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“Tu me amas?” - O amor é a alma da missão

aureliano, 29.04.22

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3º Domingo da Páscoa [1º de maio de 2022]

 [Jo 21,1-19]

A descrição do encontro de Jesus com os discípulos à beira do Mar da Galiléia tem clara intenção catequética. O evangelho quer mostrar que, somente com a presença de Jesus é que o trabalho evangelizador tem eficácia. Não adianta querer confiar somente em si mesmo, nas próprias forças. O trabalho resulta em vão. Outro elemento fundante no relato é o amor. A liderança que não ama a Jesus na pessoa dos irmãos mais pobres, mais fragilizados não dá conta de agir em nome do Mestre. Vai desanimar, pois está anêmica.

O trabalho se deu à noite. Ou seja, a vida para os discípulos estava obscura, sem horizonte, sem sentido. Passavam, provavelmente, por perseguições e dificuldades de todo tipo. Não se pode esquecer de que os discípulos seguem a iniciativa de Pedro, o líder, mas sem a presença de Jesus. Não adianta enfrentar a “escuridão” confiando nas próprias forças. É um trabalho sem frutos. Sem a presença de Jesus ressuscitado, sem a luz de sua palavra, não há evangelização fecunda, frutuosa.

“Ao amanhecer”, ou seja, sob a luz da presença de Jesus e alimentados por sua palavra, conseguem surpreendente resultado. É a luz que brilha nas trevas da noite. Eles só reconhecem a Jesus quando seguem, com docilidade, as indicações de sua palavra. Ninguém se faz missionário, evangelizador por si mesmo. É a Palavra de Deus que nos constitui. É ela que nos recria e nos orienta. Por isso dizia Santo Agostinho: “Creio para compreender”. Ou seja, precisamos seguir a Palavra de Jesus para acreditarmos na sua presença fecunda entre nós.

Uma das dificuldades que encontramos em nossas comunidades é o excesso de trabalho. Sempre as mesmas pessoas tentando dar conta de inúmeras atividades dentro da comunidade. Há excessiva preocupação com o rendimento, com resultados, quantificação; e um descuido em manter a presença viva do Ressuscitado no trabalho pastoral. Em que isso vai dar? Cansaço inútil, desânimo, abandono. O relato do evangelho de hoje nos indica que, o mais importante não é fazer muitas coisas, mas cuidar melhor da qualidade humana e evangélica do que fazemos.

Pe. Pagola diz uma palavra que nos ajuda a pensar em nossas práticas pastorais: “Não podemos cair na ‘epiderme da fé’. É tempo de cuidar, antes de tudo, do essencial. Enchemos nossas comunidades de palavras, textos e escritos, porém, o decisivo é que, entre nós, se escute a Jesus. Fazemos muitas reuniões, porém a mais importante é a que nos congrega a cada domingo para celebrar a Ceia do Senhor. Somente nele se alimenta nossa força evangelizadora”.

Pe. Herval, nosso irmão sacramentino, costuma dizer com muita sabedoria: “Nosso povo precisa é de alimento, não de documento”. E metaforiza: “A mãe não coloca na boca da criança de peito um bife, mas o peito cheio de leite. Isto é, aquilo que a mãe comeu, transformou-se em leite para alimentar seu filhinho. O líder evangelizador deve oferecer o que foi assimilado primeiro por ele mesmo”.

Junto a essa reflexão, é preciso atentarmos também para a importância de uma “fé agindo pela caridade” (Gl 5,6). É nessa direção que o evangelho de hoje nos aponta quando mostra Jesus pedindo a Pedro: “Tu me amas?”. A liderança da comunidade precisa alimentar um amor profundo por Jesus para aguentar os embates e desafios da missão. E este amor se concretiza no amor aos irmãos, particularmente aos mais necessitados. Não se trata de um amor de amizade ou de bem-querer. Trata-se de um amor-ágape. É aquele amor que enfrenta a morte, que empenha a vida, que assume as últimas consequências como Jesus, como Maria, como os santos. Amor doação, ou “amor-sacrifício”, na expressão do Pe. Júlio Maria.

Vamos dar uma olhadinha para nossas comunidades e nossa vida de fé. Que lugar ocupa Jesus ressuscitado em nossas atividades? O essencial tem sido o fazer ou a vida de intimidade com o Senhor? Partimos dEle ou partimos de nós? Os trabalhos que fazemos na comunidade são em função de nossa projeção e reconhecimento social ou para que o Reino de Deus se realize na história? Onde estamos?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Por uma paróquia leve e missionária

aureliano, 28.04.22

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Por uma paróquia leve e missionária

Com o tema: 30 anos de história: por uma Paróquia leve e missionária; e com o lema: “A minha alma engrandece o Senhor” (Lc 1,46), celebramos com entusiasmo o aniversário de nossa Paróquia. Queremos render muitas graças a Deus pelo dom que nossa Paróquia tem sido para tantas pessoas, famílias e comunidades.

No início, uma paróquia enorme, abrangendo boa parte do município de Maracanaú e parte também de Pacatuba. Desde Pajuçara até Mucunã, passando por Acaracuzinho e Jereissati. Em 2012, Dom José Antônio instituiu a Paróquia de São Francisco das Chagas, Jereissati II. Em 2013, São João Paulo II, Acaracuzinho. De modo que, a partir de 2014, nossa Paróquia se circunscreveu a Pajuçara, mesmo assim com muita gente, cerca de 53 mil habitantes. Atualmente animada por 14 comunidades eclesiais.

Ao iniciarmos nosso trabalho sacramentino aqui, em 1992, com os missionários Pe. José Herval, Pe. Geraldo Mayrink e Pe. Carlos Altoé, tendo a paróquia sido instituída e entregue aos cuidados da nossa Congregação, Missionários Sacrameentinos, por Dom Aloísio Lorscheider, havia já a intenção de se trabalhar a formação de comunidades eclesiais missionárias.

Pe. Herval, então pároco da iniciante paróquia, começou os trabalhos com o lema que sempre o acompanhou: “paróquia leve e missionária”. Para melhor compreensão e assimilação da nossa história, vamos retomar o registro feito pelo Pe. José Herval nas primeiras paginas do livro de Tombo da Paróquia:

“Como nós três missionários sacramentinos já tínhamos chegado a Maracanaú desde 26 de janeiro de 1992 e já tínhamos um razoável conhecimento de toda Maracanaú, particularmente da região que forma hoje a paróquia de Pajuçara tão logo foi criada a paróquia e tomamos posse de nossos cargos, partimos para o trabalho, dentro de nosso propósito, a saber: um trabalho em comunhão com a Arquidiocese.

Nossos primeiros passos foram reuniões com as lideranças refletindo a ‘Carta sobre a Ação Pastoral na Arquidiocese de Fortaleza’. Trata-se de um importante documento publicado em 1989.

Para a maioria da liderança, esse documento apareceu como uma novidade. Foi uma ‘Boa Nova’ que apareceu, e que começou a empolgar tanta gente sedenta de uma orientação firme e segura.

Baseados nessa ‘Carta’ e levando em conta a caminhada feita anteriormente, sobretudo a euforia por causa das ‘Santas Missões’ pregadas pelos Redentoristas, traçamos um pequeno plano para os inícios de nossas atividades. Fizemos isso, repetimos, porque já acompanhávamos este bom e acolhedor povo desde janeiro deste ano. Portanto, já era tempo de mostrarmos para o povo, particularmente para a liderança, um rumo a seguir. Nosso povo aqui tem muita iniciativa. Mas, o que é normal, confia nos seus pastores. Por isso nós sacerdotes e missionários não podemos deixar este povo migrante, confuso, decepcionado. Foi por isso que escrevemos o que tencionamos propor nas reuniões. E, de fato começamos logo a fazer reuniões em cima dessa ‘Banta’, o que animou muitos líderes. Deo gratias!

Como nossa intenção principal é firmar uma ‘paróquia leve e missionária’, e como tencionamos valorizar ao máximo as comunidades e seus ‘conselhos pastorais comunitários’, elaboramos a seguinte cartilha (...)” (a seguir, o livro de Tombo traz registrada a cartilha).

Missão: Nosso desejo é despertar em nossas lideranças e comunidades o espírito de missão que recebemos em nosso batismo. A missão é de Deus. Ele é quem nos chama, consagra e envia. Missão não é “devorar quilômetros” como nos recomendava Dom Helder Câmara. Nem tampouco fazer proselitismo. Missão é viver nossa consagração batismal, nosso compromisso com Jesus Cristo e com a Igreja. É ser uma presença confiante, que faça a diferença na vida das pessoas que partilham de nossa convivência. É ainda anunciar com a vida (e a palavra, se for preciso, como ensinava São Francisco) a realidade que transforma e dá sentido ao nosso caminhar.

Leveza: Esse elemento se dá na nossa atitude de perdão, de simplicidade, de humildade, de acolhida, de respeito por cada pessoa na sua condição. A leveza missionária acontece quando sabemos ceder, compreendemos os erros, valorizamos os acertos. A leveza missionária alimenta nossa espiritualidade quando colocamos a acolhida, o amor, a misericórdia antes da lei, da disciplina, do rigor, da exigência. Leveza missionária não é laxismo, não é “deixe fazer”, não é anarquia, não é concessão de privilégios. Leveza missionária é conduzir a história, as situações difíceis, os desencontros, as desavenças com o espírito de Jesus: “O meu jugo é fácil de carregar e o meu fardo é leve” (Mt 11,30).

Quando os primeiros moradores de Pajuçara tiveram a ideia de construir uma capelinha para o povo católico se reunir e celebrar, tiveram a feliz idéia de dedicá-la a Nossa Senhora da Conceição. Essa escolha não somente nos coloca sob a proteção e olhar da Mãe de Jesus e nossa, mas nos convida a que nossa vida, nossas ações, nossas decisões, nossos relacionamentos se inspirem na vida dela.

O lema que escolhemos para nossa festa dos 30 anos quer unir-nos a Nossa Senhora, Maria de Nazaré que louva e agradece ao Senhor por tudo que acontece em sua vida: “A minha alma engrandece o Senhor!” (Lc 1,46). Maria glorifica, engrandece o Senhor por tudo que operou em sua vida. Com nossa Boa Mãe, queremos continuar nossa caminhada inspirados na vida desta mulher que se abriu à ação de Deus e teve coragem de colocar todos seus sonhos e projetos a serviço de Deus. Seus projetos não são mais seus. Seus sonhos se dissiparam diante da proposta e convite que o Senhor lhe fez. Na humildade e confiança ela responde: “Eu sou a serva do Senhor”. De ora em diante seu viver é glorificação de Deus e serviço à humanidade.

Oração: Boa Mãe, Nossa Senhora da Conceição, pedimos tua intercessão: inspira nossas ações, fortalece nossa esperança, confirma nosso desejo de sermos bons cristãos/ãs, missionários/as zelosos. Ajuda-nos a ser mais fraternos, mais unidos e comprometidos com os pequenos, doentes e sofredores. Tira todo egoísmo do nosso coração e faze com que sejamos imagens vivas de Jesus, teu Filho amado e nosso irmão. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Pajuçara/Maracanaú, 27 de abril de 2022

Presença que afasta o medo... para tocar e curar os feridos na alma

aureliano, 23.04.22

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2º Domingo da Páscoa [24 de abril de 2022]

[Jo 20,19-31]

“Era noite e as portas estavam fechadas por medo”. Não nos pode passar despercebida essa realidade vivida pelos discípulos logo após a tragédia do Calvário. Para eles não havia luz: era noite. Não tinham horizonte. Não podiam vislumbrar novas possibilidades. Aquele em quem depositaram sua confiança ‘fracassara’ na cruz.

As portas estavam fechadas. A missão lhes era impossível. Não tinham coragem de sair.  Portas fechadas para que ninguém entrasse. Também ninguém podia se beneficiar da ação deles, pois se prenderam dentro da casa. Quem está de portas fechadas não sai nem permite alguém entrar. No Apocalipse lemos aquelas provocadoras palavras: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele” (Ap 3,20). Comunidade cristã, discípulo de Jesus não combina com porta fechada. Aliás, o Papa Francisco tem alertado para nossos templos católicos com portas fechadas: “A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais concretos dessa abertura é ter, por todo lado, igrejas com portas abertas” (EG, 47).

E o medo? Realidade terrível! Esse sentimento paralisa as pessoas. Impede que se façam boas ações. Muitas vezes reduz a pessoa dentro de seu eu, tornando-a ensimesmada, autocentrada, idiota. O medroso não arrisca. Mantém a porta fechada. Investe em sua própria segurança, por vezes em detrimento dos demais. O medo não permite amar. Impede de amar o mundo como Jesus amou. Não lhe confere o ‘sopro’ da vida e da esperança. A posse e o porte de armas preconizados pelo atual governo brasileiro que se diz cristão, chocam-se frontalmente com a proposta de Jesus: faz crescer o medo e alimenta o ódio, a vingança e a violência.

Eis que Jesus entra na casa. Para ele não há noite nem portas fechadas, muito menos, medo. Ele vem libertar os discípulos desses males que emperram a missão que lhes confiara. Não lhes impõe as mãos nem lhes dá a bênção, como sói fazer aos doentes. Jesus sopra sobre eles o sopro da força que vence o medo e lhes comunica a esperança. O sopro santo que tira o pecado e os envia em missão. As portas então se abrem, o medo se dissipa, pois a Luz venceu a escuridão que os envolvia.

É Jesus ressuscitado que salva a Igreja. É ele que vence o medo que nos envolve e paralisa. É ele que abre as portas do egoísmo e da indiferença. É ele que dá a esperança. Na força dele realizamos a missão. Cremos que ele continua vivo em nosso meio. Conhecedor de nossa fragilidade, ele continua a nos dizer: “Recebei o Espírito Santo”.

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ACOMUNIDADE BROTA E SE ALIMENTA DO RESSUSCITADO

O evangelho narra a aparição de Jesus aos Apóstolos no dia da Páscoa, primeiro dia da semana, e o episódio de Tomé oito dias depois. Por isso chamamos domingo o primeiro dia da semana: o dia do Senhor. É o dia da Ressurreição de Jesus, dia da Criação, dia do descanso do Homem/Mulher criados por Deus. Dia em que a comunidade cristã se reúne para dar graças ao Pai na celebração eucarística ou no culto dominical.

O relato mostra que aquele que ressuscitou é o mesmo que foi crucificado. Por isso o Ressuscitado mostra a Tomé as marcas da paixão. Tomé representa a comunidade que duvida e que depois acredita. Aqueles que devem crer no testemunho dos apóstolos. Se no início a comunidade é acometida pelo medo, agora é tomada pelo novo vigor e alegria de crer no Cristo ressuscitado, presente em seu meio.

“Bem-aventurados os que crerem sem terem visto”. Em vez de provas palpáveis, nos é transmitido o testemunho escrito das testemunhas oculares de tudo quanto Jesus fez e ensinou. Vivemos num mundo em que se exigem provas para acreditar. Muitos correm atrás de “milagres”. Se para acreditar precisamos de provas, de sinais do céu, restar-nos-ia acreditar em quê? Nossa fé não vem de provas palpáveis, mas das “testemunhas designadas por Deus” (At 10, 41). Nós acreditamos naquilo que elas acreditaram. Sabemos que seremos felizes se crermos sem ter visto.

Acreditamos na comunidade que os Apóstolos fundaram a partir da fé na ressurreição. É nesta comunidade que somos iniciados na fé, no discipulado. “A fé e o tesouro da mensagem evangélica são realidades que não se recebem pessoalmente, mas através da comunidade. A iniciação cristã pressupõe uma comunidade de fé” (Dom A. Possamai). Não é possível ser cristão sem estar inserido numa comunidade de fé. Nossa fé não é privada, mas apostólica e eclesial. “Para ser fiel a Cristo não basta orar e celebrar; é preciso fazer o que ele fez: repartir a vida com os irmãos. Crer não é somente aceitar verdades. É agir segundo a verdade do ser discípulo e seguidor de Cristo” (Pe. J. Konings).

Mais. Enquanto Tomé não fizera o encontro com o Senhor Ressuscitado tocando-lhe a chaga, não acreditara naquele a quem seguira por anos. O texto não diz que Tomé tocou a chaga do Mestre, mas permite perceber que ele a vira: “Estende tua mão e põe-na no meu lado... Porque viste, creste...” (Jo 20,27.29). Concluímos que, somente aquele que “tocar” a chaga do Ressuscitado poderá fazer uma profissão de fé que brota de dentro, isto é, verdadeira e comprometida. E que “chaga” é esta? Os pobres, preferidos do Senhor com quem ele se identifica: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Em outras palavras: quem diz crer em Jesus Ressuscitado e não o reconhece (“toca”) nos pobres e sofredores, mostra uma fé cristã imatura e inadequada. E se Tomé representa a comunidade cristã, o que foi dito vale para a comunidade que se diz cristã, mas não “toca” os pobres.

A propósito ainda de Tomé, esta figura controvertida do evangelho de João, podemos afirmar que suas dúvidas e objeções transformaram-se em bênçãos para nós. Quando na Ceia Jesus afirmou: “Para onde eu vou, vós já conheceis o caminho”, Tomé intervém: “Senhor, não sabemos para onde vais; como podemos conhecer o caminho?” Esta objeção de Tomé arrancou de Jesus uma das mais sublimes palavras do evangelho: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,4-6). São Gregório Magno, a propósito de Tomé, escreveu em uma de suas homilias: “A incredulidade de Tomé foi para nós mais útil do que a fé dos discípulos que haviam acreditado”. Suas dúvidas fortaleceram a fé na ressurreição.

Mais um pouquinho de Tomé. O Mestre, naquele encontro com seu apóstolo “incrédulo”, faz com que eleve seu nível de fé. Restabelecido pela presença do Ressuscitado, Tomé pronuncia aquelas palavras que ainda nenhum apóstolo atrevera a dizer, ao menos que se tenha registrado nos Evangelhos, a respeito de Jesus: “Meu Senhor e meu Deus”.

Peçamos ao Senhor que nos ajude na nossa pouca fé para que as sombras da dúvida, as incertezas e mesmo a perseguição ou o fracasso não nos dominem impedindo de levar a alegria da boa nova àqueles que jazem no desencanto, na desesperança, no isolamento. A experiência do encontro com o Ressuscitado deu novo vigor à comunidade para que pudesse continuar a missão entregue por Jesus. E, já que não podemos “tocar” ou “ver” as chagas do Ressuscitado, Ele, como fizera ao leproso que lhe suplicara: “Senhor, se queres podes curar-me”, ao que responde: “Quero; fica curado!” (cf. Mt 8,2-3), toque e cure nossas chagas, incontestavelmente diversas das suas, pois produzidas pelo pecado e não pelo amor. Que a Eucaristia que celebramos, encontro com o Ressuscitado, nos liberte do medo, nos encha de alegria e de ardor para partilharmos com os mais necessitados o pão, a palavra, o afeto, a acolhida, a solidariedade, o perdão.

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UM ENCONTRO QUE TRANSFORMA

O evangelho deste domingo nos convida a lançar um olhar sobre nossas assembleias dominicais: como celebramos e que sentido continua tendo o domingo para nós cristãos? As celebrações não precisam de teatros e shows para “atrair” as pessoas. Nem se destinam a isso! Precisamos de celebrações que ajudem os fiéis a fazer uma verdadeira experiência de Deus. E o domingo, o dia do Senhor, dia do descanso, dia da Criação, dia da Ressurreição, precisa recuperar seu sentido na vida do cristão.

Vivemos um tempo de crise sem precedentes na história da Igreja. Também a trajetória política e econômica de nosso País nos desencanta e entristece. Se não nos voltarmos para Jesus Cristo, realizando um encontro profundo com ele, um encontro capaz de renovar nossas estruturas mentais, de romper as dobras de nosso coração, não se manterá viva na história a memória de Jesus Ressuscitado. Pois há motivos de sobra para nos desacorçoarmos e desistirmos de nossa missão profética na história. Assim a Igreja ficaria omissa na sua missão de continuadora e atualizadora, pela força do Espírito Santo, dos gestos e palavras de Jesus.

O encontro com Jesus ressuscitado transformou a vida dos discípulos. E Tomé foi movido por aquela alegria contagiante de seus companheiros que lhe disseram: “Vimos o Senhor!” Embora tenha, inicialmente, relutado a crer, a fé dos seus irmãos o motivou a continuar dentro da comunidade. E Jesus lhe confirma a fé. Nossa presença e atuação dentro da comunidade de fé devem ser de encorajamento, encantamento, fortalecimento, estímulo para aqueles que participam. Jamais de decepção, de afastamento, de aborrecimento.

Tomé duvidou. O relato tem duas intenções: primeiro, quer mostrar que fora da comunidade é muito difícil se crer e se salvar; segundo, esse relato quer dizer que é preciso crer no testemunho dos discípulos. Não é preciso ver para crer. Confirma o que ocorreu ao discípulo que Jesus amava: viu o túmulo vazio e creu (cf. Jo 20,8). Sem ter visto o Senhor ressuscitado, acreditou. Quem ama, crê. Isso veio desfazer uma mentalidade crescente, na época, que todos os que quisessem aderir à fé cristã precisavam “ver” o Ressuscitado. De ora em diante se confirmou: “Bem-aveturados os que creram sem terem visto”.

Ainda um elemento que não pode ser esquecido no relato de hoje é o dom da Paz que Jesus dá aos discípulos e o dom do Perdão, grande presente pascal. A alegria da comunidade é experimentar, em meio ao medo da perseguição das autoridades judaicas, a paz que brota do coração amoroso de Cristo. E Jesus, sabendo das fraquezas humanas e dos pecados que daí provinham, oferece a “segunda tábua de salvação”, o sacramento da Reconciliação: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados”.

Mais do que nunca é urgente reafirmar nossa fé no Ressuscitado e na sua presença em nosso meio. Não se trata de pregar, de falar, de tentar convencer com afirmações doutrinais apenas, num proselitismo fanático. Isso vale muito pouco para o mundo em que vivemos. É preciso fazer experiência de um encontro verdadeiro. É notável quando uma comunidade está verdadeiramente imbuída do espírito de Jesus Ressuscitado. Ela procura viver como Jesus viveu: sabe escutar, tem sensibilidade, está atenta ao mais sofrido e necessitado. Não se rege por normas e leis, mas pela misericórdia. Não tem medo de enfrentar dificuldades e perseguições por causa de Cristo e em defesa dos pequenos e sofredores. Essa comunidade não se deixa levar pelo medo nem pela mania de grandeza nem pela ganância do dinheiro, do poder e da competição. Ela manifesta, no seu agir, o agir de Cristo. A comunidade se torna um espaço em que se experimenta a presença viva do Ressuscitado.

Sem a força do Cristo ressuscitado continuaremos com medo e de portas fechadas. Se não buscarmos nele a força e orientação de como lidar com os desafios atuais, não conseguiremos alimentar a esperança daqueles que ainda permanecem em nossas comunidades e, muito menos, atingiremos os ‘de fora’.

A paz, o perdão e a alegria são frutos da ressurreição. Quando participamos das celebrações e atividades de nossas comunidades precisamos voltar para casa mais animados, mais apaixonados por Jesus Cristo, mais confiantes, mais seguros de que estamos no caminho certo, mais vibrantes em nossa fé, mais confortados pela Palavra e pela Eucaristia, mais dispostos a colaborar e construir fraternidade. Se isso não estiver acontecendo, precisamos rever nossas celebrações, nossas comunidades e nossa vida.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

A vida do papai: um legado

aureliano, 17.04.22

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“A vida pra quem acredita, não é passageira ilusão.

A morte se torna bendita porque é nossa libertação.

Nós cremos na vida eterna e na feliz ressurreição.

Quando de volta à Casa paterna, com o Pai os filhos se encontrarão”.

Desde criança ouvia do papai, em voz retumbante, esse hino, dentre tantos outros hinos religiosos que ressoam ainda nos ouvidos de minh’alma saudosa, pois ficaram apenas saudosas lembranças: no dia 13 último, Quarta-feira Santa, meu pai, José Lopes de Lima, fez sua viagem definitiva para a Casa do Pai. Filho prestimoso, foi se encontrar com o Pai, de quem, certamente, recebeu o abraço de Pai misericordioso. Transportado aos ombros do Bom Pastor para os prados verdejantes reservados a todos que buscam, em sua peregrinação terrestre, fazer a vontade do Pai.

Diz a Sagrada Escritura que ninguém deve ser elogiado enquanto não terminar sua vida neste mundo (cf. Pr 27,1-2). Então agora posso tecer aqui algumas considerações sobre meu pai que julgo relevantes, sobretudo em relação aos sentimentos de afeto, de respeito, de admiração e de gratidão pelo que o Senhor realizou em sua vida.

Temor de Deus: papai sempre nos ensinou a amar e a temer a Deus. Sua vida se resumiu em cuidar da família, em ir à igreja para o culto religioso e em trabalhar para o sustento da família. Nos entremeios de tempo rezava, lia, visitava algumas poucas pessoas. Ia à rua somente para resolver alguma pendência como mercado, pagamento, recebimento da aposentadoria, farmácia, consulta ou outro serviço parecido. Afora isso, em casa. Sua convicção a respeito da fé era tão grande que, ao ser transferido da enfermaria para a UTI disse: “Nossa vida está nas mãos de Deus. Esta é a suprema verdade”

Amor á Igreja: homem de Igreja, era convicto de sua fé, obediente aos ensinamentos da Igreja, nunca duvidou do caminho que trilhava. Nunca obrigou os filhos a irem às celebrações. Mas sempre recomendou a participação com a palavra e o exemplo. Indo à cidade, seu primeiro compromisso era entrar na igreja e fazer sua oração diante do Santíssimo Sacramento.

Vida em família: firme, rigoroso, exigente em relação à disciplina nos compromissos diários. Não admitia mentira, desonestidade, enganação, furto de qualquer espécie, vícios, desrespeito. Se soubesse que algum filho estivesse em algum descaminho, nunca se furtava em chamar-lhe a atenção. Um aspecto importante a ressaltar é que ele nunca proibiu a nenhum filho nas suas buscas e decisões. Orientava, mas não impunha nada.

Paciente nas dificuldades: quando chegava cansado do serviço, nem sempre havia comida pronta. Ele buscava lenha, acendia o fogo, fazia a comida e chamava os filhos pequenos para comer e levava também para a mamãe com todo carinho. Aquilo era uma cena admirável, pois ele fazia tudo isso em silêncio, sem reclamar nem murmurar.

Amor a Nossa Senhora: um homem apaixonado pela Mãe de Jesus. Sempre rezou o terço. Quando voltava do trabalho, nas estradas e caminhos rurais, a pé, cansado, ao anoitecer, rezava o terço. Chegava à casa cansado, se sentava no banco de madeira à luz de lamparina. O mais novo corria para sentar em seu colo. E ele continuava rezando o terço de Nossa Senhora, silenciosamente. Por vezes cochilava e o terço caía no chão. Ele retomava, terminava, se lavava num “banho de gato” e ia descansar para a luta do dia seguinte.

Amor aos pobres: acolhia a todos que passavam em nossa casa. Nunca discriminava ninguém. Com todo carinho acolhia pessoas discriminadas por serem pobres ou deficientes, dando-lhes comida e guarida. Nunca nos dizia como devemos tratar as pessoas: ensinava com seu modo de fazer as coisas, de tratar as pessoas. Seu exemplo era seu ensinamento para nós. Sempre repartiu com os mais pobres que batiam à nossa porta.

Bens e posses: sua relação com os bens materiais era de total desapego. Não era consumista nem acumulador: se relacionava com total liberdade com o dinheiro, com aplausos e posses. Bem antes de morrer repartiu o pequeno sítio com os filhos sem nenhuma ressalva. Ajudava várias entidades religiosas e sociais com o pouco que tinha. Foi vicentino, congregado mariano, professor na juventude, pedreiro, carapina, mestre de obras, dirigente de encontros celebrativos etc. Nunca se apegou a nenhum cargo ou função nem se vangloriava de nada. Ao receber uma homenagem na Câmara Municipal de Guiricema, recentemente, perguntaram como se sentia. Respondeu sem rodeios: “continuo o mesmo”.

Netos e bisnetos: relação sempre afetuosa, carinhosa. Os netos mais crescidos e já mais conscientes dos acontecimentos choraram muito sua morte. Papai tratava-os com carinho, jogava baralho com eles, acolhia com ternura e afeto. A Patrícia, neta e cuidadora da mamãe e dele, escreveu um lindo texto que retrata bem seu cotidiano:

“Sabe o que dói? É ver aquelas roupas penduradas no guarda-roupas e saber que aquela camisa preferida ele não vai usar mais.

Sabe o que dói? É aquele ‘Bom dia minha querida...’ eu não vou ouvir mais.

Sabe o que dói? O café pontual das 15h que eu tomava com ele... agora não faz sentido mais.

Sabe o que dói? Aquele doce de leite que era o preferido dele... não é tão doce mais.

Sabe o que dói? Não ouvir seu batido de palmas, seu pulo repentino da cama e até o barulho de seus pés esfregando um no outro, pois o banho iria ficar pra depois.

Sabe o que dói? É olhar pra varanda e ele não estar sentado com o terço na mão. É ver sua bengala que não o apóia mais.

É saber que tudo que ele mais gostava: celular, noteboock e baralho agora estão num canto, pois não serão tocados por ele mais.

E mesmo doendo, doendo muito, sinto-me com o dever cumprido. E que ele não tem o que reclamar de mim. E isso me consola e fortalece para eu continuar seguindo...” (Patrícia Freitas).

Deus seja louvado pela vida do papai nesta sua Páscoa definitiva. Posso afirmar dele pelo que conheço de perto, como filho: "Combateu o bom combate, completou a carreira, guardou a fé". Um esteio pra nossa família, um esposo quase pai da mamãe, um pai firme e zeloso, um avô afetuoso. Homem de Deus, de fé firme, cheio de amor pelos pobres, apaixonado pela Eucaristia, por Nossa Senhora, pela Igreja. Deixou pra nós, seus filhos, um legado de firmeza, de desprendimento, de fidelidade, de honestidade, de fé, de justiça, de simplicidade, de humildade.

Muito obrigado, papai, pela vida dedicada a todos nós. O Deus a quem o senhor procurou sempre amar e servir lhe dê a felicidade sem fim. A mim me resta agradecer sempre mais a Deus pelo dom da vida do papai. Uma vida que se fez vida para todos nós, seus filhos e filhas. Deixou grande legado. Queremos fazê-lo florescer e frutificar.

Finalmente, deixo uma palavra de minha irmã primeira, Maria Marta, que viveu todos os seus anos ao lado do papai. Era seu anjo da guarda, seu braço direito, seu apoio, em quem o papai confiava plenamente. Por último foi sua cuidadora, zeladora, como o é da mamãe:

“Quanta falta estou sentindo do senhor! O que mais gostava de fazer era escrever e responder todas as mensagens. E fazia com muito carinho. Claro que não deixava de fazer suas orações. Descanse em paz, meu querido pai. Vou continuar cuidando da mãe com o mesmo carinho. Tenho certeza que está junto de Deus”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

A morte foi vencida pelo Autor da vida

aureliano, 16.04.22

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Páscoa do Senhor [17 de abril de 2022]

[Mc 16,1-8; Jo 20,1-9]

Pedro e Madalena representam, aqui, a comunidade que ainda duvidava da ressurreição de Jesus. Estavam em busca de provas e elementos que dessem sentido à vida deles, uma vez que, aquele em quem confiavam, morrera na cruz.

Quando o evangelho menciona “o primeiro dia da semana”, remete o leitor à criação do mundo, narrada no livro do Gênesis, para mostrar que a Ressurreição de Jesus é a Nova Criação. O fiel cristão, batizado, entra numa vida nova, na Nova Criação de Deus. O mundo velho passou. Agora, é tudo novo.

A “madrugada” lembra o alvorecer que desfaz as trevas da morte. Agora a vida brilhou no horizonte. A madrugada, embora traga em si o sinal do dia, possui também uma penumbra que impede de enxergar com clareza. É o que acontecia com Maria Madalena: “ainda estava escuro”. A comunidade ainda estava temerosa.

A “pedra removida” e o “túmulo vazio” são sinais de que algo novo aconteceu. É um sinal negativo da ressurreição. Esses sinais indicavam que Jesus não estava ali, porém não garantiam sua ressurreição.  A “pedra removida” significa que a morte foi vencida. O túmulo não é último lugar do ser humano. Este, pelo Cristo ressuscitado, vence também a morte e entra na vida que não tem fim, a vida eterna que já começa aqui, a partir da vida vivida em Deus, à semelhança de Cristo.

O “túmulo vazio” não é prova da ressurreição. A fé na ressurreição não vem da visão, mas da experiência de fé. As “aparições” de Jesus ressuscitado é que consolidam a fé dos discípulos. É o dado da fé. Uma realidade que transcende a razão. Não contradiz a razão, mas está para além da compreensão puramente racional. Por isso Santo Agostinho dirá: “Credo ut intelligam”: creio para compreender. Nós cremos pelo testemunho de fé da comunidade. A fé nos é transmitida. Cremos a partir da experiência que outros fizeram. Fazendo nós também essa experiência, transmitimo-la àqueles que a buscam. Porém, tudo é ação da Graça de Deus.

Pedro e o “outro discípulo” vão correndo ao túmulo. O “discípulo amado” chega primeiro que Pedro. Quem ama tem pressa. Ele “viu, e acreditou”. É o amor que faz reconhecer na ausência (túmulo vazio), a presença gloriosa do Cristo ressuscitado. Agora os discípulos entendem o que significa “ressuscitar dos mortos”. Agora eles vêem, não com os olhos humanos, mas com os olhos da fé. Agora estão iluminados pelo sopro do Espírito Divino que animou Jesus.

Nenhum evangelista se atreveu a narrar a ressurreição de Jesus. Não é um fato “histórico” propriamente dito, como tantos outros que acontecem no mundo e que podemos constatar e verificar, empiricamente. É um “fato real”, que aconteceu realmente. Para nós cristãos, é o fato mais importante e decisivo que já aconteceu na história da humanidade. Um acontecimento que traz sentido novo à vida humana, que fundamenta a verdadeira esperança, que traz sentido para uma das realidades mais angustiantes do ser humano: a morte. Esta não tem mais a última palavra. A pedra que fechava o túmulo foi retirada. A ressurreição é um convite, em última instância, a crer que Deus não abandona aqueles que o amaram até o fim, que tiveram a coragem de viver e de morrer por Ele.

O núcleo central da ressurreição de Jesus é o encontro que os discípulos fizeram com ele, agora cheio de vida, a transmitir-lhes o perdão e a paz. Daqui brota a missão: transmitir, comunicar aos outros essa experiência nova e fundante de suas vidas. Não se trata de transmitir uma doutrina, mas de despertar nos novos discípulos o desejo de aprender a viver a partir de Jesus e se comprometer a segui-lo fielmente. Ressuscitados com Cristo, buscamos “as coisas do alto”, temos o nosso “coração no alto”. A consagração batismal fez de nós novas criaturas. Incorporados a Cristo, enxertados n’Ele, queremos viver “por Cristo, com Cristo e em Cristo” para a glória de Deus Pai. É um modo de vida que transforma a pessoa, a comunidade e a sociedade. Transbordamento de uma alegria que não cabe dentro de nós: é comunicada aos outros. Não nos conformamos mais com injustiça, com mentira, com violência, com traição, com desrespeito, com preconceito, com maldade de toda sorte. Nossa vida se torna profetismo, esperança, inconformismo, saída, cuidado, encontro vivificador.

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ELE VIVE PARA ALÉM DA MORTE

O Senhor ressuscitou em verdade (cf Lc 24, 34). A Igreja celebra a ressurreição do Senhor no primeiro dia da semana, o domingo. Domingo vem de dominus, senhor. Ele dominou a morte e o pecado. Por isso é Senhor. Ele exerce o senhorio sobre nós. Não de dominação, mas de cuidado, libertação e salvação. Ele é mais forte do que o mal que nos ameaça e, por vezes, domina.

O evangelho diz que Maria Madalena foi ao túmulo “quando ainda estava escuro”. Essa escuridão simboliza as sombras (angústias) vividas pelos discípulos após a morte de Jesus. Era como se todo o sonho tivesse acabado. Não sabiam o que fazer. Estavam na escuridão.

O testemunho da ressurreição inclui dois elementos: o sepulcro vazio e a aparição do Ressuscitado. O sepulcro vazio constitui um sinal negativo. Só fala ao “discípulo que ele amava”: “Ele viu e acreditou”. Ou seja, os sinais falam quando o coração está aquecido pelo amor. É preciso ser amigo de Jesus para compreender seus sinais. Já a aparição do Ressuscitado acontece no caminho de Emaús (Lc 24), aos discípulos desejosos de ver o Senhor e auscultar sua Palavra. No gesto da partilha do pão seus olhos se abrem e eles o reconhecem. Em seguida assumem a missão: “Naquela mesma hora, levantaram-se e voltaram para Jerusalém” (Lc 24, 33).

A escuridão da madrugada e o túmulo vazio nos dizem que por vezes ficamos confusos diante da maldade humana, diante de tantos abusos do poder, de tanta violência e morte, de tanta corrupção que desencanta e desestimula o poder do voto nas eleições, diante do sofrimento sem fim dos refugiados de guerras civis; e somos levados a perguntar: “Deus, onde estás?”. Mas a experiência de fé nos diz que na morte (‘túmulo vazio’, ‘noite’) há sinais de vida; na escuridão há lampejos de luz. Para isso é preciso ser “amigo de Jesus” (discípulo amado), ou seja, ser próximo dele, conviver com ele, reclinar-se sobre seu peito (cf. Jo 13,25).

Esse tempo pascal nos convida a assumir a vida nova que Jesus Ressuscitado veio nos trazer sendo uma presença de luz, de testemunho vivo contra toda maldade junto àqueles que o Pai colocou no nosso caminho.

Ressurreição é luta contra o tráfico de seres humanos, contra as injustiças sociais, contra a prostituição e abuso de crianças e adolescentes. É dizer não ao desrespeito aos povos indígenas, ao mundo das drogas, à indiferença ecológica. Ressurreição é se contrapor, ainda que à semelhança de alguém que ‘clama no deserto’, a esse mar de corrupção e mentiras, ganância e deslealdade que pervadem nossa sociedade brasileira; é dizer não aos desmandos de quem se julga no direito de retirar o pão da mesa dos trabalhadores pobres, das mulheres sofridas, das crianças sem amparo, negando-lhes o salário mínimo do benefício da Previdência Social. Páscoa é libertação de tudo o que oprime, maltrata e fere.

Ressurreição é ser testemunha da esperança numa sociedade materialista e desumana, onde o túmulo está vazio e as sombras da morte parecem prevalecer. Páscoa é continuar afirmando com a vida: “Ele vive e está no meio de nós!”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“Está consumado”

aureliano, 15.04.22

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Sexta-feira Santa [15 de abril de 2022]

[Jo 18,1 – 19,42]

Incluindo a Quinta-feira à noite, a Sexta-feira Santa é o primeiro dia do Tríduo Pascal. Dia de jejum como sinal sacramental da participação no sacrifício de Cristo. Também é um gesto de solidariedade com as vítimas da fome e da miséria. Hoje é o único dia do ano em que não se celebra a Eucaristia, absolutamente. Faz-se a celebração solene da Liturgia da Palavra, à tarde, com adoração do Cristo na cruz e distribuição da comunhão.  Não é o dia de luto da Igreja, mas de amorosa contemplação da oferta de Cristo na cruz pela humanidade. Essa contemplação tem um caráter de ressurreição, uma vez que a morte de Cristo é inseparável de sua ressurreição. Por isso chamada de beata passio, santa e feliz paixão.

De algum modo a Sexta-feira Santa se prolonga no Sábado. Dia em que a Igreja se coloca em silêncio orante. Celebra o repouso de Cristo no sepulcro, depois da vitória na cruz. É a experiência da morte humana pela qual Cristo passou. É a esperança da vitória de Cristo sobre a sombra da morte: “O Filho do homem... deve... ser levado à morte e ressurgir ao terceiro dia” (Lc 9,22).

Este tempo não é de morte, mas de vida germinal; é noite que aponta à aurora; são as noites escuras da vida que desembocam na alegria da alvorada. É tempo de esperança. “A esperança não decepciona porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).

O Mistério Pascal constitui o núcleo central da fé cristã. A morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré e a consequente efusão do Espírito sobre toda a Criação trouxe vida nova para toda a humanidade. Um triunfo paradoxal: morte que trouxe vida!

A celebração litúrgica da tarde não tem ritos iniciais: começa com a oração-coleta. Os atos litúrgicos constam de quatro partes: Liturgia da Palavra, Preces Universais, Adoração de Cristo na Cruz, Distribuição da Comunhão Eucarística (Santas Reservas da missa de Quinta-feira Santa).

MEDITANDO O EVANGELHO:

Os relatos da Paixão do Senhor segundo João trazem alguns elementos significativos que gostaria de ressaltar:

“Sou eu” (Jo 18,5): Essas palavras proferidas por Jesus fez com que os soldados caíssem por terra. Querem mostrar a liberdade com que Jesus caminha para a morte: “Ninguém tira a minha vida porque eu a dou livremente” (Jo 10,18).

“Embainha a tua espada” (Jo 18,11): Jesus é o Príncipe da Paz. Não admite combater violência com violência. Ademais, ele veio para cumprir a vontade do Pai. Nenhuma força humana deve ser empecilho para que ele leve adiante a missão que o Pai lhe confiou. Combater a violência em nosso País por meio de ação violenta e repressão não pode ser o caminho da paz e da harmonia que todos desejam. A indústria da guerra, a posse e o porte de arma de fogo por civis são um atentado contra o Evangelho da Paz. Dizer que “conhece a verdade” do Evangelho e mandar matar é uma contradição inconcebível.

“Se falei bem, por que me bates?” (Jo 18,23): Este quadro da Paixão merece longa contemplação. Diante da resposta objetiva e verdadeira de Jesus ao Sumo Sacerdote, um guarda desfecha-lhe uma bofetada. A atitude de Jesus deixa sem resposta qualquer ação violenta. Uma cena que revela o altíssimo grau de serenidade de Jesus diante dos perseguidores e sua ternura para com os violentos. “Não resistais ao homem mau; antes, àquele que lhe fere a face direita oferece-lhe também a esquerda” (Mt  5,39).

“Meu reino não é deste mundo” (Jo 18,36): Jesus se coloca majestosamente em sua paixão diante dos poderosos que brigam e matam pela conquista e resguardo do poder. Ele não reina pela força, pelo exército, pela violência. Ao entrar em Jerusalém montado num jumentinho e não num cavalo, quis mostrar a que veio: promover a paz na simplicidade, na humildade, no serviço. Conquista e reina nos corações daqueles que assumem em sua própria vida o que ele ensinou. Ele não domina, mas conquista, atrai.

“Não terias poder algum sobre mim se não te fosse dado do alto” (Jo 19,11): Essa resposta de Jesus a Pilatos mostra que toda autoridade e poder vêm de Deus. Ora, sendo Deus o Autor e Criador de todas as coisas, não se pode compreender nem aceitar que alguém faça uso do poder ou autoridade em benefício próprio. Todo poder deve ser exercido em vista do bem de todos. É o poder-serviço ensinado por Jesus aos seus discípulos: “Sabeis que os governadores das nações as tiranizam e os grandes as dominam. Entre vós não deverá ser assim. Ao contrário, aquele que quiser tornar-se grande entre vós, seja aquele que serve, e o que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o vosso servo” (Mt 20,26-27). Infelizmente, as forças políticas, econômicas e, por vezes, as religiosas, caminham na contramão do Evangelho: busca do poder pelo poder.

“Repartiram entre si minhas roupas” (Jo 19,24): Notamos nesta passagem que Jesus não possuía nada. A única coisa que trazia consigo, sua veste, torna-se objeto de disputa. No que tange aos pobres de quem os ricaços arrancam o manto e a carne, calha bem a advertência da Escritura: “Se tomares o manto do teu próximo em penhor, tu lho restituirás antes do pôr-do-sol. Porque é com ele que se cobre, é a veste do seu corpo: em que deitaria? Se clamar a mim, eu ouvirei, porque sou compassivo” (Êx 22,25-26).

“Mulher, eis aí o teu filho” (Jo 19,26): Aqui, conforme a tradição da Igreja, Jesus nos dá Maria, sua mãe, por nossa Mãe. Ele nos assume como irmãos, não nos deixa órfãos. Dá-nos o que tem de mais precioso: sua Mãe. O discípulo amado, isto é, aquele que vive no amor de Deus, tem Maria por sua Mãe. Nesta cena do evangelho se consuma o que fora iniciado nas bodas de Caná: “Minha hora ainda não chegou” (Jo 2,4). A Hora de Jesus é a Cruz. A mulher, Maria, simboliza a comunidade salva na entrega de Jesus, o Noivo, na Cruz.

“Tenho sede” (Jo 19,28): Este clamor de Jesus na cruz nos remete ao relato de seu encontro com a samaritana no poço de Jacó (cf. Jo 4, 1-42). “Dá-me de beber” disse ele àquela mulher. Jesus tem sede de salvar, de perdoar, de se doar. E, ao mesmo tempo, ele é a água que sacia nossa sede: “Quem beber da água que eu lhe darei, nunca mais terá sede” (Jo 4,14).

“Está consumado” (Jo 19,30): Foram as últimas palavras de Jesus. Ele consumou a missão que o Pai lhe confiara. Não recuou, não desistiu, não se intimidou frente às ameaças, não se deixou levar pelos encantos enganosos da fama e do poder. Com ele e por ele, Paulo pode dizer mais tarde: “Quanto a mim, já fui oferecido em libação, e chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé” (2Tm 4,6-7). Oxalá cada um de nós possa dizer com serenidade de consciência tais palavras como prece ao Pai na hora derradeira da vida!

“Entregou o espírito” (Jo 19,30b): Essa palavra do evangelho tem o sentido da entrega de sua vida ao Pai, mas também da entrega do Espírito Santo à Igreja, àqueles que continuam sua missão no mundo. Um Pentecostes! É no Espírito de Jesus que a Igreja deve caminhar: oferecer-se em oblação pela vida e pela paz no mundo. Podemos fazer a memória de Estêvão, protomártir da fé cristã, que também ‘entregou o espírito’: “Senhor Jesus, recebe meu espírito”. Confirmando que nele agia o mesmo Espírito que agiu em Jesus, ainda perdoa seus algozes antes de morrer: “Senhor, não lhes leves em conta este pecado” (At 7,59-60).

Hoje é dia de silêncio, de recolhimento, de contemplação. É a maior prova do amor de Jesus por nós: entregar sua vida na cruz. Com a Igreja rezamos: “Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos porque pela vossa santa cruz remistes o mundo”. E proclamamos na liturgia da tarde: “Eis o lenho da cruz do qual pendeu a salvação do mundo. Vinde adoremos!”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Amou-nos até o fim

aureliano, 14.04.22

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Quinta-feira Santa [14 de abril de 2022]

[Jo 13,1-15]

Neste primeiro dia do Tríduo Pascal celebramos a instituição da Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do Senhor, que se desdobra em dois aspectos: a instituição do Sacerdócio Ministerial e o Serviço Fraterno da Caridade.

Perpassando o evangelho de João, notamos que não há referências aos gestos rituais de Jesus sobre o pão e o vinho como o fazem os outros evangelistas. O discurso de Jesus sobre a Eucaristia está no capítulo 6° de seu evangelho.

No discurso de despedida, João salienta o gesto de Jesus ao lavar os pés de seus discípulos. Não pede que seu gesto seja reproduzido ritualmente, mas que devemos “fazer como ele fez”. Ou seja, devemos refazer em nossas relações o que Jesus fez naquele gesto simbólico: amor gratuito que torna presente o “sacramento” do amor de Cristo por todos nós. O “lava-pés” deve ser o modo de proceder, o estilo de vida da comunidade dos seguidores de Jesus: “Dei-vos o exemplo para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 15,15).

O sacramento do amor

A Eucaristia, memorial do sacrifício de Jesus, é o sacramento do Corpo e Sangue de Cristo que nos é dado como alimento: “Todas as vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor até que ele venha” (1Cor 11,26). Esta presença real-sacramental do Senhor ressuscitado no pão e no vinho se estende também, de algum modo, aos irmãos. Por isto não se pode conceber a comunhão eucarística sem referência aos irmãos. Particularmente aos mais pobres e necessitados. E Paulo alerta: “Quando, pois, vos reunis, o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor; cada um se apressa em comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado” (1Cor 11,20).

A Campanha da Fraternidade deste ano propõe uma profunda reflexão sobre a Educação. Trabalhar a pessoa humana no seu todo, e não apenas no aspecto intelectual e técnico, pois este modo de se trabalhar a educação exclui, fragmenta e fecha o ser humano no seu egoísmo insano e mortal. Além disso não se pode compreender que se faça leilão dos recursos públicos da Educação impedindo que se melhore o sistema educacional, particularmente nas regiões pobres e marginalizadas de nosso País. Falar com sabedoria e ensinar com amor é atitude profundamente eucarística.

Se a Eucaristia que celebramos não nos move a gestos eucarísticos de partilha, de respeito, de cuidados, de acolhida a cada irmão e irmã, não estamos celebrando a Memória de Jesus. A Eucaristia se efetiva em nossos gestos e atitudes de misericórdia para com nossos irmãos e irmãs.

SACERDÓCIO MINISTERIAL

Os gestos que Jesus realiza de “levantar-se”, “tirar o manto”, “vestir o avental”, “lavar os pés” revelam como devem ser as relações na comunidade: não de poder, mas de serviço. Portanto, o sacerdócio ministerial, para ser coerente com o dom recebido, deve ter como inspiração os gestos de Jesus no ‘Lava-pés’.

Quem preside à comunidade, preside também a Eucaristia. Reúne a comunidade para a oração, para a escuta da Palavra, para o serviço aos pobres, distribui as tarefas e partilha os bens ofertados. Assim proclama o Concílio Vaticano II sobre a missão do sacerdote: “De coração, feitos modelos para o rebanho, presidam e sirvam de tal modo sua comunidade local, que esta dignamente possa ser chamada com aquele nome pelo qual só e todo o Povo de Deus é distinguido, a saber: Igreja de Deus” (LG, 28).

Neste dia, na Missa Crismal, o presbitério renova as promessas sacerdotais diante do Bispo. Uma destas promessas revela claramente a missão do padre. Ela reza assim: “Quereis ser fiéis distribuidores dos mistérios de Deus pela missão de ensinar, pela sagrada Eucaristia e demais celebrações litúrgicas, seguindo o Cristo Cabeça e Pastor, não levados pela ambição dos bens materiais, mas apenas pelo amor aos seres humanos?”

CENA SIMBÓLICA

Vamos contemplar os gestos de Jesus e sua relação com nossa vida:

- vestir o avental: revestir-se de simplicidade, de ternura, de presença, de serviço desinteressado.

- tirar o manto: arrancar tudo que impede o serviço, a prontidão, a disponibilidade.

- levantar-se da mesa: estar à mesa é muito bom. Mas há sempre uma situação que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Levantar-se da mesa e sentar-se à mesa é uma dinâmica constante em nossa vida. Movimentos de partida e de chegada.

- levantou-se da mesa: não se pode servir permanecendo no comodismo. Algo precisa ser feito. O Senhor “precisa” de mim, como precisou do jumentinho: “O Senhor precisa dele”.

- ficar de pé: é a atitude que tomamos quando ouvimos o evangelho na celebração. Significa prontidão para deslocar-se, para sair em qualquer direção. Prontidão para viver a Boa Nova do Reino de Deus. Estar à mesa é sinal de fraternidade, mas é preciso saber a hora certa de se levantar e sair para servir.

- tirou o manto: é abrir mão do poder. Algo que brota de dentro. O manto impede a liberdade dos movimentos. Ele traz a aparência de poder. Há “mantos” que prendem e amarram. O Senhor trocou o manto pelo avental. Quais são meus “mantos”? Costumo colocar o avental?

- colocou água na bacia...: Jesus não faz serviço pela metade. Não tem receio de se inclinar até o chão para lavar os pés dos seus discípulos. Não faz distinção de ninguém. Lava os pés de todos.

- depois, voltou à mesa: retomou o manto, mas não tirou o avental. Ele quer mostrar que seu discípulo deve ser sempre servidor. Não se pode tirar o avental do serviço. Qualquer posto ou cargo ou ministério que se ocupar deve estar ali, sob o manto do poder, o avental do serviço. Então deve ser poder-serviço. Todo exercício de poder sem a dimensão do serviço (avental) está fadado a oprimir, a se corromper, a sacrificar vidas.

Vê-se, pois, que a Eucaristia foi instituída para formar um só Corpo. O corpo sacramental de Cristo no pão consagrado deve transformar o comungante no Corpo eclesial. O Espírito Santo transforma o pão e o vinho no Corpo e Sangue de Cristo, para que a assembleia celebrante e comungante se transforme no Corpo do Senhor, a Igreja. Provém daí a expressão clássica: a Eucaristia faz a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia. Isto tem consequências profundas em nossa vida. A comunhão eucarística nos compromete com os membros (do corpo) que sofrem, que passam fome, que pecam, que estão afastados, que experimentam o abandono, que padecem por causa de nossas omissões e covardias. O senhor deu-nos o exemplo para que façamos o mesmo que ele fez: amou-nos até o fim!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Entre aclamações e insultos

aureliano, 09.04.22

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Domingo de Ramos [10 de abril de 2022]

[Lc 9,28-40 (Ramos); Lc 22,14 – 23,56 (Paixão)]

Estamos entrando na Semana Santa! Esta Semana passou a ser celebrada com a intenção de rememorar a Paixão do Senhor. Na Idade Média ela tomou corpo e fôlego, sobretudo pela tentativa de reviver o episódio da Paixão do Senhor descrito pelos evangelistas. Esta semana era até chamada de Semana Dolorosa, pelo fato de se dramatizarem os sofrimentos de Cristo.

Parece simples, mas o conhecimento desse dado histórico é interessante porque pode nos ajudar a entender o porquê das vias sacras e outras representações da Paixão do Senhor. Fiquemos então atentos para não nos perdermos nos folclores e dramatizações, mas adentrarmos misticamente no Mistério profundo da livre entrega de Jesus por nós (cf. Jo,10,18), manifestação do amor do Pai, e nos atermos ao Mistério fundante de nossa fé cristã, a Ressurreição do Senhor, vitorioso sobre o pecado e a morte.

RAMOS

Este domingo se chama, na verdade, Domingo de Ramos da Paixão do Senhor. Jesus entra triunfante em Jerusalém para sofrer a Paixão. Portanto, celebramos dois acontecimentos: a aclamação de Jesus como o “Bendito que vem em nome do Senhor”, e a contemplação de sua Paixão. É o único domingo do ano em que a Igreja celebra a Paixão propriamente dita de Jesus, proclamando no Evangelho os relatos da Paixão.

Jesus pediu aos discípulos para buscar um jumentinho. Deviam dizer aos interrogantes: “O Senhor precisa dele”. O Senhor quer também precisar de nós. Somos os “jumentinhos” do Senhor. Nós temos nos colocado à disposição dele? Ou costumamos “empacar”? – Refletindo sob outro aspecto: fazemos dos outros nossos jumentos, nossos escravos? Há falta de respeito, de fraternidade? Levo junto os fardos da vida ou jogo o peso sobre os ombros dos outros?

A PAIXÃO DO SENHOR

No Crucificado vemos, não somente um inocente condenado, mas nele, nós cristãos, contemplamos todas as vítimas do preconceito, da maldade e da injustiça de todos os tempos. Na cruz com Jesus estão as vítimas da fome, as crianças abandonadas e exploradas, as mulheres maltratadas, os explorados à custa de nosso bem-estar, os esquecidos por nossa Igreja, os espoliados pela cultura da corrupção descarada, os espancados e mortos pela truculência de alguns que, por terem uma arma na mão ou o poder de decidir, se julgam donos da vida alheia.

Esse Deus crucificado não é o Deus controlador, que está em busca de honra e glória. Não! É o Deus paciente e humilde que respeita a liberdade de seus filhos e lhes quer sempre o bem, a felicidade e a alegria. Não é um Deus vingativo, justiceiro. Mas um Deus que manifesta sempre o perdão e a misericórdia.

Nós cristãos continuamos a celebrar o Deus crucificado porque vemos nele o Deus “louco” de amor por todos nós. Ele é a força que sustenta nossa esperança e nossa luta pela justiça e pela paz. Acreditamos que Deus não passa ao largo de nossas lágrimas, sofrimentos, lutas e fracassos. Ele está no calvário de nossa existência. A cruz erguida entre as nossas cruzes nos lembra que Deus sofre conosco.

SEMANA SANTA

Nesta semana a Igreja nos convida a contemplar Jesus que oferece sua vida como dom ao Pai. Ele não vai à cruz porque gosta de sofrer ou porque quer morrer. Jesus não é suicida nem sado-masoquista! A paixão e sofrimento por que passa são consequências de sua fidelidade ao Pai. Seu amor e paixão pelo bem da humanidade o levam à cruz. A contemplação de Cristo crucificado deveria nos levar a agradecer ao Pai por nos ter dado Jesus como Salvador. O Pai olha para seu Filho, vítima da maldade humana, como a olhar para todos aqueles que são injustiçados, vitimados por uma sociedade que sacrifica os jovens, os idosos, os doentes, as mulheres e as crianças, todos vítimas indefesas dos detentores do poder político e econômico.

Jesus continua passando pelas nossas ruas e praças. Por vezes aplaudimos Jesus em uma celebração ou culto, depois o insultamos no rosto do desvalido! Isso é muito grave! Precisamos de um sério exame de consciência nesta Semana Santa!

Portanto, a celebração da entrada de Jesus em Jerusalém deve valorizar não tanto os ramos, mas o mistério expresso pela procissão que proclama a realeza messiânica de Cristo.

CAMPANHA DA FRATERNIDADE

Hoje é dia da coleta nacional da Campanha da Fraternidade! Trago aqui uma palavra do Papa Francisco que nos ajuda na sintonia e comunhão com nossa Igreja do Brasil.

“É nocivo e ideológico o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista; ou então relativizam-no, como se houvesse outras coisas mais importantes, como se interessasse apenas uma determinada ética ou um arrazoado que eles defendem. A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura e em todas as formas de descarte. Não podemos propor um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo,  onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente(Gaudete et Exsultate, n.101).

Seu gesto solidário de cristão católico, demonstra sua participação efetiva nas ações da Igreja e de outras organizações sociais, a quem parte dessa coleta poderá chegar, beneficiando os excluídos do “bolo” que deve ser de todos.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Jesus não veio condenar, mas salvar

aureliano, 01.04.22

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5º Domingo da Quaresma [03 de abril de 2022]

[Jo 8,1-11]

Estamos nos aproximando da celebração da Páscoa do Senhor. Esse tempo da quaresma quer-nos ajudar a perceber onde estamos e por onde devemos caminhar. A conversão é a palavra central, pois sem este exercício não se vive a proposta de Jesus. A proposta para desviar-nos do caminho de Jesus é-nos feita constantemente pelas forças do mal. Os textos bíblicos deste tempo vêm-nos ajudar a rever nossa caminhada batismal. Que diferença tem feito em nossa vida sermos batizados ou não?

O relato do evangelho deste domingo é muito conhecido. Está dentro do evangelho de João, mas certamente não é escrito joanino, pois seu gênero literário não coincide com o de João. A crítica literária o coloca mais próximo de Lucas, sugerindo que ele deveria estar em Lc 21,38. Nem todos os manuscritos trazem esse relato dentro do evangelho de João.

Aliás, é bom lembrar que é o texto iluminador da Campanha da Fraternidade desse ano: Fraternidade e Educação. Jesus é um grande educador: Enxerga o problema, escuta, sente o pavor daquela mulher e os argumentos do seus justiceiros. Não polemiza, não acirra ânimos,  não pensa o problema de modo isolado. antes procura escutar em silência o que dizem. Depois, em diálogo, conduz pedagogicamente todas as partes envolvidas para que sintam e reflitam sobre as fragilidades humanas, às quais todos estão sujeitos (Texto-Base, 21).

Uma vez que esse texto foi reconhecido pela comunidade cristã como texto inspirado por Deus, o que nos interessa mesmo no evangelho de hoje é que ele traz um grande ensinamento para nós e nossas comunidades. Fazendo memória do evangelho do domingo passado (parábola do Pai misericordioso), notamos aqui mais uma confirmação do rosto misericordioso do Pai que Jesus nos veio revelar. É uma realização prática daquelas palavras da Escritura: “Quero a misericórdia e não o sacrifício” (Mt 12,7). E ainda: “Não quero a morte do pecador, mas que ele se converta e viva” (Ez 33,11).

Quando o evangelho diz que o povo ficava em volta de Jesus para escutá-lo significa que ele tinha algo de novo, que fazia a diferença na vida daquelas pessoas. Jesus tinha uma força que atraía as pessoas, conquistava, particularmente os marginalizados. Como diz Marcos: “Ele ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas” (Mc 1,22).

Trazem uma situação para Jesus resolver: uma mulher surpreendida em flagrante adultério. (Só não trouxeram o homem que adulterava com ela! – cf. Dt 22,22). Aliás, já estava resolvido para os mestres da Lei e os fariseus: “Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres”. O gesto de Jesus de se inclinar e escrever com o dedo no chão pode indicar que estava dando um tempo e pensando como iria responder àquela pergunta capciosa. É a indicação de que a gente não deve responder sem pensar a perguntas e situações que envolvem a vida dos outros. É preciso parar, pensar, rezar, pedir inspiração ao Espírito Santo. Foi o que fez Jesus.

E a resposta sábia de Jesus colocou todos ‘contra a parede’: “Quem dentre vós não tiver pecado seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. Com essa resposta Jesus quis dizer que a ninguém é permitido tirar a vida do outro, por maior que seja o seu pecado ou o seu crime.

Com essas palavras e atitudes Jesus condena a pena de morte. Por aí se vê claramente como atitudes de alguns governos andam na contramão do Evangelho. Bíblia na mão, mas a Palavra de Deus longe do coração. Não basta dizer que tem fé em Deus, frequentar o templo ou citar frases bíblicas soltas, descontextualizadas. Como diz Frei Carlos Mesters: “Todo texto fora de contexto se torna pretexto”.

Não se combate o mal com violência. Não há notícia na face da terra de que alguma violência tenha trazido algum benefício. Já a tolerância, a misericórdia, o perdão, a reconciliação sim. É preciso quebrar a corrente da violência. É preciso mudar de lente e de coração. Muito interessante observar o olhar de Jesus. Não condena, mas salva. Enquanto os homens viam uma adúltera, Jesus via uma mulher.

O perdão de Deus antecede nosso arrependimento: Esse relato nos quer fazer compreender também que o perdão de Deus é gratuito. Deus não nos perdoa porque nos arrependemos. Não! Na verdade nós nos arrependemos porque Deus nos perdoa. Em Lucas 7,47 encontramos Jesus na relação com aquela mulher pecadora que demonstra muito amor porque foi perdoada. Ou seja, Deus não nos perdoa porque amamos muito, mas nosso amor é resposta ao perdão que ele já nos deu. Deus nos perdoa sempre e sem condições. Se não fosse assim estaríamos esvaziando a Encarnação e a Cruz de Jesus. Não teria sentido sua vinda ao mundo! A salvação dependeria de nós e não da graça de Deus! Não precisamos ocultar nossa condição de pecadores, mas aceitá-la como lugar de perdão e de encontro profundo com Deus misericordioso.

Jesus não vê uma adúltera, mas uma mulher: Para o judeu piedoso, a santidade de Deus não admite diante de si qualquer realidade impura. E o Código de Santidade protegeu as mulheres em alguns aspectos, mas em outros trouxe muito embaraço devido à compreensão que se tinha de pureza. Vamos acompanhar o comentário de Frei Mesters, Ir Mercedes Lopes e Francisco Orofino:

“Desde Esdras e Neemias, a tendência oficial era de excluir a mulher de toda a atividade pública e de considerá-la inapta para qualquer função na sociedade, a não ser para a função de esposa e mãe. O que mais contribuiu para a sua marginalização foi a lei da pureza. A mulher era declarada impura por ser mãe, por ser esposa, por ser filha, por ser mulher. Por ser mãe: dando à luz, ela se torna impura. Por ser filha: o filho que nasce traz 40 dias de impureza; mas a filha, 80 dias! (cf. Levítico 12). Por ser esposa: a relação sexual a torna impura durante um dia (cf. Levítico 15,18). A mulher menstruada ficava sete dias impura. E quem a tocasse também se tornava impuro por contágio (cf. Levítico 15,19-23). E não havia meio para uma mulher manter sua impureza em segredo, pois a lei obrigava as outras pessoas a denunciá-la. Esta legislação tornava insuportável a convivência diária em casa. Durante sete dias em cada mês, a mãe de família não podia deitar na cama, nem sentar-se numa cadeira, nem tocar nos filhos ou no marido, se não quisesse contaminá-los! Esta legislação é fruto de uma mentalidade segundo a qual a mulher era inferior ao homem. Alguns provérbios revelam essa discriminação da mulher. A marginalização chegou ao ponto de se considerar a mulher como a origem do pecado e da morte e a causa de todos os males (cf. Eclesiástico 25,24).

Desta maneira se justificavam e se mantinham o privilégio e a dominação do homem sobre a mulher. Por exemplo, se um homem depois de algum tempo de casado, não gostasse mais da sua mulher, podia livrar-se dela dizendo que ela já não era virgem quando se casaram. Se os pais da mulher não conseguissem provar o contrário, ela seria apedrejada (cf. Deuteronômio 22,13ss). A lei em relação ao divórcio é outro exemplo do privilégio do homem, pois somente ele tinha o direito de pedir o divórcio, mandando a mulher embora se já não a quisesse (cf. Deuteronômio 24,1-4). A lei previa a morte do casal adúltero, mas na prática somente a mulher era julgada e condenada por adultério” (www .cebi.com).

Felizmente, há outros textos e livros da Sagrada Escritura que mostram a ação de Deus no mundo através da mulher. Temos o livro do Cântico dos Cânticos, Rute, Judite, Ester. Maria, mãe de Jesus, tem uma participação ímpar nessa história de salvação! Então é preciso mudar a mentalidade em relação à mulher, romper com o machismo ainda tão presente na sociedade e construirmos uma sociedade de igualdade de direitos e deveres. Isso precisa começar dentro de nossa casa, de nossa Igreja.

Os pequenos gestos de acolhida, de reconhecimento, de perdão, de respeito podem transformar a maneira de pensar e de viver da sociedade. Isso é conversão: de um olhar condenatório a um olhar transformado por uma vida em Cristo. Um olhar e um coração transfigurados por Cristo ressuscitado. Eis o ideal cristão.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN