Assunção de Nossa Senhora [16 de agosto de 2020]
[Lc 1,39-56]
A solenidade da Assunção de Maria foi celebrada pela Igreja desde eras antigas. O nome da festa era Dormição de Maria. Isto é, Maria, depois de sua peregrinação neste mundo, ‘repousou no Senhor’. A celebração deste acontecimento está intimamente associada à ressurreição de Jesus. A Páscoa da Virgem traz no centro, não a Mãe, mas o Filho, para quem o olhar do fiel se deve voltar. Aquela que colaborou para a Encarnação do Filho de Deus deve participar da sua Ressurreição. Na festa da Assunção de Maria se revela aquilo que todo homem e mulher anseiam: ser acolhidos inteiramente no céu.
O dogma da Assunção de Maria, festejado a 15 de agosto, tem nomes diferentes, como Nossa Senhora da Boa Viagem, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora dos Prazeres etc. Foi proclamado por Pio XII, em 1950, com a Bula ‘Munificentissimus Deus’, com o seguinte texto: “Definimos ser dogma divinamente revelado: que a imaculada mãe de Deus, sempre virgem Maria, cumprindo o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória eterna”.
A bíblia não fala nada a respeito do final da vida de Maria. São João mostra que ela, aos pés da cruz, foi dada, pelo Filho que entregava a sua vida, à comunidade como mãe (Jo 19, 27). Lucas nos diz que ela estava junto ao grupo que se preparava para a vinda do Espírito Santo, em Pentecostes (At 1,13s e 2,1). Então a bíblia não conta detalhes sobre o final da vida de Maria.
Nos primeiros séculos, os cristãos tinham o costume de guardar os restos mortais dos santos, especialmente dos apóstolos e mártires. Não há, porém, nenhuma notícia sobre o corpo de Maria. Os evangelhos chamados apócrifos, isto é, aqueles relatos sobre a vida de Jesus e dos atos apostólicos que não entraram na ‘lista’ (cânon) dos livros que a Igreja considerou inspirados por Deus, contam histórias da chamada Dormição de Maria. E assim, no século VIII, a devoção popular criou uma história para contar como se deu a morte e a ressurreição de Maria.
O dogma da Assunção só pode ser compreendido em relação à Ressurreição de Jesus. Maria, diferente de nós, não precisou esperar o fim dos tempos para receber um corpo glorificado. Depois de sua vida terrena ela já está junto de Deus com o corpo transformado, cheio de graça e luz.
Ainda mais. Não podemos entender a Assunção como se Maria subisse ao céu com o corpo que ela possuía aqui na terra, com ossos, pele, carne, sangue. Não é assim que a Igreja interpreta a ressurreição dos mortos. O corpo de Jesus ressuscitado e o de Maria assunta foram transformados e assumidos por Deus. Paulo deixa bem claro: “... O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,42-44a). Por isso cremos que Maria já está glorificada junto de Deus, toda inteira. Ela antecipa o que está prometido para cada um de nós: participar do banquete da Vida que o Senhor preparou para “aqueles que o amam” (cf. 1Cor 2,9).
O cântico de Maria no evangelho de hoje diz que o Senhor “olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor... Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs os poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou”. Aí está a ação de Deus na vida de Maria, a humilde serva do Senhor, que decidiu responder sim ao chamado de Deus para participar na obra da salvação da humanidade. Sua humildade e fidelidade ao projeto do Reino de Deus lhe valeram a participação na glória de Deus, ao lado de seu Filho. Maria é aqui figura da Igreja, que deve levar adiante, não obstante as perseguições e sua pequenez, a missão de Jesus.
O evangelho da liturgia de hoje traz dois relatos: a Visita de Maria a Isabel e o chamado ‘Cântico de Maria’. O primeiro mostra Maria como aquela que assumiu inteiramente o projeto do Pai na sua vida. Não mede esforços para prestar um serviço à sua parenta em necessidade. E no seu encontro com Isabel manifesta-se a sua fé profunda: “Feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido”. Todo aquele que deposita sua confiança em Deus, colaborando na realização do sonho de Deus para a humanidade, é feliz. O relato manifesta também o reconhecimento por parte de Isabel de que aquele que Maria trazia no seio é o Senhor: “Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?”. Maria é Mãe de Deus e bem-aventurada: “Bendita és tu entre as mulheres”.
O segundo relato é um hino inspirado no cântico de Ana (1Sm 2, 1-10) que canta a ação de Deus em favor da humanidade. É um hino jubiloso que proclama a derrubada dos poderosos e a elevação dos humildes pela ação de Deus em Jesus. É a oração dos pobres que confiam em Deus e no seu poder sobre o mal. Um hino que empenha o fiel nessa luta como Maria.
Quando lemos o evangelho e vemos Maria assumindo como primeira atitude, depois de ter acolhido em seu seio o Filho de Deus, a de levar seus préstimos para a prima Isabel, somos levados a pensar em nossas atitudes. Nossa sociedade se deixa levar cada vez mais por uma atitude egoísta que leva a terceirizar a caridade e os cuidados para com aqueles que, por vezes, de dentro da nossa casa, são considerados peso e empecilho para passeios, curtição, jogos, prazeres, baladas...
Mas é preciso ressaltar, porém, que ainda nos deparamos com famílias que cuidam dos seus com afeto, carinho, respeito e espírito cristão. Pessoas com necessidades especiais cuidadas com um zelo divinal, marial. Uma presença muito parecida com a de Maria: escuta do ancião que quer contar um caso; visita a um casal em dificuldade de relacionamento; uma palavra de conforto e uma oração com a família que vive a dor da perda de um ente querido; presença nos abrigos, asilos, orfanatos e hospitais onde se encontram pessoas passando por sofrimento, dores e dificuldades.
Para além dos gestos personalizados, faz-se necessário empenho na luta por políticas públicas que atendam às necessidades dos menos favorecidos. Participação em conselhos comunitários e associações que se empenham pelos direitos do cidadão e da comunidade, sobretudo nestes últimos tempos em que houve grandes perdas de direitos adquiridos. São gestos simples que nos colocam em sintonia com o ensinamento de Jesus e com as atitudes de fidelidade de Maria, sua Mãe. A recomendação permanente do Papa Francisco é que a Igreja se coloque “em saída”, como “hospital de campanha” que não pergunta pelo que conteceu, mas que se preocupa em cuidar, aliviar o sofrimento e curar as feridas.
A assunção de Maria foi o resultado do seu peregrinar à luz de Deus nesse mundo. Cada vez que ela dava novos passos para seguir a Jesus, para buscar a vontade de Deus, o Senhor assumia e transformava sua pessoa. Até que chegou o momento final. É o que está reservado para nós! Na vida de fé, cada passo novo que damos corresponde da parte de Deus a nos acolher, tomar pela mão, assumir e transformar. A nós resta-nos deixar que Deus nos tome pela mão e nos faça discípulos fiéis, dedicados, humildes e perseverantes como Maria, enquanto aguardamos a bendita esperança da ressurreição.
*Encerramos, hoje, a Semana Nacional da Família. Com o tema “Eu e minha família serviremos ao Senhor” a Igreja propôs uma reflexão para se fazer em casa sobre o sentido da família cristã: “Na alegria do Evangelho queremos viver plenamente a vontade do Senhor em nossas vidas, em nossas famílias, em nossas casas. Neste ano, o subsídio Hora da Família convoca todos os grupos de reflexão para vivenciarem a dimensão do serviço. O ‘Hora da Família’ se coloca a serviço da Igreja e da construção do Reino de Deus começando em nossas casas” (Dom Ricardo Hoepers). Vamos agradecer a Deus pela família que temos e pedir a Ele a graça de nos solidarizarmos e trabalharmos pelas famílias em dificuldade, particularmente nesses tempos sombrios e angustiantes da pandemia do coranavírus. Uma família animada pela espiritualidade cristã traz vida, alegria e esperança para a sociedade e para o mundo.
**Nosso abraço carinhoso às pessoas consagradas nesse seu dia: deixaram tudo para viver mais radicalmente o evangelho, numa vida semelhante à do Filho de Deus: pobre, casto e obediente. Um serviço generoso ao Reino “para que todos tenham vida”. Uma vida pobre na solidariedade com os empobrecidos e ‘sobrantes’ e na busca da partilha dos bens e dos dons: mesa comum. Uma vida obediente na solidariedade com os que não são ouvidos nem levados em conta: ouvidos atentos ao Pai e aos sinais dos tempos. Uma vida celibatária consagrada em solidariedade com aqueles e aquelas que sofrem por falta de amor, de afeto; com aqueles e aquelas que não podem experimentar a beleza e a alegria da colhida afetuosa e gratuita: abandonados, deserdados, abusados, explorados afetiva e sexualmente; uma contestação de uma sociedade baseada na busca do prazer e do lucro ao preço da dignidade da pessoa humana. Que Maria, nossa boa Mãe, nos ajude a viver com alegria nossa consagração para que seja um “sacrifício de louvor”.
Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN