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Vocação e missão de profeta

aureliano, 28.01.22

4º Domingo do TC - C - 28 de janeiro.jpg

4º Domingo do Tempo Comum [30 de janeiro de 2022]

[Lc 4,21-30]

O relato evangélico deste domingo é continuação do relato do domingo passado. Você está lembrado: refletimos o “programa” de vida de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim e me ungiu para evangelizar os pobres”.

Jesus está na sinagoga de Nazaré, sua terra, e inicia seu ministério profético a partir da Palavra que diz: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”. A base de orientação de vida e missão de Jesus é a Palavra de Deus. E ele toma por fundamento de sua missão principalmente os textos proféticos. Pois ele é o Profeta, o Santo de Deus. Aquele que veio para ser “sinal de contradição” (Lc 2,34). Suas palavras e suas ações se tornam sinais de queda e de soerguimento. Uma vez conhecido o ensinamento de Jesus, acontece um juízo para quem entra nessa dinâmica: salvação ou condenação. Ou o acolhemos ou o rejeitamos. É o que decide o sentido e o acerto na vida, ou o desacerto de nossa passagem pelo mundo.

Muitos tinham por Jesus uma “admiração”. “Espantavam-se da mensagem da graça que saía de sua boca”. É interessante notar que o primeiro passo da fé é a admiração, o encantamento, o espanto. A pessoa começa a se sentir atraída pelo “tremendum et fascinans” do Mistério de Deus que nos envolve. Ou seja, o divino revelado por Jesus mexia com o coração da pessoa.

O problema, porém, vem logo a seguir: a rejeição. “Não é ele o filho de José?”. Não se abrem num espírito de humildade para verem e contemplarem naquele “Homem de Nazaré” a manifestação do amor de Deus que convida à conversão. Por isso se enchem de ira contra ele e o expulsam da cidade.

O relato de hoje quer nos mostrar que muitas vezes escutamos a Palavra, a admiramos, mas julgamos que ela se dirige a outros. É como se Deus estivesse falando para o meu vizinho, para alguém da minha família, para o colega de trabalho. É difícil nos colocarmos desarmados e desnudados diante da Palavra que nos interpela. Ainda mais: como é difícil acolher a palavra profética de alguém que está bem perto de nós, cujos defeitos, família, origens conhecemos bem! Mesmo que aquela pessoa esteja dizendo a verdade, preferimos nos desculpar, atirar-lhe ao rosto suas mazelas e de sua família.

Outra dificuldade muito presente em nossas comunidades são o preconceito e o privilégio. Excluímos com facilidade a pessoas, julgamos, condenamos. Uma tentação de reduzir a comunidade eclesial a um “clube” de pessoas perfeitas, conhecidas, amigas, cúmplices. E uma tendência a buscar privilégios: “fulano tem um irmão padre, é parente da secretária, é amigo do coordenador” etc. E se fazem atalhos para conseguir isso ou aquilo da igreja. Num esquecimento de que a Igreja é o Povo de Deus que se reúne como comunidade de fé e de vida, na busca do bem comum de todas as pessoas, a partir da fé em Jesus Cristo vivo e ressuscitado.

O ditado dos judeus: “Nenhum profeta é profeta em sua terra” não deveria encontrar ressonância entre nós. Esse ditado, assim como este outro semelhante: “Santo de casa não faz milagre”, deveriam ser banidos do nosso meio. É uma armadilha de Satanás para nos prender nos nossos vícios e defeitos. Não nos deixam mudar de vida. A Palavra de Deus mexe com nossas estruturas, mas o nosso egoísmo e autossuficiência, quais demônios terríveis, nos prendem e nos escravizam. É preciso deixar que a Luz trazida por Jesus penetre em nossa vida e, expulsando nossas trevas, ilumine nossos caminhos. Se a porta estiver fechada fica difícil a penetração da luz. “Eis que estou à porta e bato” (Ap 3,20).

O profeta é a consciência crítica do povo. Ele não fala em nome da razão simplesmente, mas em nome de Deus. Nossa Igreja, hoje, vive uma crise de profetas. Eles estão meio sumidos, apagados talvez. Todos os batizados são ungidos profetas. Mas o profetismo não aparece. Talvez pelo risco que se corre, pois o profeta é o defensor dos oprimidos, dos fracos, dos marginalizados. É a voz de quem não tem voz nem vez. É o homem da esperança e da confiança. O fracasso não o desanima. A ameaça dos maus não o intimida. O profeta, homem de Deus, vê o que Deus vê. À luz do alto, é capaz de perceber o “escondido”, de apontar saídas, de prever os riscos quando se está num caminho de morte com aparência de vida. O profeta faz uma leitura divina dos acontecimentos. Sua presença introduz uma esperança nova. Ajuda a pensar o futuro de acordo com a liberdade e o amor de Deus. Papa Francisco parece trilhar este caminho.

Fazemos memória, com saudade, de Dom Hélder Câmara, de Dom Luciano, de Irmã Dorothy, de Dom Antônio Filipe, de Pe. Jesus Moreira de Resende dentre tantos outros profetas e profetisas do Reino de Deus. Ainda há alguns profetas em nosso meio, mas parece que os ventos levam suas vozes para o deserto. Há muito dificuldade em ouvi-los. O espírito mundano pervade nossas famílias e comunidades, embaça nossa mente e nosso coração, impedindo que se ouça e se siga a voz do profeta. A busca insaciável pelo dinheiro, pelo poder a qualquer custo, pelo consumismo, pelo prazer desmedido emudece, ensurdece e cega as pessoas.

Uma palavra do Pe. José Antônio Pagola que dá o que pensar, reza assim: “Uma Igreja que ignora a dimensão profética de Jesus e de seus seguidores, corre o risco de ficar sem profetas. Preocupa-nos muito a escassez de sacerdotes e pedimos vocações para o serviço sacerdotal. Por que não pedimos que Deus suscite profetas? Não precisamos deles? Não sentimos necessidade de suscitar o espírito profético em nossas comunidades?” (O caminho aberto por Jesus, p. 88).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Ungidos para evangelizar os pobres

aureliano, 21.01.22

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3º Domingo do Tempo Comum [23 de janeiro de 2022]

[Lc 1,1-4; 4,14-21]

A liturgia deste domingo convida a comunidade cristã à escuta atenta e fiel da Palavra de Deus. No evangelho, Lucas justifica a escrita que faz da narrativa dos ‘acontecimentos’ realizados por Jesus e transmitidos pelas ‘testemunhas oculares e ministros da palavra’. Em seguida, no capítulo 4º, Lucas narra que Jesus toma o texto de Isaías e encontra a passagem que lhe diz respeito. Ou seja, ungido com o Espírito do Senhor, deve anunciar a boa nova aos pobres.

Primeiramente é bom notarmos que Lucas fala de “acontecimentos”. É a narrativa dos atos e palavras de Jesus. Não u’a mera doutrina, mas um acontecimento. Como disse o Papa Bento XVI, a vida cristã é o ‘encontro com um acontecimento, com uma pessoa que dá um novo horizonte à vida’. Depois, esses “acontecimentos” tiveram “testemunhas”. Ou seja, algumas pessoas ouviram e viram e interpretaram, à luz da Ressurreição, aqueles acontecimentos. Ainda mais: aquelas ‘testemunhas oculares’ assumiram um novo horizonte de vida. Não viveram mais como dantes. Ficaram tão entusiasmadas por aquele homem que morreu na cruz e ressuscitou que começaram a viver de modo novo e a transmitir essa Boa Nova a todos que encontravam pelo caminho.

O encantamento despertado por Jesus nos seus seguidores é fruto de um programa de vida que veio realizar. Esse programa de vida está descrito no texto de hoje: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a boa nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e proclamar um ano da graça do Senhor”.

É preciso notar que Jesus lança um olhar de misericórdia sobre os pobres. Ele não vê primeiro o pecado, mas o sofrimento das pessoas. Talvez um dos equívocos de alguns setores da Igreja seja o de firmar-se sobre a doutrina moral fria e legalista sem levar em conta a pessoa nas suas circunstâncias. Em vista disso o teólogo Johann Metz dizia: “A doutrina cristã da salvação dramatizou demasiadamente o problema do pecado, enquanto relativizou o problema do sofrimento”. No programa de Jesus a dor humana sempre ocupou o primeiro lugar.

Alguém poderia argumentar: - “Mas Jesus, diante do paralítico, perdoou-lhe o pecado primeiro, depois o curou”. É certo, mas não deixou de aliviar seu sofrimento físico e moral dizendo-lhe: “Levanta-te, pega teu leito e vai para casa”. Em todas as circunstancias vemos Jesus lançando um olhar de misericórdia sobre o sofrimento humano. Essa atitude de Jesus nos ajuda a refletir sobre nosso modo de lidar na comunidade. Talvez nosso grande pecado seja o de condenar as atitudes dos outros enquanto nos fechamos em nosso bem-estar. Se o sofrimento humano não nos comove e desacomoda é sinal de que o programa de vida de Jesus não nos diz respeito. O mesmo se diga em relação à nossa presença nos espaços sociais, políticos, administrativos: seguindo o programa de vida de Jesus, não se pode ser conivente com falcatruas, com propineiros, com mentirosos e perversos, promotores da violência, da concentração de renda em prejuízo dos pobres da terra.

As tragédias múltiplas como pandemia, rompimento de barragens, fome e miséria pelas quais muitas comunidades e famílias têm passado devem servir de alerta a todos nós, particularmente aos governantes insensatos e insensíveis que protegem e defendem os poderosos e oprimem e destroem os pobres e humildes. Deus nos livre de gente perversa que visa ao seu próprio bolso e bem-estar mediante o sacrifício da vida dos pequenos, dos trabalhadores e dos pobres!

E note bem: ser cristão não é uma questão de escolha. Uma vez que conhecemos Jesus e seu ensinamento, não se pode mais escolher outro caminho. Ele é a única escolha que podemos fazer. Seu programa de vida deve ser nosso programa. Suas atitudes devem ser inspiração para as nossas. Ele é “o Caminho, a Verdade e a Vida”. E ainda: “Ninguém vai ao Pai a não ser por mim”. Não há outro caminho de salvação. – Ser cristão não é fruto de “decisão ética”. Também a “opção pelos pobres” não é fruto de uma ideologia, nem é descoberta da Teologia da Libertação. Ela é constitutiva do “conteúdo da fé cristológica” (Bento XVI). Ou seja, não é possível ser cristão e não viver a opção pelos pobres.

Quando lançamos um olhar para os santos da nossa Igreja, vemo-los totalmente dedicados aos mais pobres. Vejam o Servo de Deus Pe. Júlio Maria: sua primeira preocupação foi aliviar os sofrimentos dos pobres: abrigo, hospital, patronato, farmácia alternativa, educação, visita aos doentes. Gastou todas as suas forças, no Espírito de Jesus, para que os pobres fossem socorridos e aliviados. E assim temos Teresa de Calcutá, Dulce dos Pobres, Helder Câmara, Pedro Casaldáliga, Luciano Mendes, Dorothy Stang e outros milhares.

Qual está sendo a incidência da Palavra de Deus em nossa vida cristã? Nossa vida tem tido como ‘pano de fundo’ o programa de vida de Jesus de Nazaré? Que lugar ocupam os pobres em nossa vida? Como tratamos aqueles que batem à nossa porta? Nossos programas e planejamentos pastorais e comunitários levam em conta os mais pobres? Qual a porcentagem de nosso dízimo é destinada a projetos sociais e assistência aos pobres? Minha preocupação com o ser humano se concentra no seu pecado ou na sua dor? Que meios emprego para lutar contra os projetos causadores de dor e de sofrimento no povo? Que tipo de espiritualidade me anima e sustenta?

Fomos ungidos pelo Espírito Santo no batismo para anunciarmos a Boa Nova aos pobres. Que significado tem o batismo para mim, para nós?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Vinho novo: a alegria de ser cristão

aureliano, 15.01.22

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2º Domingo do Tempo Comum [16 de janeiro de 2022]

[Jo 2,1-11]

Estamos no Tempo Comum da liturgia da Igreja. Esse tempo é caracterizado pelo cotidiano, que não deve ser menosprezado, mas alimentado pela contemplação dos mistérios da vida de Cristo. A cor verde recorda a esperança que deve alimentar o cristão, e o pinheiro, árvore forte, recorda ao cristão que deve ser forte e perseverante em meio às intempéries da vida.

O evangelho deste 2º domingo do Tempo Comum vem como que coroar todo o mistério natalino que acabamos de celebrar. É o início da vida pública de Jesus.

“Este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele”. Este versículo é vital para a interpretação deste “Sinal” realizado por Jesus O acontecimento de Caná da Galileia foi decisivo para que os discípulos acreditassem em Jesus.

Notem que João não chama de milagre, mas de sinal. O que Jesus realizou era um “sinal’ (o primeiro dos sete que João narrará ao longo do evangelho) de sua messianidade já anteriormente reconhecida: Cordeiro de Deus (Jo 1,29.36), Messias (Jo 1,41), aquele sobre quem escreveu Moisés e os profetas (Jo 1,45), Filho de Deus e Rei de Israel (Jo 1,49). É uma confirmação para os discípulos de tudo aquilo que fora dito a seu respeito.

“Seus discípulos creram nele”. Para o seguimento de Jesus era imprescindível a fé. Esta leva a agir segundo as palavras e as atitudes de Cristo. Aquele que crê empenha-se sempre na prática da justiça e da fraternidade, da concórdia e da paz, do cuidado e defesa da vida. O agir daquele que crê assume contornos novos. Quem crê assume as atitudes de Jesus: “Vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim. Pois a minha vida presente na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20).

Tratando-se de Igreja, a fé é vital para que haja renovação na vida pessoal, eclesial, social e comunitária. Bento XVI, na Carta Apostólica Porta Fidei afirma: “A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho prestado pela vida dos crentes: de fato, os cristãos são chamados a fazer brilhar, com sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou” (nº 6).

No relato, João afirma que Jesus fez um “sinal”: transformou a água em vinho numa festa de casamento. Aqui se faz necessário certo nível de abstração para que nosso espírito adentre no que o texto quer dizer. Ele não está falando de casamento, simplesmente. Este relato precisa ser interpretado à luz da intencionalidade de João ao escrever seu evangelho: o noivo é Jesus, a água e as jarras são a Lei, o vinho novo é a presença inovadora da vida e do ensinamento de Jesus, Maria é a comunidade eclesial etc. Enfim, todos os elementos deste relato estão carregados de sentido e significados para despertarem e gerarem a fé nos discípulos.

A ‘glória’ e a ‘hora’ de que fala Jesus se concretizarão mais tarde em sua morte na cruz.: “Agora o Filho do Homem é glorificado, e Deus foi glorificado por ele” (Jo 13,31). E na oração ao Pai, antes da paixão, diz: “Pai, é chegada a hora, glorifica o teu Filho, a fim de que o teu Filho te glorifique” (Jo 17,1).

A propósito da expressão “mulher”, entendemos que Jesus tencionava falar da Igreja. Maria sua mãe é ícone dessa Igreja sonhada que ele sonhou. Na cruz ele volta à expressão, cumprindo a sua “hora”: “Vendo assim sua mãe, e perto dela o discípulo que ele amava, Jesus disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí o teu filho’. A seguir disse ao discípulo: ‘Eis a tua mãe’” (Jo 19,26-27). Maria, a mulher atenta à falta de vinho na festa, estava presente ao pé da cruz. Ali é feita mãe dos crentes. Maria é bendita porque é a mulher que acreditou (cf. Lc 1,45).

A liturgia da Palavra de hoje nos leva a pensar e a rezar um pouco mais nossa vida de fé. Sem entrar na ‘festa de casamento’ que o Pai nos preparou em seu Filho não é possível uma dinâmica de fé que nos faça pensar e agir de modo novo, vibrante, entusiasmado, transformador.

Aquele vinho novo que deve ser ‘bebido’ por nós, significa também todos nós, Igreja de Jesus. Não podemos continuar como água engarrafada, parada, represada, sem sentido. Deixemos o Pai nos transformar em vinho novo, para levar alegria e alento a tantas pessoas desiludidas, sem voz e sem vez. Há muita gente sem alegria, sem esperança, sem sentido de vida. Se experimentamos o vinho novo, que é a própria vida de Jesus, seremos sua extensão na história.

A ordem que a Mãe de Jesus nos transmite com seu agir discreto e oportuno é clara: “Fazei tudo o que ele vos disser”.

Um pensamento do Pe. Pagola poderá ajudar-nos a entender melhor o ‘vinho novo’ trazido por Jesus e tão necessário à sociedade em que vivemos:

 “Estas bodas anônimas nas quais os esposos não têm rosto nem voz própria, é figura da antiga aliança judia. Nestas bodas falta um elemento indispensável. Falta o vinho, sinal da alegria e símbolo do amor, como cantava o Cântico dos Cânticos.            

É uma situação triste que só se transformará pelo ‘vinho’ novo trazido por Jesus. Um ‘vinho’ que só o saboreia quem crê no amor gratuito de Deus Pai e vive animado pelo espírito de verdadeira fraternidade.

Vivemos numa sociedade em que, cada vez mais, se enfraquece a raiz cristã do amor fraterno desinteressado. Com frequência o amor se reduz a uma troca mútua, prazerosa e útil, em que as pessoas buscam somente seu próprio interesse. No entanto se pensa, talvez, que é melhor amar que não amar. Porém, na prática, muitos estariam de acordo com aquele princípio anticristão de S. Freud: ‘Se amo alguém, é preciso que este o mereça por alguma razão” (Pe. José Antônio Pagola).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Batismo: conversão e compromisso

aureliano, 07.01.22

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Batismo do Senhor [09 de janeiro de 2022]

[Lc 3,15-16.21-22]

Com a festa do Batismo de Jesus, a Igreja encerra o tempo do Natal. O Batismo de Jesus é mais uma Epifania: manifestação de Jesus como o “filho amado” do Pai. Ele é quem levará a termo o projeto de Deus, por isso exige de João “cumprir toda a justiça”.

Se Jesus é o Filho de Deus, por que quer ser batizado? Que significa o batismo de Jesus?

O batismo de João é um batismo de conversão, um rito de purificação que prepara “os caminhos do Senhor”. Desde a concepção de Jesus, João Batista esteve a ele relacionado. Agora aparece nos inícios de sua vida pública, anunciando a conversão à prática da justiça como caminho para remover o pecado.

Quando Jesus, diante da recusa de João em batizá-lo, insiste em que se deve cumprir “toda a justiça”, ele está mostrando que veio para realizar o plano da salvação que o Pai preparou para a humanidade; veio cumprir a vontade do Pai num amor incondicional à humanidade, que culmina com a cruz. Também se expressa aqui o que o batismo simboliza para Jesus: mergulho na condição humana, menos o pecado. No entendimento dos Santos Padres da Igreja, esse gesto de Jesus santifica as águas do batismo. Assim Jesus santifica todas as atividades humanas, toda a criação com sua “descida” no batismo à nossa condição humana.

A festa do Batismo de Jesus deve nos levar a refletir sobre o nosso batismo. Este não significa meramente o perdão dos pecados, como o de João, nem uma bênção ou coisa semelhante. Batismo cristão é a participação no batismo de Cristo e na sua missão como Servo de Deus, no Espírito. Ser batizado é tornar-se servidor dos irmãos e irmãs dentro de uma comunidade cristã. É seguimento a Jesus que, “ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder, andou por toda parte fazendo o bem e curando a todos que estavam dominados pelo diabo” (At 10, 37-38).

Vamos rezar um pouco nosso batismo, rever nossos compromissos batismais, nossa vida em comunidade, nossa prática da justiça e da bondade. Seria bom que todo batizado soubesse o dia de seu batismo e o celebrasse. O Pe. Júlio Maria, fundador de nossa Congregação, Missionários Sacramentinos, dava mais ênfase ao dia do seu batismo do que ao do seu natalício. Penso que pode ser uma experiência a nos ajudar a revitalizar em nós o espírito missionário e comprometido próprios do batismo cristão.

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BATISMO: VIVER SEGUNDO O ESPÍRITO

A festa do Batismo do Senhor quer nos ajudar a pensar e a rezar o nosso batismo, nossa consagração radical que o Senhor fez de cada um de nós. Ao consagrar-nos exclama como fizera ao seu próprio Filho: “Este é meu filho amado”.

O evangelho deixa entrever dois aspectos muito interessantes da vida de Jesus: sua relação com Deus e sua solidariedade com o povo. Havia uma expectativa geral em torno do Messias. A Palestina passava por uma opressão muito grande por parte do poder romano. Pipocavam movimentos messiânicos. Esta é a razão da confusão que povo fazia a respeito de João e de Jesus.

João, um homem cheio de Deus, não se deixou levar pela vaidade e declarou: “Virá aquele que é mais forte do que eu... Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo”. Reconhece em Jesus o enviado do Pai que realiza um batismo que comunica a vida nova na força do Espírito Santo. Pregava um “batismo de conversão”.

O primeiro aspecto a ser ressaltado no relato de hoje é a solidariedade de Jesus com o povo. Por que Jesus quis ser batizado? Ele já não é o Filho de Deus? – Jesus se faz solidário com a humanidade. Entra, humildemente, na fila dos pecadores e pede a João o batismo de conversão. Não que ele precisasse desse rito, mas quer cumprir em tudo a vontade do Pai e sua missão. É o “Servo do Senhor”. “Não quebra a cana rachada nem apaga um pavio que ainda fumega; mas promoverá o julgamento para obter a verdade” (Is 42,3).

O batismo cristão não é um rito para nos afastar do mundo, mas nos reenvia renovados para fazermos o novo acontecer. Nós cristãos precisamos lançar um olhar mais profundo e contemplativo sobre essa atitude de Jesus e criarmos coragem para nos lançarmos, de modo novo, a partir do batismo que nos consagra radicalmente ao Pai, para sermos uma presença de Igreja solidária no meio do povo. Ajudar o povo a fazer um caminho de conversão, de reencantamento por Jesus Cristo, de paixão pelo Reino, de coragem para enfrentar os promotores da violência e da morte, na construção de uma sociedade de paz e de mais vida.

Rezemos um pouco mais nosso batismo. Que diferença faz ser batizado ou não? Que diferença faz crer ou não crer? O batismo que você recebeu quando criança interfere em suas atitudes, em seu modo de viver, de se relacionar, de lidar com o poder e com dinheiro? Como você tem vivido sua vida de oração? Reserva algum tempo para a intimidade com o Pai? Procura ser solidário com os pequenos e pobres, com os doentes e pecadores? – João Batista ainda não descobrira a relação misericordiosa e afável com os debilitados e marginalizados. Ele encerra a Primeira Aliança. Jesus, numa atitude reveladora da bondade do Pai, acolhia os pecadores e os perdoava, aproximava-se dos doentes e os curava, abençoava as crianças, acolhia e valorizava as mulheres. Enfim, mostrou um Deus que se aproxima para salvar.

E você, que foi batizado/consagrado, iluminado pela Palavra, orientado e instruído acerca da bondade de Deus que deve ser expressa em sua vida, como tem se colocado diante daqueles que Deus colocou no seu caminho? Você se considera filho/a de Deus? Vive como filho/a amado? O que lhe falta para ser mais fiel ao seu batismo?

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A POMBA E O ESPÍRITO SANTO

“... e ele viu o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corporal, como pomba” (Lc 3,22). O que esse relato quer dizer? Por que a iconografia cristã representa o Espírito Santo em forma de pomba? Vamos tentar compreender esse relato.

A gente precisa ir aprendendo a ler e rezar as Sagradas Escrituras relacionando os textos. Essa perícope de Mateus está relacionada com alguns textos do Antigo Testamento. Vejamos.

Bem no início da Sagrada Escritura lemos no relato da Criação que “o vento de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,2). O talmude babilônico – uma espécie de interpretação dos rabinos ao texto bíblico - diz mais: “O Espírito de Deus pairava sobre a face das águas, como uma pomba que paira sobre os seus filhotes sem tocá-los”. Esse relato de Gênesis faz antever, de algum modo, o que Cristo Salvador realizará com sua vida salvadora. Os acontecimentos que se deram ao redor de sua vida no Jordão prenunciam a nova Criação da humanidade. O batismo trazido por Jesus nos recria, nos faz nascer de novo (cf. Jo 3,5-7).

Outro relato que não pode ser omitido é o do dilúvio. Noé enviou uma pomba para certificar-se se as águas haviam baixado. A pomba trouxe no bico um ramo de oliveira (cf. Gn 8,11). Esse relato está diretamente relacionado ao batismo de Jesus, uma vez que o dilúvio, no entendimento dos Santos Padres, prefigurava a destruição do pecado e a salvação pelas águas do batismo. Aqui aparecem claramente essas duas realidades retratadas por Mateus no batismo de Jesus: as águas e a pomba.

Portanto, é preciso ficar claro que o Espírito Santo não é uma pomba. O fato de a arte cristã retratar o Espírito Santo em forma de pomba tem estreita relação com esses relatos bíblicos. Lucas diz desceu em “forma corporal, como uma pomba”. Ou seja, como a pomba bate as asas e faz correr um vento suave ao pousar, aquele vento produzido pelas asas da pomba pousando assemelha-se ao Espírito que “paira” sobre a criação, sobre Jesus, sobre nós, sobre a Igreja, sobre as oferendas em santificação. É o Hálito santo de Deus. A Divina Ruah.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Deus não é propriedade de ninguém

aureliano, 01.01.22

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Epifania do Senhor [02 de janeiro de 2022]

[Mt 2,1-12]

A solenidade que celebramos hoje é uma festa popularmente chamada de “Santos Reis”. Caiu bem no imaginário popular a cena pintada por Mateus sobre a visita que os Magos fizeram a Jesus por ocasião do seu nascimento. O quadro é deveras bonito. Mas é bom lançarmos um olhar com mais profundidade, pois aí se esconde um grande Mistério.

Primeiro não podemos ler a cena do evangelho de hoje como um relato jornalístico. Os fatos certamente não se deram historicamente tais como estão narrados. A leitura deve ser teológica. Mateus pretende dar uma catequese para a comunidade. Vamos então tomar os pontos essenciais e tentar descobrir o que Deus nos está revelando de novo nesta Palavra da festa de hoje.

O fato de relatar Belém como local do nascimento de Jesus parece mostrar que Mateus quer convencer alguns que não podiam acreditar que o Messias pudesse nascer em Nazaré pelo fato de as Escrituras prometerem que sairia de Belém, a cidade de Davi. Belém é “casa do pão”. O Pão da vida que veio alimentar a humanidade dá-se em alimento num coxo onde os animais comiam. O alimento, o pão que ali se encontra, veio para saciar a fome da humanidade.

Os magos não eram necessariamente adivinhos, mas estudiosos dos astros. Dizem os entendidos da cultura e história daquela época que, por ocasião do nascimento de pessoas importantes, uma estrela avisava. Mateus vale-se da crença para mostrar que Alguém nasceu e foi visto através de uma estrela.

A visita e adoração dos magos contrapõem-se ao orgulho de Herodes e de todo o Israel que se recusou a dobrar a cerviz ao Deus que se fez Homem no seio de Maria. Considerava inadmissível que Deus pudesse nascer tão pobre e simples. Ademais se sentia ameaçado pelo “rei dos judeus” que acabara de nascer. Uma vez que aqueles para quem ele veio não o reconheceram (cf. Jo 1,11), manifesta-se aos pagãos, representados pelos magos. Veio para todos. É o universalismo da salvação de Deus manifestado em Jesus de Nazaré.

A estrela de que fala o texto simboliza os sinais pelos quais Deus nos fala. Ele se manifesta de muitas formas. É preciso estar com o “coração no alto”. Esse olhar para cima, para o céu quer indicar a vida de oração, de intimidade com o Pai que nos ajuda a perceber os caminhos pelos quais devemos caminhar. Herodes e os habitantes de Jerusalém, levando uma vida perversa e ambiciosa, criaram em torno de si uma nuvem tão espessa que impediu o brilho da estrela sobre a cidade. Somente depois que saíram da cidade é que a estrela foi novamente vista pelos magos. O que lhes causou grande alegria. A alegria da luz de Deus que ilumina e fortalece o coração do justo.

Quando o relato diz que os magos tomaram outro caminho de volta para sua pátria, o texto nos quer dizer que é preciso ter coragem de assumir um caminho novo. Trata-se da conversão. Converter-se é mudar de trajetória, de rota. É ter coragem de assumir um novo modo de viver. E isso se dá a partir do encontro com o Senhor. Foi o que aconteceu aos magos. Aquele encontro com o Senhor da vida, reclinado na manjedoura foi tão decisivo e envolvente que os levou a assumir um caminho novo em defesa da vida ameaçada por Herodes. O caminho de conversão nos faz contrapor-nos aos ameaçadores da vida. É preciso ter coragem de enfrentar aqueles que buscam “matar o menino”. Aqueles que querem tirar a vida a todo custo. Aqueles para quem o dinheiro vale mais do que a vida. Aqueles para quem o crescimento econômico tem prioridade sobre a saúde da população.

Talvez fosse oportuno perguntar-nos: minha postura é de defesa de Jesus que sofre e morre nos acometidos pela covid-19 e outras enfermidades ou por Herodes cujo espírito de morte está presente em várias autoridades de nosso País? Estou com Herodes ou estou com Jesus?

Que a Luz resplandecente que brota do presépio nos envolva e nos faça missionários transformados por esse Mistério que nos arrebata e nos faz pessoas renovadas para a missão.

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NÃO TER MEDO DA LUZ

Esta festa, outrora celebrada no dia 06 de janeiro, dia dos Santos Reis (Natal das Igrejas Orientais), quer nos ajudar a entender que Aquele cujo nascimento celebramos no Natal veio para todos os povos. É a Luz que ilumina as nações. Deus não veio salvar um só povo, mas todas as pessoas de todos os tempos e lugares.

O evangelho de Mateus termina com o envio dos discípulos para evangelizar “todas as nações” (Mt 28, 19). E no início ele traz o relato da visita dos Reis Magos, prefigurando exatamente isso. Os doutores de Jerusalém sabiam onde devia nascer o Messias, mas a estrela da fé não os conduzia até lá. Daqui se depreende que não basta conhecer com a cabeça. O coração precisa crer e se inclinar para os sinais dos tempos. Herodes e os doutores não viram a estrela porque estavam ofuscados pelo próprio brilho. Uma vaidade tal que escondia os sinais reveladores de Deus que oculta estas coisas aos sábios e entendidos e as revela aos pequeninos (cf. Mt 11, 25). Junte-se a isso a sede de poder de Herodes, que vê na indicação da profecia, uma ameaça à sua condição de rei e senhor.

É bom ainda observarmos o medo que toma conta de Herodes: manda matar as crianças da redondeza de Belém. O medo de perder o poder faz-nos matar aqueles pelos quais nos sentimos ameaçados: uma palavra difamatória e arrogante, um gesto ofensivo, uma atitude de indiferença, fuga de responsabilidades, decisões políticas visando a vantagens pessoais etc.

Além disso, quantas crianças vítimas da fome, dos maus-tratos, da exploração. Investe-se pesado em armamento, em reformas de apartamentos públicos luxuosos que atendem aos interesses mercadológicos e vaidosos de seus moradores, enquanto que a educação, a saúde e o cuidado com os pequenos ficam relegados a segundo plano. Mesmo dentro de nossas comunidades: investimos muito recurso econômico em obras, reformas, objetos litúrgicos caríssimos ou em atividades que são vistosas, e investimos pouco em atividades sociais e missionárias que atendem às reais necessidades das crianças, dos idosos ou dos pobres e sofredores.

Peçamos ao Senhor que nos ajude a nos comprometermos na construção de um mundo mais humanizado, mais solidário, mais comprometido com os pequeninos do Reino. Todos aqueles que se empenham pela vida cabem dentro do projeto salvador de Deus. Precisamos nos unir mais em parcerias, a partir de nossas próprias comunidades e pastorais, e também com outras entidades que lutam pela vida do ser humano e do planeta, para que a luz brilhe para todos trazendo a esperança que supera o medo, o amor que supera o ódio, o serviço que vence a sede de poder e a ganância de ter sempre mais.

As pessoas de boa vontade encontram Jesus, mas os que vivem em função de seu próprio interesse (Herodes e companhia) têm medo de encontrá-lo: “Quem faz o mal odeia luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus” (Jo 3, 20-21).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN