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aurelius

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O que dá sentido à nossa vida?

aureliano, 27.11.21

1º Domingo do Advento [28 de novembro de 2021]

[Lc 21,25-28.34-36]

Iniciamos o Ano Litúrgico da Igreja. Neste ano vamos caminhar com Lucas Evangelista. Esse evangelho se caracteriza pela alegria, pela presença das mulheres, pela revelação do rosto misericordioso do Pai, pela presença dos pobres. É o evangelho que mostra um Jesus orante: muitas vezes ele sobe a montanha para orar ao Pai. Os relatos da infância de Jesus lhe são também característicos. Lucas descreve os passos de Jesus perfazendo um longo Caminho cujo desfecho será Jerusalém. Ali ele entregará sua vida pela humanidade. E dali também enviará os discípulos em missão até os confins da terra.

O Ano Litúrgico tem início com o Advento. Esse tempo marca a celebração com uma liturgia que quer despertar o discípulo de Jesus para a espera confiante. É o tempo em que celebramos a vinda de Cristo na História e na Glória. Ele veio a primeira vez para nos libertar do pecado e da morte. Virá uma segunda vez para a manifestação definitiva do Reino de Deus: “Revestido da nossa fragilidade, ele veio a primeira vez para realizar seu eterno plano de amor e abrir-nos o caminho da salvação. Revestido de sua glória, ele virá uma segunda vez para conceder-nos em plenitude os bens prometidos que hoje, vigilantes, esperamos” (Prefácio da Missa).

O relato de hoje distingue dois momentos: o primeiro (Lc 21,25-28) fala do fim. O segundo (Lc 21,34-36) fala das atitudes que devemos cultivar em função do fim. É um relato de gênero literário apocalíptico. É bom termos diante dos olhos que esse modo de escrever do autor sagrado não tem como objetivo amedrontar, causar pânico, deixar o leitor em polvorosa. Apocalipse significa revelação. Como se algo estivesse oculto aos nossos olhos por causa de uma espécie de véu que nos cobre e impede de enxergar, devido às perseguições e dificuldades que levam ao desânimo. Esse véu é tirado e a gente começa a enxergar as coisas com um olhar de Deus. A revelação nos faz olhar para o mundo, para as pessoas numa perspectiva escatológica, de fim, das últimas coisas que irão acontecer conosco pela Palavra definitiva do Pai. Não se trata do fim de tudo, entendido como redução da criação ao nada. Mas no sentido de finalidade da vida: Deus nos criou com uma Finalidade, para um Fim: uma teleologia. E ele quer que nós vivamos de acordo com esse Fim. É a vida eterna, que já começa aqui: “A vida eterna é que eles te conheçam a ti, o único verdadeiro Deus, e àquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3).

Então, sem nos prendermos à ideia de catástrofes, de alarmismos, que só faz mal, vamos pensar um pouco em nossa vida, nesse Advento. Como estamos vivendo em vista do fim para o qual o Pai nos criou?

Prestemos um pouco mais de atenção nessas palavras de Jesus: “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida”. Atentemos para o que torna o coração insensível: a gula, a embriaguez e as preocupações da vida! O nosso mundo é dominado por esse mal. A grande preocupação que invade nosso coração, geralmente, é se empanturrar de festa e comida, de gozar a vida (embriaguez/orgia) e ganhar dinheiro e poder a todo custo. Ainda que as vidas sejam sacrificadas (idolatria)!

Quem é que está preocupado com a defesa dos direitos dos pobres e oprimidos? Quem reserva um tempo precioso para fazer uma visita a um doente ou idoso? A que nos estimulam a televisão, os filmes e as redes sociais? Quais são as principais preocupações e ações de nossos governantes e empresários? Investimos nossas forças, energias em vista de que mesmo? Qual o objetivo principal de nossa vida?

Papa Francisco, em sua homilia no dia 27/11/2019, a propósito de Apocalipse 14,14-19, ensinava a importância de pensarmos no fim. "Como será o meu fim? Como eu gostaria que o Senhor me encontrasse quando me chamar? É sábio pensar no fim, nos ajuda a seguir em frente, a fazer um exame de consciência sobre que coisas eu deveria corrigir e quais levar em frente porque são boas".

Ainda mais. “Tomai cuidado... aquele dia cairá como uma armadilha”. Jesus nos alerta à contínua vigilância. Esse “estar de pé” é garantia de um novo jeito de ser e de viver. É a atitude do guarda noturno que está sempre de atalaia para não ser surpreendido. Isso nos possibilita não sermos enganados nem nos acomodarmos.

“Orai a todo momento, a fim de terdes força”. Essa palavra de Jesus é um convite a repensar nossa fragilidade e dependência da força do Alto. A intimidade com o Senhor é que nos garante a salvação diante das forças do mal. O Pai é o nosso garante. Sem Ele o mal nos domina e nos devora.

A propósito de uma vivida “em preparação”, deixo aqui mais uma palavra do Papa Francisco na mesma ocasião da citação anterior: “Nos fará bem nesta semana pensar no fim. Se o Senhor me chamasse hoje, o que eu faria? O que eu diria? Que trigo eu mostraria a ele? O pensamento do fim nos ajuda a seguir em frente; não é um pensamento estático: é um pensamento que avança porque é levado em frente pela virtude, pela esperança. Sim, haverá um fim, mas esse fim será um encontro: um encontro com o Senhor. É verdade, será uma prestação de contas daquilo que fiz, mas também será um encontro de misericórdia, de alegria, de felicidade. Pensar no fim, no final da criação, no fim da própria vida é sabedoria; os sábios fazem isso”.

Gostaria ainda de lembrar a palavra de Paulo para esse início do Advento: “Que assim ele confirme os vossos corações numa santidade sem defeito aos olhos de Deus, nosso Pai, no dia da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, com todos os seus santos. (...) Fazei progressos ainda maiores! Conheceis, de fato, as instruções que temos dado em nome do Senhor Jesus” (1Ts3, 13. 4,1-2). Nossa vocação é para a santidade. Esta consiste em nos colocarmos diante de Deus em total dependência dEle e num esforço contínuo em viver as “instruções” que Jesus nos deixou.

Por vezes somos “instruídos” na família, na catequese inicial e depois nos esquecemos de tudo o que aprendemos. Tomamos um caminho que entra na contramão de tudo o que Jesus, a Igreja e a família nos ensinaram. Confirma isso o fato de sermos, no Brasil, uma população com cerca de 90% de batizados, porém somos campeões mundiais na violência e na corrupção. Que esquizofrenia é essa? Isso nos leva a concluir que ser batizado não é o mesmo que ser cristão. O batismo é um rito que infunde em nosso coração a Graça de Deus, a fé e nos introduz na comunidade cristã. Porém o processo de amadurecimento desta fé se dá pela vida afora. Vamos nos fazendo cristãos na medida que incorporamos o ensinamento de Jesus em nossa vida. O grande desejo de Jesus é que nos tornemos seus discípulos. Que façamos processo de conversão cotidiana. Que construamos um mundo de fraternidade e de paz para o bem de toda a humanidade. É o que enche nossa vida de sentido, da alegria que nada poderá tirar.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Meu Reino é da Verdade e da Paz

aureliano, 19.11.21

Cristo Rei do Universo [21 de novembro de 2021]

[Jo 18,33-37]

O contexto do relato evangélico deste domingo é o da Paixão. Jesus está diante de Pilatos, representante político do Imperador romano. Um reino deste mundo que se confronta com um Reino que “não é deste mundo”.

É importante distinguir e entender a expressão de Jesus: “O meu reino não é deste mundo”. Pode dar a impressão de que Jesus está contrapondo o mundo criado por Deus, este lugar maravilhoso onde moramos, com um reino que virá depois, distante, para além da morte.

Na verdade o Reino de Deus já está aqui, neste mundo. ‘Jam et nondum’ (já e ainda não). Jesus já instaurou o Reino que o Pai lhe confiou com sua vida, morte e ressurreição. Quando vemos pessoas que se doam, que empenham suas vidas pela fraternidade e pela justiça como Ir. Doroth, como Dom Casaldáliga, como Santo Oscar Romero, como Ir. Dulce dos Pobres, como Pe. Júlio Maria, como Dom Luciano e Dom Helder Câmara e tantas outras, notamos aí a manifestação do Reino de Deus. A defesa da vida plena para todos!

Por outro lado, percebemos que o Reino ainda não se manifesta quando o pecado prevalece nas situações como a do mensalão, do petrolão, do fascismo, do autoritarismo, do desrespeito às minorías, do preconceito, das propinas sem conta e todas as situações de oportunismos agregadas a fatos como estes. Quando os negros são discriminados e as comunidades quilombolas ameaçadas; quando os índios são dizimados e suas terras invadidas; quando a Igreja pactua com os poderosos e influentes perversos da sociedade; quando se mente, se engana, se mata, se rouba em nome de Deus; quando a fome dizima pessoas, comunidades e famílias. Quando a morte ceifa a vida de tantos jovens envolvidos no tráfico de drogas e de seres humanos; quando a violência campeia em nossas ruas, praças e famílias.

O Reino de Deus se manisfesta na vivência da verdade proclamada por Jesus: “Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”. Essa afirmação de Jesus define seu caminho profético: quer sempre viver a verdade, ainda que isso lhe custe a vida. Qual verdade? A verdade de um Deus que quer um mundo mais humano para todos.

Há um versículo de João muito proclamado no meio neopentecostal e que considero muito importante, mas muito mal interpretado no meu modo de ver: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). A dificuldade está em que se esquece do versículo 31: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos”. Ora, para ser livre pela verdade do evangelho é preciso “permanecer” e “ser discípulo”. Há um pessoalzinho que vive repetindo de boca cheia: “Conhecereis a verdade…”, mas cuja vida está muito longe do evangelho e, consquentemente, do discipulado. Costumam ser muito mais amigos do dinheiro e do poder do que de Jesus. Não sei que liberdade é essa! Comportam-se como escravos do poder e do dinheiro!

Quando Jesus dicorre sobre a verdade ele fala com autoridade. Sem autoritarismos: ao contrário do que se experimenta nos meios em que se visam ao poder, ao sucesso e à fama. Sem dogmatismos, ao contrario do que acontece em muitas de nossas comunidades religiosas. Não impõe a verdade, pois não se considera seu  guardião, mas testemunha. Ou seja, sua vida manifesta a verdade de Deus. Ele é a verdade: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Jesus converte-se assim em “voz dos sem voz, e voz contra os que têm demasiada voz” (Jon Sobrino).

Esconder a verdade é o maior pressuposto de quem vive em função dos poderes financeiros e políticos que dominam o mundo. A verdade não pode aparecer. Mentem de cara limpa. Matam, destroem, escravizam para que a verdade não se manifeste. Aqui, sim, cabe não nos esquecermos das palavras do próprio Jesus: “A verdade vos libertará” (Jo 8,32). A mentira aprisiona, escraviza. Somente uma vida vivida na verdade torna livre o ser humano.

Queremos, pois, fazer um caminho de verdade, de liberdade, de reconhecimento do Reino de Deus que se manifesta nas nossas atitudes diárias. Isso implica colocar-nos “diante de Pilatos”, ou seja, faz-nos confrontrar com um poder de mentira e de morte, com um reino que visa à dominação deste mundo. Em outras palavras, não ser deste mundo, ser da verdade nos configura a Cristo crucificado e ressuscitado.

Para refletir: Permito que Jesus exerça sua realeza na minha vida, na vida de minha comunidade, através da abertura à sua Palavra, à sua vontade, ao seu perdão, ao seu amor, e pela solidariedade com tantos que sofrem e procuram um sentido para a sua vida?

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*Dia dos cristãos leigos e leigas

2018 foi consagrado ao Laicato Cristão. Ao propor esse tema a CNBB  teve a intenção de despertar maior consciência do serviço e ministério dos cristãos leigos e leigas na Igreja e na sociedade. Vamos conferir:

  • Estimular a presença e a atuação dos cristãos leigos e leigas, “verdadeiros sujeitos eclesiais” (DAp. n. 497), como “sal, luz e fermento” na Igreja e na sociedade.
  • Criar programas de formação de ministérios leigos de coordenação e animação de comunidades, pastorais e movimentos.
  • Fortalecer a articulação das redes de comunidades (Doc. 100 da CNBB).
  • Promover mecanismos de participação popular para o fortalecimento do controle social e da gestão participativa (Conselhos de Direitos, Grupos de Acompanhamento ao Legislativo, Iniciativas Populares, Audiências, Referendos, Plebiscitos, entre outros).

Rezemos com a Igreja: Nós vos pedimos, ó Pai, que os batizados atuem como sal da terra e luz do mundo: na família, no trabalho, na política, e na economia, nas ciências e nas artes, na educação, na cultura e nos meios de comunicação; na cidade, no campo e em todo o planeta, nossa “casa comum”. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Importa viver preparado

aureliano, 13.11.21

33º Domingo do Tempo Comum [14 de novembro 2021]

   [Mc 13,24-32]

Antes de comentarmos a mensagem do evangelho de hoje é preciso entender o contexto e gênero literário do relato. O evangelho de Marcos foi escrito por volta dos anos 70. Os judeus e os cristãos judaizantes estavam vivendo a tragédia da destruição de Jerusalém pelos romanos. Então Marcos escreve o evangelho, o primeiro a ser escrito, mencionando, numa linguagem própria, as tribulações por que passam os cristãos. Esta linguagem é o gênero literário apocalíptico. Uma forma própria de falar da presença de Deus em meio aos sofrimentos e tribulações. Não fala de tragédia, mas da presença salvadora de Deus em meio aos acontecimentos trágicos. Uma Boa Nova nos momentos difíceis da vida: “Então verão o Filho do Homem vindo...” “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão”.

Outro elemento que precisa ser levado em conta nesta celebração é o de estarmos no final do Ano Litúrgico. A Igreja tem o costume de colocar textos que falam do fim, ou seja, textos escatológicos, nessa ocasião do ano, para ajudar os fiéis cristãos a olhar, com mais acuidade a própria vida, fazendo um exame de consciência. O fim do ano litúrgico nos lembra o fim/final da nossa existência terrena e o fim/finalidade de nossa vida.

Esclarecemos que o relato de hoje não quer dizer que o fim está próximo, como se tivesse data marcada, como algumas seitas e religiões pretendem propor. De jeito nenhum. Ninguém sabe quando será. O que importa é vigiar, viver de tal modo que nossa vida seja uma manifestação do juízo de Deus. Explico-me: nosso modo de viver deve denunciar o mal no mundo e propor um jeito novo de viver, uma nova Criação. Na verdade não se deve insistir em ‘fim de mundo’, mas na necessidade de criarmos um mundo novo ao nosso redor, onde as pessoas tenham paz, alegria; saibam se respeitar e conviver; tenham um espírito solidário; saibam partilhar o pão com generosidade e alegria.

A parábola da figueira quer nos ajudar a abrir os olhos da fé para enxergarmos mais longe: os sinais dos tempos. Deus continua falando nos acontecimentos à nossa volta. Ninguém precisa correr atrás de ‘revelação’ em sonhos, em momentos orantes, como quando alguém diz de repente: “Tive uma ‘revelação’: o Senhor me mostrou que você está com um encosto (ou alguma doença ou como queiram) na sua vida”. Isso é mentira, desejo de enganar, dominar e manipular os incautos. Ninguém precisa fechar os olhos para ter uma ‘revelação’. Pelo contrário, é preciso estar com os olhos cada vez mais abertos e atentos ao que acontece: “Aprendei, pois, da figueira...”. Então assumiremos a postura de cristãos que denunciam o mal e anunciam o bem.

Uma vez que a liturgia de hoje nos move a trabalhar na construção de “um novo céu e uma nova terra”, uma recriação do mundo, seria bom pensarmos um pouco no modo como lidamos com o meio ambiente, como exploramos os recursos da natureza. Os avanços da ciência e da técnica foram muito benéficos. Se por um lado trouxeram progresso, bem-estar, facilidades, conforto, por outro, desencadearam uma corrida frenética pelo lucro desmedido que destrói e arrasa a vida no planeta (p. ex.: o rompimento da barragem de dejetos de minério em Bento Rodrigues, Mariana/MG e em Brumadinho. Ou mesmo a proposta dos executivos liberais eleitos em eliminar as secretarias e ministérios que cuidam do meio ambiente). O que estamos fazendo, concretamente, para defender a vida, o meio ambiente, a saúde pública, os rios e as matas, a humanidade e os animais? Que destinação damos ao nosso lixo? Como utilizamos a água? Que cuidado temos tido com o uso da energia elétrica? Não é atitude cristã diminuir o gasto somente por economia financeira. É preciso economizar por solidariedade com as pessoas e com a Criação. A crise hídrica pode nos ajudar a repensar muitos hábitos em relação ao uso da água e do meio ambiente.

O mundo não é um mero objeto de exploração humana. Nem o ser humano é algo jogado e abandonado no universo. Do ponto de vista da fé, há uma teleologia na Criação. Há uma harmonia no universo criado por Deus. O ser humano criado à imagem e semelhança do Criador, está aí para glorificar o Pai e servir aos irmãos. Um dia chegará seu fim. Um dia terá que morrer. Mas a morte é vivida como um mistério, e não como um absurdo. Ela encontra sua resposta na morte-ressurreição de Jesus, o Filho amado do Pai. Então o Filho de Deus torna-se o salvador e o protótipo de vida para o ser humano.

Retomemos os valores que contam: ainda que eu não tenha dinheiro para abastecer o meu carro, não estou isento de visitar meu irmão que sofre e precisa de mim. Ainda que eu me sinta ameaçado no meu cargo que me proporciona um bom salário, não estou dispensado de ser justo, honesto, verdadeiro. Ainda que não seja um farol, o cristão deve ser uma pequena luz, que mantém viva a esperança nesse mundo marcado pelas trevas da maldade. No dizer do autor da Carta a Diogneto (século II): “Numa palavra, o que a alma é no corpo, isso são os cristãos no mundo. A alma está em todos os membros do corpo e os cristãos em todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, não é, contudo, do corpo; também os cristãos, se habitam no mundo, não são do mundo. A alma invisível vela no corpo visível; também os cristãos sabe-se que estão neste mundo, mas a sua religião permanece invisível”.

* Dia mundial dos pobres

“Sempre tereis pobres entre vós” (Mc 14,7). Esse é o lema do 5º Dia Mundial dos Pobres proposto pelo Papa. Segundo Francisco, é “uma iniciativa de evangelização, oração e partilha”. O santo Padre quer, com essa iniciativa, incentivar “uma crescente atenção às necessidades dos últimos, dos marginalizados e dos famintos”.

Seria bom que cada fiel, cada família, cada comunidade realizasse um gesto concreto de cuidado e partilha para com os mais pobres. Há pobres de dinheiro, pobres de espírito, pobres de saúde, pobres de sentimento, pobres enlutados, pobres desamparados, pobres explorados. Pobres que sofrem o abandono, o preconceito, o desrespeito. Pobres que são xingados, humilhados, usados, desesperançados... Você conhece algum pobre? É amigo/próximo de algum? Partilha seu tempo, suas coisas, seus dons, sua vida com ele? Coloca-se à disposição para ajudá-lo nas dores dele?

A celebração da Jornada Mundial dos Pobres e a crescente onda de desemprego, o consequente aumento da miséria e da fome no mundo, dá o que pensar! Quem não tem salário, quem não tem renda fixa, quem paga aluguel ou vive outras situações de desamparo, quem não é sustentado pelos cofres públicos, quem depende do SUS está enfrentado situação muito difícil. Vamos rezar e pensar essa dura realidade dos pobres!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

A santidade se dá no cotidiano

aureliano, 06.11.21

Solenidade de Todos os Santos [07 de novembro de 2021]

[Mt 5,1-12]

Na profissão de fé que fazemos todos os domingos, confessamos: “(Creio) na comunhão dos santos”. Muitas vezes rezamos assim sem saber bem o que isso significa. A solenidade de hoje nos ajuda a entender o conteúdo dessa afirmação: cremos que todos aqueles que confessaram o Cristo e o testemunharam em suas vidas, que todos aqueles que já nos precederam na fé e que procuraram viver neste mundo a comunhão de vida com o Pai, estão juntos de Deus e juntos de nós. Em outras palavras: há um intercâmbio de dons e de orações entre aqueles que crêem no Cristo. “O termo ‘comunhão dos santos’ tem dois significados, intimamente interligados: ‘comunhão nas coisas santas (sancta)’ e ‘comunhão entre as pessoas santas (sancti)’” (Catecismo da Igreja Católica, 948).

Há pessoas que passaram por esta vida e que foram proclamadas pela Igreja como santas, dadas à comunidade como exemplo/inspiração de vida cristã e intercessoras junto a Deus. A Igreja quer afirmar também que elas estão, com certeza, na luz de Deus. Há, porém, uma infinidade de pessoas que viveram neste mundo uma vida santa, fazendo o bem, doando-se aos outros e que são anônimas: não tiveram nem têm nenhum reconhecimento, seus nomes não são lembrados. Muitas delas, às vezes, nossas vizinhas, parentes, colegas de trabalho etc. Pois bem, hoje é dia delas também: celebradas no Santo de Deus, Jesus Cristo, que se oferece em cada Eucaristia para nos santificar.

Quando Jesus proclama as Bem-aventuranças, ele está apresentando um programa de vida para aqueles que se dispõem a segui-lo. Em outro lugar ele diz que quem quiser segui-lo deve ‘tomar a cruz’, cotidianamente. Aqui ele não diz coisas muito diferentes. Viver uma vida pobre (desprendida) em favor dos pobres, promover a paz, suportar tribulação e aflição, ser sedento da justiça do reino, ser puro numa sociedade que só vê no outro uma possibilidade de “comê-lo=consumi-lo”, ser perseguido por causa da justiça, são realidades que necessitam de um permanente convívio com o Mestre para aprendermos dele, sermos fortalecidos por ele nesse caminho. São os caminhos da santidade.

A posse de bens e sucesso não é sinônimo de felicidade. Quem tem tudo e não precisa de nada nem de ninguém é a pessoa mais pobre que existe porque ela não tem sequer a si mesma, não se pertence, mas pertence àquelas coisas que julga possuir. Não é ela que tem dinheiro e bens, mas são os bens e o dinheiro que a têm. É uma situação triste, objetal, de escravidão! É idolatria.

Feliz não é o elogiado por todos, o aprovado por todos os poderosos do mundo, o aplaudido, que vive a fama nos palcos e nos palácios. Feliz não é aquele que por ninguém é perseguido, pois é uma pessoa que não tem nada para dizer, em nada colabora, nada acrescenta, só sabe negar-se a si mesmo e à própria consciência para agradar aos que têm poder e dinheiro. Parece agradar a todos, só não agrada a si mesmo. Vive em torno de si, num narcisismo desgraçado que o faz afogar-se na sua própria imagem, morrendo desesperado e desiludido.

Felizes são o pobre (humilde) e o perseguido por causa da justiça do Reino. Como eles, muitos outros também serão felizes. Isso é ser santo.

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EM QUE CONSISTE A FELICIDADE?

O evangelho de hoje nos ajuda a encontrar o caminho da verdadeira felicidade. Por vezes julgamos que felicidade é viver bem, é sentir-se bem, é ter muitas posses e riquezas, é posar ao lado de gente famosa, é curtir festas, praias, churrascos e bebidas, noitadas e boemias.

A busca da felicidade revela um desejo divino dentro do coração humano. O problema é que nos enganamos com facilidade, identificando felicidade com realização de desejos pessoais puramente mundanos e egoístas. Todas as vezes que nos entregamos aos instintos egoístas, nos afastamos dos caminhos da felicidade. Por outro lado, todas as vezes que saímos de nós mesmos em busca da defesa da vida, de devolvermos a alegria aos tristes, de incluirmos os oprimidos e marginalizados, de nos colocarmos ao lado dos pequenos e sofredores estamos trilhando os caminhos da felicidade verdadeira. Foi o caminho de Jesus.

Quando lançamos um olhar para a comunidade judaica do tempo de Jesus, podemos identificar o que significava felicidade para aquelas pessoas: terra, filhos, prática religiosa, saúde, vida longa, abundante colheita, paz com os vizinhos.

Mas quando olhamos para a vida de Jesus notamos que seu ideal de felicidade ia além de posses e realizações puramente materiais e individuais. Nesse aspecto ele se distanciava do ideal de felicidade presente na cultura de seus correligionários. O modo de vida de Jesus era diferente. Suas buscas não estavam dentro de si mesmo, mas no cumprimento da vontade do Pai, no cuidado com os pequenos e pobres, no perdão dado aos pecadores, na cura dos doentes e sofredores. Sua vida não girava em torno de si mesmo. Sua felicidade consistia em fazer felizes os outros. Pois essa era a vontade do Pai. Não sabia ser feliz sozinho. Neste sentido era contracultural, remava contra a maré.

Jesus veio nos ensinar que a felicidade está no empenho em atender aos interesses e necessidades dos pequeninos do Reino. Pede que não busquemos felicidade nos próprios interesses nem mesmo nos interesses da própria religião, mas fazendo da religião um modo de viver que promova o bem e a alegria de todas as pessoas.

Felizes os que têm coração de pobre, que sabem viver com pouco. Felizes os que trabalham pela paz. Felizes os que choram diante do sofrimento de alguém e lhe prestam auxílio. Felizes os que se empenham por ter um coração puro e um olhar divino: sem preconceito, sem ganância, sem julgamento. Felizes os que são perseguidos por promoverem a justiça e a fraternidade. Felizes aqueles que não guardam ódio e rancor no coração e que perdoam com generosidade. Felizes os que sabem partilhar o que têm com quem passa necessidade. Felizes os que dispõem do seu tempo para ajudar alguém. Felizes são todos aqueles que procuram conformar sua vida com a vida de Jesus: serão consolados, saciados, alcançarão misericórdia, reinarão com Cristo na vida em que toda lágrima será enxugada.

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“Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra. És uma consagrada ou um consagrado? Sê santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado? Sê santo, amando e cuidando do teu marido ou da tua esposa, como Cristo fez com a Igreja. És um trabalhador? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho ao serviço dos irmãos. És progenitor, avó ou avô? Sê santo, ensinando com paciência as crianças a seguirem a Jesus. Estás investido em autoridade? Sê santo, lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais” (Gaudete et Exsultate, 14).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Amar é o que decide a vida

aureliano, 02.11.21

31º Domingo do Tempo Comum [31 de outubro 2021]

   [Mc 12,28-44]

O relato do evangelho de hoje é uma das mais belas páginas da Sagrada Escritura. Retomando o Shemah hebraico, Jesus responde à pergunta de um teólogo de seu tempo, insistindo que o amor a Deus não é somente um enfeite, uma peça de museu, mas algo vivo, dinâmico.

“Ouve, ó Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” (Dt 6,4-5). Estas palavras proferidas em forma de oração ecoavam forte no coração de todo israelita.  É a profissão de fé no único Deus, a síntese do mandamento do amor, recordando a Aliança de Deus com seu povo. Os mandamentos que se seguem (Dt 6, 10ss) são iluminados por esse amor e fidelidade de Deus à sua Aliança.

A pergunta que esse doutor da Lei faz a Jesus revela o que se passa no mais profundo do coração humano: seu desejo de encontrar o caminho certo, o sentido da vida. E a resposta de Jesus, evocando o Código da Aliança no Deuteronômio, revela (retira o véu) aquela realidade que preenche plenamente o coração do ser humano: o amor.

Deus é amor. Fomos criados pela ação amorosa de Deus. Criados à sua imagem e semelhança. Portanto, somos chamados a viver amorosamente. Não um amor no sentido banalizado em que entrou o verbo amar em nossa sociedade consumista e narcisista. Mas na dimensão do amor generoso, gratuito, solidário, em permanente ofertório, à semelhança da vida de Jesus.

Aliás, Jesus emendou resposta à uma pergunta que não foi feita: “O segundo mandamento é: amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Esse ajuntamento que Jesus fez desses dois mandamentos, ao dizer que “não há outro mandamento maior do que estes”, revela que o verbo amar deve ocupar o primeiríssimo lugar na vida do ser humano. E que o amor ao próximo é, necessariamente, consequência do amor a Deus. Quem diz amar a Deus e despreza ou odeio seu irmão, é mentiroso (cf. 1Jo 2 e 4). Para Jesus Deus e o próximo são realidades inseparáveis. A fonte originante do amor é Deus. Dele decorre o amor ao próximo.

A primeira carta de João manifesta, em diversas passagens, a realidade de Deus-Amor e a necessidade de nos identificarmos com Ele em nossa prática cotidiana: “Se dissermos que estamos em comunhão com ele e andamos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade” (1Jo 1,6). E mais adiante completa: “Aquele que diz que está na luz, mas odeia seu irmão, está nas trevas até agora” (1Jo 2,9). João ainda insiste na necessidade de um amor que se concretiza na partilha: “Nisto conhecemos o amor: ele deu a sua vida por nós. E nós também devemos dar a nossa vida pelos nossos irmãos. Se alguém, possuindo bens deste mundo, vê o seu irmão na necessidade e lhe fecha o coração, como permanecerá nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com ações e em verdade” (1Jo 3,16-18).

Para fortalecer ainda mais a premência do Evangelho sobre o amor fraterno, vejamos as recomendações de Jesus no relato sobre o Juízo Final. É um relato que nos faz repensar nossas atitudes em relação aos pequeninos do Reino: “Quando foi que te vimos  com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos forasteiro e te recolhemos ou nu e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso e fomos te ver? Ao que o lhes responderá o Rei: ‘Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes’” (Mt 25,37-40).

O amor de que trata Jesus no evangelho não é algo dado espontaneamente. O amor deve ser aprendido. No início confundimos amor com desejo, com narcisismo, com busca de ser amado, com reciprocidade e gratificações. Depois podemos crescer na experiência de Deus e perceber que o amor precisa ser entendido como uma realidade de participação no amor de Deus que deve ser desenvolvido por  nós de modo livre e consciente.

Os grupos cristãos que insistem em “experiências místicas” desligadas da vida, do sofrimento dos pequenos, indiferentes ao que acontece na sociedade ao seu redor, devem tomar esse evangelho e rever suas propostas. Podem estar alienando as pessoas e favorecendo um status quo que assassina em nome de Deus.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Finados: a volta para a casa do Pai

aureliano, 02.11.21

Comemoração de todos os fiéis defuntos [02 de novembro de 2021]

[Mt 11,25-30 ou Mt 25,31-46 ou Jo 6,37-40]

Para o cristão, celebrar Finados é o mesmo que celebrar a Esperança. A vitória de Cristo sobre o pecado e a morte é critério para o cristão no momento decisivo de sua partida, ou na participação na morte de alguém. “O último inimigo a ser vencido é a morte” (1Cor 15, 26). O mistério da vinda do Filho de Deus a este mundo (Encarnação) e sua Morte e Ressurreição colocou um ponto final sobre a nossa morte.

“A vontade daquele que me enviou é esta: que eu não perca nada do que ele me deu, mas que o ressuscite no último dia” (Jo 6,39). Quando Jesus faz essa afirmação na sinagoga de Cafarnaum, numa belíssima palavra sobre sua vinda a esse mundo como “pão da vida”, deixa claro o desígnio do Pai a respeito do ser humano: fomos criados para a comunhão plena com Deus, participando de uma vida que não tem ocaso. A ressurreição para a vida é a meta de todo aquele que empenha suas forças em ser bom à semelhança de Jesus de Nazaré: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Ele põe abaixo aquela ideia existencialista de que o ser humano é um “ser para a morte”.

A morte para o cristão é um mistério. Isto é, ela só pode ser compreendida à luz do que aconteceu com Jesus de Nazaré. Assim como Ele foi aprovado por Deus, assim também aquele que procura viver como ele viveu será aprovado, ressuscitado pelo Pai. Ressurreição é passagem da morte para a vida (cf. Jo 20,1-18); do pecado para a graça (cf. Cl 1,21-22). É chegar à comunhão com Deus para viver com ele eternamente (cf. Ap 21,1-7). Ressurreição é uma vida vivida em Deus, para Deus, a serviço dos pequeninos do Reino.

Finados ou o falecimento de pessoas queridas pode ser uma “pedra de toque” na nossa vida. Ajuda-nos a valorizar o que ultrapassa os limites da matéria. Lembra-nos a importância de morrermos para nós mesmos. A morte é uma realidade espiritual que confirma a definitiva e inabalável superação do homem confinado na perspectiva material.

Um texto que ajuda a despertar a esperança e a confiança são aquelas palavras de Isaías: “Por acaso uma mulher se esquecerá da sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem, eu não me esqueceria de ti!” (Is 49,15).

Aquele que nos deu a vida e nos fez sair do aconchegante ventre materno para a luz do dia, há de nos fazer sair deste mundo, demasiadamente limitado, para a luz e a paz de Deus. “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam” (1Cor 2,9).

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EM CRISTO, A VIDA PREVALECE SOBRE A MORTE

(Jo 11,17-45)

Defunto vem do particípio latino, defunctu, de+fungor, significa falecido, aquele que cumpriu inteiramente sua função. Quando, na Igreja, esta palavra é acrescida do termo ‘fiéis’, quer dizer que há algo mais do que uma mera função cumprida. O cristão e todo aquele que busca viver os valores do Evangelho não termina sua vida na morte. Não perde simplesmente uma função ao morrer. Sua vida está “escondida com Cristo em Deus” (cf. Cl 3,1-4). Para quem busca a vida, defende a vida, dá a vida pela vida, não há morte. Deus não o abandona na “sombra da morte”. O que o Pai fez com seu Filho, fará também com todo aquele que busca viver como Cristo viveu.

A liturgia de hoje propõe vários textos para escolha da equipe de liturgia. Escolhi este relato do evangelho de João. Julguei muito interessante trabalhar esta cena do evangelho, talvez pouco explorada na liturgia.

O capítulo 11 de João é uma catequese sobre a ressurreição. No evangelho de João encontramos Jesus realizando sete sinais. O primeiro aconteceu em Caná da Galileia, na transformação da água em vinho. O sétimo é o relato da ressuscitação de Lázaro. João não fala de milagres, mas de sinais. O que Jesus realiza é para levar o discípulo a confiar nele, a reafirmar sua fé no Cristo Ressuscitado. O relato de hoje prepara o discípulo para entrar confiante e esperançoso na cena da paixão. Em outras palavras, a paixão de Jesus, sua cruz e morte não devem ser motivo de desânimo nem de desencanto para o discípulo, mas motivo de se firmar no caminho da cruz, pois esta leva à glória do Pai.

Uma afirmação central no relato de hoje, deve sempre nos acompanhar: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11,25). Esta palavra tem sentido quando se torna viva e eficaz dentro de nós. A pergunta de Jesus à Marta e sua consequente resposta coloca nossa vida cristã em constante desafio de fidelidade, sobretudo nas situações-limite da vida. “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais. Crês isto?” (Jo 11,26). Marta, aqui, simboliza o discípulo que não desiste da fidelidade e da confiança em meio às tribulações, e professa sua fé: “Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Messias, o Filho de Deus que devia vir ao mundo” (Jo 11,27).

Outro elemento, relacionado ao que acabamos de comentar, é o do significado de Marta e de Maria neste relato. Maria, pela atitude de ficar em casa, mergulhada na tristeza, prisioneira do círculo da morte e do pranto, representa aquele que se fecha à possibilidade da fé. Marta, no entanto, embora triste e sofrida pela morte do irmão, se abre confiante ao Senhor como Aquele que pode libertá-la da prisão da morte. Sai do mundo da morte para ser mensageira d’Aquele que é o portador da vida. Uma vez alimentada e confirmada na esperança, vai confortar e animar sua irmã que jaz no círculo da morte. É a nossa missão!

Ainda uma breve palavra a respeito de Jesus nesta cena. Vemos claramente a humanidade de Jesus: “E Jesus chorou”. Dizem que este é o menor versículo da Sagrada Escritura. Jesus era um homem que tinha sentimentos. Chorou a morte do amigo! O interessante para nós é que Jesus não se prendia aos sentimentos. Nem os reprimia. O norte da vida de Jesus era a vontade do Pai. Tinha consciência de sua missão. Sabia que devia levá-la até o fim. Ao realizar aquele sinal da revivificação de Lázaro, no contexto do diálogo com Marta e Maria e na presença de seus inimigos, sabe que sua ação terá consequências em vista do Reino de Deus.

Então não há problema em chorar e lamentar a morte de alguém. Mas é preciso ressignificá-la na fé. Marta se torna para nós inspiração de abertura, de discipulado, de adesão firme e confiante ao Senhor que se nos revela nos acontecimentos dolorosos da história.

A morte permanece para o ser humano como um mistério profundo. Ainda não se descobriu a pílula da imortalidade! Todos morreremos: ricos e pobres, sãos e doentes, novos e velhos, religiosos e descrentes. É o fim de todos. O modo como cada um encara este momento é que varia. Para o cristão, a morte segue o caminho de Jesus. Pode ser um cálice amargo que se deve beber até o fim. Porém com aquela certeza de que, se cumprirmos a vontade do Pai, ele nos acolherá de braços abertos para a vida que não tem ocaso.

Como se dará isso, certamente, não o sabemos. Mas a Igreja reza assim: “Nele (Cristo) refulge para nós a esperança da feliz ressurreição. E aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola. Ó Pai, para os que creem em vós, a vida não é tirada, mas transformada, e desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível” (Prefácio da missa).

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Cemitério vem do grego koimetérion (dormitório, quarto de dormir), pelo latim coemeterium. O conceito ajuda a interpretar a morte como “sono eterno”. Para nós, cristãos, as pessoas que morreram em Deus, não caíram no abismo eterno, mas adormeceram no Senhor: “Felizes os mortos, os que desde agora morreram no Senhor. Sim, diz o Espírito, que descansem de suas fadigas, pois suas obras os acompanham” (cf. Ap 14,13). E, mais adiante: “Ele (Deus) enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais” (Ap 21,4).

Essa fundamentação semântica e bíblica da morte pode ajudar-nos a viver melhor. A redescobrir o sentido da vida. A visita ao cemitério, que normalmente se faz nesse dia, deve adquirir novo sentido. Não estamos visitando os mortos. Estamos, sim, reafirmando nossa fé na “comunhão dos santos”, rezando por aqueles que já partiram antes de nós.

A Igreja celebra Todos os Santos no dia 1º de novembro (cuja solenidade no Brasil foi transferida para o domingo seguinte) e Finados no dia 02 com o intuito de juntar essas duas realidades post-mortem à nossa de peregrinos em Cristo. Na linguagem tradicional: Igreja militante ou peregrina (os vivos em peregrinação), Igreja padecente (os que terminaram sua peregrinação) e Igreja triunfante (aqueles que já estão na Luz que não se apaga).

Mas nota-se que o povo se identifica mais com o cemitério, com a morte, com o sofrimento. Parece ser a realidade que ele conhece, experimenta. A Glória lhe é desconhecida. O importante, porém, é tentar fazer sempre o caminho da esperança, da conversão, da morte para a vida.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O salto da fé

aureliano, 02.11.21

30º Domingo do Tempo Comum [24 de outubro 2021]

   [Mc 10,46-52]

Entender o que Jesus queria ensinar foi difícil. Os evangelhos mostram a dificuldade de compreensão por parte dos discípulos a respeito da dinâmica do Reino de Deus.

No último domingo vimos Tiago e João disputando os primeiros lugares. Jesus, por sua vez, lhes dá a lição: “Vós sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam. Mas entre vós não deve ser assim” (Mc 10,42-43). Os discípulos mantinham uma incompreensão em relação à missão messiânica de Jesus. Estavam cegos. O relato de hoje vem mostrar, no cego Bartimeu, o estado de cegueira dos discípulos.

Jesus está a caminho de Jerusalém, onde deve entrar triunfalmente, antes de morrer. O caminho é para a morte, mas a entrada é triunfal. Um triunfo que por um lado revela a messianidade de Jesus, e, por outro, o equívoco da multidão em relação à missão do Filho de Deus. O relato de Marcos, colocando essa situação do cego Bartimeu exatamente nessa altura do evangelho, reveste-se de um significado profundo: aquele cego representa os discípulos de Jesus e o “salto” (“deixando sua capa, levantou-se = deu um salto”) que precisam ainda dar, bem como a cegueira de que precisam se curar.

Para aquele homem tudo era noite. Não vê nada! Mas ele ‘ouve’ uma luz. Surge uma possibilidade. E quanto mais o repreendiam, mais ele gritava! E Jesus, ouvindo seus clamores diz: “Chamai-o”. Esse chamado de Jesus remete a tantos chamados que o Senhor faz. Esse homem não via, mas ouvia. Estava atento aos sinais do Senhor. Por isso ouviu o ‘chamado’. Em meio a tantas “vozes” mundanas, não é fácil distinguir qual é a voz de Jesus!

Interessante notar que, enquanto alguns o repreendiam, outros o animavam: “Coragem, levanta-te, Jesus te chama!” Vejam a importância de se ter alguém que encoraje, que anime. Na comunidade é assim também: há pessoas que não querem o crescimento do irmão. Humilham, diminuem, marginalizam. Por outro lado, há também aqueles que transmitem esperança e coragem. É destes que precisamos nos aproximar. É nesses que devemos nos inspirar.

Os gestos realizados pelo cego revestem-se de uma riqueza maravilhosa! São três: “O cego jogou o manto, deu um pulo e foi até Jesus”. O que isso significa? Aquele manto era o lugar em que o mendigo dormia, se sentava, colocava as esmolas etc. Jogar o manto é romper com o passado, com o comodismo. É deixar aquela vida medíocre de esmoler, de dependência e assumir sua própria vida. Mais. Ser cego, na cultura daquele tempo, era ser castigado por Deus. O cara não podia ler as Sagradas Escrituras. Não podia caminhar até o Templo ou à sinagoga. Então era tido como uma escória social, totalmente discriminado, marginalizado. E “saltar” em direção a Jesus significa deixar este estado de ‘homem velho’, na expressão de São Paulo, e assumir uma vida nova.

Vejam que ele salta ainda cego. É o salto da fé. Esta nos coloca num estado de esperança, de confiança. É um salto no escuro! Mas sabendo que não se há de ser desamparado. Há Alguém que nos acolhe e nos dá a vida nova. Este homem encontra a salvação por causa de sua fé.

O terceiro gesto, também é muito significativo. Complementa o segundo. “Foi até Jesus”. É o gesto da confiança, da simplicidade, da humildade. Ele sabe que Jesus poderá dar-lhe a visão. Jesus era a única pessoa que poderia fazê-lo enxergar. E a palavra de Jesus unida à sua fé, devolveu-lhe a visão. Quem se aproxima de Jesus, deixando de lado as coisas, o desejo de posse, o comodismo, buscando assumir um caminho novo, certamente enxergará o mundo de uma forma nova, como Deus o vê. Enxergará o irmão!

E, finalmente, o coroamento. Aonde o evangelho quer chegar: “... ele foi seguindo Jesus pelo caminho”. Aquilo que faltava aos discípulos se realizou no cego Bartimeu. Os discípulos estavam como que cegos. Não conseguiam enxergar quem era Jesus. Estavam na procissão, mas não sabiam para quê. Os interesses escusos dos discípulos os colocavam em situação de trevas. Ainda mais: o medo e a falta de compreensão do projeto do Pai levavam-nos a ter atitudes egoístas e infantis.

O cego Bartimeu nos dá também a grande lição de que não podemos deixar passar a oportunidade da “passagem de Deus” pela nossa vida. Nem os opositores, nem o manto, nem a própria cegueira o impediram de lançar-se à busca de uma nova vida. Por isso foi salvo. A presença graciosa de Jesus transformou seu comodismo e seus medos em coragem, ousadia e nova visão de mundo. É o que acontece com quem se aproxima de Jesus e se deixa transformar por ele.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN