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aurelius

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A autoridade de Jesus

aureliano, 30.01.21

4º Domingo do Tempo Comum [31 de janeiro de 2021]

[Mc 1,21-28]

Os versículos 22 e 27 dominam o relato do evangelho deste domingo: “um ensinamento novo dado com autoridade”.

Quero chamar a atenção do leitor para esse relato de hoje, buscando compreender bem o contexto em que ele se dá para entender o que o evangelista quer transmitir e o que devemos absorver, assimilar como luz para nossa vida pessoal e para nossa sociedade.

Em primeiro lugar fazemos notar que é a primeira manifestação (sinal-milagre) pública de Jesus, segundo Marcos. Depois, esse fato se dá em Cafarnaum, num dia de sábado e na presença dos escribas ou mestres da Lei. Era ali, na sinagoga que eles dominavam, davam as normas, recebiam ou expulsavam a pessoa do convívio social e da comunidade, se estivesse doente, por exemplo.

Essa introdução quer ajudar o leitor no entendimento deste relato. O pentecostalismo pode jogar com esse sinal de Jesus para justificar os exorcismos e expulsões do espírito do mal que diz realizar por aí, iludindo os incautos e explorando a boa fé dos inocentes.

Este texto quer ressaltar a figura de Jesus como aquele que veio libertar a humanidade do mal. Como o mal é mais forte do que o ser humano, Jesus recebe a autoridade do Pai para vencê-lo. E a expulsão daquele ‘demônio’ é sinal de que Jesus tem, verdadeiramente, poder sobre o mal. Tem autoridade sobre o mal.

Notemos que, quando Jesus está a ensinar na sinagoga, aquele homem começa a gritar: “Vieste para nos destruir?...” Ele não suporta ouvir o ensinamento de Jesus. Um ensinamento novo dado com autoridade. Esse endemoninhado representa os escribas que vêem seu poder de dominação indo água abaixo. Perdem sua força de liderança e dominação sobre a comunidade. Agora é Jesus quem é reconhecido como autoridade, não somente pelas palavras, mas sobretudo pelos sinais que as acompanham: “Ensinava como quem tem autoridade e não como os mestres da lei”.

Não foi um sermão nem um longo discurso que tocaram a assembleia, mas o gesto de Jesus: “’Cala-te e sai dele!’ Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu”. A obsessão demoníaca simboliza o mal que toma conta do ser humano sem que este o queira. O mal tem ramificações profundas que persistem ainda hoje: a desigualdade social, a má distribuição da renda, da terra e de seus produtos, a destruição do meio ambiente por parte das grandes indústrias e agriculturas poluidoras, a vida insalubre dos que têm menos, a corrupção sistêmica entre os grandes e os pequenos, o terrorismo, o tráfico de drogas e de seres humanos, a indústria bélica (fabricação de armas), o crime organizado, o esvaziamento espiritual e moral pelo mau uso dos meios de comunicação social (Big Brother e outras imoralidades tais como filmes e programas que incitam à violência). O sinal profético de Jesus indica que, se nossas forças são insuficientes contra esses males, a força dele poderá atuar em nós nessa luta renhida.

Portanto, essas manifestações ditas de ‘cura’ e de ‘poder’ que determinados grupos pentecostais dizem ter e realizar, não têm nada a ver com o projeto de Jesus e aquilo que ele veio anunciar. O que oprime o ser humano não são forças ‘espirituais’, mas ‘carnais’, isto é, egoístas, gananciosas, politiqueiras, dominadoras que tiram a esperança, a dignidade e a liberdade do ser humano.

A missão da Igreja, isto é, de todos nós, é levar adiante a missão que Jesus deixou em germe. Ele é o iniciador e propulsor dessa missão. A força da sua ressurreição quer fazer surgir vida nova e um mundo novo. Para isso ele conta com a colaboração da comunidade. Um outro mundo é possível na medida em que a fome e a guerra, as doenças e o analfalbetismo, o preconceito e o desrespeito forem sendo debelados pelas forças da vida trazida por Jesus Cristo e manifestada na comunidade.

Portanto, a autoridade de Jesus está para além de suas palavras. Seu gesto libertador, devolvendo a dignidade àquele homem, representante de uma comunidade dominada e oprimida, quer se estender a todos. É preciso que cada um de nós se disponha a colaborar nessa tarefa de ‘expulsar os demônios’ que impedem as pessoas de ser e de viver alegres e felizes.

Algumas perguntas inquietantes: Você tem autoridade moral para ensinar ou advertir as pessoas? Seu modo de viver se presta para iluminar a vida dos outros? Sua fé em Jesus se fundamenta na busca de milagres e soluções de seus problemas ou na busca de identificar-se com Ele? Que meios/ferramentas você usa para alimentar sua vida de fé e de discipulado de Jesus? Em que consistem sua oração, suas práticas religiosas? Você se lembra de ter libertado alguém de algum mal (demônio), devolvendo-lhe a alegria de viver?

 Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Tempo, conversão e seguimento

aureliano, 23.01.21

3º Domingo do Tempo Comum [24 de janeiro de 2021]

[Mc 1,14-20]

A liturgia deste domingo nos convida a refletir, isto é, a nos dobrarmos (re-flectere) sobre três elementos constitutivos da caminhada cristã: o tempo, a conversão e o seguimento a Jesus.

No domingo passado, a partir do evangelho de João, refletimos a respeito da vocação, chamado de Deus para a comunhão com ele e para uma missão. O encontro com Jesus é determinante na busca pelo sentido da vida. Quando fazemos com ele um encontro de verdade, nossa vida toma nova direção, novo sentido. E transbordamos para os outros a experiência que fizemos: André chama seu irmão Simão e o apresenta a Jesus (cf. Jo 1, 40-42). Se nossa missão não proceder de um transbordamento da experiência do encontro com o Senhor, não é cristã. Poderá ser vaidade, fanatismo, prepotência, autoengano. Pois a missão não é nossa, mas de Deus (Missio Dei). Vamos conferir como anda a realização da missão que o Senhor nos confiou. Que rastros temos deixado, que tipo de semente temos semeado?

O TEMPO: Na liturgia da palavra de hoje encontramos referências ao tempo. Na primeira leitura, lemos: “dentro de quarenta dias”; na segunda leitura temos: “O tempo está abreviado ... A figura deste mundo passa”; e no evangelho: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo”.

Podemos considerar o tempo em três dimensões: o tempo cósmico, regulado pelos ciclos da natureza; o tempo histórico, regulado pelo fluxo dos acontecimentos; e o tempo teológico, vivido à luz da fé num Deus para quem não existe passado nem futuro, mas um eterno presente: “Nasceu para vós, hoje, o Salvador” (cf. Lc 2,11). “Hoje, a salvação entrou nesta casa” (cf. Lc 19,9). “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (cf. Lc 23,43).

O tempo cósmico, entrelaçado ao tempo histórico, ajuda a perceber os dias e as horas, os acontecimentos que vão determinando novos rumos para a humanidade, novo modo de se relacionar etc. Assim, quando a pessoa vai ficando mais velha, vai percebendo que fica mais limitada e precisa se relacionar com a natureza e com as pessoas de modo diferente. Percebe que a juventude se foi. Já para o jovem trabalhador ou estudante, a dinâmica se dá de modo diferente. Precisa correr contra o tempo para não “sobrar”.

Do ponto de vista da história, com o passar do tempo, os acontecimentos na política, na economia, na cultura vão modificando as relações. Elementos novos vão surgindo e medidas novas precisam ser tomadas para que a história se construa de maneira a ajudar o ser humano a encontrar sentido para sua vida. Fazendo memória da política brasileira podemos identificar onde estão as forças perversas e geradoras de morte: desvio dos recursos destinados ao combate do corona vírus; falta de empenho na produção e compra da vacina; falta de cuidado com os acometidos pela enfermidade; falta de política de combate ao desemprego; destruição do meio ambiente etc. Olhando para a história de nossa Igreja podemos ver aí os sinais de vida trazidos pela renovação do Concílio Vaticano II e as forças retrógradas insistindo em “voltar atrás”. Culturalmente falando vivemos um momento terrível: se, por um lado, crescem os avanços da técnica e da ciência, por outro, paradoxalmente, a perplexidade diante do futuro aumenta, pois a vida está sempre mais ameaçada.

Minha intenção é ressaltar o tempo chamado pelos gregos de kairós: tempo sem medida, sem relógio, tempo de Deus. O tempo teológico. Aqui não prevalecem dias, meses ou anos, mas a experiência de Deus que cada um faz. É um tempo que não comporta quantificação. Neste tempo a pessoa pode viver 80 anos ou mesmo 10 anos: não contam os anos, nem tampouco conhecimento, dinheiro, bens, poder. O que conta é a vida vivida em Deus e a partir d’Ele.

A CONVERSÃO: Chegou o tempo de Deus. Jesus quer dar um novo sentido à vida humana. Por isso ele convida à conversão. Converter-se é mudar de direção quando o rumo que encetamos  não confere com o projeto de Jesus. Converter-se é convergir a atenção e as forças para uma única direção: o Reino de Deus. É sair da dispersão que desperdiça as energias em muitas coisas que prejudicam o crescimento do Reino de Deus. Então aqui o tempo é breve: não se pode esperar muito. Não se trata de deixar para mudar de vida quando estiver mais velho, quando estiver aposentado, quando não tiver mais forças para continuar numa vida depravada ou perversa. Seria causar um enorme prejuízo ao Reino. Deus precisa de nossas forças, de nossas energias bem empregadas para fazer o Reino acontecer.

No próximo dia 25 celebramos a festa da Conversão de São Paulo. Um motivo a mais para repensarmos nossa vida, as possibilidades que o Senhor nos dá e empregá-las sempre para o bem do próximo. Para isto é preciso abertura de coração, coragem de mudar, abertura ao novo, ao inesperado de Deus que vem a nós, por vezes, através de um irmão ou acontecimento que nos surpreende. - De que preciso me converter? O que preciso mudar em minha vida para que eu seja mais fraterno, mais manso, mais amável, mais misericordioso, mais tolerante, mais justo, mais respeitoso? De que me acusa minha consciência?

O SEGUIMENTO: Jesus quer contar com colaboradores para revelar seu Reino ao mundo (re-velar é tirar o véu da maldade e do pecado que retardam a realização do Reino). Jesus é o profeta de Deus. Os sinais milagrosos que realiza servem para mostrar que Deus está com ele. Jesus não veio para fazer milagres, mas para mostrar que Deus nos ama e quer que participemos ativamente de seu projeto de amor.

Ao chamar os primeiros discípulos, conforme o evangelho de hoje relata, Jesus mostrou que não queria trabalhar sozinho. Ele quis contar com colaboradores. E estes deviam fazer alguns cortes em sua vida. Deviam se converter, tomar um novo rumo. Mudar de horizonte e de foco. Por isso deixam redes, barcas e família. Não temos nesse mundo morada permanente. “Os que têm mulher vivam como se não a tivessem” (1Cor 7,29). A vida do cristão deve ser vivida de modo kairológico, no tempo de Deus, para Deus.

Ao libertar o endemoninhado, Jesus mostra que Deus nos quer livres de todo mal que nos oprime e que é superior às nossas forças. Por isso precisamos da força de Deus manifestada em Jesus. Vivendo em comunidade, enfrentemos o mal na força e na palavra de Jesus. A conversão nos introduz na dinâmica de Jesus, de maneira que nosso modo de viver vai dando um novo jeito de ser ao mundo que nos cerca. As forças da maldade vão se dissipando pela presença da Graça e da Luz de Deus. Quando não revidamos com violência uma palavra ou atitude ofensiva. Quando não nos deixamos levar pela ganância. Quando nos solidarizamos com o sofrimento do ser humano e fazemos algo para lhe aliviar a dor, seja com atitudes individuais, seja organizando e somando forças para conseguir melhorias para a rua, o córrego, o bairro, a escola, o posto de saúde etc. É para isso que o Senhor nos chama e conta conosco.

Estes três elementos que destacamos na liturgia da Palavra de hoje querem nos ajudar a perceber que a vida é dom de Deus e deve ser vivida de tal maneira que ela seja um sinal do amor de Deus no mundo. Vivendo assim experimentaremos a alegria de viver, mesmo em meio a sofrimentos. Estes serão convertidos em fonte de vida, porque unidos à vida de Jesus.

Pe. Júlio Maria, fundador de nossa Congregação Sacramentina, procurou fazer de sua vida um dom. Um homem que fez dos 66 anos de vida um Kairós, um tempo de Deus e para Deus no serviço aos irmãos e irmãs, tornando-se, assim, uma inspiração para nossa vida cristã.

O tempo é breve. A figura deste mundo passa. Então façamos o bem enquanto é tempo.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

A vocação cristã

aureliano, 15.01.21

2º Domingo do Tempo Comum [17 de janeiro de 2021]

[Jo 1,35-42]

Estamos no Tempo Comum da liturgia da Igreja. Esse tempo é caracterizado pelo cotidiano, que não deve ser menosprezado, mas alimentado pela contemplação dos mistérios da vida de Cristo. A cor verde recorda a esperança que deve alimentar o cristão e o pinheiro, árvore forte, recordando ao cristão que deve ser forte e perseverante.

A liturgia da Palavra deste domingo quer ajudar a comunidade a refletir sobre o chamado que Deus faz a cada um para cumprir sua missão neste mundo. Na primeira leitura temos Samuel sendo chamado pelo Senhor, ainda menino, para cumprir uma missão de profeta. E no Evangelho encontramos João relatando o encontro dos primeiros discípulos com Jesus.

De modo geral, quando se fala em vocação, entende-se que a pessoa vocacionada vai se tornar freira ou padre. O termo ficou associado apenas a esse estado de vida na Igreja. É preciso romper com essa compreensão, pois ela mata o sentido profundo que lhe é próprio. Pelo simples fato de estar no mundo, o ser humano está em estado de vocação. Deus criou o homem e a mulher e os colocou no mundo para que cuidassem dele e vivessem em paz uns com os outros. É preciso que cada um busque “escutar” a Deus para perceber a que missão é chamado. Para isso é preciso parar, rezar e escutar: “Fala, Senhor, que teu servo escuta” (1Sm 3,10). E depois, dizer com liberdade: “Aqui estou, Senhor, para fazer a tua vontade” (cf. Sl 40,8-9).

Esse relato do encontro de Jesus com seus primeiros discípulos nos desperta para um caminho muito interessante. Ao ouvirem a proclamação que Jesus é o Cordeiro de Deus, dois discípulos de João Batista seguiram a Jesus. Vendo que eles o seguiam, Jesus perguntou-lhes: “Que estais procurando?”.

Essa pergunta de Jesus aos seus primeiros seguidores ressoa no fundo de nossa alma: “Que procurais?”. Fala de busca, de procura, de desejo mais profundo. São as primeiras palavras de Jesus no evangelho de João. Calam fundo em noss’alma. O que buscamos mesmo em nossa vida: Dinheiro? Fama? Sucesso? Poder? Cura de enfermidade? Ausência de preocupações? Vencimentos no final do mês? Comprar e vender? Cuidar de patrimônio, de herança, de bens? Ocupar-se o dia todo com redes sociais? – Afinal, o que é mesmo objeto de nossas buscas cotidianas? Em quê investimos nossas energias e preocupações?

O salmista rezava: “Desde a aurora minh’alma vos procura” (Sl 62,2). Esse clamor mostra o que se passa nas profundezas do ser humano: busca, procura intensa, desejo insaciável. Somente o Amor Eterno e Insondável, manifestado na pessoa de Jesus de Nazaré, poderá saciar a procura mais profunda do ser humano. Se ele provoca o ser humano com um pergunta que lhe toca a alma, aponta o caminho que deve ser seguido: “Vinde e vede”. Não há caminho qualquer. Ele, Jesus de Nazaré, é o Caminho.

Este convite de Jesus pressupõe a resposta humana. A iniciativa de salvação é de Deus, mas ao ser humano compete responder sim ou não. Ao convite divino o ser humano deve responder com atitude efetiva: ir e ver. Diferentemente da revelação de Deus a Samuel em que o Senhor se lhe manifesta e dá-lhe uma missão, Jesus convida os discípulos para “ver”, ou seja, para estar com ele. Os discípulos devem concentrar sua atenção na pessoa de Jesus e assimilar suas atitudes de misericórdia, de cuidado, de entrega ao Pai e aos irmãos. Em Jesus os discípulos descobrirão a resposta de Deus para suas buscas. O encontro com o Pai se dá, a partir de então, na pessoa de Jesus, que se deixa encontrar por aqueles que o buscam.

“Vinde e vede”. “Vir” significa a posse da fé: “Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome; aquele que crê em mim não terá mais sede” (Jo, 6,35). “Ver” é a visão da fé. O relato do cego de nascença (João 9) é uma cena que mostra de modo brilhante como se dá o processo do “ver”: “O homem que se chama Jesus fez lama, esfregou-a nos meus olhos e me disse: ‘Vai a Siloé e lava-te’. Então, eu fui, lavei-me e recuperei a vista” (Jo 9,11).

Finalmente, temos que os discípulos “permaneceram com ele naquele dia”: foi o processo de iniciação dos discípulos na escola que os tornou continuadores da missão de Jesus. Prova de que se apaixonaram por Jesus e se tornaram missionários é o fato de, logo em seguida, André ir ao encontro do seu irmão, Simão, para anunciar-lhe que havia encontrado o Messias. E o conduziu a Jesus. O discípulo missionário se forja na convivência com Jesus, no “vinde e vede”.

É preciso estar atento ao chamado de Deus. Ele chama a todos. A missão é específica para cada um. Ninguém tem a mesma missão. É preciso se colocar em atitude orante para observar, como Samuel e os primeiros discípulos, a que o Senhor chama, respondem ao seu chamado. Os dotes pessoais, as necessidades da comunidade, as propostas da sociedade são sinais de Deus para que cada um descubra seu lugar no mundo, na história, como colaborador de Deus. Essa vocação se realiza na consagração religiosa, no casamento, na vida profissional, na política, na cultura. Não importa o caminho, mas importa que cada um busque realizar o projeto de Deus para a humanidade. É preciso estar atento. Os discípulos estavam à procura. Uma vida dispersiva dificulta muito perceber a voz de Deus. Importa disponibilidade na oração. Sem esta, a vocação não tem vez.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Batismo: conversão e compromisso

aureliano, 09.01.21

Batismo do Senhor [10 de janeiro de 2021]

[Mt 3, 13-17]

Com a festa do Batismo de Jesus, a Igreja encerra o tempo do Natal. O Batismo de Jesus é mais uma Epifania: manifestação de Jesus como o “Filho Amado” do Pai. Ele é quem levará a termo o projeto de Deus, por isso exige a João “cumprir toda a justiça”.

Se Jesus é o Filho de Deus, por que quer ser batizado? Que significa o batismo de Jesus?

O batismo de João é um batismo de conversão, um rito de purificação que prepara “os caminhos do Senhor”. Desde a concepção de Jesus, João Batista esteve a ele relacionado. Agora aparece nos inícios de sua vida pública, anunciando a conversão à prática da justiça como caminho para remover o pecado.

Quando Jesus, diante da recusa de João em batizá-lo, insiste em que se deve cumprir “toda a justiça”, ele está mostrando que veio para realizar o plano da salvação que o Pai preparou para a humanidade; veio cumprir a vontade do Pai num amor incondicional à humanidade, que culmina com a cruz. Também se expressa aqui o que o batismo simboliza para Jesus: mergulho na condição humana, menos o pecado. No entendimento dos Santos Padres da Igreja, esse gesto de Jesus santifica as águas do batismo. Assim Jesus santifica todas as atividades humanas, toda a criação com sua “descida” no batismo à nossa condição humana.

A festa do Batismo de Jesus deve nos levar a refletir sobre o nosso batismo. Este não significa meramente o perdão dos pecados, como o de João, nem uma bênção ou coisa semelhante. Batismo cristão é a participação no batismo de Cristo e na sua missão como Servo de Deus, no Espírito. Ser batizado é ser enxertado no Cristo para tornar-se servidor dos irmãos e irmãs dentro de uma comunidade cristã. É seguimento a Jesus que, “ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder, andou por toda parte fazendo o bem e curando a todos que estavam dominados pelo diabo” (At 10, 37-38).

Vamos rezar um pouco mais nosso batismo, rever nossos compromissos batismais, nossa vida em comunidade, nossa prática da justiça e da bondade. Seria bom que todo batizado soubesse o dia de seu batismo e o celebrasse. O Pe. Júlio Maria, fundador de nossa Congregação, Missionários Sacramentinos, dava mais ênfase ao dia do seu batismo do que ao do seu natalício. Penso que pode ser uma experiência a nos ajudar a revitalizar em nós o espírito missionário e comprometido próprios do batismo cristão.

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BATISMO: VIVER SEGUNDO O ESPÍRITO

A festa do Batismo do Senhor quer nos ajudar a pensar e a rezar o nosso batismo, nossa consagração radical que o Senhor fez de cada um de nós. Ao consagrar-nos no batismo o Pai exclama como fizera ao seu próprio Filho: “Este é meu filho amado”.

O evangelho deixa entrever dois aspectos muito interessantes da vida de Jesus: sua relação com Deus e sua solidariedade com o povo. Havia uma expectativa geral em torno do Messias. A Palestina passava por uma opressão muito grande por parte do poder romano. Pipocavam movimentos messiânicos. Esta é a razão da confusão que o povo fazia a respeito de João e de Jesus.

João, um homem cheio de Deus, não se deixou levar pela vaidade e declarou: “Virá aquele que é mais forte do que eu... Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo”. Reconhece em Jesus o enviado do Pai que realiza um batismo que comunica a vida nova na força do Espírito Santo. Pregava um “batismo de conversão”.

O primeiro aspecto a ser ressaltado no relato de hoje é a solidariedade de Jesus com o povo. Por que Jesus quis ser batizado? Ele já não é o Filho de Deus? – Jesus se faz solidário com a humanidade. Entra, humildemente, na fila dos pecadores e pede a João o batismo de conversão. Não que ele precisasse desse rito, mas quer cumprir em tudo a vontade do Pai e sua missão. É o “Servo do Senhor”. “Não quebra a cana rachada nem apaga um pavio que ainda fumega; mas promoverá o julgamento para obter a verdade” (Is 42,3).

O batismo cristão não é um rito para nos afastar do mundo, mas nos reenvia renovados para fazermos o novo acontecer. Nós cristãos precisamos lançar um olhar mais profundo e contemplativo sobre essa atitude de Jesus e criarmos coragem para nos lançarmos, de modo novo, a partir do batismo que nos consagra radicalmente ao Pai, para sermos uma presença de Igreja solidária no meio do povo. Ajudar o povo a fazer um caminho de conversão, de reencantamento por Jesus Cristo, de paixão pelo Reino, de coragem para enfrentar os promotores da violência e da morte, na construção de uma sociedade de paz e de mais vida.

Rezemos um pouco mais nosso batismo. Que diferença faz ser batizado ou não? Que diferença faz crer ou não crer? O batismo que você recebeu quando criança interfere em suas atitudes, em seu modo de viver, de se relacionar, de lidar com o poder e com dinheiro? Como você tem vivido sua vida de oração? Reserva algum tempo para a intimidade com o Pai? Procura ser solidário com os pequenos e pobres, com os doentes e pecadores? – João Batista ainda não descobrira a relação misericordiosa e afável com os debilitados e marginalizados. Ele encerra a Primeira Aliança. Jesus, numa atitude reveladora da bondade do Pai, acolhia os pecadores e os perdoava, aproximava-se dos doentes e os curava, abençoava as crianças, acolhia e valorizava as mulheres. Enfim, mostrou um Deus que se aproxima para salvar.

E você, que foi batizado/consagrado, iluminado pela Palavra, orientado e instruído acerca da bondade de Deus que deve ser expressa em sua vida, como tem se comportado diante daqueles que Deus colocou no seu caminho? Você se considera filho/a de Deus? Vive como filho/a amado? O que lhe falta para ser mais fiel ao seu batismo?

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A POMBA E O ESPÍRITO SANTO

“... e ele viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba” (Mt 3,16). O que esse relato quer dizer? Por que a iconografia cristã representa o Espírito Santo em forma de pomba? Vamos tentar compreender esse relato.

A gente precisa ir aprendendo a ler e rezar as Sagradas Escrituras relacionando os textos. Essa perícope de Mateus está relacionada com alguns textos do Antigo Testamento. Vejamos.

Bem no início da Sagrada Escritura lemos no relato da Criação que “o vento de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,2). O talmude babilônico – uma espécie de interpretação dos rabinos ao texto bíblico - diz mais: “O Espírito de Deus pairava sobre a face das águas, como uma pomba que paira sobre os seus filhotes sem tocá-los”. Esse relato de Gênesis faz antever, de algum modo, o que Cristo Salvador realizará com sua vida salvadora. Os acontecimentos que se deram ao redor de sua vida no Jordão prenunciam a nova Criação da humanidade. O batismo trazido por Jesus nos recria, nos faz nascer de novo (cf. Jo 3,5-7).

Outro relato que não pode ser omitido é o do dilúvio. Noé enviou uma pomba para certificar-se se as águas haviam baixado. A pomba trouxe no bico um ramo de oliveira (cf. Gn 8,11). Esse relato está diretamente relacionado ao batismo de Jesus, uma vez que o dilúvio, no entendimento dos Santos Padres, prefigurava a destruição do pecado e a salvação pelas águas do batismo. Aqui aparecem claramente essas duas realidades retratadas por Mateus no batismo de Jesus: as águas e a pomba.

Portanto, é preciso ficar claro que o Espírito Santo não é uma pomba. O fato de a arte cristã retratar o Espírito Santo em forma de pomba tem estreita relação com esses relatos bíblicos. Mateus diz “descendo como uma pomba”. Ou seja, como a pomba bate as asas e faz correr um vento suave ao pousar, aquele vento produzido pelas asas da pomba pousando assemelha-se ao Espírito que “paira” sobre a criação, sobre Jesus, sobre nós, sobre a Igreja, sobre as oferendas em santificação. É o Hálito santo de Deus. A Divina Ruah.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Deus não é propriedade de ninguém

aureliano, 02.01.21

Epifania 2021.jpg

Epifania do Senhor [03 de janeiro de 2021]

[Mt 2,1-12]

A solenidade que celebramos hoje é uma festa popularmente chamada de “Santos Reis”. Caiu bem no imaginário popular a cena pintada por Mateus sobre a visita que os Magos fizeram a Jesus por ocasião do seu nascimento. O quadro é deveras bonito. Mas é bom lançarmos um olhar com mais profundidade, pois aí se esconde um grande Mistério.

Primeiro não podemos ler a cena do evangelho de hoje como um relato jornalístico. Os fatos certamente não se deram historicamente tais como estão narrados. A leitura deve ser teológica. Mateus pretende dar uma catequese para a comunidade. Vamos então tomar os pontos essenciais e tentar descobrir o que Deus nos está revelando de novo nesta Palavra da festa de hoje.

O fato de relatar Belém como local do nascimento de Jesus parece mostrar que Mateus quer convencer alguns que não podiam acreditar que o Messias pudesse nascer em Nazaré pelo fato de as Escrituras prometerem que sairia de Belém, a cidade de Davi. Belém é “casa do pão”. O Pão da vida que veio alimentar a humanidade dá-se em alimento num coxo onde os animais comiam. O alimento, o pão que ali se encontra, veio para saciar a fome da humanidade.

Os magos não eram necessariamente adivinhos, mas estudiosos dos astros. Dizem os entendidos da cultura e história daquela época que, por ocasião do nascimento de pessoas importantes, uma estrela avisava. Mateus vale-se da crença para mostrar que Alguém nasceu e foi visto através de uma estrela.

A visita e adoração dos magos contrapõem-se ao orgulho de Herodes e de todo o Israel que se recusou a dobrar a cerviz ao Deus que se fez Homem no seio de Maria. Considerava inadmissível que Deus pudesse nascer tão pobre e simples. Ademais se sentia ameaçado pelo “rei dos judeus” que acabara de nascer. Uma vez que aqueles para quem ele veio não o reconheceram (cf. Jo 1,11), manifesta-se aos pagãos, representados pelos magos. Veio para todos. É o universalismo da salvação de Deus manifestado em Jesus de Nazaré.

A estrela de que fala o texto simboliza os sinais pelos quais Deus nos fala. Ele se manifesta de muitas formas. É preciso estar com o “coração no alto”. Esse olhar para cima, para o céu quer indicar a vida de oração, de intimidade com o Pai que nos ajuda a perceber os caminhos pelos quais devemos caminhar. Herodes e os habitantes de Jerusalém, levando uma vida perversa e ambiciosa, criaram em torno de si uma nuvem tão espessa que impediu o brilho da estrela sobre a cidade. Somente depois que saíram da cidade é que a estrela foi novamente vista pelos magos. O que lhes causou grande alegria. A alegria da luz de Deus que ilumina e fortalece o coração do justo.

Quando o relato diz que os magos tomaram outro caminho de volta para sua pátria, o texto nos quer dizer que é preciso ter coragem de assumir um caminho novo. Trata-se da conversão. Converter-se é mudar de trajetória, de rota. É ter coragem de assumir um novo modo de viver. E isso se dá a partir do encontro com o Senhor. Foi o que aconteceu aos magos. Aquele encontro com o Senhor da vida, reclinado na manjedoura foi tão decisivo e envolvente que os levou a assumir um caminho novo em defesa da vida ameaçada por Herodes. O caminho de conversão nos faz contrapor-nos aos ameaçadores da vida. É preciso ter coragem de enfrentar aqueles que buscam “matar o menino”. Aqueles que querem tirar a vida a todo custo. Aqueles para quem o dinheiro vale mais do que a vida. Aqueles para quem o crescimento econômico tem prioridade sobre a saúde da população.

Talvez fosse oportuno perguntar-nos: minha postura é de defesa de Jesus que sofre e morre nos acometidos pela covid-19 ou por Herodes cujo espírito de morte está presente em várias autoridades de nosso País? Estou com Herodes ou estou com Jesus?

Que a Luz resplandecente que brota do presépio nos envolva e nos faça missionários transformados por esse Mistério que nos arrebata e nos faz pessoas renovadas para a missão.

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NÃO TER MEDO DA LUZ

Esta festa, outrora celebrada no dia 06 de janeiro, dia dos Santos Reis (Natal das Igrejas Orientais), quer nos ajudar a entender que Aquele cujo nascimento celebramos no Natal veio para todos os povos. É a Luz que ilumina as nações. Deus não veio salvar um só povo, mas todas as pessoas de todos os tempos e lugares.

O evangelho de Mateus termina com o envio dos discípulos para evangelizar “todas as nações” (Mt 28, 19). E no início ele traz o relato da visita dos Reis Magos, prefigurando exatamente isso. Os doutores de Jerusalém sabiam onde devia nascer o Messias, mas a estrela da fé não os conduzia até lá. Daqui se depreende que não basta conhecer com a cabeça. O coração precisa crer e se inclinar para os sinais dos tempos. Herodes e os doutores não viram a estrela porque estavam ofuscados pelo próprio brilho. Uma vaidade tal que escondia os sinais reveladores de Deus que oculta estas coisas aos sábios e entendidos e as revela aos pequeninos (cf. Mt 11, 25). Junte-se a isso a sede de poder de Herodes, que vê na indicação da profecia, uma ameaça à sua condição de rei e senhor.

É bom ainda observarmos o medo que toma conta de Herodes: manda matar as crianças da redondeza de Belém. O medo de perder o poder faz-nos matar aqueles pelos quais nos sentimos ameaçados: uma palavra difamatória e arrogante, um gesto ofensivo, uma atitude de indiferença, fuga de responsabilidades, decisões políticas visando a vantagens pessoais etc.

Além disso, quantas crianças vítimas da fome, dos maus-tratos, da exploração. Investe-se pesado em armamento, em reformas de apartamentos públicos luxuosos que atendem aos interesses mercadológicos e vaidosos de seus moradores, enquanto que a educação, a saúde e o cuidado com os pequenos ficam relegados a segundo plano. Mesmo dentro de nossas comunidades: investimos muito recurso econômico em obras, reformas, objetos litúrgicos caríssimos ou em atividades que são vistosas, e investimos pouco em atividades sociais e missionárias que atendem às reais necessidades das crianças, dos idosos ou dos pobres e sofredores.

Peçamos ao Senhor que nos ajude a nos comprometermos na construção de um mundo mais humanizado, mais solidário, mais comprometido com os pequeninos do Reino. Todos aqueles que se empenham pela vida cabem dentro do projeto salvador de Deus. Precisamos nos unir mais em parcerias, a partir de nossas próprias comunidades e pastorais, e também com outras entidades que lutam pela vida do ser humano e do planeta, para que a luz brilhe para todos trazendo a esperança que supera o medo, o amor que supera o ódio, o serviço que vence a sede de poder e a ganância de ter sempre mais.

As pessoas de boa vontade encontram Jesus, mas os que vivem em função de seu próprio interesse (Herodes e companhia) têm medo de encontrá-lo: “Quem faz o mal odeia luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus” (Jo 3, 20-21).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN