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aurelius

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Seguimento a Jesus

aureliano, 24.06.22

13º Domingo do TC - C - 26 de junho.jpg

13º Domingo do Tempo Comum [26 de junho de 2022]

[Lc 9,51-62]

O evangelho de Lucas descreve Jesus numa longa caminhada para Jerusalém. Ali ele vai entregar sua vida. Ressuscitado, enviará seus discípulos para a missão até os confins da terra. Sua missão terrestre termina em Jerusalém. E a missão da Igreja (recebida de Jesus) também começa aí.

No relato do evangelho do domingo passado (Lc 9, 18-24) vimos o diálogo sobre a identidade de Jesus, a predição de sua paixão e o convite ao discipulado com a cruz. Continuando o relato, notamos que Jesus, a partir de então, não será mais apresentado como “profeta”, pois agora sabem que ele é o “Cristo de Deus”. A partir de agora surgirão as resistências e rejeições às suas ações e palavras.

Dizer que Jesus tomou a “firme decisão” (“endureceu a face”, numa tradução literal) de subir a Jerusalém, indica que ele previa que, para ser fiel ao Pai, precisava decidir por Ele, estar disposto a enfrentar a perseguição, a cruz, a morte. O prenúncio da resistência já se manifesta na rejeição que os samaritanos fazem aos seus enviados.

Se no Primeiro Testamento aparece a figura de um Deus que castiga seus opositores, aqui é clara a nova compreensão que Jesus deseja incutir em seus discípulos. Eles querem empregar a Lei do Talião: “Senhor queres que mandemos descer fogo do céu para destruí-los?”. Agora, em Jesus, é preciso “oferecer a outra face”. Não se pode pedir a destruição dos opositores num uso e abuso de poder. Na dinâmica de Jesus o poder está sempre a serviço da paz e da fraternidade.

Nestes primeiros versículos Jesus nos ensina que o cumprimento da vontade do Pai implica firmeza na decisão. As correntes contrárias são muito mais fortes do que nós. Se não firmarmos o rosto na direção de Deus, dispostos a “bofetões e cusparadas” (cf. Is 50,6), certamente vamos desanimar, ou entrar nas ondas do mal. Jesus não está interessado em mais seguidores, mas seguidores comprometidos, capazes de renunciar às falsas seguranças do dinheiro e do poder e se entregarem ao serviço do Reino de Deus.

No caminho para Jerusalém aparecem três situações que merecem ser contempladas:

  1. Alguém quer seguir a Jesus. Sua resposta é radical: “O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. Jesus não oferece bem-estar a seus seguidores. Quem estiver em busca de segurança, de dinheiro, de reconhecimento, de fama, de sucesso não serve para segui-lo. A religião trazida por Jesus não é lugar de refúgio contra os males do mundo, mas um espaço de encontro e de intimidade com o Senhor que nos toma pela mão e nos coloca em vulnerabilidade para que “todos tenham vida” (Jo 10,10). É na fraqueza que a força se manifesta (cf. 2Cor 12,9). Todos sabemos aonde levam os apegos excessivos aos bens e às pessoas: desencontro, rixa, assassinato, guerra, ódio, divisão, pranto e lágrima.
  2. Nesta outra cena Jesus é quem chama: “Segue-me”. Mas o moço queria primeiro enterrar o pai. A resposta de Jesus é desconcertante: “Deixe que os mortos enterrem seus mortos; mas tu vai anunciar o Reino de Deus”. Jesus alerta para aquelas situações de apego à família quando esta é empecilho para o serviço ao Reino de Deus. Ninguém deve retardar ou frear o serviço de Deus. Os “mortos”, aqueles que vivem em função de si mesmos, não podem impedir o serviço à vida. Aqui há um aceno à primeira leitura: Eliseu pediu para “beijar o pai e a mãe” e depois seguir a Elias (cf. 1Rs 19,20). Jesus radicaliza: o Reino de Deus não admite adiamento, procrastinação.
  3. Nesta terceira cena, outro se oferece para segui-lo, mas com a condição de, primeiro, despedir-se dos seus familiares. A resposta de Jesus mostra que, para segui-lo, é preciso olhar para frente: “Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus”. Por vezes é preciso contrariar os próprios familiares para nos mantermos fiéis ao Evangelho. Este deve ser a regra máxima de nossa vida: nos negócios, na relação com o dinheiro, na construção da família, nas relações de trabalho, nas relações de amizade, nas opções políticas. Este relato remete-nos também à primeira leitura de hoje, pois faz referência à lavra de terra com junta de bois (1Rs 19,19). Jesus vai além: não usa da violência de Eliseu que sacrificou os bois e nem permite que primeiro se despeça dos familiares. Ou seja, é preciso olhar para frente, ter audácia para seguir os passos de Jesus. É a necessidade de superação de uma religião estática, presa ao passado. Um olhar para frente, com criatividade, com esperança.

O relato do evangelho deste domingo nos faz notar que Jesus desejou constituir um grupo de discípulos. Não se preocupa em ensinar-lhes doutrina, mas torná-los seus seguidores. A profissão deles de agora em diante é a de serem anunciadores de um novo modo de vida. Por isso devem abandonar o modo de vida anterior. Ao sentir-se chamado, cada um deve tomar uma decisão firme. A primeira atitude é a profissão de fé, o reconhecimento de que Jesus é o “Cristo de Deus”. Uma vez que Jesus é reconhecido como Aquele em quem depositamos nossa fé (cf. 2Tm 1,12), o discípulo deve se desprender dos bens materiais, do prazer mundano, do poder pelo poder, do apego ao dinheiro, da busca de si mesmo  para viver a liberdade dos filhos de Deus: “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1.13).

Somente pela ruptura com as forças do mal: a mentira, o ódio, o preconceito, o mundanismo perverso, a sede do poder, a mentira se é capaz de gerar um seguimento comprometido, uma liberdade verdadeira, um discipulado autêntico, uma fé cristã genuína, uma Igreja fiel a Jesus.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Que lugar Jesus ocupa em nossa vida?

aureliano, 18.06.22

12º domingo do TC - C - 19 de junho.jpg

12º Domingo do Tempo Comum [19 de junho de 2022]

[Lc 9,18-24]

O terceiro evangelho (Lucas) narra uma grande caminhada de Jesus para Jerusalém. Em breve (13º domingo) a liturgia vai trazer o início desta caminhada. Para realizarem o discipulado, seus seguidores devem reconhecer sua identidade como o Messias, Filho de Deus, e colocarem-se corajosos e confiantes em seu seguimento até à cruz.

No relato de deste domingo notamos três aspectos que compõem este texto: 1º) Após a oração, um diálogo messiânico com os discípulos. 2º) A predição da paixão. 3º) Um convite ao seguimento radical.

Em primeiro lugar notamos que, no evangelho de Lucas, Jesus sempre toma as decisões depois de um encontro profundo e amoroso com o Pai. Ao perguntar seus discípulos sobre a compreensão que tinham dele, ele o fez depois de um momento orante. Essa relação de intimidade de Jesus com o Pai nos ajuda a perceber a necessidade que temos de realizar, com frequência, esse encontro. Particularmente nos momentos decisivos de nossa história. Sem ele nossa vida cai no vazio, na falta de sentido, e no desvio do cumprimento da vontade do Pai.

Depois, notamos nesse diálogo, uma confusão na compreensão da identidade de Jesus. Nos relatos dos domingos anteriores (Lc 7,11-17; 7,36 – 8,3) vimos a busca de identificar Jesus com “o Profeta”: “Um grande profeta apareceu no meio de nós”, e ainda: “Se este homem fosse um profeta, saberia...”. Hoje o relato diz que alguns identificavam Jesus com “algum dos antigos profetas que ressuscitou”. Por aí se vê, claramente, o desejo de encontrarem aquele “Profeta” prometido (cf. Dt 18,15).

Para nossa alegria Pedro reconhece em Jesus de Nazaré o “Cristo de Deus”. Ele é mais do que um profeta. Nele o Pai se revela, mostrando ao mundo sua bondade e ternura.

Nossa grande dificuldade é a de assumir Jesus de Nazaré como nosso Senhor. Dizer que acreditamos nele e que recorremos a ele nas necessidades é fácil. Mas será que ele é mesmo o centro de nossas celebrações, reuniões, decisões, escolhas? Nossa vida, nossas atitudes revelam o rosto de Jesus?

Em segundo lugar, lemos no evangelho a predição da paixão do Senhor. Os discípulos ainda não tinham entendido a missão de Jesus. Concebiam a Jesus como um líder político que iria livrar a Palestina das garras do poder romano. Jesus quer mostrar-lhes que será rejeitado por parte da liderança político-religiosa do Israel de então. Sua fidelidade incondicional ao Pai vai custar-lhe alto preço. Mas está disposto a enfrentar o sofrimento e a morte para resgatar a humanidade do poder do mal. Encara livremente a realidade de cruz. Há dentro de nós convicções firmes de fé a ponto de enfrentarmos os esquemas de mentira e de maldade pela defesa da verdade, da justiça, da paz? Estamos dispostos a abraçar a cruz com Jesus?

O terceiro elemento do relato de hoje está associado ao segundo: a dimensão da cruz. O discípulo de Jesus não estará isento da cruz. Não há como colocar-se no seguimento de Jesus sem disposição de deixar para trás um modo de vida egoísta, ganancioso, acomodado. Podemos até chamar a Jesus de Mestre. Mas isso não fará nenhum sentido se não nos comportarmos como discípulos seus. O discipulado cristão exige um despojamento constante e uma perseverante atitude de conversão cotidiana: “Tomar a cruz a cada dia”.

Papa Francisco fala do significado e marca da cruz na vida do cristão: “Ninguém pode tocar a Cruz de Jesus sem deixar algo de si mesmo nela e sem trazer algo da Cruz de Jesus para sua própria vida”. E, mais adiante, traz um ensinamento muito interessante: “A Cruz de Cristo também nos convida a deixar-nos contagiar por este amor; ensina-nos, pois, a olhar sempre para o outro com misericórdia e amor, sobretudo quem sofre, quem tem necessidade de ajuda, quem espera uma palavra, um gesto; ensina-nos a sair de nós mesmos para ir ao encontro destas pessoas e lhes estender a mão. Tantos rostos acompanharam Jesus no seu caminho até a Cruz: Pilatos, o Cireneu, Maria, as mulheres... Também nós diante dos demais podemos ser como Pilatos que não teve a coragem de ir contra a corrente para salvar a vida de Jesus, lavando-se as mãos. Queridos amigos, a Cruz de Cristo nos ensina a ser como o Cireneu, que ajuda Jesus levar aquele madeiro pesado, como Maria e as outras mulheres, que não tiveram medo de acompanhar Jesus até o final, com amor, com ternura. E você como é? Como Pilatos, como o Cireneu, como Maria?” (JMJ, 26 de janeiro de 2013).

A confissão de fé em Jesus Salvador pressupõe adesão da mente e do coração. Não valem apenas palavras. Não basta dizer-se cristão. É preciso sê-lo. Ser cristão é Graça e Tarefa: dom de Deus que nos acolheu e adotou como filhos e filhas. Esse dom pede de nós resposta diária comprometida, vital. “Confessamo-lo abertamente como Deus e Senhor nosso, mas às vezes Ele não significa quase nada nas atitudes que inspiram nossa vida. Por isso, é bom ouvir sinceramente sua pergunta: ‘E vós, quem dizeis que eu sou?’ Na realidade, quem é Jesus para nós? Que lugar ele ocupa em nossa vida diária?” (Pe. Antônio Pagola, O caminho aberto por Jesus, p. 150).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Celebrar a Eucaristia compromete a vida

aureliano, 15.06.22

Corpus Christi - 20 de junho - C.jpg

Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Cristo [16 de junho de 2022]

[Lc 9,11-17]    

O relato da multiplicação dos pães está emoldurado pelo contexto de fim de missão dos discípulos e profissão de fé de Pedro seguida do anúncio da Paixão e condições para o seguimento. Parece que Lucas quer dizer que a Eucaristia refaz as forças do missionário e lhe dá condições de continuar seguindo o Mestre em meio às incompreensões e perseguições. O discípulo é chamado a reafirmar a fé: “Tu és o Cristo de Deus” (Lc 9,20). Ou como em João: “Senhor, a quem iremos? Tens palavras de vida eterna e nós cremos e reconhecemos que tu és o Santo de Deus” (Jo 6,68-69).

No livro dos Atos dos Apóstolos lemos que as primeiras comunidades cristãs tinham como distintivo a refeição comunitária: “Punham tudo em comum... Dividiam os bens entre todos segundo as necessidades de cada um... Partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade” (cf. At 2, 42ss).

O gesto de Jesus ao reunir o povo no deserto e repartir com eles o pão é uma imagem da Igreja. Ele quis que a Eucaristia fosse alimento para todos, representados nessa multidão. Não quis tomar como modelo as refeições que se faziam para alguns poucos, pessoas da mesma classe ou que podiam pagar pelo banquete.

A Eucaristia é sinal dos tempos novos e definitivos trazidos por Jesus. Neles as divisões e perseguições são superadas. O escândalo da desigualdade econômica e social, da fome crescente, da concentração de renda, da marginalização, da destruição do meio ambiente é incompatível com a Eucaristia. Não é possível ter comunhão com Cristo entregue por nós e desprezarmos os irmãos: “Quando, pois, vos reunis, o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor; cada um se apressa por comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado” (1Cor 11,20-21). Na Eucaristia Cristo identifica a comida partilhada com sua própria pessoa. Onde não se reparte o pão, Cristo não pode estar presente.

“Na multiplicação dos pães, Jesus não fez descer pão do céu, como o maná de Moisés. Nem transformou pedras em pão, como lhe sugerira o demônio quando das tentações no deserto. Mas ordenou aos discípulos: ‘Vós mesmos, dai-lhes de comer’... e o pão não faltou. Porém, se não observarmos esta ordem de Jesus e não dermos de comer aos nossos irmãos, ele também não poderá tornar-se presente em nosso dom. Então, não só o pão, mas Cristo mesmo faltará” (Pe. Johan Konings, in Liturgia Dominical, p. 397).

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A Eucaristia é o memorial da morte e ressurreição de Jesus. Fazer memória significa não somente lembrar, mas celebrar e mergulhar no mistério de Cristo. É nos colocarmos dentro de toda a vida de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus que, vindo a esse mundo, entregou sua vida por nós. Por isso, na celebração da Eucaristia nós devemos nos empenhar para fazer com que “a mente, o coração concorde com a voz, com as palavras”, no dizer de São Gregório.

Se celebramos a entrega de Cristo, não estamos fazendo um show. Então a missa não é show, promoção pessoal do padre e seja lá de quem for. Nossa atitude deve ser de compenetração, de humildade, de escuta atenta, de acolhimento, de exame de consciência. Isso nos tem recomendado insistentemente o Papa Francisco: “A Missa não é um espetáculo: é ir ao encontro da paixão e ressurreição do Senhor” (08 de novembro de 2017).

No decorrer da História a missa teve várias conotações. Serviu para coroar papas e reis, para agradecer vitórias de guerra, para enfeitar festas e agradar monarcas e senhores poderosos. Os músicos transformaram partes da missa em concertos belíssimos. Outros faziam da missa sua devoção particular. Ainda hoje, em vários lugares, é quase uma “exigência” para falecidos: “missa de corpo presente”, “missa de sétimo dia” etc. É claro que tem sua importância, mas ocorre que muitos pedem esse tipo de celebração para “salvar o falecido”, sem se envolver pessoalmente com a comunidade de fé. Uma espécie de superstição.

O Concílio Vaticano II recuperou o sentido originário da Eucaristia: Memorial da Morte e Ressurreição do Senhor. Quando a comunidade se reúne para celebrar a Eucaristia, ela traz sua vida, suas dores e alegrias e coloca no Coração de Cristo, para que ele, verdadeiro Celebrante, pela oração da Igreja, ofereça ao Pai.

Ao participarmos da Eucaristia estamos nos comprometendo a ser “um só Corpo”. A comunhão no Corpo e Sangue de Cristo nos compromete com Ele. A entrega de Cristo que celebramos pede, exige de nós o gesto de entrega, de doação, de comprometimento com Cristo pela reconstrução da História segundo os critérios do Reino de Deus. Não pode ser verdadeira “comunhão” a busca de um intimismo egoísta que não abre nossos olhos para “ver as necessidades e os sofrimentos de nossos irmãos e irmãs”, e não nos inspira a termos “palavras e ações para confortar os desanimados e oprimidos, os doentes e marginalizados”.

Nesse dia que celebramos a solenidade do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue do Senhor, somos instados a olhar para o Cristo que se doa, que se entrega, que salva, que enfrenta a morte para que tenhamos vida. Essa contemplação deve nos levar a dar mais um passo em direção a uma vida mais comprometida. Não adianta adorar o Cristo no altar e desprezá-lo no pobre. De pouco vale celebrar a Eucaristia, participar de uma adoração, e depois falar mal dos outros, negar o salário justo, sonegar os impostos e direitos sociais, enganar os outros, ser desonesto nos negócios e no trabalho, se omitir diante das injustiças sociais, levantar bandeiras que defendem a discriminação, a violência, o armamento da população, o aborto, o preconceito, o desrespeito, a morte.

A Eucaristia, “fonte e ápice de toda a vida cristã”, deve ocupar o centro de nossa espiritualidade, de nossa oração, de nossas escolhas e decisões. Se Cristo decidiu firmemente enfrentar a morte pela nossa salvação, também nós, seus discípulos e discípulas, precisamos nos dispor a esse caminho. Pois “o discípulo não é maior do que o mestre”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

As consequências da fé batismal

aureliano, 10.06.22

Santíssima Trindade - 07 de junho 2020.jpg

Domingo da Santíssima Trindade [12 de junho de 2022]

[Jo 16,12-15]

Celebramos hoje a Solenidade da Santíssima Trindade. Quase sempre, neste dia, ficamos presos a explicações intelectualizantes sobre a Santíssima Trindade. Numa tentativa de ‘explicar o inexplicável’. Ou seja, o Mistério de Deus em Três Pessoas deve ser crido e não explicado. Deve ser entendido, porém a partir do ‘mergulho’ (batismo) nele. No dizer de Santo Agostinho “é preciso crer para entender” (credo ut intelligam). Ultrapassa nossa inteligência humana e limitada, mas não a contradiz. É um mistério que nos envolve, nos fascina, nos encanta: tremendum et fascinans, (tremendo e fascinante), na expressão de Rudolf Otto. Não se trata de algo inacessível ou incognoscível. Mas trata-se de um mistério que nos ultrapassa, nos espanta, nos encanta e nos atrai. Enquanto não nos deixarmos tomar por ele para nele nos movermos e existirmos (cf. At 17,28), não conseguiremos compreendê-lo.

Desejo discorrer um pouco sobre a profissão de fé, realidade implícita ao batismo, sacramento que nos introduz na vida de Deus e na comunidade cristã. Professamos a fé através do Credo, todos os domingos na celebração eucarística; renovamo-la nas celebrações batismais; mas ainda não damos conta do que esta realidade significa e compromete nossa vida toda.

Imediatamente antes de derramar a água na cabeça daquele que vai ser batizado, o ministro o convida a fazer a promessa de ‘renúncia ao mal’ (conversão); em seguida o convida a professar a fé (“crês”). Por este ato a Igreja professa sua fé no Pai, no Filho, no Espírito Santo. Queremos ajudar a compreender o que isso significa em nossa vida.

Creio em Deus Pai todo poderoso: reafirmamos nossa fé em Deus que é nosso Pai, que nos criou e cuida de nós com carinho. Um Pai que não nos abandona. Mesmo quando passamos por sofrimentos e tribulações, por dificuldades que não compreendemos e que por vezes não buscamos nem merecemos, Ele está ao nosso lado. Ampara-nos com seu amor que nunca falha. Sua promessa jamais será tirada. Podemos dizer com confiança Pai nosso, isto é, Paizinho querido (Abbá)! Mesmo que estejamos naquelas situações de risco, de desespero, de desalento, de decepção, Ele está perto de nós, dentro de nós. Muitos o negam. Muitos quebram a aliança de amor que Ele fez conosco. Nossos filhos recusam seu amor. Mas Ele continua fiel e amoroso. Podemos confiar nele. Cremos nele!

Nesses tempos de destruição galopante do meio ambiente, de exploração irresponsável e insustentável da terra, é bom nos lembrarmos de que Deus Pai é o Criador de todas as coisas. Ele criou o mundo para que cuidemos dele, o cultivemos com respeito e amor. E pensemos em quem virá depois de nós. Os agrotóxicos sem medida, as mineradoras irresponsáveis, os desmatamentos desumanos, as poluições dos rios e dos lençóis freáticos são uma bofetada no rosto do Pai Criador. É destruição daquilo que Ele criou para todos. A terra não pertence a quem tem dinheiro. Ela foi criada para todos os seres vivos. É um dom do Pai para todos nós. Não tem dono. Deve ter cuidadores, cultivadores, zeladores, jardineiros.

Creio em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor. Jesus, o Filho do Pai amado, nascido da Virgem Maria. É o presente de Deus para nós. Veio a esse mundo e entregou sua vida por nós. Mostrou-nos quem é o Pai. Seus gestos e palavras são expressão de que o Pai nos ama e quer nosso bem e nossa salvação. Devolve a saúde aos doentes, dá o perdão aos pecadores, acolhe a todos que vêm a ele em busca de conforto, de perdão e de paz. Tudo nele revela o rosto bondoso e maternal do Pai/Mãe que cuida de todos com carinho e amor. O Filho mostrou-nos o caminho da vida: é preciso amar sempre, até o fim, dar a vida. “Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso”. Se nos esquecemos de Jesus, se o deixamos de lado, quem vai preencher o vazio do nosso coração? Somente Jesus pode preencher as profundezas e compreender as ‘dobras’ do nosso coração. Somente uma vida vivida de acordo com o ensinamento de Jesus pode ser verdadeiramente feliz. É a consequência do batismo.

Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida: é o mistério que celebramos no domingo de Pentecostes: o Espírito Santo foi derramado em nossos corações. Recebemos a missão de ‘fazer discípulos e de batizar’, porém com a força do Espírito Santo. Ele já nos foi dado. Está dentro de cada um de nós. É o amor do Pai e do Filho. É o “Vento” santo de Deus que nos coloca em movimento, como aconteceu à Virgem Maria que, uma vez inundada da força do alto, foi às pressas ajudar sua prima Isabel. Esse “Sopro” santo nos deixa leves, nos ajuda a abandonar as “obras da carne” para vivermos a “liberdade dos filhos de Deus”. É o “sopro” que nos perdoa, nos liberta, nos santifica, nos leva em direção àqueles que precisam de nós. É o Espírito de Deus que nos ajuda a vencer o espírito do mundo: o lucro a qualquer custo, a ganância, a mentira, a corrupção, a exploração, a preguiça, o comodismo. É o “Senhor doador da vida” que nos move a defender a vida sempre e em qualquer circunstância.

É nesta fé que fomos batizados. É esta a realidade que professamos e que somos chamados a viver. Não se trata, pois, de ‘segredos’ nem de ‘mistérios’, mas de um convite amoroso a vivermos essa fé trinitária, fazendo de nossa vida um hino de louvor à Trindade Santa: “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo para sempre. Amém”. Lembrados sempre do dizer de Santo Irineu de Lião: “A glória de Deus é o ser humano vivo. E a vida do ser humano é a visão de Deus”.

Santo Agostinho, tentando entender o Mistério da Santíssima Trindade, passeava pela praia e viu uma criança colocando água do mar num poço feito na areia. Brincou: “O mar nunca caberá aí”. Ao que a criança respondeu: “Assim também não vai caber na tua cabeça o mistério da Santíssima Trindade”. Pois bem, se não conseguimos colocar o mistério do amor de Deus em nossa cabeça, coloquemos nossa cabeça e nossa vida toda dentro desse mistério! Ou seja, deixemo-nos envolver pela Trindade Santa que nos habita para que nossa vida seja expressão de sua bondade no mundo.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Espírito Santo, Senhor que dá a vida

aureliano, 03.06.22

Pentecostes - 05 de junho 2022.jpg

Solenidade de Pentecostes [05 de junho de 2022]

[Jo 20,19-23 ou Jo 14,15-16.23-26] 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Inicialmente celebrada pelos israelitas, Pentecostes era a comemoração da colheita dos primeiros frutos do trigo. Porque marcava o 50º dia depois do início da colheita, era, por esse motivo, chamada de Pentecostes. (Confira Ex 23, 14-17; 34, 22; Lv 23,15-21; Dt 16, 9-12). É a festa da colheita. Portanto, tempo de muita alegria e fartura.       

A narrativa de At 2, 1-11 mostra a importância que ganhou na Igreja esta festa. Fazendo uso de um recurso literário, Lucas faz o Pentecostes cristão coincidir com o Pentecostes judaico. O Espírito se manifesta confirmando a missão que os discípulos haviam recebido do Mestre. Pentecostes marca o nascimento da Igreja. É a celebração dos frutos do Ressuscitado: o perdão e a paz que brotam de seu Coração bondoso, superando o egoísmo e a maldade do coração humano.

A MENSAGEM DO EVANGELHO

No próprio dia da Páscoa Jesus vem entregar o Dom do Espírito Santo aos seus discípulos. Este Dom garante a continuação da missão de Jesus no mundo. A missão de dar a paz e de tirar o pecado do mundo: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19); “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23). É o próprio Jesus agindo por meio de sua Igreja.

“As portas estavam fechadas por medo dos judeus”: Esse relato nos faz pensar no medo que tomava conta dos discípulos antes de serem revestidos do Dom do Pai. Como o medo nos paralisa, nos fecha em nós mesmos, nos impede de servir! O medo é um sentimento que precisa ser assumido e trabalhado em nós. Quando agimos movidos pelo medo fazemos muito mal a nós e aos outros. Medo de assumir um trabalho na comunidade; medo de arriscar; medo de assumir a própria vida; medo de romper com relações que escravizam e destroem a própria vida e a vida dos outros; medo de falar e de viver a verdade; medo movido pela preocupação excessiva com a própria imagem: o que vão pensar ou dizer? Medo de chamar para conversar sobre dificuldades interrrelacionais. Medo da doença, medo da morte, medo de ser abandonado, desprezado, ridicularizado. É preciso vencer o medo! O medo fecha a porta para Deus e para os irmãos! “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33).

Mas há o outro lado da moeda: aqueles que querem amedrontar, causar pânico, intimidar os outros, gritar, esbravejar, fazer calar a boca. Quantas pessoas se satisfazem provocando medo para dominar. Querem se impor pela força física, pela pressão psicológica, pelo cargo que exercem, pelas ameaças que fazem, pelo poder econômico ou político. Há muitas pessoas que sofrem terrivelmente debaixo de gente perversa, dominadora, satânica. Há gente que domina os outros até mesmo servindo-se da religião ou da boa-fé da pessoa. Crianças, mulheres, idosos, pobres, pessoas vulneráveis e indefesas são as principais vítimas dos dominadores. Um pecado que brada aos céus e pede a Deus vingança! Jesus nunca se impôs aos outros, nunca amedrontou ninguém. Pelo contrário, sempre mostrou-se afável, acolhedor, doador do perdão e da paz.

“Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Palavra de Jesus aos discípulos antes de comunicar-lhes do Dom do Espírito Santo. É um elemento essencial na missão. O Pai enviou o Filho para comunicar seu amor ao mundo. Agora o Filho envia aqueles que ele escolheu e consagrou com essa mesma missão: o Pai nos ama e quer salvar a todos. Quer comunicar-nos o perdão e a paz. A Igreja é a mensageira e portadora dessa Boa Nova.

ABRIR O CORAÇÃO PARA A MISSÃO

Ao longo de seu ministério Jesus havia prometido o Espírito Santo aos seus discípulos para auxiliá-los na tarefa que lhes confiaria. Ele teria a missão de inspirá-los, fortalecê-los, lembrar-lhes o que lhes havia ensinado. Desde então lhes restava plantar, pois o Pai garantiria a colheita.

Compete a nós abrir o coração para a ação do Espírito Santo em nossa vida a fim de que nossa vida e nossas comunidades se renovem. Aquele vigor concedido aos primeiros discípulos continua sendo dado a quem se abre à sua ação libertadora. Deixemos o Espírito agir em nós, pois sem a sua força a Igreja fica estéril e confusa, sem ternura e sem missão.

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A FORÇA DO ALTO PERDOA E ANIMA

A festa de Pentecostes tem sua história na comunidade israelita. Inicialmente era o agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Uma festa agrícola. Posteriormente foi associada à entrega da Lei no Sinai, tornado-se assim a festa da Aliança de Deus com seu povo.

No cristianismo, Pentecostes celebra a manifestação pública da Igreja. Embora, segundo João, o Espírito Santo seja dado no dia da Páscoa, na Ressurreição, a comunidade lucana a coloca cinquenta dias depois da Páscoa, para evocar e celebrar a manifestação pública da Igreja. Em forma de “línguas de fogo” para dizer do testemunho e da palavra dos discípulos de Jesus manifestando a ação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. No Sinai foi entregue a Lei a Moisés, escrita em tábuas de pedra. Aqui celebramos a Lei derramada nos nossos corações.

 O evangelho deste domingo mostra a comunidade dos discípulos acuada, medrosa. Os discípulos não tinham iniciativa nem coragem de anunciar a experiência que haviam feito de Jesus. Aquele em quem haviam depositado a esperança frustrou-lhes as expectativas: morrera na cruz como um malfeitor. Porém, a divina “Ruah” do alto, aquele Sopro vital os encheu de novo ânimo, de coragem. Começam então a anunciar, com todo ardor e entusiasmo, aquela realidade que haviam experimentado: a vida de Jesus e a vida em Jesus é o caminho para se viver de maneira justa, alegre e mais feliz.

Soprou sobre eles e disse...”. Esta passagem nos faz lembrar aquele sopro vital que o Criador fez penetrar no homem formado da argila: “Ele insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo” (Gn 2,7). Ou mesmo aquele Sopro de vida de que fala o profeta Ezequiel: “Porei meu sopro em vós para que vivais” (Ez 37,14). Somos cristãos leigos de barro, padres de barro, bispos de barro. É o Sopro Santo de Deus que nos comunica vida. Jesus comunica a nova vida que ele veio trazer do Pai: o Espírito Santificador que nos inspira, nos ilumina, nos fortalece para darmos testemunho da ressurreição do Senhor.

É interessante notar que o Espírito Santo não desceu somente sobre os “Onze”. Ele veio sobre todos que estavam no Cenáculo. Ali havia muitas outras pessoas além dos Apóstolos. O Espírito de Jesus penetra no coração daquelas pessoas e lhes dá novo vigor, novo sentido de vida. Sem o Espírito Santo a vida fica sem sentido, vazia, deslocada daquele centro vital para o qual o Pai nos criou. Desfocada, a vida começa a perder o sentido e o pecado encontra guarida dentro de nós. É a destruição da vida da pessoa. A alegria dá lugar à tristeza, a paz cede a brigas e intrigas, a partilha perde terreno para o egoísmo, o perdão é substituído pelo desejo de vingança, a fraternidade é suplantada pela dominação e coisificação das pessoas, a fé perde para a dúvida e o ceticismo.  Quando Jesus sopra sobre os discípulos e lhes dá o Espírito Santo com o poder de perdoar os pecados, ele quer mostrar que a missão da Igreja, pela força do Espírito Santo, deve ser a de tirar o pecado do mundo.

O pecado, segundo Pe. Antônio Pagola, é a “força de gravidade que nos impede de ir a Deus”. Muito mais do que culpa, é peso, escravidão. Mais do que falar de perdão, é preciso, pois, falar de libertação. Por isso chamamos a Jesus de Salvador. Nota-se, pois, uma vez mais, que o Evangelho não é um ligeiro verniz que se passa no ser humano, mas é tomá-lo a partir do seu ser mais profundo, assim como é, e tornar possível sua volta para Deus. Este é o primeiro fruto do Espírito de Jesus: a libertação. Este é o Espírito, o Espírito do Filho, o Espírito dos filhos, aquele que nos resgata da escravidão da terra e nos abre o horizonte luminoso de filhos.

Esse Espírito traz e atualiza a novidade de Cristo: “Sem o Espírito Santo, Deus está distante; o Cristo permanece no passado; o evangelho, uma letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um poder; a missão, uma propaganda; o culto, um arcaísmo; e a ação moral, uma ação de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é enobrecido pela geração do Reino, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho se faz força do Reino, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a ação humana se deifica” (Atenágoras I, Patriarca de Constantinopla).

Todos nós sentimos dificuldades. Todos sentimos a fraqueza na fé, a fragilidade da existência, a força do pecado em nós. Por vezes o mal parece prevalecer. O bem fica apagado. Fazemos o bem, nos empenhamos na construção de um mundo melhor, mas parece que nossa luta é em vão. Então peçamos ao Espírito Santo que, como aos discípulos e discípulas no Cenáculo, nos encha de seu amor, de sua luz, de sua força:

Vem Espírito Santo e liberta-nos do pecado, sustenta nossa pequenez, dá-nos tua força contra o mal. Não nos deixes desanimar, desistir de caminhar na direção do bem. Mais do que fazer o bem, ajuda-nos a ser bons, justos, solidários, fraternos, promotores da paz. Enche-nos de tua bondade, de tua sabedoria para reproduzirmos em nossa vida as ações de Jesus que “passou pelo mundo fazendo o bem”. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN