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Eucaristia: "amou-nos até o fim"

aureliano, 31.03.21

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Quinta-feira Santa [1º de abril de 2021]

[Jo 13,1-15]

Neste primeiro dia do Tríduo Pascal celebramos a instituição da Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do Senhor, que se desdobra em dois aspectos: a instituição do Sacerdócio Ministerial e o Serviço Fraterno da Caridade.

Perpassando o evangelho de João, notamos que não há referências aos gestos rituais de Jesus sobre o pão e vinho como o fazem os outros evangelistas. O discurso de Jesus sobre a Eucaristia está no capítulo 6° de seu evangelho.

No discurso de despedida, João salienta o gesto de Jesus ao lavar os pés de seus discípulos. Não pede que seu gesto seja reproduzido ritualmente, mas que devemos “fazer como ele fez”. Ou seja, devemos refazer em nossas relações o que Jesus fez naquele gesto simbólico: amor gratuito que torna presente o “sacramento” do amor de Cristo por todos nós. O “lava-pés” deve ser o modo de proceder, o estilo de vida da comunidade dos seguidores de Jesus: “Dei-vos o exemplo para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,15).

O sacramento do amor

A Eucaristia, memorial do sacrifício de Jesus, é o sacramento do Corpo e Sangue de Cristo que nos é dado como alimento: “Todas as vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor até que ele venha” (1Cor 11,26). Esta presença real-sacramental do Senhor ressuscitado no pão e no vinho se estende também, de algum modo, aos irmãos. Por isto não se pode conceber a comunhão eucarística sem referência aos irmãos. Particularmente aos mais pobres e necessitados. E Paulo alerta: “Quando, pois, vos reunis, o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor; cada um se apressa em comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado” (1Cor 11,20).

Vivemos tempos sombrios. Cerca de 320.000 mortes provocadas pela covid-19. Essa realidade precisa mexer conosco. Não no sentido de preocupar-nos apenas com nós mesmos, mas numa ação coletiva de solidariedade. Não podemos cruzar os braços, nos fecharmos em nossas dependências protegidas, esquecendo-nos daqueles que passam duros aperreios na rua, no bairro, nos córregos, na luta pelo pão de cada dia, na busca de tratamento de saúde. Dentro dos devidos cuidados, precisamos nos colocar a serviço. É o gesto eucarístico de Jesus. Lavar os pés não é gesto ritual, mas ação concreta de serviço generoso, de oferta da vida, de correr o risco para que o outro viva.

Se a Eucaristia que celebramos não nos move a gestos eucarísticos de partilha, de respeito, de cuidados, de acolhida a cada irmão e irmã, não estamos celebrando a Memória de Jesus. A Eucaristia se efetiva em nossos gestos e atitudes de misericórdia para com nossos irmãos e irmãs.

SACERDÓCIO MINISTERIAL

Os gestos que Jesus realiza de “levantar-se”, “tirar o manto”, “vestir o avental”, “lavar os pés” revelam como devem ser as relações na comunidade: não de poder, mas de serviço. Portanto, o sacerdócio ministerial, para ser coerente com o dom recebido, deve ter como inspiração os gestos de Jesus no ‘Lava-pés’.

Quem preside a comunidade, preside também a Eucaristia. Reúne a comunidade para a oração, para a escuta da Palavra, para o serviço aos pobres, distribui as tarefas e partilha os bens ofertados. Assim proclama o Concílio Vaticano II sobre a missão do sacerdote: “De coração, feitos modelos para o rebanho, presidam e sirvam de tal modo sua comunidade local, que esta dignamente possa ser chamada com aquele nome pelo qual só e todo o Povo de Deus é distinguido, a saber: Igreja de Deus” (LG, 28).

Neste dia, na Missa Crismal (que esse ano será restrita à participação de alguns representantes por causa do coronavírus), o presbitério renova as promessas sacerdotais diante do Bispo. Uma destas promessas revela claramente a missão do padre. Ela reza assim: “Quereis ser fiéis distribuidores dos mistérios de Deus pela missão de ensinar, pela sagrada Eucaristia e demais celebrações litúrgicas, seguindo o Cristo Cabeça e Pastor, não levados pela ambição dos bens materiais, mas apenas pelo amor aos seres humanos?”

OS GESTOS DE JESUS NA CEIA

Vamos contemplar os gestos de Jesus e sua relação com nossa vida:

- vestir o avental: revestir-se de simplicidade, de ternura, de presença, de serviço desinteressado.

- tirar o manto: arrancar tudo que impede o serviço, a prontidão, a disponibilidade.

- levantar-se da mesa: estar à mesa é muito bom. Mas há sempre uma situação que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Levantar-se da mesa e sentar-se à mesa é uma dinâmica constante em nossa vida. Movimentos de partida e de chegada.

- levantou-se da mesa: não se pode servir permanecendo no comodismo. Algo precisa ser feito. O Senhor “precisa” de mim, como precisou do jumentinho: “O Senhor precisa dele”.

- ficar de pé: é a atitude que tomamos quando ouvimos o evangelho na celebração. Significa prontidão para deslocar-se, para sair em qualquer direção aonde nossa presença for necessária. Prontidão para viver a Boa Nova do Reino de Deus. Estar à mesa é sinal de fraternidade, mas é preciso saber a hora certa de se levantar e sair para servir.

- tirou o manto: é abrir mão do poder. Algo que brota de dentro. O manto impede a liberdade dos movimentos. Ele traz a aparência de poder. Há “mantos” que prendem e amarram. O Senhor trocou o manto pelo avental. Quais são meus “mantos”? Costumo colocar o avental?

- colocou água na bacia...: Jesus não faz serviço pela metade. Não tem receio de se inclinar até o chão para lavar os pés dos seus discípulos. Não faz distinção de ninguém. Lava os pés de todos.

- depois, voltou à mesa: retomou o manto, mas não tirou o avental. Ele quer mostrar que seu discípulo deve ser sempre servidor. Não se pode tirar o avental do serviço. Qualquer posto ou cargo ou ministério que ocupar deve estar ali, sob o manto do poder, o avental do serviço. Então deve ser poder-serviço. Todo exercício de poder sem a dimensão do serviço (avental) está fadado a oprimir, a se corromper, a sacrificar vidas.

Vê-se, pois, que a Eucaristia foi instituída para formar um só Corpo. O corpo sacramental de Cristo no pão consagrado deve transformar o comungante no Corpo eclesial. O Espírito Santo transforma o pão e o vinho no Corpo e Sangue de Cristo, para que a assembléia celebrante e comungante se transforme no Corpo do Senhor, a Igreja. Provém daí a expressão clássica: a Eucaristia faz a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia. Isto tem consequências profundas em nossa vida. A comunhão eucarística nos compromete com os membros (do corpo) que sofrem, que passam fome, que pecam, que estão afastados, que experimentam o abandono, que padecem por causa de nossas omissões e covardias. O senhor deu-nos o exemplo para que façamos o mesmo que ele fez: amou-nos até o fim!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Cristo padece nos pobres e sofredores

aureliano, 27.03.21

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Domingo de Ramos [28 de março de 2021]

 [Mc 11,1-10 (Ramos) e Mc 14,1 – 15,47 (Paixão)]

Estamos entrando na Semana Santa! Esta Semana passou a ser celebrada com a intenção de rememorar a Paixão do Senhor. Na Idade Média ela tomou corpo e fôlego, sobretudo pela tentativa de reviver o episódio da Paixão do Senhor descrita pelos evangelistas. Esta semana era até chamada de Semana Dolorosa, pelo fato de se dramatizarem os sofrimentos de Cristo.

Parece simples, mas o conhecimento desse dado histórico é interessante porque pode nos ajudar a entender o porquê das vias sacras e outras representações da paixão do Senhor. Ficaremos então atentos para não nos perdermos nos folclores e dramatizações, mas adentrarmos mais profundamente no Mistério profundo da entrega de Jesus, manifestação do amor do Pai, e nos atermos ao mistério fundante de nossa fé cristã, a Ressurreição do Senhor.

Este domingo se chama, na verdade, Domingo da Paixão nos Ramos. Jesus entra triunfante em Jerusalém para sofrer a Paixão. Portanto, celebramos dois acontecimentos: a aclamação de Jesus como o “Bendito que vem em nome do Senhor” e a contemplação de sua Paixão. É o único domingo do ano que a Igreja celebra a Paixão propriamente dita de Jesus, proclamando no Evangelho os relatos da Paixão.

Algumas considerações: Jesus pediu aos discípulos para buscar um jumentinho. Deviam dizer aos interrogantes: “O Senhor precisa dele”. O Senhor quer também precisar de nós. Somos os “jumentinhos” do Senhor. Nós temos nos colocado à disposição dele?

Ainda mais: as pessoas espalhavam roupas e ramos pelo caminho aclamando a Jesus. E nós? Aplaudimos Jesus passando pela Cruz até à sua Ressurreição? Temos dado algo de nós para Jesus passar? Notamos que ele passa diante de nós no irmão que sofre?

Nesta semana a Igreja nos convida a contemplar Jesus que oferece sua vida como dom ao Pai. Ele não vai à cruz porque gosta de sofrer ou porque quer morrer. Jesus não é nenhum suicida nem sado-masoquista! A paixão e sofrimento por que passa é consequência de sua fidelidade ao Pai. A contemplação de Cristo na cruz deveria nos levar a agradecer ao Pai por nos ter dado Jesus como Salvador. O Pai olha para seu Filho, vítima da maldade humana, como a olhar para todos aqueles que são injustiçados, vitimados por uma sociedade que sacrifica os menores. Quem é que sofre mais em consequência do mau atendimento do SUS, da falta de médicos e medicamentos? Quem é que morre em consequência de desvio de verbas, da propina, da corrupção sistematizada, dos jogos políticos para se ganharem e venderem cargos?

Jesus continua passando pelas nossas ruas e praças. Às vezes aplaudimos Jesus em uma celebração ou culto e o insultamos no rosto do desvalido! Por vezes nos silenciamos diante da maldade perpetrada. Atribui-se a Martin Luther King uma frase de valor inquestionável: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. O silencio pode esconder cumplicidade no crime e na maldade. Isso é muito grave! Precisamos de um sério exame de consciência nesta Semana Santa na busca de um caminho de manifestação da bondade do Pai em nossas ações cotidianas. Fecundar a sociedade estéril, porque individualista e narcisista, com uma atitude de quem serve: “Eu vim para servir” (Mt 20,28).

E, nas trilhas da superação da violência, queremos nos lembrar de que somos todos irmãos (cf. Mt 23,8). Portanto ninguém tem o direito de tirar a vida de ninguém; ninguém pode morrer à míngua; ninguém pode sofrer violência seja de qualquer natureza; ninguém pode ser abandonado à sua própria sorte; ninguém pode ser discriminado por motivos de raça, religião, de orientação sexual ou condição social.

Portanto, a celebração de entrada de Jesus em Jerusalém deve valorizar não tanto os ramos, mas o mistério expresso pela procissão que proclama a realeza messiânica de Cristo. Uma vida entregue livremente para que toda violência e maldade fossem eliminadas da face da terra. Eis a nossa missão.

*Lembramos que hoje é o Dia Nacional da Coleta da Solidariedade. A Igreja espera e conta com a participação de todos os fiéis com esse gesto de compromisso com as incontáveis vítimas da violência e de outras formas de destruição da vida que campeiam ao redor de nós. Esse gesto fraterno e solidário é uma demonstração de nosso desejo de conversão quaresmal, de volta para Deus presente nos irmãos e irmãs sofredores para aliviar-lhes um pouco a dor.

“O resultado integral das coletas realizadas nas celebrações do Domingo de Ramos, coleta da solidariedade, com ou sem envelope, deve ser encaminhado à respectiva Diocese. Do total arrecadado pela Coleta da Solidariedade, a Diocese deve enviar 40% ao Fundo Nacional de Solidariedade (FNS), gerenciado pela CNBB. A outra parte, 60%, permanece nas dioceses para atender projetos locais, pelos respectivos Fundos Diocesanos de Solidariedade (FDS)” (Texto-Base, p. 78).

Obs.: Tendo em vista esse tempo de pandemia e isolamento social em que não faremos celebrações presenciais, cada um esteja atento às orientações diocesanas e paroquiais para a data e a modalidade da entrega da Contribuição Solidária.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Quem entrega a vida, gera vida

aureliano, 20.03.21

5º Domingo da Quaresma [21 de março de 2021]

 [Jo 12,20-33]

Porque Jesus fizera Lázaro reviver, houve uma corrida das multidões a ele: “Eis que todo mundo se põe a segui-lo” (Jo 12, 19), gerando dor-de-cotovelo entre os fariseus. E dentro da multidão, vieram os ‘gregos’. Disseram a Filipe: “Queremos ver Jesus”. No finalzinho do relato de hoje encontramos novamente Jesus “atraindo” as pessoas: “Quando for elevado da terra, atrairei todos a mim”. Jesus tinha uma força que atraía a pessoas. Era a força de sua fidelidade ao Pai e a plenitude do Espírito Santo que nele morava e o movia. – Cá pra nós: nosso modo de viver está atraindo, está conquistando as pessoas para a paz, a verdade e o bem?

É bom refletir aqui sobre a intencionalidade destes estrangeiros. O que de fato os movia? Era apenas curiosidade? Ou eles queriam mesmo conhecer Jesus para assumir um novo modo de viver a partir do encontro com Jesus? Parece que sim, pois não entram no Templo, mas buscam conhecer Jesus. – Nossas buscas, nossas idas ao templo, nossas leituras espirituais e rezas têm como objetivo satisfazer curiosidades, atender necessidades, ou nutrir o desejo de nos identificarmos com Jesus?

Independentemente da intenção daqueles gregos, representantes das comunidades fundadas fora do judaísmo, Jesus mostra claramente aos seus seguidores que o caminho da vida que ele veio ensinar não é fácil. É preciso morrer para produzir frutos. É preciso perder a vida para ganhá-la: “Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna”. Jesus nos ensina que o sofrimento e a morte, a partir de então, encontram um sentido: conversão, vida nova, ressurreição.

Quem se apega ao dinheiro, ao poder, ao prazer, ao ter cada vez mais, aos seus desejos egoístas, está matando a semente de vida que Deus colocou em seu coração. A semente que não morre, fica só, sem vida, estéril. Jesus produziu muito fruto porque entregou sua vida. “Atraiu” todos a si porque deixou-se elevar da terra numa cruz. Entregou-se pela salvação de todos. Na Igreja encontramos inúmeros homens e mulheres que tiveram (e têm) a coragem de enfrentar a perseguição, a exclusão, o exílio, a fome, o cárcere, a morte em defesa da vida: Santo Oscar Romero, Irmã Dorothy, Chico Mendes, Dom Luciano, Santa Madre Teresa de Calcutá,  Servo de Deus Pe. Júlio Maria e tantos outros santos e santas anônimos que conhecemos. – Que atitudes realizo que manifestam minha entrega ao projeto do Reino de Deus? Que experiências tenho feito que denotam uma vida eucarística, isto é, de oferenda pelo bem das pessoas?

Outro elemento do relato evangélico que merece destaque é a atitude de Jesus que mostra sua humanidade profunda: “Agora sinto-me angustiado. E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora!’? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim”. Jesus não usa máscaras. Fala de suas dores e angústias. Coloca-se frágil diante do Pai, face ao sofrimento e à morte iminente. Pede até para que o Pai o livre “dessa hora”. Jesus nos ensina a sermos mais autênticos, verdadeiros. Devemos assumir nossos fracassos e fraquezas; arrancar nossas máscaras. Não adianta fazer-se de forte, de bonachão, de independente. Precisamos reconhecer nossos pecados e fraquezas, nossa total dependência do Pai para perseverarmos no caminho da vida. Ninguém caminha sozinho. E ninguém está livre das angústias da vida. Elas podem ser ressignificadas na fé, na vida e seguimento de Jesus.

Do evangelho de hoje deve ficar para nós um comprometimento maior com Jesus Cristo, um encantamento maior por sua pessoa, uma coragem mais forte para fazer morrer em nós o egoísmo e o fechamento a fim de produzirmos muitos frutos. Só atrai gente para Cristo quem tem coragem de morrer por ele, de deixar-se levantar na cruz por ele. Isto é, quem tem coragem de pautar sua vida pelo evangelho, de colocar a vida e o ensinamento de Jesus como parâmetros para suas escolhas e atitudes cotidianas. A partir de Jesus a morte não tem mais a última palavra. Não há necessidade de temer a morte. A morte em Cristo é possibilidade de novas vidas.

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Campanha da Fraternidade 2021: “A cruz era um instrumento de violência na época de Jesus. A pena de morte de Jesus era a cruz. O Império Romano mantinha uma ordem e uma paz aparentes com práticas autoritárias e violentas. Como estratégia militar e de conquista para manter a falsa paz, utilizavam, por vezes, a religião como instrumento de manutenção da hierarquia social. Em algumas situações, a própria religião dava força ao Império e cooperava com a manutenção do poder romano, aplicando a Lei acima da Graça. Era a forma de manter o controle sobre a vida das pessoas, em especial, das mais pobres que, pela opressão sofrida, eram as que poderiam causar perturbações ao Império. Era a Lei religiosa que separava as pessoas puras das impuras, que identificava as pessoas doentes como pecadoras, que silenciava as mulheres, os pobres, os órfãos e tantos outros. As pessoas empobrecidas e que não se encaixassem nas normas eram obrigadas a viver do lado de fora dos muros da cidade. Jesus questionou essas estruturas de poder e desigualdade. As pessoas não poderiam ser descartadas e sofrer as consequências  para a manutenção de um poder segregador” (Texto-Base, 57).

Nestes tempos sombrios que atravessamos, peçamos ao Pai que faça de nós instrumentos de paz, de reconciliação e de esperança. Há muita gente sofrendo terrivelmente as dores da doença, da perda, do medo, da angústia, da fome, do desencanto. Como cristãos e cristãs, recebemos a missão de ajudar as pessoas a se aproximarem de Jesus, Vida para nossa vida, Pão para nosso alimento, Palavra que nos liberta e salva, Caminho que nos dá segurança do rumo certo. Sejamos para todos com quem trabalhamos ou temos algum contato, um sinal de vida, de esperança, de possibilidade. Jamais entremos pelo caminho largo e tenebroso da morte, do ódio, da polarização, da intolerância, da violência, de pagar o mal com o mal. Trilhemos caminhos de vida. Entreguemos nossa vida para que outros tenham vida também.

                Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

São José, homem Justo

aureliano, 19.03.21

São José 2021.jpg

São José, Esposo de Nossa Senhora [19 de março de 2021]

[Mt 1,16-25]

Celebre a José a corte celeste,

Prossiga o louvor o povo cristão:

Só ele merece à Virgem se unir

Em casta união.

Ao ver sua Esposa em Mãe transformar-se,

José quer deixar Maria em segredo.

Um anjo aparece: “É obra de Deus!”

Afasta-lhe o medo. (Oficio de Vésperas).

 

A Igreja celebra São José em dois dias no ano: 19 de março e 1º de maio. No dia 19 de março, São José é celebrado como patrono da Igreja Universal; já no dia 1º de maio, dia do Trabalho, São José é honrado como Operário, o carpinteiro de Nazaré.

Em 1870 São José foi declarado o patrono da Igreja católica. E em 1955 o Papa Pio XII honrou o Dia do Trabalho (1º de maio) com a invocação: São José, operário. A devoção a São José sempre existiu. Já o culto litúrgico veio mais tarde lá no fim do século XV. É um dos santos mais populares. Ainda hoje o nome José é dado com muita frequência pelos pais aos seus filhos. Também há milhares de comunidades, igrejas, praças e cidades em homenagem a São José.

Há alguns traços marcantes na vida de São José que o Evangelho registrou e que vale a pena destacar. Podem nos ajudar em nossa vida cotidiana.

O Justo: “José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo” (Mt 1,19). A alcunha de ‘justo’ na cultura judaica quer significar fiel observante do Ensinamento de Deus; pessoa cheia de Deus e que busca fazer-lhe sempre a vontade. Aquele que foge do pecado e busca fazer sempre o bem. Aquele que dá a cada um o que lhe pertence, sobretudo “a Deus o que é de Deus”. José é justo, não pelo fato de buscar separar-se de Maria, mas porque procura e reconhece em todas as coisas a vontade de Deus.  Abriu mão de seus projetos pessoais para abraçar a missão que o Pai lhe pedira.

Pai adotivo: Este título é um dos mais significativos. José não foi o pai carnal de Jesus. “A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo” (Mt 1,18). A presença de José na genealogia do rei Davi garante a Jesus a linhagem real segundo o relato de Mateus: “Jacó foi pai de José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo” (Mt.1,16). Este ministério dá a José o lugar de Deus Pai. Leonardo Boff diz que José é a “personificação de Deus Pai”. Exatamente por ter assumido a missão de cuidador, de zelador, de nutrício do Filho de Deus. José assume um filho que não é seu. Ele abraça a missão com todas as consequências. Interessante notar que, em nossa vida, surgem situações que nos colocam desafios semelhantes. De repente precisamos enfrentar ou assumir u’a missão que nunca imaginávamos. Mas se abraçamos como dom e missão vindos do Pai, será fonte de graça para toda a comunidade.

Carpinteiro: “Não é ele o filho do carpinteiro?” (Mt 13,55). Numa situação de incompreensão por parte de seus conterrâneos e correligionários – “De onde lhe vem essa sabedoria e esses milagres?” (Mt 13,54) –, Jesus é chamado, em tom de desprezo, filho do carpinteiro. Neste relato José aparece como um trabalhador. Empenhava-se em trabalho duro para sustentar a família. Não vivia como sanguessuga, nem como agiota ou como quotista em empresas e bolsas de valores, nem como explorador do trabalho e suor alheios. Seu pão era conquista de esforço cotidiano. Patrono, por isso, dos trabalhadores e trabalhadoras que lutam bravamente para ganhar “o pão com suor do rosto” (Gn 3,19).

Homem do silêncio fecundo: “Enquanto José pensava nisso, eis que um anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho...” (Mt 1,20). Este relato mostra José como um homem orante e contemplativo. Não se precipita. Procura entender o que Deus quer. Os evangelhos não registraram nenhuma palavra de José. Isso mostra que ele era um homem discreto, silente, contemplativo. A profundidade de uma pessoa, muitas vezes, se mede pela sua capacidade de ouvir, de silenciar-se, contemplativamente.

Esposo e Pai: Os evangelhos narram a solicitude de José para com sua família. Diante da ameaça do famigerado Herodes, instruído pelo Senhor, foge para o Egito: “Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe, durante a noite, e partiu para o Egito” (Mt 2,14). Não descuidava dos compromissos religiosos: “Seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa” (Lc 2,41). E não perdia de vista o filho que lhe foi confiado: “Ele ficou em Jerusalém sem que seus pais o notassem. Pensando que estivesse na caravana, andaram o caminho de um dia, e puseram-se a procurá-lo entre parentes e conhecidos. E não o encontrando, voltaram a Jerusalém à sua procura” (Lc 2,43-45). Lucas resume numa frase a vida da Sagrada Família em Nazaré: Jesus lhes era submisso e ia crescendo em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens. (Lc. 2,51-52).

O relato do evangelho de hoje sugere que Deus faz coisas novas. Onde sua iniciativa é acolhida com a boa vontade das pessoas justas, caso de Maria e José, a Graça atua de modo exuberante.

Maria, virgem que se torna mãe sem o ato sexual, representa em sua virgindade toda a humanidade disposta a receber a maravilhosa intervenção divina dando-nos uma nova vida. Graças à cooperação de Maria, a realidade de Deus desceu até nós em Jesus. A liturgia católica celebra hoje em tom solene a lembrança, o exemplo de vida, a intercessão daquele que está na passagem do Antigo para o Novo Testamento: José, o justo.

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Para celebrar os 150 anos da proclamação de São José como Patrono Universal da Igreja Católica pelo Beato Pio IX, o Papa Francisco  quis compartilhar conosco “algumas reflexões pessoais sobre esta figura extraordinária, tão próxima da condição humana de cada um de nós. (...) ... no meio da crise que nos afeta, as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo” (Carta Apostólica Patris Corde, p. 02). Desse modo, o Papa Francisco dedicou esse ano em curso a São José. Seu desejo é que “todos possam encontrar em São José – o homem que passou despercebido, o homem da presença cotidiana discreta e escondida – um intercessor, um amparo e um guia nos momentos de dificuldade. São José lembra-nos que todos aqueles que estão, aparentemente, escondidos ou em segundo plano, têm um protagonismo sem paralelo na história da salvação. A todos eles dirijo uma palavra de reconhecimento e gratidão” (Idem, p. 02).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Quem vive na luz não teme as trevas

aureliano, 13.03.21

4º Domingo da Quaresma [14 de março de 2021]

 [Jo 3,14-21]

O contexto do evangelho de hoje é a conversa de Jesus com Nicodemos, um homem estranho, embora notável entre os judeus, que entra em cena de repente, e desaparece de repente. A resposta de Jesus a ele e o contexto da liturgia quaresmal – preparação para o batismo e vida batismal – nos ajuda a entender o que significa o batismo: “Ninguém, a não ser que nasça da água e do Espírito, pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5).

É interessante notar, em primeiro lugar, o fato de Nicodemos ter procurado Jesus “de noite”.  Nicodemos representa o discípulo que começa a sair das trevas para entrar na luz, por isso procura Jesus “de noite”, isto é, nas trevas dos conflitos e desafios da vida. E Nicodemos realiza o encontro desejado. Por isso não entra mais em cena, pois encontrou aquele a quem buscava. E Jesus continua seu discurso mostrando que é preciso deixar as trevas e se aproximar da luz.

Crer num homem crucificado, abandonado, considerado maldito por Deus não é algo simples. Nós estamos acostumados com cruzes por todo canto. Inclusive nas salas de órgãos públicos brasileiros vemos o crucificado presenciando cada atitude que traz pavor e vergonha aos cristãos e não-cristãos honestos e sérios. Porém raramente paramos para refletir sobre o significado deste objeto sagrado. Referindo-se à cruz, diz o Papa Francisco: “A cruz não é um ornamento, que nós devemos meter sempre nas igrejas sobre o altar. Não é um símbolo que nos distingue dos outros. A Cruz é o mistério, o mistério do amor de Deus, que se humilha a si próprio, faz-se um nada, faz-se pecado. O perdão que nos dá Deus são as chagas do seu Filho na Cruz, erguido na Cruz. Que Ele nos atraia para Si e que nós nos deixemos curar”.

“... Assim, é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3, 15). Aquele que veio “como Luz” está crucificado! Suas mãos não podem mais tocar os leprosos. Seus braços não podem abraçar as crianças. Seus olhos estão impedidos de olhar, com ternura, para os pecadores e as prostitutas. Seus ouvidos não ouvem mais o grito do cego de Jericó ou clamor da Cananéia. Um homem de dores, pendurado num madeiro, vítima da maldade, para eliminar, para sempre, do coração humano, toda maldade e violência.

Jesus mostra, no relato de hoje, a face amorosa do Pai que “não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva”. Não veio para condenar, mas para salvar. Corremos o risco de anunciar Deus como um juiz implacável, irado contra a humanidade. Por vezes assumimos o posto de juiz de vivos e de mortos. Sentamos na cadeira de juiz enquanto Jesus deitou-se numa cruz. Colocou-se do lado dos injustiçados e condenados, desde o seu nascimento, quando não encontrou lugar na hospedaria.

 “Quem nele crê não é condenado”. Crer em Jesus é assumir seu modo de viver. É arcar com as conseqüências da fé cristã. Fé é dom de Deus. Salvação é graça. “É pela graça que fostes salvos mediante a fé. E isso não vem de vós; é dom de Deus! Não vem das obras para que ninguém se orgulhe” (Ef 2,8). Pe. Konings diz que “não fomos salvos pelas obras, mas para as obras”. Ou seja, as obras encarnam nossa fé. Tiago diz que “a fé sem obras é morta” (Tg 2,26). Nosso relacionamento com Deus não é comercial (nem doutrinal, como querem alguns), mas vivencial, experiencial. Nossa relação com Deus se deve dar na gratuidade e não como compra e venda dos dons de Deus, ou na mera observância formal de uma lei ou doutrina.

A salvação depende também da acolhida que lhe faz o ser humano. Deus não salva ninguém à força. Nesse sentido a salvação é dom e tarefa, graça e liberdade. Há pessoas que rejeitam a salvação, que se recusam a aproximar-se da luz, exatamente para que suas ações más não sejam conhecidas. “Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas” (Jo 3,20). A vida de Jesus, que é luz, mostra por onde anda aquele que dele se aproxima.  Quem “pratica a verdade”, ou seja, quem procura viver como Jesus, na justiça, na honestidade, na solidariedade, no serviço generoso aos irmãos, “aproxima-se da luz para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus” (Jo 3,21).

Um respeitado teólogo jesuíta, Mário de França Miranda, diz o seguinte a propósito da inculturação da fé: “A iniciativa salvífica de Deus só chega à sua meta quando é livremente acolhida pelo ser humano na fé. Só temos propriamente revelação ou Palavra de Deus no interior de uma resposta de fé, ela mesma fruto da ação de Deus em nós. Portanto, o acolhimento na fé é parte constitutiva da revelação; sem ela os eventos salvíficos seriam meros fatos históricos, a Palavra de Deus seria palavra humana e a pessoa de Jesus Cristo nos seria desconhecida, como o foi para os fariseus de seu tempo” (A reforma de Francisco, p. 64).

Aproximando-nos da Luz, que é Jesus, somos aquecidos, iluminados, transformados por ele. Tornamo-nos mais parecidos com ele. Então nossa presença junto à família, à comunidade, àqueles que Deus colocou no nosso caminho será uma presença de luz. “Brilhe vossa luz diante dos homens para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a Deus Pai” (cf Mt 5,16). Essa luz não é autógena, fruto de esforço pessoal, mas luz que foi infundida por Deus em nós no batismo e, uma vez acolhida, deve ser levada aos outros.

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A Campanha da Fraternidade desse ano quer nos ajudar a desenvolver a arte do diálogo como instrumento de paz e de unidade na Igreja e na sociedade. A segunda leitura deste domingo nos recorda que fomos salvos pela Graça do Pai (Ef 2,5). Portanto, a salvação é dom de Deus (Ef 2,8). Esse dom não é somente nosso, mas deve se multiplicar na vida da humanidade pela nossa ação missionária, construindo fraternidade. Assim reza a Campanha da Fraternidade: “Efésios (2,1-10) chama a atenção dos gentios, que assumiram a fé em Jesus Cristo, para que não repitam o mesmo erro da comunidade dos judeus que, mesmo vivendo sob a graça da Boa Nova, ainda se orientavam pela Lei excludente. O autor da Carta aos Efésios ensina que orgulho religioso é contrário ao Evangelho, porque gera sectarismo e não a unidade. O autor relembra a rejeição que as comunidades de não judeus, seguidoras de Jesus,  sofreram por parte dos judeus (Ef 2,8-13). A todo o momento que fala aos gentios, o escritor usa a expressão “vocês”, mas sabiamente, ao se referir a Cristo, inclui-os no grupo, e fala de “nós”. O alerta para o orgulho, que produz divisões, pode ser percebido em afirmações como “com efeito, é pela graça que vós sois salvos por meio da fé; e isso não depende de vós, é dom de Deus” (2,8). Esse alerta é perfeitamente justificado com a afirmação “pois é ele quem nos fez; nos fomos criados em Jesus Cristo para as boas obras, que Deus preparou de antemão, a fim de que nelas nos empenhemos” (2,10)” (Texto-Base, 133). Nosso empenho deve ser sempre construir pontes à semelhança de Jesus. Ele que “sempre se mostrou cheio de misericórdia pelos pequenos e pobres, pelos doentes e pecadores, colocando-se ao lado dos perseguidos e marginalizados” (Prefácio da Oração Eucarística VI-D).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Grupos político-religiosos no judaísmo palestino

aureliano, 08.03.21

Introduzindo

No segundo e no primeiro séculos antes de Cristo formaram-se vários grupos e comunidades no judaísmo com o intuito de fidelidade às exigências da Lei. As interpretações eram muito variadas, o que dava margem a radicalismos e comportamentos diversos. Era sempre uma tentativa de cumprir a Lei.

Vamos fazer uma síntese a respeito dos principais grupos e/ou comunidades para melhor compreensão do contexto da Palestina nos últimos séculos antes de Jesus e também para ajudar a perceber a influência desses grupos nas primeiras comunidades cristãs.

  1. Os saduceus

Há poucas informações sobre esse grupo pelo fato de terem desaparecido com a destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. A designação saduceus deve estar associada ao nome Sadoc, sumo sacerdote no tempo de Salomão (1Rs 2,35). Aos filhos de Sadoc foi confiado o serviço sacerdotal do Templo pós-exílico. Mais tarde, no tempo de João Hircano (135-104 a.C.) os asmoneus assumiram o cargo de sumo sacerdote apesar de não serem de origem sadoquita. Existiam, porém, filhos de Sadoc que continuavam exercendo o serviço sacerdotal no Templo. Numa situação de dissidência, um grupo construiu uma colônia à margem do Mar Morto. Os sacerdotes que permaneceram em Jerusalém se distinguiam desses sadoquitas, pois continuaram a exercer o cargo de sumos sacerdotes no Templo: filhos de Sadoc e asmoneus.

Os saduceus nasceram da aristocracia de Jerusalém. A maioria ocupava altos cargos e pertencia a famílias influentes de Jerusalém. Sob o governo da rainha Alexandra Salomé, sua influência diminuiu. Alexandra nomeou seu filho Hircano II, sumo sacerdote, uma vez que a mulher não podia ocupar essa função. Com a introdução de escribas farisaicos no Sinédrio, a influência da aristocracia sagrada diminuiu, pois suas decisões passavam pelo crivo dos fariseus que condividiam com eles o poder no Sinédrio.

Os saduceus eram conservadores. Interpretavam a Lei ao pé da letra. A tradição oral não tinha peso como os fariseus pretendiam. Pragmáticos, não acreditavam em anjos nem em demônios. Também não compartilhavam da fé na ressurreição dos mortos.

Zelavam pela observância do sábado mais do que os fariseus. Não admitiam interpretação. As sentenças penais deviam obedecer exatamente às prescrições da Lei.

Eram habilidosos políticos. Por isso se davam bem com Herodes e com o Imperador romano. Os sumos sacerdotes provinham sempre de seus círculos. Procuravam conter levantes contra os romanos. Por isso, eram adversários dos fariseus e zelotas, que se opunham ao domínio estrangeiro na Palestina.

Os saduceus são os primeiros responsáveis pela morte de Jesus. No entanto foi um deles, sumo sacerdote de então, que desencadeou a catástrofe de 70, quando interrompeu, em 66, o sacrifício pelo imperador.  Com a destruição de Jerusalém e do Templo, eles também desapareceram. Somente os fariseus sobreviveram à catástrofe, reconstruindo a comunidade judaica.

  1. Os fariseus

O nome fariseu deriva, provavelmente, do hebraico p’erushim ou do aramaico p’erishajja = separado. Afastavam-se do convívio social a fim de evitar contato com toda impureza.

O início do movimento remonta aos macabeus: “Assideus, israelitas fortes corajosos e fiéis à Lei” (1Mc 2,42). Destes ch’assidim, os piedosos, nasceram os fariseus. Grupo fiel à Lei, sem objetivos políticos, como Israel deveria viver. Formavam comunidades estáveis, observantes escrupulosos das prescrições da pureza ritual e do dízimo. O jejum e demais orações eram exercícios piedosos pela salvação de Israel.

Um exemplo de oração proferida por um fariseu e que mostra seu entendimento em relação aos demais: “Agradeço-te, Senhor, meu Deus, porque me fizeste partícipe daqueles que se sentam na casa do ensino e não daqueles que se sentam nas esquinas das ruas; porque eu saio cedo, e eles saem cedo: eu saio cedo para encontrar-me com tuas palavras da Lei, e eles saem cedo motivados por coisas vãs” (Talmude Babil., Berakot 28,b).

Sua influência era grande devido aos escribas que dirigiam as comunidades farisaicas, estudavam a Lei de Moisés e discutiam sua interpretação. Por suas atitudes exemplares de fidelidade à Lei, desfrutavam de grande prestígio.

Afastavam-se de quem não conhecia a Lei. Sobretudo dos publicanos e pecadores. Os publicanos prestavam serviço ao poder dominante. Os pecadores eram aqueles que, por profissão, entravam em conflito com a Lei.

Os fariseus dedicavam-se a seguir a Lei de Deus, considerando-se a comunidade do autêntico Israel. Consideravam a “tradição dos antigos” (Mc 7,3), as prescrições orais, como testemunho da vontade divina idêntico à Escritura.

Desenvolveram a expectativa da ressurreição dos mortos, diferenciando-se dos saduceus. Também aguardavam a vinda do Messias para reunir as tribos dispersas de Israel.

As infrações e culpas podiam ser compensadas com as obras da Lei a fim de serem declarados justos por Deus. Os fariseus davam esmolas aos pobres (Mt 6,2) e procuravam agir na oração e na ação conforme a vontade de Deus para agradar-lhe.

A pregação e as ações de Jesus de Nazaré encontraram firme rejeição dos fariseus. Em alguns aspectos Jesus se aproximava do entendimento deles, como por exemplo, a ressurreição dos mortos, a penitência, a conversão. Mas não podia manter comunhão com os publicanos e pecadores (Mc 2,15), infringir o sábado (Mc 2, 23ss). Jesus acusa os fariseus de serem hipócritas por considerarem o cumprimento exterior da Lei e não conhecerem a pureza do coração (Lc 11,39-43).

No decurso da atuação pública de Jesus houve frequentes conflitos com os fariseus sobre o modo de entender as palavras da Lei e sua obrigatoriedade. Foi o motivo forte para condenar Jesus como infrator.

Os fariseus não conseguiram conter a revolta do povo contra a dominação romana e impedir o desastre da destruição de Jerusalém e do Templo. Embora vários fariseus tenham morrido na guerra, vários outros sobreviveram. Conseguiram influenciar o caráter espiritual das sinagogas após 70 d.C., levando sua própria doutrina ao reconhecimento geral.

O farisaísmo foi o único movimento religioso que teve profundidade bastante para resistir à catástrofe de 70; é dele que em Jâmnia, na costa mediterrânea, renascerá o judaísmo.

  1. Os zelotas

Com a deposição do rei judeu, Arquelau, no ano 06 d.C. e subida ao poder por parte dos romanos, houve um censo e consequente aumento dos impostos. Essa medida provocou forte resistência em alguns círculos judaicos, particularmente entre alguns fariseus. O grupo que se rebelou contra a dominação romana pela obediência à Lei denominou-se zelotas, os zelosos. No entendimento desse grupo quem reconheceu o imperador como seu senhor e lhe pagou impostos, infringiu o primeiro mandamento que prescreve honrar somente a Deus.

Os zelotas recusavam submeter-se ao domínio do imperador romano e a chamá-lo de Kyrios. À diferença dos fariseus, não quiseram esperar a salvação messiânica: determinavam o curso da história pelo seu próprio agir. Seu fundador, Judas, o Galileu, atraiu o povo atrás de si (At 5,37) nos inícios do primeiro século d.C.

Como não podiam com o militarismo romano, se esconderam nas encostas das montanhas judaicas, em regiões de difícil acesso, de onde podiam atacar as forças de ocupação. Aos olhos dos romanos, os zelotas eram bandidos contra os quais se procurava agir com rigor. Atiçavam inimizade contra os pagãos e incentivavam constantes sublevações. Foram força motriz da guerra judaica, tendo um fim funesto.

Enquanto os saduceus e seus amigos asmoneus traíram a causa religiosa dos Macabeus, fazendo aliança com os piores inimigos da sua fé, os zelotas, ao contrário, são os campeões da ortodoxia e do integrismo. Os saduceus vivem na riqueza aristocrata de Jerusalém, na Judéia. Os zelotas são pobres que se ocultam nas grutas e montanhas da Galiléia.

Segundo Lc 6,15 e At 1,13, havia entre os discípulos de Jesus, um antigo partidário dos zelotas, Simão, o Zelota. A obra e a pregação de Jesus, no entanto, distinguiam-se claramente das pretensões de um messsianismo político. O reino de Deus não depende do concurso da atividade humana, mas apenas da ação de Deus (Mc 4,26-29). Quando perguntado se era correto pagar imposto a César, Jesus respondeu como os zelotas, mas disse que se devia dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus (Mc 12,17).

  1. Os essênios

O Novo Testamento não menciona esse grupo. Seu nome deriva provavelmente do aramaico ch’asajja = os piedosos. Os judeus fiéis à Lei, protagonistas da revolta macabaica, denominaram-se ch’assidim porque eram os piedosos “apegados à Lei” (1Mc 2,42). Os essênios, porém, nasceram do mesmo círculo que os fariseus, mas se distinguiam desses últimos pela obediência mais rígida à Lei. Viviam principalmente nas aldeias da Palestina. Criavam comunidades estáveis para se protegerem de qualquer impureza. Seus membros permanecem celibatários não por inclinação ascética, mas para evitar o contato com a mulher e não se manchar. Todavia havia grupos de essênios casados com a finalidade exclusiva da procriação.

A comunidade essênica vivia sob a direção de chefes cujas instruções todos tinham de seguir. Quem quisesse ser membro da comunidade, recebia primeiro uma pequena enxada, um avental e um hábito branco. Essa ferramenta e a indumentária garantiam a pureza cultual. A enxada servia para enterrar os excrementos. O avental devia cobrir as partes pudendas para não ofenderem o esplendor da luz de Deus, isto é, o sol. E o hábito branco era envergado como a veste dos puros.

Ao postular admissão na comunidade, o noviço tinha de passar um ano em estágio probatório. Depois era admitido às abluções. No final de três anos tornava-se membro pleno e podia participar das refeições comunitárias. Os bens pessoais tornavam-se propriedade da comunidade. O dia começava com a oração comunitária. Depois se trabalhava no campo. Ao meio-dia abluíam-se e tomavam a refeição juntos. À tarde trabalhava-se de novo e, à noitinha, novamente colocavam-se à mesa. Durante as refeições guardava-se silêncio.

Quanto à doutrina, segundo Flávio Josefo, os essênios acreditavam na imortalidade da alma e na predestinação do ser humano. O corpo é o cárcere da alma. Após a morte, as almas boas subirão para o céu; as más serão levadas ao lugar de castigo. Depende da escolha de Deus que o caminho do homem o leve à salvação ou à condenação. A carne perece; o espírito dado por Deus, abre caminho à vida. A fé e a vida dos essênios são guiadas por uma intensa vontade de ser a comunidade pura de Israel.

Apesar de aparecerem pouco em público, seu estilo de vida era exemplar. Era um grupo fascinante para os judeus que querem se dedicar totalmente a Deus. Corajosos e intrépidos, durante a revolta contra os romanos, permaneceram fiéis à Lei de Israel até o fim. Foram torturados, queimados, furados, forçados a blasfemar contra o legislador e a comer alimentos proibidos. Mas permaneceram firmes. Não dirigiam uma súplica aos carrascos nem derramaram uma lágrima. Nos terrores da Guerra Judaica, também os essênios desapareceram.

  1. Qumrã

Em 1947 alguns beduínos encontraram no deserto de Judá uma caverna que abrigava rolos em várias talhas grandes. Intensas pesquisas nos anos seguintes em cavernas ao redor do Mar Morto permitiram encontrar onze cavernas com textos e fragmentos.

A cuidadosa embalagem dos rolos da caverna 01, por exemplo, demonstra que o esconderijo foi planejado. E a quantidade de textos e fragmentos de textos da caverna 04 permite supor a existência de uma biblioteca da comunidade naquele lugar. As moedas antigas encontradas com datas da época de João Hircano (134-104 a.C.) ajudam a determinar o tempo da fundação.

A colônia foi ocupada pelos romanos em 68 d.C. por Vespasiano. A aproximação dos romanos possivelmente levou os membros da comunidade a esconder em talhas os grandes rolos descobertos na caverna 01. Documentos arqueológicos mostram que a comunidade de Qumrã existiu entre a metade do segundo século a.C. a 68 d.C. Isso confirma que havia uma comunidade judaica, com Qumrã como centro de sua vida comunitária, no tempo de Jesus e do cristianismo primitivo.

Entre os numerosos textos bíblicos de Qumrã encontram-se fragmentos de todos os livros do cânon veterotestamentário, exceto o livro de Ester. Mais importantes, porém, são os textos não-bíblicos descobertos nas cavernas de Qumrã que nos deram a conhecer uma comunidade judaica que desenvolvia uma doutrina de vida correta, estruturada na doutrina e prática da Lei.

A origem da comunidade de Qumrã remonta a círculos sacerdotais de Jerusalém que enfatizam a estrita observância da Lei. Há repetidas menções ao Mestre da Justiça, sacerdote fundador da comunidade, dotado por Deus do dom do conhecimento e da interpretação correta das escrituras. Ao redor reunia-se um grupo de sacerdotes, levitas e leigos interessados na conservação da pureza e na observância daquele calendário de festas. Ao contrário do grupo sacerdotal de Jerusalém que observava o ano lunar, Qumrã observa o ano solar: 12 meses de 30 dias e um dia a mais a cada trimestre.

A comunidade vivia em uma rígida ordem a fim de tornar-se capacitada para o combate contra os filhos das trevas. À frente estavam os sacerdotes, seguidos pelos levitas e pela multidão dos homens da aliança. Por fim estavam aqueles que tinham solicitado adesão à comunidade.

Olhando bem de perto os costumes e a fé da comunidade de Qumrã, há margem bastante provável de se tratar da comunidade dos essênios. O nome “essênios” não se encontra nos textos de Qumrã. É possível que tenham recebido essa designação de pessoas de fora do grupo.

O exemplo de piedade da comunidade de Qumrã irradiou-se pelo judaísmo contemporâneo atingindo o próprio cristianismo. João Batista prega o batismo de conversão. Ablução para o perdão dos pecados. À diferença de Qumrã, os discípulos de João Batista não fazem abluções permanentes, pois esperam aquele que será mais forte e que dará um único batismo.

Jesus chama a uma conversão distinta de Qumrã: fé e conversão tornam-se necessárias pela aproximação do Reino de Deus e pela relação imediata do homem com a vontade exigente de Deus e com a misericórdia gratuita (Mc 1,15; Lc 11,32 ss). Jesus não ensina uma estruturação casuística da Lei. Não existe, para ele, uma separação entre filhos da luz e filhos das trevas. Ele se dedica a todos. Enquanto Qumrã propõe amar os filhos da luz e odiar os filhos das trevas, Jesus manda amar os inimigos (Mt 5,43ss). À diferença de Qumrã, a comunidade cristã não se afastou do mundo. Pelo contrário, começou muito cedo a proclamar o Evangelho ao mundo.

Se há alguma proximidade entre Paulo e Qumrã em alguns aspectos, eles se distanciam nas questões essenciais da fé e da salvação.  Segundo Qumrã, a justificação pela graça obriga o homem a observar a Lei inteira, vinculando-se o “sola gratia” a um “sola lege”, visto que sem Lei não existe relação com Deus nem salvação. Paulo, ao contrário, vê na Cruz de Cristo o fim da Lei (Rm 10,4). A justiça de Deus só pode ser recebida na fé, aceitando-se a ação de Deus, ligando-se, portanto, o “sola gratia” ao “sola fide”.

Também no Evangelho de João encontram-se traços fortes de Qumrã: luz e trevas, verdade e mentira. Mas para João a luz do mundo e a verdade é o próprio Cristo. (Síntese a partir da obra de LORSE, Eduard. Contexto e ambiente do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2000.  Páginas 66 a 106).

A título de conclusão

O exercício de percorrer os principais grupos e comunidades da Palestina do tempo de Jesus ajuda a mergulhar e compreender um pouco mais os ritos e ações de Jesus e das primeiras comunidades cristãs conforme relatam o Novo Testamento. Ajuda também a perceber melhor as fontes, as raízes, o ninho em que o cristianismo foi gerado. Os conflitos, as posturas, os ritos, as práticas dos primeiros cristãos estão profundamente marcados pela cultura de então, sobretudo pelos grupos religiosos que buscavam, à sua maneira, observar a Lei de Deus.

Uma comunidade que mais chama a atenção é a dos Essênios/Qumrã. Esse jeito de viverem a fé, de se organizarem comunitariamente, de celebrarem, está presente na maneira de as comunidades de vida religiosa consagrada se organizarem. Os ritos, a disciplina, o modo de lidar com os bens, o celibato, a hierarquia, trabalho e oração etc. É possível notar como as Ordens religiosas desde os Padres do Deserto com a vida eremítica, passando pela vida cenobítica com São Bento e outros, chegando aos mendicantes, São Francisco e São Domingos carregaram essa marca.

Certamente muitos elementos precisam mesmo ser resguardados. Ajudam a conservar a fé, alimentam a esperança e fortalecem a caridade. Mas não se pode perder de vista o espírito do evangelho.

Há um espiritualismo e ritualismo voltando a fincar raízes em nossas comunidades eclesiais que cheiram à essenismo. Uma espiritualidade ritualista, doutrinal, destituída da mística evangélica do amor preferencial pelos pobres. O ultimo desejo de Jesus, seu testamento foi o mandamento do amor: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. No juízo final o ser humano será examinado pelo amor dispensado aos pequeninos: “Tudo o que fizerdes a um desses meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizestes”. Em outras palavras, uma vida vivida em função da doutrina e do rito corre o risco de afastar-se do evangelho.

É mais do que oportuno recordar o ensinamento do Papa Emérito, Bento XVI: "No início do ser cristão não há uma decisão ética, ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo" (Deus caritas est, 01).

Bibliografia:

LORSE, Eduard. Contexto e ambiente do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2000. (Fiz uma síntese das páginas 66 a 106).

SAULNIER, Chistiane e ROLLAND, Bernard. A Palestina no Tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1983. Cadernos Bíblicos, 27.

Bento XVI, Carta Encíclica Deus Caritas Est.

*Trabalho apresentado por mim no Curso de Estudos Bíblicos na Faculdade Católica de Fortaleza.

Vida cristã: um sacrifício de louvor

aureliano, 05.03.21

3º Domingo da Quaresma [07 de março de 2021]

 [Jo 2,13-25]

Quaresma é tempo de preparação para a Páscoa. Consequentemente, é tempo de se aprofundar o batismo, mergulho no Mistério Pascal: “Eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” significa “Eu te mergulho...”. Por isso os textos são mais mistagógico-catequéticos, ou seja, tem a intenção de introduzir o cristão mais profundamente no mistério do amor de Deus revelado em Jesus Cristo.

O evangelho deste domingo tem como centro a automanifestação de Jesus como o novo Templo de Deus: “Destruí este Templo, e em três dias eu o levantarei”.

A Páscoa dos judeus era a celebração da libertação da escravidão do Egito. E o Templo de Jerusalém tornou-se o lugar em que os judeus e prosélitos se reuniam uma vez por ano para oferecer sacrifícios de expiação e ação de graças. Era uma forma de manifestar a Deus a gratidão. Com o gesto profético da expulsão dos vendilhões do Templo, Jesus introduz um novo modo de se relacionar com Deus: agora o Templo é o próprio Cristo. Nele se manifesta a glória de Deus: “Ele manifestou a sua glória e seus discípulos creram nele” (Jo 2, 11).

A libertação que o povo vinha celebrar em Jerusalém perdera o sentido, uma vez que novamente experimentavam a escravidão: os anciãos do povo e os sumos sacerdotes eram os grandes latifundiários que residiam em Jerusalém, engordavam os bois e carneiros para vender aos peregrinos por ocasião da festa da Páscoa. Alugavam a preços exorbitantes os espaços das barracas de modo que se fazia uma exploração escravista aos peregrinos, mormente aos mais pobres. Por isso Jesus se dirigiu especificamente aos vendedores de pombas: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”. É que os pobres, pelo baixo poder aquisitivo, ofereciam pombas, como o fizeram José e Maria (cf. Lc 2,24). A ira de Jesus se coloca mais fortemente contra os exploradores dos pobres.

Estes parecem ser os dois elementos centrais do evangelho de hoje: Jesus como o novo Templo e a expulsão dos vendilhões do templo de Jerusalém. Vamos refletir alguns elementos de nossa vida de fé cristã:

  1. É preciso que Jesus Cristo ocupe verdadeiramente o centro de nossa vida de fé e de nossas decisões. Os gestos e as palavras de Jesus devem ser determinantes e iluminadores em nossas opções cotidianas. Não bastam um culto externo, uma celebração, uma oferta, uma vela acesa, uma bíblia debaixo do braço, um grito de louvor no templo, uma proclamação do nome de Jesus, um pedido de milagre. Não bastam os “sacrifícios de touros e carneiros”. O que conta para Deus é uma atitude de fidelidade cotidiana à sua Aliança (cf. a primeira leitura de hoje: Êx 20,1-17). O sacrificium laudis (sacrifício de louvor) é nossa própria vida vivida em conformidade com os valores proclamados no Evangelho. “Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi: em romper os grilhões da iniquidade, em soltar as ataduras do jugo e pôr em liberdade os oprimidos e desapegar todo jugo? Não consiste em repartires o pão com o faminto, em recolher em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aquele que vês nu e em não te esconderes daquele que é da tua carne? (...) Se tu te privares para o faminto, e se tu saciares o oprimido, a tua luz brilhará nas trevas, e a escuridão será para ti como a claridade do meio-dia” (Is 58,6-7.10). Junte-se a isso a coragem de enfrentar oposições e desafios por causa de Cristo e do seu evangelho. “Os judeus pedem sinais milagrosos, os gregos procuram sabedoria; nós, porém pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e insensatez para os pagãos” (1Cor 1, 22-23). Vamos assumir com mais vigor nossa fé que se concretiza na defesa dos mais fracos e indefesos.
  2. Este relato do evangelho nos recorda o cuidado que devemos ter para não transformar nossas festas religiosas em campanhas comerciais: fazer do templo – lugar de intimidade com Deus, de oração, de reunião da comunidade de fé –, um espaço de exploração e arrecadação de dinheiro. Ocorre por vezes que nossos pobres nem podem participar das festividades dos padroeiros porque tudo ali é vendido, e muitas vezes a preços muito distantes do poder aquisitivo da pessoa. Vejam, por exemplo, um pai de família que leva os seus cinco filhos para participar da festa do padroeiro. Depois da missa e procissão, nas barraquinhas estão vendendo os quitutes. Imagine o pobre do pai ou da mãe que não tem dinheiro suficiente para comprar aquele feijão tropeiro, aquele caldo, aquele baião-de-dois para todos os filhos. Pronto! Precisam ir embora! Não podem ficar na festa! E isto sem falar naquelas “campanhas” financeiras que alguns costumam fazer, uma aberração ao evangelho: “Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”.
  3. E, por falar em barracas, pior ainda é quando ali se vende bebida alcoólica com o seguinte argumento: “Se não tiver cerveja, as pessoas não vêm”. A bebida alcoólica funciona como o atrativo para a festa religiosa! Que argumento fajuto! Se o indivíduo vai à festa religiosa por causa da cerveja, onde está seu comprometimento com a comunidade? Então é melhor que vá para o boteco. Lá ele terá mais conforto, certamente! Comunidade é lugar de celebração da ação de Deus em nossa vida. Lugar de evangelização, de confraternização saudável. Lugar de espaço para todos: crianças, idosos, enfermos, família. Lugar em que se experimenta o Reino de Deus na partilha, na acolhida, na fraternidade, onde todos se sintam em casa. Lugar de renovação da Aliança do amor de Deus por nós. Fazer das festividades um espaço de arrecadação financeira é inverter o sentido das celebrações. Os recursos para sobrevivência da comunidade devem provir de um trabalho de conscientização sobre o dízimo. O cristão comprometido e consciente ajuda a sustentar a comunidade nas suas dimensões religiosa, missionária e social.
  4. É interessante notar, a propósito da Eucaristia e das coletas que se fazem, o testemunho de São Justino, Mártir, lá nos idos do século II, bem no início da Igreja: “No dia que se chama do Sol [domingo] celebra-se uma reunião dos que moram nas cidades e nos campos e ali se lêem, quanto o tempo permite, as Memórias dos Apóstolos ou os escritos dos profetas. Assim que o leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos tais belos exemplos. Erguemo-nos, então, e elevamos em conjunto as nossas preces, após as quais se oferecem pão, vinho e água, como já dissemos. O presidente também, na medida de sua capacidade, faz elevar a Deus suas preces e ações de graças, respondendo todo o povo “Amém”. Segue-se a distribuição a cada um, dos alimentos consagrados pela ação de graças, e seu envio aos doentes, por meio dos diáconos. Os que têm, e querem, dão o que lhes parece, conforme sua livre determinação, sendo a coleta entregue ao presidente, que assim auxilia os órfãos e viúvas, os enfermos, os pobres, os encarcerados, os forasteiros, constituindo-se, numa palavra, o provedor de quantos se acham em necessidade. (Grifo nosso). Vê-se, pois, que, desde os inícios, havia a consciência de se fazer coleta em favor dos pobres.
  5. Para terminar, é importante nos reportarmos à Campanha da Fraternidade deste ano. Pode ajudar a repensar nossa relação com Deus. Um culto religioso realizado apenas na formalidade ritual não chega ao Coração do Pai. Há que se ter uma práxis cristã, ou seja, uma atitude de vida marcada pela fé que dizemos professar. “A afirmação ‘Cristo é a nossa paz’ confessa que em Cristo não há lugar para a violência e o racismo, para o ódio e a discriminação. A palavra paz na língua grega é eirene; em hebraico, shalom e no aramaico sholom. Nos três  idiomas, a paz significa tanto superação das violências e das discriminações, quanto a plenitude de vida, consequência de relações equânimes entre o ser humano e a natureza, o ser humano e seus semelhantes e o ser humano e Deus. Isso significa que Cristo é aquele que garante as relações de equidade e acolhida entre todos os povos. A paz será fruto da vida em plenitude garantida para todos os povos” (Texto-base, n. 117).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN