixão. Que quer fugir dos embates cotidianos, da luta cotidiana pelo Reino. Quer glória sem cruz. Não quer “descer” a montanha para a missão.

A voz do Pai identifica seu filho: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!”. É ele que veio oferecer sua vida pela salvação da humanidade. O Pai o entrega, como Abraão outrora entregou seu filho Isaac (cf. Gn 22, primeira leitura da missa de hoje). “Deus, com efeito, amou tanto o mundo que deu o seu Filho, o seu Único, para que todo homem que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). No batismo o Pai se dirige ao próprio filho: “Tu és o meu Filho bem amado” (Mc 1, 11). Aqui o Pai apresenta seu filho ao mundo: “Este é o meu Filho amado”. Aquele que fora consagrado e confirmado no batismo e no deserto, deve ser acreditado, seguido, ouvido. Por isso a insistência: “Escutai-o”. É preciso prestar atenção, ouvir com ouvido de discípulo, a cada manhã (cf. Is 50, 4-5; 55, 3).

“Olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles”. Isto é, os discípulos não têm outro mestre (nem Moisés nem Elias), a não ser Jesus: “Um só é o vosso mestre” (Mt 23, 10).

O relato da transfiguração do Senhor, na liturgia quaresmal, quer ajudar o discípulo de Jesus a firmar-se na fé n’Aquele que será contemplado sem figura de homem na cruz, reconhecendo-o como o Filho de Deus, cheio da beleza divina, por alguns momentos oculta no véu da carne, mas que será manifestada na glória do Pai.

O discípulo deve também, por sua vez, rezar sua própria transfiguração em Cristo. E trabalhar para que os rostos desfigurados pela dor e sofrimento produzidos por uma sociedade que exclui, discrimina e escraviza, que se pauta pela competição e que valoriza a pessoa pelo que tem e não pelo que é, sejam reconfigurados ao rosto do Cristo transfigurado. Na medida em que ajudamos os irmãos sofredores a minimizarem sua dor, estamos transfigurando seu rosto no Cristo ressuscitado.

O dar-se de Cristo pela salvação do mundo, mistério que celebramos em cada Eucaristia, nos move a sair do nosso egoísmo na direção de uma entrega mais generosa e gratuita, tornando mais visíveis os frutos da Eucaristia: fraternidade, simplicidade, alegria, generosidade, solidariedade, partilha, perdão.

Campanha da Fraternidade 2018: superar a violência social e familiar.

“A desigualdade gera violência. Isso não quer dizer que os excluídos reajam violentamente. Bem mais grave do que isso, o sistema econômico pautado na promoção da desigualdade produz violência, na medida em que favorece o bem-estar de uma pequena parcela enquanto nega oportunidades de desenvolvimento a milhões de pessoas. Não parece razoável esperar que haja tranqüilidade enquanto, sistematicamente, pessoas são marginalizadas. A injustiça social traz consigo a morte” (Texto-Base, n. 72).

“O Mapa da Violência registra que, no ano de 2014, diariamente, 405 mulheres demandaram atendimento médico em unidades de saúde por terem sofrido algum tipo de violência doméstica, sexual ou outras formas de agressão. A cada três vítimas de violência, duas eram mulheres. Quando se consideram as formas de violência não letal, os números são diversos, mas se mantém a mesma realidade que faz do lar um lugar preponderante para as agressões contra as mulheres” (Texto-Base, n. 86).

“Em todo o mundo, conforme revela a Organização Mundial da Saúde, aproximadamente, uma em cada seis pessoas (16%) com mais de 60 anos de idade já sofreu algum tipo de abuso. O agressor quase sempre é um familiar, notadamente filhos ou cônjuge. A obrigatoriedade da notificação dos maus tratos contra pessoas idosas é recente, mas os números vêm se avolumando a cada ano. Refletem, talvez, um maior esclarecimento” (Texto-Base, n. 91).

“Outro grupo que é vítima de violência dentro de casa é composto pelas crianças e adolescentes. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), não há dados que revelem a extensão dessa forma de violência. Muitas situações de agressão são naturalizadas e não chegam a ser nomeadas como casos de violência: são percebidas como práticas normais da educação e da convivência familiar. O abuso sexual, os ataques verbais ou físicos e a negligência constituem as formas de violência mais comuns enfrentadas por crianças e adolescentes no ambiente familiar” (Texto-Base, n. 92).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Quaresma: conversão para vencer o mal

aureliano, 16.02.18

1º domingo da quaresma - B.jpg

1º Domingo da Quaresma [18 de fevereiro de 2018]

[Mc 1,12-15]

Estamos iniciando a Quaresma. Talvez muitos de nossos jovens não saibam o que significa esse tempo litúrgico da Igreja. O termo quaresma nos remete ao número quarenta, pleno de significado na Sagrada Escritura. Encontramos Jesus que passa quarenta dias e quarenta noites no deserto preparando-se para a missão que o Pai lhe confiara. Assemelha-se a Moisés que jejuou durante quarenta dias e quarenta noites no monte Horeb (Ex 24, 18; 34, 28; Dt 9,11). Também Elias, alimentado pelo pão do céu caminhou quarenta dias e quarenta noites até o monte que o Senhor lhe indicara (1Rs 19,8). Outro elemento significativo foi a peregrinação do povo de Israel durante quarenta anos no deserto, rumo à terra prometida (Dt 2,7), alimentado e assistido pelo Senhor.

O evangelho de Marcos, mais resumido do que os outros, tem como pergunta de fundo: “Quem é Jesus?”. No início o Pai confirma: “Tu és o meu Filho bem amado” (Mc 1,11). No final, o centurião reconhece: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus” (Mc 15, 39).

Jesus deve enfrentar as forças do mal. Por isso é conduzido pelo Espírito Santo ao deserto a fim de se preparar para essa grande missão. À semelhança do povo de Israel no deserto que foi tentado muitas vezes, Jesus resume em sua pessoa essa caminhada e experiência, vencendo, pela sua fidelidade, as tentações do maligno, garantindo assim, aos que crêem na sua Palavra, a ressurreição e a vida, a Terra Prometida.

Nessa caminhada quaresmal acompanhemos Jesus na sua entrega por nós. É tempo de reafirmar a fé e o compromisso batismais. As primeiras palavras de Jesus no evangelho de Marcos nos devem acompanhar ao longo deste tempo de preparação para a Páscoa: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,15).

São João diz que “a vitória que vence o mundo é a nossa fé” (1 Jo 5,4). Esta é dom recebido no batismo. Ninguém crê no evangelho a partir de suas próprias forças, mas pelo dom de Deus recebido no batismo. Ensina Bento XVI: “Ao início do ser cristão, não está uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, dessa forma, o rumo decisivo” (Deus é Amor, n. 01).

Nesse tempo quaresmal a Igreja nos convida a rever nossa caminhada de batizados, de comprometimento com a pessoa de Jesus e com a Igreja. Convida a olhar onde estamos na caminhada cristã. Em que precisamos nos converter para vivermos uma fé de verdade: reta, sincera, comprometida. Convida-nos a verificar quais são as tentações que mais nos acometem e nas quais mais caímos. Coloca em nossas mãos os recursos que nos fortalecem contra o espírito do mal

A vida de Jesus foi marcada pelas tentações do maligno que queria fazê-lo desviar-se da vontade do Pai. Também nós somos acometidos por todo tipo de tentação que nos quer desviar do caminho de Jesus. Sozinhos não damos conta do mal. Mas com a força de Deus podemos vencê-lo. Então busquemos nesta fonte inesgotável as energias e o sustento que nos colocam em permanente estado de conversão a uma vida sempre mais parecida com a vida do Mestre Jesus.

 

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O DESERTO

“O Espírito levou Jesus para o deserto” (Mc 1,12). O deserto, na Sagrada Escritura, é um categoria teológica. Ao mesmo tempo que é um lugar de oração, de encontro e escuta de Deus, é também um lugar de provas e tentações: “Aí Jesus foi tentado por Satanás”.

É importante considerar que Jesus foi ‘levado’. Ele não foi por conta própria, por si mesmo. Também, nós cristãos, somos levados para o deserto da vida, para situações de incompreensão, de falta de fé, de desprezo da religião. Quantas vezes somos questionados a respeito da religião e da fé! Qual é mesmo o sentido de participar de uma comunidade, de realizar essa ou aquela expressão de fé? Esses embates ajudam a amadurecer nossa fé: podemos passar de uma fé infantil a uma fé adulta, responsável, comprometida.

No evangelho, Satanás é o mesmo que Adversário, Inimigo de Deus. Aquele que age sempre contra o bem e a justiça. Acompanhando o noticiário sobre a corrupção generalizada no nosso País, notamos a ação de Satanás, o Adversário, que leva o ser humano a agir egoisticamente, lesando o Estado, a comunidade, os pobres, por vezes a própria família. E sem peso de consciência! Corrupção que não está somente nos altos escalões de governos e empresas, mas que se repete, guardadas as proporções, nos pequenos espaços e negócios de família, de vizinho, de trabalho.

O deserto pode ser, pois, a escola, o ambiente de trabalho, a rua, a política, os espaços de jogos, o shopping, o roçado, até mesmo a comunidade eclesial. Enfim, aquelas realidades que podem nos aproximar de Deus bem como nos afastar dele.

O que importa é não perdermos de vista o Espírito Santo que nos leva ao deserto e que nos fortalece no combate contra o mal. Se no deserto havia os ‘animais selvagens’, ou seja, aquelas tentações que sempre ameaçam o projeto de Jesus, havia também os ‘anjos’ que o serviam, ou seja, o cuidado e carinho de Deus Criador para com aqueles que lhe são fiéis na prova.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Oração Jejum e Esmola para a conversão

aureliano, 13.02.18

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Quarta-feira de Cinzas [14 de fevereiro de 2018]

[Mt 6,1-6.16-18]

Não nos é dado saber com certeza data e local precisos do surgimento da Quaresma na vida litúrgica da Igreja. O que sabemos é que ela foi se formando progressivamente. Estava entranhada na consciência dos cristãos a necessidade de dedicar um tempo em preparação à celebração da Páscoa do Senhor. As primeiras alusões a um período pré-pascal estão registradas lá pelo século IV. Consta também que, na Quinta-Feira Santa, acontecia a reconciliação dos pecadores; e que na Vigília Pascal se realizavam os batizados dos catecúmenos (aqueles que estavam preparados para o batismo). Esses dois costumes, vividos desde a antiguidade da fé cristã, vem mostrar que esse tempo nos remete à renovação das promessas batismais ou preparação para o batismo e a práticas penitenciais que nos levem a uma conversão profunda do coração.

A propósito desse elemento da história, o Concílio Vaticano II recomenda: “Tanto na liturgia quanto na catequese litúrgica, esclareça-se melhor a dupla índole quaresmal, que, principalmente pela lembrança ou preparação do batismo e pela penitência, fazendo os fiéis ouvirem com mais frequência a palavra de Deus e entregarem-se à oração, os dispõe à celebração do Mistério Pascal. Por isso, utilizem-se com mais abundância os elementos batismais próprios da liturgia quaresmal; segundo as circunstâncias, restaurem-se certos elementos da tradição anterior. Diga-se o mesmo dos elementos penitenciais” (SC 109).

É bom entender que a Quaresma não é um tempo de práticas penitenciais ultrapassadas, mas é um tempo de experiência de um Deus que está vivo no nosso meio e quer que todos vivam: “Eu vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10). Um tempo em que somos chamados a participar dos sofrimentos de Cristo para participarmos também de sua glória (cf. Rm 8,17). O acento não está, portanto, nas práticas de penitência, mas na graça santificadora do Senhor que nos convida todos os dias à conversão.

Por possuir um caráter fundamentalmente batismal, a Quaresma nos convida a entrar numa dinâmica de permanente conversão para nos mantermos no caminho encetado pelo batismo. Mortos com Cristo, ressuscitamos com ele para uma vida nova. Quem ressuscitou com Cristo busca as “coisas do alto”. Compromete-se com a vida de todas as pessoas, particularmente com aqueles que não contam, que não são visíveis aos olhos da sociedade, os “sobrantes”.

As três práticas propostas pela Igreja, com raiz na tradição judaica são a oração, o jejum e a esmola. Elas nos ajudam no processo de conversão.

O JEJUM quer nos ajudar a deixar de lado o consumismo proposto por uma sociedade governada por ricos e poderosos que querem ganhar sempre mais à custa dos pobres. Querem arrancar o pouco que o pobre tem. Neste tempo é bom a gente aprender a viver com pouco, a reaproveitar as coisas, a levar uma vida mais simples, mais sóbria. Não se trata de passar necessidade ou fome, pois não é isso que Deus quer. Mas a gente pode viver de modo mais simples sem entrar no modismo da sociedade consumista que mata e exclui. Mais do que jejuar, talvez fosse muito proveitoso evitar o desperdício, cuidar melhor de jogar o lixo na lixeira, manter limpo os espaços públicos; cuidar das fontes e rios; usar a água tratada com mais consciência, como dom do Pai; reutilizar lixo e água; tomar conhecimento dos biomas de nosso País e cuidar deles; preocupar-se e solidarizar-se com quem passa necessidade; superar toda forma de violência; ser mais terno e comedido nas palavras; evitar ofender, maldizer; ser mais paciente no trânsito; tomar as dores e defender aqueles que sofrem violência etc. Trata-se de um ‘esvaziar-se’ para encher-se dos sentimentos de Jesus; encher-se da bondade de Deus.

A ESMOLA quer despertar-nos para a solidariedade com os mais pobres. Uma conversão que nos torne capazes de partilhar com os outros os bens e os dons que temos. Que nos mobilize pelas causas justas, em favor dos menores, sem voz nem vez. É a luta contra a ganância que faz tantas vítimas em nosso meio. A esmola nos tira de nós mesmos e nos remete em direção dos irmãos pelo gesto da partilha solidária. Não se trata apenas de darmos algo de nós, mas darmo-nos a nós mesmos. A visita a um doente, idoso, pobre é um bom gesto que ajuda no processo de conversão. É a oferta do tempo que temos para nós e que doamos a alguém.

A ORAÇÃO nos coloca numa profunda comunhão com o Pai. Sem uma vida orientada pela oração não podemos construir um mundo de acordo com o sonho de Deus. E a oração verdadeira é aquela que nos coloca em sintonia com o querer de Deus, que nos move em direção aos pobres e sofredores. Ele veio “para que todos tenham vida”. Aproveitar esse tempo para reforçar a leitura orante da bíblia. Rezar todos os dias algum texto bíblico! Oramos não porque Deus desconhece nossas necessidades, mas porque queremos nos entregar a Ele e descobrir a melhor forma de servi-lo nos irmãos. A Leitura Orante ilumina nosso caminho, nossa vida. Oramos para nos colocarmos na presença de Deus gratuitamente, generosamente. Talvez fosse bom redistribuir o tempo despendido às redes sociais: não deixar que os bate-papos da internet roubem o tempo da oração.

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A Campanha da Fraternidade desse ano tem como tema a “Fraternidade e a superação da violência”, e o lema é: “Vós sois todos irmãos”. Vou reproduzir o relato de uma “experiência de superação” que está no Texto-Base da CF. Experiência inspiradora, iluminadora e questionadora.

“Voluntário na Fundação Casa, em Franco da Rocha/SP, lá faço visitas periódicas. Em uma dessas, observando um rosto entristecido, aproximei-me e, como de costume, perguntei àquele jovem qual era o seu nome e de qual cidade era. Ao ouvir de I.R.P. que estava sem visita e que seu pai não podia vir visitá-lo, imaginei de onde vinha sua tristeza e dor, então disse a ele: ‘Confie em Deus, as coisas vão melhorar’.

Ao final daquela visita, procurei a equipe técnica para ser o facilitador da visita da família daquele jovem e, assim, fui até uma cidade do interior para buscar o pai e a irmã de I.R.P. Ao entrar naquela casa com poucos móveis e sem luz, pois os fios e instalações elétricas haviam sido arrancados por I.R.P. e seu pai, para fazerem uso de crack, senti estar mais próximo de minha missão e, a partir daquela visita, meu vínculo com aquele jovem cresceu muito.

Naquela ocasião, a Pastoral do Menor havia lançado a campanha Dê oportunidade, e ao sentir que meu coração ‘ardia’, pensei: ‘esta é a minha oportunidade’. Então procurei novamente a equipe técnica e, mesmo acreditando ser loucura um jovem privado de liberdade sair para trabalhar e ao final do dia retornar ao centro de internação, fiz a proposta para I.R.P. trabalhar comigo em uma oficina mecânica de minha propriedade.

O desafio não era só meu, era também da Fundação, do judiciário e da minha família, já que moro onde trabalho. Eu ainda ficava pensando ‘naqueles’ jornalistas que comumente usam o chavão: ‘tá com dó, leva pra casa’.

Tudo aprovado, então me preparo para receber o novo funcionário em seu primeiro dia de trabalho. Ele chegou no transporte da Fundação e acompanhado por um funcionário. Para meu espanto estava algemado, símbolo bastante negativo para um recomeço, mas me mantive firme. Na verdade, minhas mãos tremiam um pouco e as deles tremiam muito, enquanto as algemas eram tiradas. Ele disse que estava emocionado e nervoso e, sinceramente, eu também estava.

Entreguei o uniforme de trabalho a ele e mostrei a oficina. Quando o vi de uniforme e trabalhando, tive um sentimento indescritível. A essa altura, eu já conhecia toda a contextualização do I.R.P. E sabia o quanto ele tinha sido agredido para também se tornar agressor.

Depois de algumas conversas com a equipe técnica e com o judiciário, o desafio das algemas foi superado e I.R.P. deixou de vir trabalhar algemado. As conquistas eram gradativas e com elas I.R.P. ia adquirindo autonomia. Assim, ele passou a buscar peças, acompanhar serviços e pagar contas.

Ao completar a maioridade conclui-se o período de internação da Fundação, contudo, achamos que ele deveria ficar mais um período trabalhando e estudando. Por essa razão, com a ajuda de algumas pessoas, alugamos e conseguimos a mobília para uma casa pequena e assim ele pode permanecer por mais um tempo conosco. Hoje, I.R.P. vive em sua cidade, está casado, trabalhando e estudando”. - Sandro Cardoso – Pastoral do Menor, Diocese de Bragança Paulista. (Texto-Base, n. 2.2).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Jesus, a Igreja e a “lepra” de hoje

aureliano, 09.02.18

6º Domingo do TC - B.jpg

6º Domingo do Tempo Comum [11 de fevereiro de 2018]

[Mc 1,40-45]

O evangelho de Marcos é um livrinho de catequese escrito para as primeiras comunidades cristãs, principalmente provenientes do paganismo, para mostrar quem é Jesus: o Filho de Deus que veio a este mundo para libertar o homem do mal. Jesus tem poder sobre o mal e o pecado. A comunidade pode crer, confiar nele. Ele está acima de qualquer lei tanto imperial como mosaica. Ele é a Lei. Sua vida é a norma de vida para todos, judeus ou pagãos.

O relato do evangelho deste domingo mostra o encontro de Jesus com um leproso. É preciso notar o que significava a lepra para a comunidade judaica. De todas as doenças era a que os judeus consideravam mais impura, pois  destruía a integridade e a vitalidade física do ser humano. Por isso se previa a exclusão da pessoa do convívio social. Na opinião popular essa doença devia ser obra de um espírito muito ruim.

Jesus quebra todas as leis e normas que excluíam o leproso. Jesus é um judeu diferente: ele se torna participante da situação do leproso. É movido de profunda compaixão (termo que não aparece no relato de Lucas e Mateus) por aquele homem que lhe implora a cura, confiando em seu poder: “Se queres podes curar-me”. E Jesus estende a mão e toca aquele homem. O leproso, segundo a Lei, não podia ser tocado por ninguém, não somente pela contaminação da doença, que poderia se proliferar e colocar em risco a comunidade, mas também porque colocava o judeu piedoso fora da comunhão com Deus. A doença era considerada consequência do pecado, sobretudo a lepra, pois destruía a integridade física do ser humano. Mas Jesus tem outra interpretação. Mostra que o culto a Deus passa pela misericórdia para com os sofredores: “Quero misericórdia e não sacrifício”. Esse sinal realizado em favor daquele homem indica que Jesus veio tirar do mundo e do ser humano a “lepra” do pecado que destrói a humanidade, carregando em si mesmo nossas enfermidades (cf. Is 53,3-12).

O relato de hoje nos ajuda a pensar na conciliação de duas realidades na vida de Jesus que precisam ser olhadas por nós com muito carinho: poder e compaixão. A Lei simboliza aqui o poder. Ela existe para o bem da pessoa. Quando unida à misericórdia pode salvar a muitos. Mas sem essa qualidade divina, torna-se excludente e perversa. Jesus não vai consultar os sacerdotes, guardiães da lei daquele tempo, mas restabelece aquele homem na sua necessidade imediata. Depois de beneficiado, então ele vai agradecer e oferecer o sacrifício prescrito. Jesus não se opõe à Lei, mas dá-lhe um novo sentido. Ela deve ser cumprida para o bem de todas as pessoas e não para oferecer privilégios a uns e descarte de outros. O auxílio moradia e os altos salários dos juízes, senadores, deputados, vereadores e executivos, mostram bem como a lei pode ser perversa. Pode estar a serviço de privilégios.

As consequências para nossa vida de fé indicadas no relato de hoje são bem evidentes. É uma catequese sobre a reintegração dos marginalizados de hoje. Podemos nomear alguns banidos de nossa sociedade: os que vivem nos barracos das favelas nas grandes cidades, os fracassados, os desempregados, os dependentes de droga, as vítimas de uma sociedade do consumismo e do sucesso a qualquer custo, as pessoas com deficiência, os idosos e doentes que não mais produzem nem dão lucro, os encarcerados, os aidéticos, os maltrapilhos etc. Enfim, vivemos numa sociedade marcada pela lepra do preconceito e da discriminação.  

Jesus vem nos mostrar um jeito novo, diferente de agir. Ninguém pode ficar ´de fora´, banido. Nosso coração precisa ser tomado desse poder compassivo que habitava o coração de Jesus para construirmos relações verdadeiramente fraternas e libertadoras. O poder de Jesus foi transmitido a nós. A missão agora é nossa. Muitos ‘leprosos’ estão suplicando pela cura, pela inclusão, pelo reconhecimento, pela acolhida em nosso meio. O que temos feito? Como nos relacionamos com eles? Temos tido coragem de sair de nós mesmos? Ou estamos também acometidos pela ‘lepra’ do comodismo, do egoísmo, do fechamento, da ganância, da sede do poder e do ter que mata em nós todo sentimento de compaixão, de desejo de salvação de todos?

Onde quer que falte alimento, água potável, casa, medicamento, trabalho, educação, meios necessários para levar uma vida verdadeiramente humana; onde estiver um aflito ou sem saúde, um presidiário ou maltratado, aí deve estar a caridade cristã para consolá-los e reerguê-los oferecendo-lhes auxílio. É essa a missão da Igreja e é isso que o mundo de hoje espera dela. Porque é chamada a ser continuadora da ação de Jesus.

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Neste dia 11/02 celebramos o Dia Mundial do Enfermo. Uma palavrinha do Papa para esse dia pode ser iluminadora e confortadora: "Ao dom de Jesus corresponde o dever da Igreja, bem ciente de que deve pousar, sobre os doentes, o mesmo olhar rico de ternura e compaixão do seu Senhor. A pastoral da saúde permanece e sempre permanecerá um dever necessário e essencial, que se há de viver com um ímpeto renovado começando pelas comunidades paroquiais até aos centros de tratamento de excelência. Não podemos esquecer aqui a ternura e a perseverança com que muitas famílias acompanham os seus filhos, pais e parentes, doentes crónicos ou gravemente incapacitados. Os cuidados prestados em família são um testemunho extraordinário de amor pela pessoa humana e devem ser apoiados com o reconhecimento devido e políticas adequadas. Portanto, médicos e enfermeiros, sacerdotes, consagrados e voluntários, familiares e todos aqueles que se empenham no cuidado dos doentes, participam nesta missão eclesial. É uma responsabilidade compartilhada, que enriquece o valor do serviço diário de cada um" (Papa Francisco em mensagem para o Dia Mundial do Enfermo).

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Estamos em dias de Carnaval. Outrora esse tempo era oportunidade de alegria, de extravasamento sadio. Hoje, de modo geral, tornou-se tempo de preocupação, de violência, de morte. O apelo que fazemos é que se brinque e se divirta com aquela justa medida que faça todos experimentarem a alegria de viver. Os excessos nunca fizeram bem a ninguém. Bebida alcoólica, drogas, sexo desregrado, imprudência no trânsito etc são alguns elementos que precisam de medida evangélica.

E não se esqueçam de que na Quarta-feira de Cinzas, dia de jejum e abstinência, iniciamos a Quaresma, tempo de preparação para celebrarmos a Páscoa da Ressurreição do Senhor. Tempo de conversão para uma vida mais fraterna. Você já sabe qual é o tema da Campanha da Fraternidade desse ano? Pois fique sabendo: “Fraternidade e superação da violência”. Com o lema: “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8).

"Derrama sobre nós o Espírito Santo, para que, com o coração convertido, acolhamos o projeto de Jesus e sejamos construtores de uma sociedade justa e sem violência, para que, no mundo inteiro, cresça o vosso Reino de liberdade, verdade e paz".

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Jesus e o sofrimento humano

aureliano, 02.02.18

5º Domingo do TC - B.jpg

5º Domingo do Tempo Comum [04 de fevereiro de 2018]

[Mc 1,29-39]

As páginas da Liturgia da Palavra de hoje nos ajudam a refletir sobre a realidade do sofrimento humano e atuação de Deus nessa realidade comum a todas as pessoas.

Muito se escreveu e se disse sobre essa realidade da vida. E muito também se fez e se faz, particularmente por parte daquelas pessoas e instituições que desenvolvem um espírito humano e cristão. E por mais que se diga, nunca se dirá o suficiente e nunca se chegará a uma explicação para essa dura realidade da vida. E por mais que se faça, nunca se encontrará a “pílula da felicidade” que acabe de vez com o sofrimento.

Jesus também não buscou explicação. Ele apresentou uma solução: assumiu o sofrimento humano. É isso mesmo: ele tomou sobre si nossas dores e enfermidades. Não ficou indiferente diante do sofredor. Serviu-se de sua “autoridade”, como vimos no domingo passado, para aliviar as dores e os sofrimentos do ser humano.

O sofrimento está presente na vida de todos. De formas variadas. Em um é a dor física, em outro é dor moral, em outro ainda é a droga na família, o desemprego, a fome, o descaso, o abandono, a traição, o ostracismo, a ingratidão etc. O sofrimento se dá de diferentes formas.

Existe uma mentalidade perversa chamada pelos estudiosos de “teologia da prosperidade” que consiste em afirmar que Deus castiga os maus e recompensa os bons. Ou seja: a prosperidade material é sinal da bênção e Deus e os insucessos são sinais da maldição divina. Se tudo vai bem na vida, então Deus está abençoando. Se tudo vai mal é sinal de que Deus abandonou. Essa ideia traz como consequência o desespero ou a indiferença religiosa e humana, pois a pessoa que assim acredita vive em função de si, de crescer economicamente, de resolver seus problemas a qualquer custo. E como não consegue, entra no desespero total ou na indiferença religiosa e humana. Não se importa com quem sofre. Considera maldição de Deus. Se estiver sofrendo é porque merece, porque pecou etc.

Nas curas que realiza conforme o relato do evangelho de hoje, Jesus mostra o interesse de Deus por quem sofre. Quer que todos estejam bem, assumam com serenidade suas vidas, levantem-se para servir, como a sogra de Pedro: “Segurou-a pela mão e ajudou-a a levantar-se. Então a febre desapareceu e ela começou a servi-los”. Vejam como Jesus muda a perspectiva de lidar com quem sofre: é preciso aproximar-se, tocar, tomar pela mão, ajudar a levantar-se. Então a pessoa terá condições de servir. Mesmo que continue acamada, ela encontra um novo sentido para a vida. Experimenta a alegria da presença de Deus através do irmão que está ali e se coloca ao seu lado.

Jesus veio para todos, por isso vinha gente de todo lado para procurá-lo. Os doentes, abandonados e marginalizados pela sociedade da época, encontraram em Jesus uma possibilidade de restabelecimento de sua saúde física e moral. Agora podem voltar “para o meio”. Podem sair da margem.

A grande causa da dor e do sofrimento continua sendo o pecado. Não o pecado pessoal necessariamente. Esse também pode trazer sofrimento. Mas falo aqui do pecado social, estrutural. Ou seja, há uma estrutura social viciada pelo mal que busca sempre e em todo lugar seu interesse pessoal, seu bem estar, em detrimento dos outros. É o crescimento econômico a qualquer preço. É a busca do poder, da dominação que joga os pobres e sofredoras numa sarjeta da qual não conseguem sair. É o abandono e/ou traição da família que fica abandonada á sua própria sorte. Isso é terrível! Isso faz a humanidade sofrer demais! É dessa libertação que as curas realizadas por Jesus são sinais!

E Jesus não se contenta em ficar num mesmo lugar. Vai para outras regiões, percebe outras necessidades. Há gente sofrendo em outros lugares. Está consciente de sua missão. Ele mostra que Deus conhece o sofrimento do homem por dentro. E quer aliviá-lo. Não se alivia o sofrimento simplesmente curando males físicos. Alivia-se o sofrimento curando-se as feridas da alma. Buscando construir uma sociedade em que o sofrimento seja cada vez mais debelado e mesmo ressignificado. Para que a vida, grande dom do Pai, prevaleça sempre mais. “Eu vim para que todos tenham vida”.

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GESTOS ELOQUENTES

Quero retomar aqui uma reflexão do Pe. Adroaldo, jesuíta, que, comentando o relato da cura da sogra de Pedro, destaca três gestos de Jesus que jamais poderão sair de nosso horizonte;

  1. Jesus se aproximou dela: É o gesto que Jesus sempre faz e pediu que fizéssemos: tornar-nos próximos. A dor olhada à distância, pela TV, pelas redes sociais, não dói. Tem gente que chora diante de cenas sensacionalistas da televisão. Mas Jesus fez diferente. Ele se aproximou de quem sofria. É preciso olhar de perto para sentir com quem sofre. E quando o sofredor nos sente pertos, começa a se curar; seus sofrimentos começam a diminuir.
  2. Jesus a tomou pela mão: Jesus infringe a Lei que proibia tocar os doentes e mortos. Quem tocasse esse tipo de pessoa ficava impuro para os exercícios cultuais. Foi por isso que o sacerdote e o levita da parábola do bom samaritano “passaram ao largo”. Estavam indo para o templo. Jesus, no entanto, não hesita em tocar os doentes para curá-los. E aqui Jesus realiza um gesto mais do que um simples toque: toma pela mão. Este gesto demonstra carinho, amizade, solidariedade, bem-querer. Jesus quer nos ensinar que devemos andar pela vida estendendo a mão a quem está caído. Construir comunidade é estender a mão a quem sofre, àqueles que não dão conta de se levantar sozinhos. Querem estar de pé, mas não tem forças. Mais um gesta silencioso do Mestre de Nazaré a nos cutucar.
  3. Jesus ajudou-a a levantar-se: Este gesto é muito próprio de Jesus, pois se refere à ressurreição: levantar-se, ficar de pé, estar vivo. Não basta estender a mão a alguém a modo de politiqueiros que só o fazem para ganhar voto. Não basta pegar a mão de alguém para desejar a paz, na celebração, e por vezes nem se olha no rosto de quem se toca. Não. É preciso continuar o gesto: ajudar os caídos a se levantarem. Nossas mãos são para o outro. Ajudá-lo a colocar-se de pé, a dar um rumo novo à própria vida. Estar de pé significa liberdade, autonomia. É a postura da dignidade, da autoridade, de luminosidade. Em muitas outras ocasiões Jesus procurou levantar, endireitar, colocar de pé os encurvados e humilhados.

Então a mulher “pôs-se a servi-los”: Na perspectiva de Jesus, só poderá servir aquele que estiver livre. O serviço na fé cristã não é servidão ou servilismo, mas a partir da liberdade e generosidade de cada um. Serviço significa cuidado de uns para com os outros. É para isso que existem as comunidades cristãs.

Pai de bondade, que em Jesus curaste tantos doentes, sendo sinal de bondade para tantas pessoas, arranca de nosso coração todo comodismo e preguiça. Torna-nos mais abertos e generosos para ajudar aqueles que nos procuram ou precisam de nós ‘fora de hora’. E faze-nos missionários corajosos para irmos a outros lugares e necessidades. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN