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aurelius

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Que ninguém seja surpreendido

aureliano, 28.11.20

1º Domingo do Advento - B - 29 de novembro.jpg

1º Domingo do Advento [29 de novembro de 2020]

[Mc 13,33-37]

DEUS ENTRA EM NOSSA HISTÓRIA

O tempo litúrgico do Advento celebra a entrada de Nosso Senhor Jesus Cristo no mundo. É Deus entrando em nossa história para salvá-la, dar-lhe um sentido novo. O cristão é chamado a renovar em seu coração a esperança da salvação que nunca falha. A Igreja aproveita a oportunidade para ajudar seus fiéis a renovar as atitudes interiores de vigilância, de expectativa, de oração fervorosa e contínua, de abertura ao Senhor que quer “armar sua tenda no meio de nós” (cf. Jo 1,14). Ele quer continuar conosco (Emanuel), quer que lhe abramos o coração, quer que nos convertamos ao seu amor, quer que nossas atitudes sejam inspiradas nas palavras e ações de Jesus e de Maria de Nazaré.

Com o Advento, iniciamos o Ano Litúrgico. É tempo de renovar a esperança no Deus que virá, mas que já está no meio de nós: “já e ainda não – jam et nondum”. A vigilância recomendada por Jesus, hoje, é o modo como o reconhecemos no meio de nós. Aliás, o evangelho do domingo passado (Mt 25, 31-46) nos indicou o caminho por onde devemos trilhar para uma constante vigilância: o serviço generoso aos pequeninos do Reino.

O mercado se vale desta ocasião para vender, comprar, ganhar dinheiro. É preciso, porém, ter cuidado para não fazermos deste tempo uma ocasião somente para fazer festas, deixando em segundo plano aquela preocupação basilar de que falam as leituras da liturgia deste domingo: “É ele também que vos dará a perseverança em vosso procedimento irrepreensível, até ao fim, até ao dia de Nosso Senhor, Jesus Cristo” (1Cor 1,8). E ainda: “Vigiai, portando, porque não sabeis quando o dono da casa vem... Para que não vos suceda que, vindo de repente, ele vos encontre dormindo” (Mc 13,35-36).

Não quero, com isso, negar a importância da festa, do encontro familiar, do descanso, da dança, da música, das alegrias ao redor da mesa. O que deve, porém caracterizar nossas festas é a dimensão cristã destas festividades. Não perder o sentimento de solidariedade: não esbanjar, desperdiçar; não fechar o coração ao pobre e necessitado; buscar a reconciliação, o perdão, a celebração. Uma excelente oportunidade para reconciliar-se com um vizinho ou um familiar com quem se está brigado. São elementos que podem tornar mais cristãs as festas natalinas.

EVANGELHO DO DIA: “VIGIAR”

O acontecimento histórico, pano de fundo desse relato de Marcos, é a destruição de Jerusalém, nos anos 70, pelo exército romano. Foi um acontecimento terrível que provocou muito sofrimento, morte, destruição, sobretudo, do maior símbolo da fé judaica, o Templo. A comunidade de Marcos procurou tirar destes acontecimentos importante lição para a vida cristã: é preciso vigiar.

Ademais, havia no coração dos primeiros cristãos a convicção de que a parusia, isto é, a Segunda Vinda do Senhor, estava perto. Então conduziam a vida com este pensamento. E como a “volta” não acontecia, demorava, começaram a esmorecer na fidelidade ao Evangelho. Daí a ordem insistente: “Vigiai”. Ou seja, o cristão precisa viver em permanente estado de alerta para não se deixar perverter pelo mal que campeia no mundo.

Ainda mais: a vinda do Senhor não deve ser para o cristão motivo de medo, mas de alegre e confiante esperança. Essa expectativa da vinda gloriosa do Senhor, muito presente nas primeiras comunidades cristãs, deve nos levar a pensar no Cristo que inaugurou a presença do Reino no nosso meio, e que, uma vez concluída sua missão neste mundo, entregou-nos a tarefa de continuar (com ele) o que ele começou. Portanto é um trabalho, uma tarefa na qual devemos estar sempre acordados, atentos, vigilantes. É assumir como nossa a causa de Deus. Nossa ocupação neste mundo é trabalhar para que o Reino de Deus se estabeleça no mundo e nos corações. Não podemos dar tréguas, dar-nos por satisfeitos, acomodar-nos.

Há três situações que ameaçam a vigilância do cristão: a superficialidade da vida: falta de profundidade nas palavras e ações; a sensualidade: busca do prazer carnal com prejuízo da vida espiritual; a necessidade de bem-estar: preocupação excessiva com posses e poder.

Superficialidade: As relações tendem a ser inconsistentes; há muito jogo de interesse nas ditas ‘amizades’; mesmo as práticas religiosas estão marcadas pela superficialidade: diante de um desagrado, abandona-se ou troca-se de credo. Falta raiz, profundidade, falta convicção. Muitas relações se sustentam na base da troca, do dinheiro, do patrimônio material. Uma vez que alguma situação dessas começa a ruir, está desfeita a amizade, a parceria, o companheirismo. Isso sem falar daquelas pessoas de duas caras... É muito triste!

Sensualidade: Realidade humana interessante e, por vezes, necessária, marcada, no entanto, por um caráter ardiloso que transvia os corações vigilantes, pervertendo relações esponsais, familiares e comunitárias, trazendo grande prejuízo para a sociedade. É uma armadilha que prende a pessoa aos instintos egoístas. Um grau de sensualidade faz parte das relações, sobretudo das relações amorosas conjugais. Mas se a pessoa apostar nos jogos sensuais como substância da vida, vai se desviar do caminho da vida, do caminho de Jesus. Ela não é a única realidade que constitui o ser humano. Nem é o único meio de se estabelecer relação saudável.

Necessidades de bem-estar: Outra armadilha do mal que nos prende é o consumismo: compramos coisas de que não precisamos; gastamos o que não temos; fechamos os olhos às necessidades de nossos irmãos que vivem realidades miseráveis. O autocentramento fecha o ser humano em seu próprio mundo, tornando-o incapaz de abrir-se aos demais. Aos eternos insatisfeitos com a vida, é bom lembrar Santo Agostinho: “Fizeste-nos, Senhor, para ti. E o nosso coração andará inquieto enquanto não descansar em ti”.

A recomendação de Jesus para que estas armadilhas não nos surpreendam é o estado permanente de vigilância: estarmos acordados e atentos à vivência de nossa fé. Buscar o “único necessário” (cf. Lc 10,42).

A única forma de entregarmos a Ele um “relatório” completo de tudo o que fizemos é nunca faltarmos ao “serviço”. Viver cada dia como se fosse o último. Não adiar comprometimento com a comunidade e com a causa dos pobres. Não omitir. Não mentir. Não enganar.

A obra de Deus é resultado de mão dupla: Ele vem ao nosso encontro e nós vamos ao encontro d’Ele. A parte de Deus ele já a realizou em seu Filho Jesus. A nossa parte é a disposição diária de realizar a vontade d’Ele, cultivando o amor que ele veio nos ensinar. Procurando expressar em nossa atitude as atitudes de Jesus.

Vigiar é o contrário de adormecer, de desligar-se. Hoje em dia estamos plugados, conectados dia e noite nas redes sociais, mas, com muita frequência, totalmente desligados uns dos outros e de nossa relação com Deus, realidade última que nos constitui. Jesus quer dizer que vigiar é não se deixar seduzir pelas propostas de um mundo afastado de Deus, capitalista, consumista, hedonista, neoliberal. Não se pode desanimar diante dos desafios e dificuldades. Ligar-se a Deus, confiar n’Ele, acreditar no projeto de Jesus e tocar em frente. Assim, ninguém será surpreendido.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O amor que salva

aureliano, 20.11.20

Cristo Rei do Universo [22 de novembro de 2020]

[Mt 25,31-46]

O capítulo 25 de Mateus é constituído por três parábolas que evocam a vigilância em vista do fim: a das virgens, a dos talentos e a do julgamento final. Enquanto as duas primeiras mostram a insensatez daqueles que não vigiam como devem, esta última mostra qual será o critério de julgamento no fim da vida: o amor concreto às pessoas que sofrem: famintos, sedentos, migrantes, nus, doentes, presos.

Na cultura judaica (e talvez ainda hoje!) essas categorias de pessoas eram tidas como impuras, condenadas por Deus. Sofriam porque estavam pagando por algum pecado. Jesus veio dar uma guinada nessa compreensão, identificando-se com elas: “Todas as vezes que o fizestes a um destes mais pequeninos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25, 40). O rosto de Deus se manifesta no rosto do pobre, excluído dos bens da criação. Um rosto que nos interpela, que provoca nossa indiferença.

Para reconhecer a presença de Deus no pobre é necessário conversão! No tempo de Jesus, Deus era encontrado no Templo (quando o evangelho de Mateus foi escrito, o Templo já havia sido destruído), nas sinagogas, naqueles que cumpriam a Lei de Moisés. Eram os justos. Mas Jesus chama de justos aqueles que cumprem a lei do amor: cuidado para com os famintos, sedentos, presos, migrantes, doentes, nus. Os “pequeninos” do Reino constituem o lugar do encontro com Deus. Desse modo Jesus universaliza a possibilidade do encontro salvador com Deus. Todas as pessoas, de qualquer religião ou cultura, podem agora escolher o caminho da salvação ou da condenação. Ouvir “vinde benditos” ou “ide malditos” depende do caminho que cada um escolhe: amor-doação ou egoísmo-fechamanto.

É interessante notar que os justos do Evangelho da liturgia de hoje não sabem que os pobres, a quem serviram, representavam o Rei. Não praticaram a misericórdia para impressionar o Rei nem para “alcançar a salvação”. Mas foram misericordiosos e servidores dos pobres por pura bondade e compaixão para com os necessitados. Essa despretensiosa bondade é que conta para Deus: fazer o bem, praticar as obras de misericórdia sem desejar receber nada em troca, nem mesmo o céu. Este nos é dado como dom, como fruto da bondade do Pai, e não de nossa “compra” ou prática de atos bons. Se pudemos fazer alguma coisa boa pelos mais pobres, também essa possibilidade nos foi dada por Deus, por dom e graça d’Ele. Conclui-se que o critério último da salvação não é a fé, mas a “fé informada pela caridade” (cf. 1Cor 13,2; Gl, 5,6).

A Escritura diz que até os demônios crêem: “Tu crês que há um só Deus? Ótimo! Lembra-te, porém, que os demônios também crêem, mas estremecem” (Tg 2,19). Crer simplesmente que Deus existe não significa nada para nossa vida. É preciso ter uma fé comprometida: crer na existência de Deus e assumir na vida o jeito de ser de Deus revelado na pessoa de Jesus de Nazaré. Em outras palavras, a fé precisa incidir nas atitudes cotidianas de respeito, de cuidado, de compreensão, de justiça, de honestidade, de lealdade, de perdão, de sentimento de partilha e solidariedade etc. Sem o cultivo dessas atitudes, a fé termina por ser um vazio que não diz nada nem para si mesmo nem para os circundantes (cf. 1Cor 13,1-3). Aliás, o que tem de gente por aí explorando, dominando e extorquindo as pessoas em nome da fé religiosa é um horror! A Polícia Federal, tão badalada ultimamente, precisaria dar uma vasculhada nisso.

A caridade dá corpo à nossa fé. “Se alguém, possuindo os bens deste mundo, vê o seu irmão na necessidade e lhe fecha o coração, como permanecerá nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com ações e em verdade” (1Jo 3,17-18).

Ilumina muito o que estamos querendo dizer a respeito da relação fé e caridade para a salvação, a palavra do Papa Francisco na mensagem para o IV Dia Mundial dos Pobres: “’Estende a mão ao pobre’ faz ressaltar, por contraste, a atitude de quantos conservam as mãos nos bolsos e não se deixam comover pela pobreza, da qual frequentemente são cúmplices também eles. A indiferença e o cinismo são o seu alimento diário. Que diferença relativamente às mãos generosas que acima descrevemos! Com efeito, existem mãos estendidas para premer rapidamente o teclado dum computador e deslocar somas de dinheiro duma parte do mundo para outra, decretando a riqueza de restritas oligarquias e a miséria de multidões ou a falência de nações inteiras. Há mãos estendidas a acumular dinheiro com a venda de armas que outras mãos, incluindo mãos de crianças, utilizarão para semear morte e pobreza. Existem mãos estendidas que, na sombra, trocam doses de morte para se enriquecer e viver no luxo e num efêmero desregramento. Existem mãos estendidas que às escondidas trocam favores ilegais para um lucro fácil e corrupto. E há também mãos estendidas que, numa hipócrita respeitabilidade, estabelecem leis que eles mesmos não observam”.

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Hoje celebramos o dia dedicado ao Cristão Leigo. O protagonismo do fiel leigo na Igreja tem sido incentivado aos quatro ventos pelo Papa Francisco. O Documento 105 da CNBB reitera a importância da vida e da missão dos cristãos leigos na Igreja e na sociedade: “A partir da sua vocação específica os cristãos leigos e leigas vivem o seguimento de Jesus na família, na comunidade eclesial, no trabalho profissional, na multiforme participação na sociedade justa, solidária e pacífica, que seja sinal do Reino de Deus inaugurado por Jesus de Nazaré” (n. 11).

Corremos o risco de clericalizarmos o leigo, “embatinando-o”. O cristão leigo tem seu lugar e missão na Igreja e no mundo a partir de seu batismo. Ouçamos o Papa Francisco: “Em virtude do Batismo recebido, os fiéis leigos são protagonistas na obra de evangelização e promoção humana. Incorporado à Igreja, cada membro do Povo de Deus é inseparavelmente discípulo e missionário. É preciso sempre reiniciar dessa raiz comum a todos nós, filhos da Mãe Igreja" (07-03-2014). E, na visita à Coréia, deixou essa belíssima palavra: “A Igreja na Coréia, como todos sabemos, herdou a fé de gerações de leigos que perseveraram no amor a Jesus Cristo e na comunhão com a Igreja, apesar da escassez de sacerdotes e da ameaça de graves perseguições” (16/08/2014).

Infelizmente, muitos leigos e leigas que se dizem cristãos e que ocupam postos de decisão da vida política e econômica de nosso País estão sendo uma decepção. A fé cristã não diz nada para a vida da maioria deles. É só acompanhar seus projetos, votações, discursos e posturas na gestão de seus patrimônios: propinas, disputas de cargos, troca de favores em defesa de interesses pessoais, corporativos e partidários.

Aos cristãos leigos e leigas que vivem com inteireza a sua fé batismal, procurando servir ao Reino e transformar a sociedade pelo testemunho de uma vida santa e servidora, com palavra e atitude proféticas de repúdio e contestação a esse estado de corrupção sistêmica que tomou conta de nosso País, nosso apoio e incentivo. O Senhor os confirme e encoraje sempre mais neste caminho.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Estar preparado: correr o risco

aureliano, 14.11.20

33º Domingo do TC - A - 15 de novembro.jpg

33º Domingo do Tempo Comum [15 de novembro de 2020]

[Mt 25,14-30]

Estamos diante de uma parábola que causa estranheza à primeira vista. Um patrão ambicioso que vai viajar e entrega uma quantia de dinheiro a alguns de seus empregados para que eles façam esse dinheiro multiplicar. A atitude com o terceiro empregado revela que esse patrão ambicioso que se enriquece às custas dos empregados: “Tu sabias que colho onde não plantei e ceifo onde não semeei”. E sua atitude violenta com o empregado “medroso”, denominado por ele de “mau e preguiçoso” produz uma impressão ruim dentro da gente.

Em primeiro lugar é preciso considerar que é uma parábola, com os limites das comparações. Depois, uma parábola que tem como pano de fundo os escribas e fariseus e a comunidade de Mateus proveniente do judaísmo. Mateus pretende mostrar aos escribas e fariseus que não basta o cumprimento da Lei, mas é preciso viver de modo vigilante e criativo, correndo risco de “perder a vida” para ganhá-la. Aos judeu-cristãos que, certamente, começaram a se acomodar, esperando para breve a vinda do Senhor Jesus, com dificuldade em viver a proposta do Evangelho, permanecendo fechados num sistema religioso legalista e excludente, Mateus está lembrando a necessidade da vigilância produtiva: é preciso colocar os dons a serviço da comunidade, assumindo assim a grande causa de Jesus que foi a vida fraterna, o lava-pés “para que todos tenham vida” (Jo 10,10).

A parábola não pode ser interpretada na lógica capitalista como se estivesse legitimando produção econômica. Ela quer ajudar a comunidade a sair da “zona de conforto”, de uma vida fechada, egoísta, comodista para atitudes de serviço e generosidade a fim de que aqueles que não contam na sociedade sejam incluídos. Jesus não quer ninguém de fora.

Para isso ele quer contar com nossa participação na obra da “salvação” da humanidade. Quando ‘arriscamos’ nossa vida, à semelhança de Jesus, estamos vivendo a Eucaristia que celebramos: “Isto é o meu corpo que é dado por vós”. Deus não tem o hábito de transtornar as leis da natureza, fazendo ‘milagres’ a toda hora. Ele quer agir no mundo através de nós pela força do Espírito Santo.

Deixemos Deus agir em nós e empreguemos nossa diligência em fazer multiplicar os dons que Ele nos deu, como a mulher virtuosa (sabedoria) da primeira leitura: “Abre suas mãos ao necessitado e estende suas mãos ao pobre” (Pr 3, 20). Assumir a causa de Deus é torná-la nossa. Então nossa vida será uma constante preparação para a “prestação de contas” que o Pai pedirá de nós um dia. Julgamento que terá como critério absoluto a misericórdia. 

Ademais, podemos concluir da parábola que, ao elogiar os dois primeiros servos que arriscaram a sorte para fazer o talento multiplicar-se, e ao reprovar o terceiro que teve medo e enterrou o talento, Jesus se opõe à postura de escravo que faz somente o que foi estabelecido (a mentalidade rabínica em relação à Lei). O discípulo de Jesus deve assumir uma postura de risco, de liberdade, de sair de suas próprias seguranças, fazendo valer os seus dons como presente de Deus e se esforça para fazê-los multiplicarem-se. O Reino de Deus pressupõe iniciativa, criatividade, saída de si, risco. Somente assim ele é capaz de crescer e produzir frutos.

Assumir a obra de Cristo é a única preparação válida para sua nova vinda, vivendo cada dia como se fosse o último.

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“TIVE MEDO E ESCONDI TEU TALENTO”

Esse terceiro empregado a quem foi confiada menor quantia e que reagiu de modo diferente dos outros dois, merece mais algumas considerações. A pergunta que se coloca é: “Por que ele não fez render o talento recebido, à semelhança dos outros?” – Ele mesmo responde: “Sabia que tu és um homem duro, que colhes onde não semeaste e recolhes onde não plantaste. Por isso tive medo e fui esconder teu talento na terra. Eis aqui, toma o que te pertence” (Mt 25,24-25). Esse relato faz lembrar Adão depois do pecado: “Ouvi teu passo no jardim, tive medo porque estou nu e me escondi” (Gn 3,10).

Quero me ater àquela palavra do empregado: “Tive medo”. À primeira vista parece que Jesus está ameaçando seus discípulos com essa parábola. Quase metade do texto se destina a narrar o ocorrido com esse empregado. Por isso vale a pena nos debruçarmos um pouco sobre a atitude do patrão e do empregado.

Olhando mais de perto, notamos o medo muito presente no coração humano diante daquelas situações que o ultrapassam. Vejamos: medo de adoecer, medo de sofrer, medo de morrer, medo de ir para o inferno, medo de perder o céu, medo de ser castigado, medo de mau-olhado, medo de feitiço, medo de “encosto”, medo de macumba, medo de... São realidades referentes à sua relação com um poder que o ultrapassa.

Claro que precisamos distinguir uma relação de medo doentio com o sagrado e o “Timor Dei” (Temor de Deus) (Sl 111,10; Pr 1,7) que denota profundo respeito e reconhecimento de Deus como Senhor, Criador e Pai a quem devemos amar e servir de todo coração.

O fato é que o servo da parábola agiu movido pelo medo. Faltou-lhe atitude de amor, de gratuidade, de arriscar-se. Demonstra que não amava o seu senhor. Não teve coragem de correr o risco. Não se empenhou em nada. Na verdade, aquele medo parece mais preguiça e comodismo. Para não sair de si, para não trabalhar, “enterra o talento”. Recebe por isso a repreensão do patrão: “Servo mau e preguiçoso” (Mt 25,26).

Uma religião vivida na base do medo, de proselitismo, numa relação de “toma lá, dá cá” parece não corresponder à proposta do Reino de Deus trazido por Jesus. Pois a entrada de Deus em nossa história foi exatamente para estabelecermos com Ele uma nova relação, uma relação filial, de gratuidade, de generosidade, de serviço amoroso a exemplo de Jesus: “Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, vós o façais” (Jo 13,15).

A Escritura nos exorta: “Deus não nos deu um espírito de medo, mas um espírito de força, de amor e de sobriedade” (2Tm 1,7). E quantas vezes o Divino Mestre proclamou: “Não tenhais medo!” (Mt 14,27 e correlatos).

A afirmação de um historiador social contemporâneo faz a gente pensar: “O medo enche muito mais as igrejas do que o amor”. Certamente isso não significa que, necessariamente, nossas igrejas se enchem de pessoas movidas pelo medo. Penso que não. Mas há muita gente que frequenta cultos e orações à cata de milagres, de proteção contra isso ou aquilo, ou com medo de algum castigo ou punição divina. Há muita superstição nas rezas e cultos, e muitos charlatães aproveitando-se do medo ou da boa-fé das pessoas simples.

A participação na vida da comunidade de fé deve ir se depurando, amadurecendo de tal maneira que nossa participação tenha como motivação a bondade de Deus, seu amor por nós, a entrega de seu Filho pela nossa salvação. Ainda que Ele não tivesse nada a nos oferecer, queremos amá-Lo e servi-Lo. E, consequentemente, colocarmos nosso “talento” a serviço da construção de um mundo mais irmão para a Glória do Pai e o bem de todas as pessoas.

Podemos concluir, portanto, que o grave problema daquele terceiro servo foi o fechamento, o medo de arriscar-se, o egoísmo que o levou a “enterrar” o dom que recebera: “Quem vive para si, empobrece o seu viver. / Quem doar a própria vida, vida nova há de colher”.

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15 DE NOVEMBRO: IV DIA MUNDIAL DOS POBRES

“Estende a tua mão ao pobre” (Eclo 7, 32)

“São inseparáveis a oração a Deus e a solidariedade com os pobres e os enfermos. Para celebrar um culto agradável ao Senhor, é preciso reconhecer que toda a pessoa, mesmo a mais indigente e desprezada, traz gravada em si mesma a imagem de Deus. De tal consciência deriva o dom da bênção divina, atraída pela generosidade praticada para com os pobres. Por isso, o tempo que se deve dedicar à oração não pode tornar-se jamais um álibi para descuidar o próximo em dificuldade. É verdade o contrário: a bênção do Senhor desce sobre nós e a oração alcança o seu objetivo, quando são acompanhadas pelo serviço dos pobres.

(...)Estender a mão é um sinal: um sinal que apela imediatamente à proximidade, à solidariedade, ao amor. Nestes meses, em que o mundo inteiro foi dominado por um vírus que trouxe dor e morte, desconforto e perplexidade, pudemos ver tantas mãos estendidas! A mão estendida do médico que se preocupa de cada paciente, procurando encontrar o remédio certo. A mão estendida da enfermeira e do enfermeiro que permanece, muito para além dos seus horários de trabalho, a cuidar dos doentes. A mão estendida de quem trabalha na administração e providencia os meios para salvar o maior número possível de vidas. A mão estendida do farmacêutico exposto a inúmeros pedidos num arriscado contacto com as pessoas. A mão estendida do sacerdote que, com o coração partido, continua a abençoar. A mão estendida do voluntário que socorre quem mora na rua e a quantos, embora possuindo um teto, não têm nada para comer. A mão estendida de homens e mulheres que trabalham para prestar serviços essenciais e segurança. E poderíamos enumerar ainda outras mãos estendidas, até compor uma ladainha de obras de bem. Todas estas mãos desafiaram o contágio e o medo, a fim de dar apoio e consolação” (Papa Francisco).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

A vigilância cristã

aureliano, 06.11.20

32º Domingo do TC - A - 08 de novembro.jpg

32º Domingo do Tempo Comum [08 de novembro de 2020]

[Mt 25,1-13]

Os capítulos 24 e 25 de Mateus estão inseridos no Discurso Escatológico de Jesus. Eles precedem imediatamente os relatos da Paixão do Senhor. Escatologia refere-se às realidades últimas, ao fim, às coisas pelas quais o ser humano deve passar no final de sua vida, às realidades que nos ultrapassam e nos inserem no Mistério de Deus.

O tema da vigilância cristã é recorrente nos escritos do Novo Testamento. Jesus convida à constante vigilância diante do fim iminente: “Aquele dia virá como um ladrão” (cf. Mt 24,42-44). Paulo se refere a ela diversas vezes: “Não durmamos, a exemplo dos outros, mas vigiemos e sejamos sóbrios” (1Ts 5,6). Parece que o desejo de Deus é que o cristão viva em estado permanente de atalaia. Pois a qualquer momento pode ser chamado para o “encontro com o Senhor”. As primeiras comunidades cristãs esperavam a vinda do Senhor como iminente. Alguns até começaram a parar de trabalhar; mas receberam a reprimenda de Paulo: “Quem não quer trabalhar também não há de comer” (2Ts 3,10).

O capitulo 25 de Mateus traz três relatos que sugerem o fim, a vigilância diante da vinda inesperada do Senhor. O relato de hoje, intitulado “Parábola das dez virgens”, nos remete ao rito das festas de casamentos na tradição judaica. Trata-se de prover o azeite suficiente para manter a lâmpada acesa a noite toda. Que isso significa?

O óleo pode ser uma alegoria para falar do fervor espiritual, do serviço generoso ao próximo, da prática das Obras de Misericórdia: (corporais) dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada os peregrinos, assistir os enfermos, visitar os presos, enterrar os mortos; (espirituais) dar bom conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os aflitos, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do próximo, rogar a Deus pelos vivos e defuntos.

A parábola nos convida à adesão irrestrita ao Senhor enquanto peregrinamos neste mundo. Há necessidade de um esforço cotidiano de fidelidade, de vivência do evangelho, de seguimento a Jesus.

A sensatez ou insensatez, a prudência e a tolice são realidades que estão próximas de nós. É insensatez, é tolice ir à igreja, ouvir a Palavra, fazer oração, mas viver de tal maneira que essa realidade celebrada, cultuada não me diz nada, não me move à conversão, não me faz mais humano. Prudente e sensato é aquele que ouve a Palavra de Deus e procura colocá-la em sua vida: sendo mais proativo no trabalho procurando ganhar o seu dinheiro com honestidade, sendo verdadeiro e zeloso com a família e nos negócios, perdoando e compreendendo as fraquezas alheias, assumindo sua vida, seus atos com responsabilidade e verdade etc. Isso é esperar pelo Senhor com a lâmpada acesa, com provisão de óleo.

Note-se ainda que Jesus não faz juízo de valor, ou seja, ele não afirma ser pecado o fato de as virgens insensatas não se proverem de óleo suficiente. Ele fala de tolice, de imprudência, de insensatez. Interpretando a provisão de óleo como esperança, Jesus quer dizer que não ter óleo é não ter esperança. E isso é uma loucura, uma insensatez. Não é possível viver sem esperança. É a esperança que nos acalenta e sustenta nos embates e contradições da vida.

Não foi por causa de um cochilo que as “virgens insensatas” ficaram excluídas da festa. De jeito nenhum. Pois as prudentes também cochilaram. Mas ouviram aquele terrível “não vos conheço” por viverem distraídas, descomprometidas, despreocupadas com a “vinda do noivo”. O que está em jogo é a vigilância que faz com que se proveja o óleo. Não basta um mero “assistir ao culto”, cantar um hino religioso, acender uma vela, rezar um salmo, andar com a bíblia debaixo do braço ou tê-la sobre nossa mesa. A vida deve estar comprometida com a causa que Jesus defendia. A vida de Jesus deve ser o horizonte permanente inspirador de nossa vida.

Ainda um elemento desse relato que pode, a princípio, causar certa estranheza é o fato de as virgens prudentes não terem repartido o óleo com as insensatas. O evangelho não nos pede que repartamos o que temos com quem não tem? – Confrontando este texto com outros da Sagrada Escritura, podemos notar que a Graça de Deus, significada por esse óleo, ou mesmo as obras de caridade, são dons de Deus em caráter pessoal. Não nos pertencem.

Ilustram bem esse pensamento as palavras de Santo Agostinho a propósito do perdão das ofensas: “Donde vem aquilo que dás, não é dele? Se desses do que é teu, seria liberalidade; quando dás do que é dele, é devolução. ‘Que tens que não recebeste?’ (1Cor 4,7)” (Ofício das Leituras, 33º DTC). Tudo é dom do Pai!

 O Senhor distribui a cada um seus dons e graças. E cada pessoa, por sua vez, deve dar uma resposta livre, consciente, pessoal e generosa. Em outras palavras, não posso repartir aquilo que não é meu, não é minha propriedade. Em última instância, cada um é responsável em responder sim ou não ao amor de Deus. Viver vigilante deve ser decisão de cada um. A responsabilidade também é individual.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Finados: a volta para a casa do Pai

aureliano, 02.11.20

Comemoração de todos os fiéis defuntos [02 de novembro de 2020]

[Mt 11,25-30 ou Mt 25,31-46 ou Jo 6,37-40]

Para o cristão, celebrar Finados é o mesmo que celebrar a Esperança. A vitória de Cristo sobre o pecado e a morte é critério para o cristão no momento decisivo de sua partida, ou na participação na morte de alguém. “O último inimigo a ser vencido é a morte” (1Cor 15, 26). O mistério da vinda do Filho de Deus a este mundo (Encarnação) e sua Morte e Ressurreição colocou um ponto final sobre a nossa morte.

“A vontade daquele que me enviou é esta: que eu não perca nada do que ele me deu, mas que o ressuscite no último dia” (Jo 6,39). Quando Jesus faz essa afirmação na sinagoga de Cafarnaum, numa belíssima palavra sobre sua vinda a esse mundo como “pão da vida”, deixa claro o desígnio do Pai a respeito do ser humano: fomos criados para a comunhão plena com Deus, participando de uma vida que não tem ocaso. A ressurreição para a vida é a meta de todo aquele que empenha suas forças em ser bom à semelhança de Jesus de Nazaré: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Ele põe abaixo aquela ideia existencialista de que o ser humano é um “ser para a morte”.

A morte para o cristão é um mistério. Isto é, ela só pode ser compreendida à luz do que aconteceu com Jesus de Nazaré. Assim como Ele foi aprovado por Deus, assim também aquele que procura viver como ele viveu será aprovado, ressuscitado pelo Pai. Ressurreição é passagem da morte para a vida (cf. Jo 20,1-18); do pecado para a graça (cf. Cl 1,21-22). É chegar à comunhão com Deus para viver com ele eternamente (cf. Ap 21,1-7). Ressurreição é uma vida vivida em Deus, para Deus, a serviço dos pequeninos do Reino.

Finados ou o falecimento de pessoas queridas pode ser uma “pedra de toque” na nossa vida. Ajuda-nos a valorizar o que ultrapassa os limites da matéria. Lembra-nos a importância de morrermos para nós mesmos. A morte é uma realidade espiritual que confirma a definitiva e inabalável superação do homem confinado na perspectiva material.

Um texto que ajuda a despertar a esperança e a confiança são aquelas palavras de Isaías: “Por acaso uma mulher se esquecerá da sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem, eu não me esqueceria de ti!” (Is 49,15).

Aquele que nos deu a vida e nos fez sair do aconchegante ventre materno para a luz do dia, há de nos fazer sair deste mundo, demasiadamente limitado, para a luz e a paz de Deus. “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam” (1Cor 2,9).

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EM CRISTO, A VIDA PREVALECE SOBRE A MORTE

(Jo 11,17-45)

Defunto vem do particípio latino, defunctu, de+fungor, significa falecido, aquele que cumpriu inteiramente sua função. Quando, na Igreja, esta palavra é acrescida do termo ‘fiéis’, quer dizer que há algo mais do que uma mera função cumprida. O cristão e todo aquele que busca viver os valores do Evangelho não termina sua vida na morte. Não perde simplesmente uma função ao morrer. Sua vida está “escondida com Cristo em Deus” (cf. Cl 3,1-4). Para quem busca a vida, defende a vida, dá a vida pela vida, não há morte. Deus não o abandona na “sombra da morte”. O que o Pai fez com seu Filho, fará também com todo aquele que busca viver como Cristo viveu.

A liturgia de hoje propõe vários textos para escolha da equipe de liturgia. Escolhi este relato do evangelho de João. Julguei muito interessante trabalhar esta cena do evangelho, talvez pouco explorada na liturgia.

O capítulo 11 de João é uma catequese sobre a ressurreição. No evangelho de João encontramos Jesus realizando sete sinais. O primeiro aconteceu em Caná da Galileia, na transformação da água em vinho. O sétimo é o relato da ressuscitação de Lázaro. João não fala de milagres, mas de sinais. O que Jesus realiza é para levar o discípulo a confiar nele, a reafirmar sua fé no Cristo Ressuscitado. O relato de hoje prepara o discípulo para entrar confiante e esperançoso na cena da paixão. Em outras palavras, a paixão de Jesus, sua cruz e morte não devem ser motivo de desânimo nem de desencanto para o discípulo, mas motivo de se firmar no caminho da cruz, pois esta leva à glória do Pai.

Uma afirmação central no relato de hoje, deve sempre nos acompanhar: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11,25). Esta palavra tem sentido quando se torna viva e eficaz dentro de nós. A pergunta de Jesus à Marta e sua consequente resposta coloca nossa vida cristã em constante desafio de fidelidade, sobretudo nas situações-limite da vida. “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais. Crês isto?” (Jo 11,26). Marta, aqui, simboliza o discípulo que não desiste da fidelidade e da confiança em meio às tribulações, e professa sua fé: “Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Messias, o Filho de Deus que devia vir ao mundo” (Jo 11,27).

Outro elemento, relacionado ao que acabamos de comentar, é o do significado de Marta e de Maria neste relato. Maria, pela atitude de ficar em casa, mergulhada na tristeza, prisioneira do círculo da morte e do pranto, representa aquele que se fecha à possibilidade da fé. Marta, no entanto, embora triste e sofrida pela morte do irmão, se abre confiante ao Senhor como Aquele que pode libertá-la da prisão da morte. Sai do mundo da morte para ser mensageira d’Aquele que é o portador da vida. Uma vez alimentada e confirmada na esperança, vai confortar e animar sua irmã que jaz no círculo da morte. É a nossa missão!

Ainda uma breve palavra a respeito de Jesus nesta cena. Vemos claramente a humanidade de Jesus: “E Jesus chorou”. Dizem que este é o menor versículo da Sagrada Escritura. Jesus era um homem que tinha sentimentos. Chorou a morte do amigo! O interessante para nós é que Jesus não se prendia aos sentimentos. Nem os reprimia. O norte da vida de Jesus era a vontade do Pai. Tinha consciência de sua missão. Sabia que devia levá-la até o fim. Ao realizar aquele sinal da revivificação de Lázaro, no contexto do diálogo com Marta e Maria e na presença de seus inimigos, sabe que sua ação terá consequências em vista do Reino de Deus.

Então não há problema em chorar e lamentar a morte de alguém. Mas é preciso ressignificá-la na fé. Marta se torna para nós inspiração de abertura, de discipulado, de adesão firme e confiante ao Senhor que se nos revela nos acontecimentos dolorosos da história.

A morte permanece para o ser humano como um mistério profundo. Ainda não se descobriu a pílula da imortalidade! Todos morreremos: ricos e pobres, sãos e doentes, novos e velhos, religiosos e descrentes. É o fim de todos. O modo como cada um encara este momento é que varia. Para o cristão, a morte segue o caminho de Jesus. Pode ser um cálice amargo que se deve beber até o fim. Porém com aquela certeza de que, se cumprirmos a vontade do Pai, ele nos acolherá de braços abertos para a vida que não tem ocaso.

Como se dará isso, certamente, não o sabemos. Mas a Igreja reza assim: “Nele (Cristo) refulge para nós a esperança da feliz ressurreição. E aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola. Ó Pai, para os que creem em vós, a vida não é tirada, mas transformada, e desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível” (Prefácio da missa).

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Cemitério vem do grego koimetérion (dormitório, quarto de dormir), pelo latim coemeterium. O conceito ajuda a interpretar a morte como “sono eterno”. Para nós, cristãos, as pessoas que morreram em Deus, não caíram no abismo eterno, mas adormeceram no Senhor: “Felizes os mortos, os que desde agora morreram no Senhor. Sim, diz o Espírito, que descansem de suas fadigas, pois suas obras os acompanham” (cf. Ap 14,13). E, mais adiante: “Ele (Deus) enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais” (Ap 21,4).

Essa fundamentação semântica e bíblica da morte pode ajudar-nos a viver melhor. A redescobrir o sentido da vida. A visita ao cemitério, que normalmente se faz nesse dia, deve adquirir novo sentido. Não estamos visitando os mortos. Estamos, sim, reafirmando nossa fé na “comunhão dos santos”, rezando por aqueles que já partiram antes de nós.

A Igreja celebra Todos os Santos no dia 1º de novembro (cuja solenidade no Brasil foi transferida para o domingo seguinte) e Finados no dia 02 com o intuito de juntar essas duas realidades post-mortem à nossa de peregrinos em Cristo. Na linguagem tradicional: Igreja militante ou peregrina (os vivos em peregrinação), Igreja padecente (os que terminaram sua peregrinação) e Igreja triunfante (aqueles que já estão na Luz que não se apaga).

Mas nota-se que o povo se identifica mais com o cemitério, com a morte, com o sofrimento. Parece ser a realidade que ele conhece, experimenta. A Glória lhe é desconhecida. O importante, porém, é tentar fazer sempre o caminho da esperança, da conversão, da morte para a vida.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN