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aurelius

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Cristo se entrega livremente e por amor

aureliano, 31.03.23

Domingo de Ramos - A - 05 de abril.jpg

Domingo de Ramos [02 de abril de 2023]

[Mt 21,1-11;26,14 – 27,66]

Estamos entrando na Semana Santa! Esta Semana passou a ser celebrada com a intenção de rememorar a Paixão do Senhor. Na Idade Média ela tomou corpo e fôlego, sobretudo pela tentativa de reviver o episódio da Paixão do Senhor descrito pelos evangelistas. Esta semana era até chamada de Semana Dolorosa, pelo fato de se dramatizarem os sofrimentos de Cristo.

Parece simples, mas o conhecimento desse dado histórico é interessante porque pode nos ajudar a entender o porquê das vias sacras e outras representações da Paixão do Senhor. Ficaremos então atentos para não nos perdermos nos folclores e dramatizações, mas adentrarmos mais profundamente no Mistério profundo da entrega de Jesus, manifestação do amor do Pai, e nos atermos ao Mistério fundante de nossa fé cristã, a Ressurreição do Senhor, vitorioso sobre o pecado e a morte.

Este domingo se chama, na verdade, Domingo da Paixão nos Ramos. Jesus entra triunfante em Jerusalém para sofrer a Paixão. Portanto, celebramos dois acontecimentos: a aclamação de Jesus como o “Bendito que vem em nome do Senhor”, e a contemplação de sua Paixão. É o único domingo do ano em que a Igreja celebra a Paixão propriamente dita de Jesus, proclamando no Evangelho os relatos da Paixão.

Jesus pediu aos discípulos para buscar um jumentinho. Deviam dizer aos interrogantes: “O Senhor precisa dele”. O Senhor quer também precisar de nós. Somos os “jumentinhos” do Senhor. Nós temos nos colocado à disposição dele? Ou costumamos “empacar”, buscando nossos próprios interesses egoístas, seguir nossas idéias e não as de Cristo?

Ainda mais: as pessoas espalhavam roupas e ramos pelo caminho aclamando a Jesus. Poucos dias depois pediam sua crucifixão. E nós: estamos com Jesus somente no sucesso e na saúde? E quando passamos por tribulações, baixas, perdas, desprezos? Temos dado algo de nós para Jesus que passa diante de nós nos pobres e sofredores?

Algumas considerações:

No Crucificado vemos, não somente um inocente condenado, mas nele, nós cristãos, contemplamos todas as vítimas do preconceito, da maldade e da injustiça de todos os tempos. Na cruz com Jesus estão as vítimas da fome, as crianças abandonadas e exploradas, as mulheres vítimas de maus tratos e feminicídio, os explorados por nosso bem-estar, os quilombolas e indígenas invadidos e despejados, os esquecidos por nossa Igreja, os espoliados pela cultura da corrupção descarada e pela ganância do acúmulo, os enganados pelas mentiras e desonestidade.

Esse Deus crucificado não é o Deus controlador, que está em busca de honra e glória. Não! É o Deus paciente e humilde que respeita a liberdade de seus filhos e lhes quer sempre o bem, a felicidade e a alegria. Não é um Deus vingativo, justiceiro. Mas um Deus que manifesta sempre o perdão e a misericórdia.

Nós cristãos continuamos a celebrar o Deus crucificado porque vemos nele o Deus “louco” de amor por todos nós. Ele é a força que sustenta nossa esperança e nossa luta pela justiça e pela paz. Acreditamos que Deus não passa ao largo de nossas lágrimas, sofrimentos, lutas e fracassos. Ele está no calvário de nossa existência. A cruz erguida entre as nossas cruzes nos lembra que Deus sofre conosco.

Nesta semana a Igreja nos convida a contemplar Jesus que oferece sua vida como dom ao Pai. Ele não vai à cruz porque gosta de sofrer ou porque quer morrer. Jesus não é nenhum suicida! A paixão e sofrimento por que passa são consequências de sua fidelidade ao Pai. A contemplação de Cristo na cruz deveria nos levar a agradecer ao Pai por nos ter dado Jesus como Salvador. O Pai olha para seu Filho, vítima da maldade humana, como a olhar para todos aqueles que são injustiçados, vitimados por uma sociedade que sacrifica os que não dão lucro.

Jesus continua passando pelas nossas ruas e praças. Por vezes aplaudimos Jesus em uma celebração ou culto, depois o insultamos no rosto do desvalido! Isso é muito grave! Precisamos de um sério exame de consciência nesta Semana Santa.

Portanto, a celebração da entrada de Jesus em Jerusalém deve valorizar não tanto os ramos, mas o mistério expresso pela procissão que proclama a realeza messiânica de Cristo.

Campanha da Fraternidade: “A fome nos desafia e desinstala. É preciso agir! Não é possível ficar parados diante do grito da realidade brasileira e do mandamento de Jesus. É a dimesnsão social da fé que exige de nós engajamento na busca de soluções eficazes para o drama da fome. A realidade da fome chega ao coração do Bom Pastor e Ele mobiliza os seus discípulos missionários para uma ação pontual que resolva aquele problema, não a partir da lógica do dinheiro ou da indiferença, mas a partir da lógica de Jesus e do seu Evangelho” (Texto-Base, 157).

Relembramos que, neste Domingo de Ramos, a Igreja faz a Coleta Nacional da Solidariedade. Cada um dê de acordo com seu coração. 60% desses valores ficam no Fundo Diocesano de Solidariedade (FDS), gerido pela própria diocese; e 40% são entregues ao Fundo Nacional de Solidariedade, administrado pelo Departamento Social da CNBB. O resultado financeiro desta coleta é investido na sustentação de projetos sociais da Igreja no Brasil.

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JESUS SE ENTREGA POR NÓS

A Igreja é a comunidade pascal, nascida do “lado aberto” de Cristo, do Coração amoroso de Jesus que se entregou por nós. Ele passou da morte à vida e fundou a Igreja para que seja sempre arauto da vida nova que ele veio trazer.

A quaresma é um tempo marcadamente batismal. É um mergulho nas fontes batismais com tudo o que o batismo significa para o cristão. A espiritualidade quaresmal não se baseia somente numa postura interior e individual, mas também externa e comunitária em quatro aspectos: abominação do pecado como ofensa a Deus; consequências sociais do pecado; parte da Igreja na ação penitencial; oração pelos pecadores.

A Semana Santa, chamada também a “Grande Semana”, desenvolveu-se sobretudo a partir da historicização dos sofrimentos de Cristo em Jerusalém. Com isso entraram na prática celebrativa elementos devocionais que, de alguma forma, buscam reviver os acontecimentos da paixão descritos pelos evangelistas e pelos evangelhos apócrifos. Essas representações, por um lado permitem atentar para cada episódio da paixão do Senhor, por outro, pode prejudicar a unidade do mistério pascal. Em outras palavras: destacando os aspectos do sofrimento provocando certa emoção, pode-se afastar de seu aspecto salvífico na vitória sobre a morte com a ressurreição.

No intuito de enfatizar o aspecto salvífico da paixão do Senhor, queremos lembrar as principais celebrações desta semana, com destaque para o Tríduo Pascal, centro e cume da liturgia da Igreja.

Domingo de Ramos: Comemoração do Cristo Senhor que entra em Jerusalém para cumprir plenamente seu mistério pascal. A procissão dos ramos (memória da entrada de Jesus em Jerusalém) expressa a realeza messiânica de Cristo. É o único domingo do ano que celebra o mistério da morte do Senhor com a proclamação do relato da paixão. Jesus entra triunfalmente em Jerusalém para aí consumar sua páscoa de morte e ressurreição.

Quinta-feira Santa: É a conclusão da quaresma. Duas celebrações marcam esse dia: a missa do Crisma e a Instituição da Eucaristia (já no Tríduo Pascal). A missa do Crisma com a bênção do óleo dos enfermos, dos catecúmenos e, principalmente do sagrado crisma, é a oportunidade de reunir o presbitério em torno de seu Bispo e fazer da celebração uma festa do sacerdócio ministerial, através da renovação das promessas sacerdotais. O ministério presbiteral está intimamente ligado à eucaristia da qual o presbítero deve ser expressão.

Tríduo Pascal: Tem início com a missa da Ceia do Senhor, cujo ápice é a Vigília Pascal e cujo término se dá na tarde (Vésperas) do domingo da ressurreição.

Missa da Ceia do Senhor: É feita à noite com tom festivo. Os textos bíblicos realçam o fato de que Cristo nos deu sua páscoa no rito da ceia que exige, por parte da Igreja, o vínculo indissolúvel entre o serviço e a caridade fraterna: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). O lava-pés deve ser visto neste contexto, e não como mera representação do gesto de Jesus. No fim da celebração eucarística, as Sagradas Espécies (as partículas consagradas para a distribuição aos fiéis na Sexta-feira Santa) são conduzidas para um lugar previamente preparado. Faz-se a adoração ao Santíssimo até por volta de meia-noite. Não se trata de sepulcro para Jesus, mas de solene exposição e adoração ao Senhor vencedor da morte.

Sexta-feira Santa: Incluindo a Quinta à noite, é o primeiro dia do Tríduo. Dia de jejum como sinal sacramental da participação no sacrifício de Cristo. Também é um gesto de solidariedade com as vítimas da fome e da miséria. Não se celebra a eucaristia nesse dia. Faz-se a celebração solene da Liturgia da Palavra, à tarde, com adoração do Cristo na cruz e distribuição da comunhão.  Não é o dia de luto da Igreja, mas de amorosa contemplação da oferta de Cristo na cruz pela humanidade. Essa contemplação tem um caráter de ressurreição, uma vez que a morte de Cristo é inseparável de sua ressurreição. Por isso chamada de beata passio, santa e feliz paixão.

Sábado santo (dia): Nesse dia a Igreja se coloca em silêncio orante. Celebra o repouso de Cristo no sepulcro, depois da vitória na cruz. É a experiência da morte humana pela qual Cristo passou. É a esperança da vitória de Cristo sobre a sombra da morte: “O Filho do homem... deve... ser levado à morte e ressurgir ao terceiro dia” (Lc 9,22).

Sábado santo (noite): Celebração da “Mãe de todas as noites”, na expressão de Agostinho. A Vigília Pascal se caracteriza pelo sentido batismal que desemboca na celebração eucarística. Temos nesta noite a bênção do fogo novo e do círio com o canto do precônio (louvação) pascal, a liturgia da Palavra (nove leituras), liturgia batismal e liturgia eucarística. É a celebração da “noite iluminada”, da “noite vencida pelo dia”, demonstrando que a graça brotou da morte de Cristo. A passagem das trevas para a luz exprime a realidade do mistério da páscoa em Cristo e em nós.

Nosso desejo é que cada um, nesta semana de graça e de vida para a Igreja, se coloque naquela postura do Servo Sofredor, aberto à graça do Pai para colaborar na construção de um mundo mais de Deus: “O Senhor Deus me deu uma língua de discípulo para que eu soubesse trazer ao cansado uma palavra de conforto. De manhã ele desperta o meu ouvido para que eu ouça como os discípulos” (Is 50,4).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Jesus é o vencedor da morte

aureliano, 24.03.23

5º Domingo da Quaresma - A - 29 de março.jpg

5º Domingo da Quaresma [26 de março de 2023]

[Jo 11,1-45]

Ao escrever o evangelho, João descreve Jesus realizando “sinais”; não fala de “milagres”. Este é o sétimo sinal realizado por Jesus, segundo João. Diante da morte do amigo Lázaro e diante da própria morte que se aproxima, Jesus diz: “Eu sou a ressurreição e a vida”. É a grande revelação de Jesus. Para vivermos como ressuscitados precisamos ter fé em Jesus, ou melhor, ter a fé de Jesus. Aderir a Jesus, à semelhança do amigo Lázaro, é aderir à Vida em pessoa: “Nele estava a vida” (Jo 1,4). Lázaro é sinal de uma vida que não morre: “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (Jo 11,25).

Como temos lembrado, para os primeiros cristãos a quaresma era o tempo de se prepararem aqueles que seriam batizados na Vigília Pascal. E os textos nos querem ajudar a mergulhar no sentido do batismo para o cristão.  À medida que compreendermos bem o batismo e suas consequências para a vida cristã, teremos menos “problemas” na pastoral do batismo e, consequentemente, construiremos uma Igreja que seja mais significativa e mais incisiva na história, como é o propósito do sacramento do batismo.

O relato da revivificação de Lázaro é uma imagem do batismo cristão. Batismo é a vida nova assumida e vivida em Cristo: “Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais mediante o seu Espírito que habita em vós” (Rm 8,11). A vida eterna não é algo que está ainda para acontecer plenamente depois desta vida terrestre, mas já é realidade para aquele que crê em Jesus Cristo. É o “já e ainda não” de quem segue a Jesus. O Espírito faz viver nossos corpos mortais apesar da morte; faz-nos viver a vida de Deus no meio da morte. Embora no meio da morte, estamos vivos: “Se, porém, Cristo está em vós, o corpo está morto, pelo pecado, mas o Espírito é vida, pela justiça” (Rm 8,10). Na perspectiva cristã a história não caminha para o caos, a confusão, a desordem, para um nada, mas para a ressurreição final.

“Quem não tem o Espírito de Cristo não pertence a Cristo” (Rm 8,9). Se o batismo nos dá o Espírito que animou o Cristo, não podemos agir por outro espírito, com o “espírito de porco”, por exemplo. Ou seja, o cristão deve traduzir em obras a fé que proclama no Cristo. Isso significa transformar a sociedade de morte em uma sociedade de vida, onde reine a justiça, a bondade e a comunhão. É renunciar a uma vida “segundo a carne”, isto é, movidos pelos desejos egoístas, e buscarmos viver “segundo o espírito”, isto é, numa abertura cada vez maior àqueles que precisam de nós. Numa verdadeira eucaristia: vida doada, entregue pela salvação e libertação de todos.

Ó Deus de bondade, dai-nos por vossa graça caminhar com alegria na mesma caridade que levou o vosso Filho a entregar-se à morte no seu amor pelo mundo. Amém.

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DIANTE DA MORTE: CHORAR, PORÉM, ACIMA DE TUDO, CONFIAR

O relato de hoje traz um fato muito interessante acontecido com Jesus: ele chorou diante da morte do amigo Lázaro. Esse fato vem mostrar o sentimento de humanidade de Jesus. Ele não chorou simplesmente pela morte do amigo, mas sentiu na alma a dor da impotência humana diante da morte. Duas atitudes tomadas por Jesus diante da morte: chorar e confiar em Deus.

A morte é sempre uma realidade de dor e de sofrimento. Há dentro de todos nós um desejo insaciável de viver. Por que a vida não se prolonga mais? Por que não se tem mais saúde para uma vida mais ditosa? Que é feito da “pílula da imortalidade” que os cientistas insistem em descobrir?

O ser humano carrega desde sempre cravadas em seu coração as perguntas mais inquietantes e mais difíceis de se responderem: ‘Que será de mim? Que posso fazer? Rebelar-me? Deprimir-me?’ – Sabemos que vamos morrer. Mas quando, onde, se sozinhos ou assistidos... não sabemos. Mas seria muito bom termos ao nosso lado, naquele momento derradeiro, alguém que nos ajudasse a “entregar o espírito”! Mesmo assim, porém, ninguém se livra da solidão da morte! Naquele momento, ainda que esteja uma multidão ao nosso lado, morremos sozinhos!

Diante do mistério último de nosso destino não é possível apelar a dogmas científicos nem a explicações espiritualistas e extraordinárias. A razão não dá conta de nos explicar este mistério. Nós cristãos devemos nos colocar com humildade diante do fato obscuro da morte. E fazermos isso com humildade, numa radical confiança no mistério da bondade do Pai manifestada em Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais. Crês nisto?”. A resposta confiante de Marta quer mostrar o caminho que o discípulo de Jesus deve percorrer no confronto com a situação da morte: “Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que deve vir ao mundo”.

O relato do evangelho deste domingo quer mostrar-nos que a presença do Senhor faz brotar a esperança. Marta, que crê na ressurreição de Cristo, na vida que ele veio trazer, torna-se para sua irmã, Maria, mensageira do chamado do Senhor que a faz sair do mundo da morte em que estava mergulhada, para estar diante do Senhor da vida.

Dizem que Hans Küng afirmava a respeito da morte: “Morrer é descansar no mistério da misericórdia de Deus”.

*Campanha da Fraternidade 2023: Atitudes que devem ser assumidas por nós: Praticar o voluntariado. Participar dos conselhos de direitos (humanos, criança e adolescente, juventude, pessoa idosa, saúde, assistência social etc). Envolver-se em ações que já existem na comunidade como Sociedade São Vicente de Paulo, serviço da caridade, pastorais sociais, caritas etc. Envolver-se na política com espírito cristão, não lavando as mãos como Pilatos nem difundindo a ideia errônea de que política não presta nem é lugar de cristão. Apoiar e participar de alguma pastoral social em sua paróquia (cf. Texto-Base, 166).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Senhor, sede a luz dos olhos meus!

aureliano, 18.03.23

4º Domingo da Quaresma - A - 22 de março.jpg

4º Domingo da Quaresma [19 de março de 2023]

[Jo 9,1-41]

João escreve com uma linguagem própria, em relação aos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas): longos diálogos cujas cenas são carregadas de simbolismo, provocando realismo e suspense no leitor. A principal mensagem do relato de hoje é a acolhida da revelação de Jesus enfatizada no contraste entre o “ver” e o “cego”. No texto encontramos 14 vezes a palavra “cego” e 18 referências ao “ver”. Os fariseus julgam ver tudo a partir da Lei e expulsam da sinagoga aquele que passou a ver depois do encontro transformador com Jesus.

Não podemos perder de vista que, desde os inícios do cristianismo, a quaresma é o tempo de preparação para o batismo dos catecúmenos (aqueles que se preparam para o batismo). Por isso os textos bíblicos e litúrgicos são escolhidos de forma a levar aquele que será batizado a entender e a assumir a fé que irá professar e a mergulhar cada vez mais no mistério do Cristo, luz do mundo. Nas Igrejas Orientais o batismo é chamado de “iluminação”.

A liturgia continua convocando o batizado à conversão do coração. É preciso afastar a ideia de que somente se deve preparar e pensar no batismo quem ainda não foi batizado. O batismo é uma semente de fé que precisa cultivada cotidianamente. A realidade batismal deve acompanhar toda a vida do cristão. É uma vida nova. É um jeito novo de viver: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz o Senhor: andai como filhos da luz, pois o fruto da luz consiste em toda bondade, justiça e verdade” (Ef 5, 8-9). Se faltar cultivo, cuidado, zelo a luz se apaga, a fé morre, a graça se esvai. Por isso participamos, rezamos, refletimos a Palavra de Deus, amamos os irmãos, repartimos o pão, trabalhamos a solidariedade entre nós. Sem esse óleo da caridade, a fé não se sustenta.

Aquele cego de nascença representa cada pessoa chamada a fazer caminho de seguimento a Jesus. Nascer cego lembra a realidade de pecado (original) em que toda pessoa nasce. É preciso ser “ungido” no encontro com Jesus e “lavar-se” nas fontes batismais para enxergar o mundo com o olhar de Jesus. “O pior cego é aquele que não quer ver”, proclama o ditado popular. Cegos eram os fariseus e mestres da lei que não queriam enxergar a grande novidade enviada por Deus ao mundo na pessoa de Jesus. Continuavam cegos, embora acreditassem enxergar.

O encontro com Jesus nos abre os olhos e o coração e passamos a enxergar o mundo de modo novo, sem aquela cobiça que faz tanto mal, sem inveja e ciúme. Sem a sede do poder e do dinheiro que provoca tantas desavenças. Passamos a ver o outro não mais como ameaça ao nosso bem-estar ou como objeto de exploração e lucro, mas como irmão que precisa de nós, que pode somar conosco na construção de um mundo melhor.

Enquanto nosso olhar para o mundo for a partir de nossos interesses egoístas, seremos cegos conduzindo cegos. Se, porém, adotarmos a ótica de Jesus, que nos foi dada no batismo, seremos uma possibilidade para construir família, comunidade, sociedade, relações mais humanizadas. Despertaremos nos outros sua capacidade de enxergar melhor. Seremos reflexos da luz de Jesus: “Vós sois a luz do mundo... Brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vendo as vossas boas obras, eles glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,14.16).

Outro elemento importante do evangelho de hoje é não atribuir o sofrimento humano a uma punição de Deus pelo próprio pecado ou pelos pecados de antepassados. É uma compreensão por demais medíocre sobre Deus. Essa idéia está muito disseminada em nosso meio. Precisa ser erradicada, pois faz muito mal às pessoas e emperra a transformação da história, pois gera conformismo e indiferença. É uma idéia que nega a liberdade da pessoa, o mistério de Deus e do sofrimento humano. Jesus corta esse mal pela raiz: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas é para que nele sejam manifestadas as obras de Deus” (Jo 9, 3).

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OLHANDO A REALIDADE A PARTIR DE JESUS

A Campanha da Fraternidade deste ano nos convida a tomar algumas atitudes diante da vida de pessoas sofridas que passam pela nossa vista, pelos nossos olhos. Que podemos fazer diante do flagelo da fome que ameaça a vida de tantas pessoas?

“O Texto Base da CF 2023 indica algumas Propostas de AÇÃO PESSOAL, indicando o que cada um pode fazer diante do drama da fome: partilhar algo com aque­les que mais necessitam; jejuar e doar a quem precisa; questionar o próprio estilo de vida e de alimentação; ser solidário(a) com os que passam fome; colaborar nas cam­panhas de arrecadação de alimentos; abolir o desperdício de alimentos e buscar reaproveitamento saudável; realizar uma doação significativa para a Coleta Nacional da Solida­riedade; participar dos Conselhos de Direitos (humanos, da criança e do adolescente, da juventude, da pessoa idosa, de saúde...); praticar o voluntariado; envolver-se nos trabalhos que já existem: Sociedade São Vicente de Paulo (SSVP), Pas­torais Sociais, Caritas etc.; participar das discussões sociais de políticas públicas; envolver-se na política com espírito crítico e nas iniciativas públicas (governamentais ou não) de combate à fome e pobreza em seu município (TB 166)” (Livrinho do MOBON CF/2023, p. 28).

Para refletir um pouco mais, concluo com esse belo poema de Cora Carolina:

"Não sei se a vida é curta ou longa demais para nós,

mas, sei que nada do que vivemos tem sentido,

se não tocamos o coração das pessoas” .

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

São José, homem Justo

aureliano, 18.03.23

São José.jpg

São José, Esposo da Virgem Maria [18 de março de 2023]

[Mt 1,16-25]

Celebre a José a corte celeste,

Prossiga o louvor o povo cristão:

Só ele merece à Virgem se unir

Em casta união.

Ao ver sua Esposa em Mãe transformar-se,

José quer deixar Maria em segredo.

Um anjo aparece: “É obra de Deus!”

Afasta-lhe o medo. (Oficio de Vésperas).

 

A Igreja celebra São José em dois dias no ano: 19 de março e 1º de maio. No dia 19 de março, São José é celebrado como patrono da Igreja Universal; já no dia 1º de maio, dia do Trabalho, São José é honrado como Operário, o carpinteiro de Nazaré.

Em 1870 São José foi declarado o patrono da Igreja católica. E em 1955 o Papa Pio XII honrou o Dia do Trabalho (1º de maio) com a invocação: São José, operário. A devoção a São José sempre existiu. Já o culto litúrgico veio mais tarde lá no fim do século XV. É um dos santos mais populares. Ainda hoje o nome José é dado com muita frequência pelos pais aos seus filhos. Também há milhares de comunidades, igrejas, praças e cidades em homenagem a São José.

Há alguns traços marcantes na vida de São José que o Evangelho registrou e que vale a pena destacar. Podem nos ajudar em nossa vida cotidiana.

O Justo: “José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo” (Mt 1,19). A alcunha de ‘justo’ na cultura judaica quer significar fiel observante do Ensinamento de Deus; pessoa cheia de Deus e que busca fazer-lhe sempre a vontade. Aquele que foge do pecado e busca fazer sempre o bem. Aquele que dá a cada um o que lhe pertence, sobretudo “a Deus o que é de Deus”. José é justo, não pelo fato de buscar separar-se de Maria, mas porque procura e reconhece em todas as coisas a vontade de Deus.  Abriu mão de seus projetos pessoais para abraçar a missão que o Pai lhe pedira. É justo porque não quer ver Maria, mulher que ele admirava e em quem confiava, ser exposta a situação de penúria. É justo porque, como homem de Deus, percebe que há uma realidade de mistério no acontecimento com Maria, e ele respeita e se coloca reverente.

Pai adotivo: Este título é um dos mais significativos. José não foi o pai carnal de Jesus. “A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo” (Mt 1,18). A presença de José na genealogia do rei Davi garante a Jesus a linhagem real segundo o relato de Mateus: “Jacó foi pai de José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo” (Mt 1,16). Este ministério dá a José o lugar de Deus Pai. Leonardo Boff diz que José é a “personificação de Deus Pai”. Exatamente por ter assumido a missão de cuidador, de zelador, de nutrício do Filho de Deus. José assume um filho que não é seu. Ele abraça a missão com todas as consequências. Interessante notar que, em nossa vida, surgem situações que nos colocam desafios semelhantes. De repente precisamos enfrentar ou assumir u’a missão que nunca imaginávamos. Mas se abraçamos como dom e missão vindos do Pai, será fonte de graça para toda a comunidade.

Carpinteiro: “Não é ele o filho do carpinteiro?” (Mt 13,55). Numa situação de incompreensão por parte de seus conterrâneos e correligionários – “De onde lhe vem essa sabedoria e esses milagres?” (Mt 13,54) –, Jesus é chamado, em tom de desprezo, filho do carpinteiro. Neste relato José aparece como um trabalhador. Empenhava-se em trabalho duro para sustentar a família. Não vivia como sanguessuga, nem como agiota ou como quotista em empresas e bolsas de valores, nem como explorador do trabalho e suor alheios. Seu pão era conquista de esforço cotidiano. Patrono, por isso, dos trabalhadores e trabalhadoras que lutam bravamente para ganhar “o pão com suor do rosto” (Gn 3,19).

Homem do silêncio fecundo: “Enquanto José pensava nisso, eis que um anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho...” (Mt 1,20). Este relato mostra José como um homem orante e contemplativo. Não se precipita. Procura entender o que Deus quer. Os evangelhos não registraram nenhuma palavra de José. Isso mostra que ele era um homem discreto, silente, contemplativo. A profundidade de uma pessoa, muitas vezes, se mede pela sua capacidade de ouvir, de silenciar-se, contemplativamente.

Esposo e Pai: Os evangelhos narram a solicitude de José para com sua família. Diante da ameaça do famigerado Herodes, instruído pelo Senhor, foge para o Egito: “Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe, durante a noite, e partiu para o Egito” (Mt 2,14). Não descuidava dos compromissos religiosos: “Seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa” (Lc 2,41). E não perdia de vista o filho que lhe foi confiado: “Ele ficou em Jerusalém sem que seus pais o notassem. Pensando que estivesse na caravana, andaram o caminho de um dia, e puseram-se a procurá-lo entre parentes e conhecidos. E não o encontrando, voltaram a Jerusalém à sua procura” (Lc 2,43-45). Lucas resume numa frase a vida da Sagrada Família em Nazaré: Jesus lhes era submisso e ia crescendo em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens. (Lc 2,51-52).

O sonhador: José teve quatro sonhos, segundo Mt 1,20; 2,13; 2,19; 2,22. Estes relatos mostram que foi um homem sempre aberto à vontade de Deus. Uma vida sintonizada com o Senhor. Este o encontrava sempre aberto à sua Palavra. Ainda mais: a missão que o Senhor lhe confiava não era fácil. Sempre em defesa da vida de Jesus e de Maria, mulher e filho. Somente lhe dava as indicativas. O restante era por conta dele. Acolher um filho que não era seu, mas de quem deveria cuidar. Não deixar que os perseguidores e perversos tirassem sua vida. Defender Jesus e Maria da fome, do frio, do sol e da chuva, dos perigos das matas e desertos. Buscar trabalho e comida para sobrevivência. Uma vida totalmente doada, eucarística, entregue. O Senhor revelava sua vontade, José cumpria. E pronto!

O relato do evangelho de hoje sugere que Deus faz coisas novas. Onde sua iniciativa é acolhida com a boa vontade das pessoas justas, caso de Maria e José, a Graça atua de modo exuberante.

Maria, virgem que se torna mãe sem intervenção do varão, representa em sua virgindade toda a humanidade disposta a receber a maravilhosa intervenção divina dando-nos uma nova vida. Graças à cooperação de Maria, a realidade de Deus desceu até nós em Jesus. A liturgia católica celebra hoje em tom solene a lembrança, o exemplo de vida, a intercessão daquele que está na passagem do Antigo para o Novo Testamento: José, o justo.

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Para celebrar os 150 anos da proclamação de São José como Patrono Universal da Igreja Católica pelo Beato Pio IX, o Papa Francisco quis compartilhar conosco “algumas reflexões pessoais sobre esta figura extraordinária, tão próxima da condição humana de cada um de nós. (...) ... no meio da crise que nos afeta, as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo” (Carta Apostólica Patris Corde, p. 02). Desse modo, o Papa Francisco dedicou o ano de 2020/21 a São José. Seu desejo é que “todos possam encontrar em São José – o homem que passou despercebido, o homem da presença cotidiana discreta e escondida – um intercessor, um amparo e um guia nos momentos de dificuldade. São José lembra-nos que todos aqueles que estão, aparentemente, escondidos ou em segundo plano, têm um protagonismo sem paralelo na história da salvação. A todos eles dirijo uma palavra de reconhecimento e gratidão” (Idem, p. 02).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Um encontro, uma palavra, um olhar...

aureliano, 11.03.23

3º Domingo da Quaresma - A - 15 de março.jpg

3º Domingo da Quaresma [12 de março de 2023]

[Jo 4,5-42]

A liturgia da Palavra deste domingo nos coloca diante da sede de um povo no deserto (Ex 19,3-7) e da sede da mulher à beira do poço. O que é a sede? Você já experimentou sede? Esse desejo e necessidade não sendo saciados com certa imediatez levam a desfalecimento. A gente pode passar dias sem alimento sólido, mas sem água, não. A sede (de água) é símbolo de uma sede maior, mais profunda. A experiência de habitar em terra estrangeira, longe do Templo, numa vida escravizada leva o israelita a dizer a Deus: “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada, sem água” (Sl 63,2). Muitas vezes a experiência de dor e sofrimento nos faz voltar para Deus como “terra seca e sedenta”.

Veja o que aconteceu com a mulher samaritana neste belíssimo relato de João que mostra Jesus como do Dom do Pai, a Água Viva que preenche o coração humano, representado nas buscas até então insatisfeitas da mulher samaritana: “Vai chamar teu marido”...  “Eu não tenho marido”... “Tiveste cinco maridos, e que tens agora não é teu marido” (Jo 4,16-18). Jesus é aquele que preenche o coração daquela mulher. Não tem preconceito, não julga, não condena. Apenas acolhe e mostra-lhe o dom da água viva que brota para a vida eterna. Jesus não lhe apresenta a doutrina e a censura, mas o Dom. E ela acolhe, reconhece, rende-se diante de uma realidade que responde às suas buscas mais profundas.

No caminho da Judéia para a Galiléia era preciso passar pela Samaria. Um território constituído por um povo que tinha alguns costumes diferentes e divergentes dos costumes dos judeus. Havia entre eles uma inimizade histórica e cultural mortal. Jesus estabelece uma nova relação com esse povo. A mulher samaritana aqui significa também a própria Samaria. Jesus veio também para eles. Não somente para os judeus.

Aqui temos o fruto de um encontro verdadeiro, honesto, na busca da verdade do ser humano. Encontro que desperta um desejo para além daqueles que se deram ao longo da história em redor do poço: Isaac e Rebeca; Jacó e Raquel; Moisés e Séfora. Não se dá ali uma “paquera” para casamento, mas um encontro que transforma a partir de dentro e envolve toda uma cidade: “Muitos samaritanos daquela cidade creram nele, por causa da palavra da mulher”.

O Desejo de Jesus se encontrou com o desejo da mulher, que a princípio estava marcada pelo sentimento de ódio, de decepção, de desencanto. O Desejo puro de Jesus contagia aquela mulher, purifica seu desejo e lhe dá uma nova perspectiva de vida. Aquele Desejo oculto de felicidade, ínsito por Deus em seu coração na criação, foi despertado.

Jesus é o dom do Pai, a água viva capaz de saciar o desejo humano que não se sacia com coisas e pessoas: “Já tiveste cinco maridos e o que agora tens não é teu marido”. Ele sacia de vez a sede profunda daqueles que o buscam: “Dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede”.

Nossos jovens, nossas famílias, nossas crianças estão buscando saciar a sede servir a Deus “em espírito e verdade”. Mas o que lhes é oferecido pela televisão, pela internet, até mesmo em alguns cultos ditos cristãos é veneno. Algo parecido com água, mas que leva à morte, à secura, a uma busca frenética de bens de consumo, de festas desmedidas, de bebidas e drogas, de sítios e quintais, de gozo e de vazio. O resultado nós o temos visto: assassinatos, vinganças e mortes; cadeias e bandidagem; corrupção política e roubos de todo jeito; desesperança e “fossa”, preconceito e desejo de morte. Onde está o remédio? No encontro transformador com Jesus Cristo, a Água Viva que nos dá vida nova, que abre nossos horizontes, que dá sentido à vida, que nos faz discípulos missionários, como aconteceu com a samaritana. Bento XVI dizia que o “ser cristão não é fruto de uma decisão ética ou de uma grande ideia, mas de um encontro com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, um rumo decisivo”.

Esse relato do encontro de Jesus com a Samaritana nos questiona também em relação à falta de espaço de acolhida em nossas comunidades. Jesus sentou-se, esperou, acolheu, ouviu, foi rejeitado inicialmente. E ele se manteve ali, resiliente, esperançoso, confiante. Não se pode apresentar em primeiro lugar a lei, a doutrina, o “carão” à pessoa que procura a comunidade: “Você está no pecado!” “Você precisa mudar de vida!” “Você sumiu da igreja!” “Você não pode comungar!” “Você não pode receber os sacramentos!”. - A pessoa precisa de espaço de diálogo, de partilha, de alguém que a ouça sem julgamento, que a compreenda, que lhe apresente um Deus que ama incondicionalmente toda pessoa. Santo Agostinho dizia: “Se queres conhecer uma pessoa, não pergunte o que ela pensa, mas o que ela ama”. Se você quer conhecer a sua comunidade, as pessoas da comunidade, observe não o que elas dizem ou pensam, mas o que elas amam. Como demonstram o afeto, a acolhida, o respeito, a atenção e zelo, particularmente pelos pequenos e simples.

Teremos um mundo novo na medida em que cada cristão, assumindo seu batismo, fonte de vida nova em Deus, continuar fazendo seu encontro com Jesus Cristo na sua comunidade, na Palavra de Deus, na celebração, junto àqueles que sofrem. De uma mentalidade consumista e capitalista, egoísta e gananciosa, fratricida, feminicida, preconceituosa e maledicente, transformar-se em discípulo de Jesus como a samaritana do evangelho. Não basta pensar como Jesus pensou. O fundamental é amar como Jesus amou.

O encontro com Jesus “ao redor do poço” deve levar à missão. A participação na celebração deve encantar e entusiasmar o discípulo de Jesus a fim de levá-lo a partilhar com os outros a experiência feita no encontro vivificador com Jesus Cristo. Há muita gente esperando um pouquinho de nossa “água” haurida nas fontes do Salvador.

Concluindo também com Santo Agostinho: “Ama e faze o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos”.

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OS MARIDOS DA SAMARITANA

É importante relembrar de que o tempo litúrgico da quaresma tem um forte apelo batismal. Os textos da Sagrada Escritura querem nos ajudar a fazer o caminho do discipulado: as tentações por que passa o cristão e que são vencidas pela força da Palavra de Deus (1º domingo); o batismo que nos reconfigura/incorpora a Cristo e nos coloca como ouvintes do Filho Amado do Pai (2º domingo); a Água Viva que nos purifica e alimenta a partir do encontro transformador e libertador com Jesus (3º domingo); a Luz, o próprio Jesus, que cura nossa cegueira e nos faz enxergar o mundo com as lentes do Evangelho (4º domingo); o batismo nos faz criaturas novas, ressuscitados com Cristo, que é ressurreição e vida. As narrativas dos textos do evangelho desse período propõem-nos um itinerário novo, fascinante e interpelativo.

A menção que o evangelho faz à Samaria nos desperta para saber que lugar é esse. Com a morte de Salomão, no século X antes de Cristo, o Reino de Israel de dividiu: Reino do Sul (Judá), tendo como capital Jerusalém, e Reino do Norte (Israel), tendo como capital Samaria. No ano 721 a Assíria invadiu o Reino do Norte e trouxe cinco povos diferentes com suas divindades para Samaria, erigindo para cada uma delas um altar (cf. 2Rs 17,24-33). Essa miscigenação de religião, de cultura e de raça levou Israel e Samaria a viver uma espécie de sincretismo religioso. Mais tarde foi erigido por um israelita piedoso, um templo no monte Garizim para culto ao Senhor, em oposição ao Templo de Jerusalém. João Hircano em 129 a.C destruiu o templo do monte Garizim.

Está aí, em síntese, a história dos “seis maridos”. Quando Jesus diz à mulher: “tiveste cinco maridos, e o que tens agora não é teu marido”, quer dizer que os samaritanos ainda não conheciam o verdadeiro Deus que Jesus veio revelar. Diga-se de passagem que, na ocasião em que o evangelho de João foi escrito, já haviam se passado cerca de trinta anos da destruição do Templo de Jerusalém. Portanto, nem no monte Garizim nem em Jerusalém se adorava verdadeiramente a Deus, mas agora se deveria “adorá-lo em espírito e em verdade”. Quer dizer, Deus está para além de templos e lugares. Jesus é o verdadeiro templo, habitação de Deus. E nele, todo ser humano, imagem e semelhança de Deus, é templo do Espírito Santo.

A palavra “marido” era usada também para divindades pagãs. Baal pode ser traduzido por mestre, dono, senhor, marido. No tempo de Jesus os samaritanos eram considerados impuros, por causa de sua relação com os adoradores de Baal. Tanto que, apenas o fato de entrar na Samaria era considerado contaminador. Por isso era impensável que Jesus entrasse nessa terra ou falasse com uma mulher desta cidade.

Com isso compreendemos as razões que levaram os israelitas da Palestina, considerados fiéis ao Deus da Aliança a evitarem fazer contato com os samaritanos, considerados idólatras e infiéis ao Deus de Israel, portanto, impuros.

E agora Jesus propõe à Samaria, na pessoa da mulher samaritana, uma “fonte de água viva que jorra para a vida eterna”. Agora é o próprio Jesus que será seu “marido”, seu esposo fiel, remetendo a Os 2,7-25. “Vou seduzi-la, levando-a ao deserto e falando-lhe ao coração”. A salvação trazida por Jesus não pertence somente aos judeus, mas se estende a toda a humanidade.

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O QUE SIGNIFICA ADORAR (Frei Cantalamessa)

A propósito da palavra de Jesus: “os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (Jo 4,23), reproduzo aqui excertos de uma pregação do Frei Cantalamessa, que podem ajudar a compreender e a realizar esta adoração de que fala Jesus.

“Mas, mais do que o significado e o desenvolvimento do termo, estamos interessados em saber em que consiste e como podemos praticar a adoração. A adoração pode ser preparada por uma longa reflexão, mas termina com uma intuição e, como qualquer intuição, ela não dura muito tempo. É como um clarão de luz na noite. Mas de uma luz especial: não tanto a luz da verdade, mas a luz da realidade. É a percepção da grandeza, da majestade, da beleza e, ao mesmo tempo, da bondade de Deus e da sua presença que tira o fôlego. É uma espécie de naufrágio no oceano sem costas e sem fundo da majestade de Deus. Adorar, segundo a expressão de Santa Ângela de Foligno mencionada no início, significa “recolher-se em unidade e mergulhar no abismo infinito de Deus”.

Uma expressão de adoração, mais eficaz que qualquer palavra, é o silêncio. Na verdade, ele diz por si mesmo que a realidade está muito além de qualquer palavra. Na Bíblia, a insinuação ressoa alto: “Toda a terra está em silêncio diante dele! (Hab 2,20) e: “Silêncio na presença do Senhor Deus!” (Sof 1, 7). Quando “os sentidos estão envoltos em silêncio sem limites e as memórias envelhecem com a ajuda do silêncio”, disse um Padre do deserto, então tudo o que resta é adorar.

(...) Portanto, não é Deus que precisa ser adorado, mas o homem que precisa adorar. Um prefácio da Missa diz: “Tu não precisas do nosso louvor, mas por um dom do teu amor nos chamas a dar-te graças; os nossos hinos de bênção não aumentam a tua grandeza, mas obtêm para nós a graça que nos salva, por Cristo nosso Senhor”[5]. F. Nietzsche estava completamente fora do caminho quando definiu o Deus da Bíblia como “aquele oriental ganancioso por honras em seu assento celestial”[6].

(...) A adoração eucarística é também uma das formas mais eficazes de evangelização. Muitas paróquias e comunidades que a colocaram no seu horário diário ou semanal fazem uma experiência direta dela. A visão de pessoas que à tarde ou à noite estão em adoração silenciosa diante do Santíssimo Sacramento, numa Igreja iluminada, levou muitos transeuntes a entrar e depois de parar por um momento a exclamar: “Aqui está Deus! Assim como está escrito que acontecia nas primeiras assembleias dos cristãos (cf. 1 Cor 14, 25).

(...) A contemplação cristã nunca é de sentido único. Não consiste em olhar, como dizem, para o umbigo, em busca do próprio eu mais profundo. Consiste sempre em dois olhares cruzados. Aquele camponês da paróquia de Ars, que passava horas e horas imóvel na igreja, com os olhos voltados para o tabernáculo e que, quando perguntado pelo Santo Cura o que fazia o dia todo, respondeu: “Nada, eu olho para ele e ele olha para mim!” (https://franciscanos.org.br/noticias/frei-cantalamessa-adoraras-ao-senhor-teu-deus.html#gsc.tab=0)

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“Escutai o que Ele diz”

aureliano, 03.03.23

2º Domingo da Quaresma B.jpg

2º Domingo da Quaresma [05 de março de 2023]

[Mt 17,1-9]

O relato da transfiguração é apresentado logo após o anúncio da paixão, seguido da repreensão de Pedro que esperava um messias poderoso para libertá-los das mãos dos romanos. Por isso dizemos que nesse relato estão entrelaçados dois aspectos paradoxais: sofrimento e glória. Lucas o confirma ao relatar que a conversa entre Moisés, Elias e Jesus versava sobre “sua partida que iria se consumar em Jerusalém” (Lc 9, 31).

O que esse relato nos quer transmitir? É um apelo aos discípulos a reconhecerem a verdadeira identidade de Jesus, o Filho amado do Pai, ao mesmo tempo que evidencia o crime hediondo daqueles que tramam sua morte.

Moisés e Elias: este ultimo, representante dos profetas e aquele, da Lei. Ambos encontraram-se com Deus na montanha. Aqui, porém, eles nem têm o rosto transfigurado nem ensinam os discípulos, mas conversam com Jesus.  O episódio da transfiguração mostra Jesus, o Filho amado do Pai, que realiza e sintetiza em sua própria vida a Lei e os Profetas. Agora é Ele que deve ser ouvido.

Quando vemos, nesse relato, sofrimento e glória articulados, não devemos interpretar que o sofrimento é o preço da glória; como se Deus barganhasse conosco. Não. A cruz ou sofrimento é consequência da fidelidade ao projeto do Pai. Faz parte da vida do discípulo de Jesus que busca viver um estilo de vida que se opõe à proposta mundana de morte. “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16, 24). Como o Pai glorificou e confirmou seu Filho, ele fará o mesmo com aqueles que buscarem conformar sua vida com a vida de Jesus. No ser humano de Jesus toda a humanidade foi glorificada.

A voz do Pai deve continuar ressoando em nossa vida: “Este é o meu Filho amado em quem me comprazo, ouvi-o”. Essas palavras nos remetem ao relato do batismo de Jesus: “Este é meu Filho amado em quem me comprazo” (Mt 3, 17). Consequentemente nos levam ao nosso batismo, realidade que nos incorpora a Cristo, nos dá vida nova, novo nascimento. E a quaresma sempre foi, na Igreja, desde os primórdios, tempo de preparação para o batismo (para os catecúmenos), e de retomada dos compromissos batismais para fiéis cristãos.

Escutar a voz do Filho, revelador do amor do Pai, deve ser a meta de todo cristão. Abraão ouviu, acreditou e “partiu” (cf. Gn 12, 1-4). Por isso se tornou a grande bênção para a sua posteridade. O cristão batizado, ouvindo a voz do Filho, confirmado pelo pedido de sua mãe: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2, 5), será sempre uma bênção para sua família e comunidade. Não se esqueça, porém, que é uma realidade que demanda a cruz. O que conforta é a perspectiva da ressurreição, da vida nova, da serenidade, da alegria verdadeira que “ninguém poderá tirar” (Jo 16,22).

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O MEDO DE ESCUTAR JESUS

“Ao ouvirem isso, os discípulos caíram de rosto em terra tomados de grande medo” (Mt 17,6). Os discípulos não suportaram ouvir aquela voz que confirmava a vida de Jesus. E não suportaram também a ordem: “Escutai o que ele diz”. Parece que os discípulos ainda não queriam ouvir a Jesus. Preferiam continuar ouvindo outras vozes.

Quão frequente é a tentação da recusa de ouvir a voz do Senhor tanto em nós e em nossas comunidades! Por isso a Igreja reza com o salmista: “Hoje, não fecheis o vosso coração, mas ouvi a voz do Senhor” (Sl 95). Preferimos, muitas vezes, permanecer na ignorância, na mesmice. Preferimos, muitas vezes, a recusa em ouvir os clamores dos pobres, uma opinião de quem pensa diferente, o chamado à conversão.

Então é preciso deixar-se tocar pelo Senhor: “Jesus aproximou-se, tocou neles e disse: ‘Levantai-vos! Não tenhais medo’” (Mt 17,7). É o toque do Senhor que nos acorda, que nos faz perceber e ver a história com outros olhos. Deixar-se tocar pelo Senhor é desenvolver a capacidade de ouvir as pessoas, de olhar o mundo com um olhar de Deus; de debruçar-se todos os dias sobre a Palavra de Deus e orientar a própria vida por ela. É deixar que o projeto do Pai ilumine os próprios projetos. É lançar-se com mais confiança nas mãos do Pai, sabendo que Ele cuida de todos nós.

O Servo de Deus, Pe. Júlio Maria De Lombaerde, comentando este evangelho, falava da importância de se retirar para ouvir o Senhor. Jesus – observava ele – conduziu os discípulos à parte sobre uma alta montanha. Significa que é preciso deixar de lado as distrações e preocupações mundanas para estar com o Senhor e ouvi-lo. “Enquanto uma alma está entregue às preocupações das noticias, aos devaneios, ao tumulto dos vãos pensamentos, fica escravizada pela imaginação e pelas distrações, e Deus não é para ela senão o Deus desconhecido de Atenas (At 17,23)”. E continua: “O homem distraído não se conhece a si mesmo, não vê o que deve reformar em si, não descobre razões de melhorar, de praticar a virtude. Toda a sua vida decorre no esquecimento de Deus e na ignorância dos próprios defeitos. (...) O homem espiritual, porém quer elevar-se da terra, aproximar-se de Jesus transfigurado, transfigurar-se com Ele pela prática da virtude” (Comentário Litúrgico, p. 164-165).

Sobe, pois, a montanha! Escuta o Mestre! Deixa-te tocar por ele! Põe-te de pé e segue a Jesus! Não tenhas medo de ouvi-lo e de segui-lo! O movimento é sempre este: subida e descida: subir a Montanha para estar com ele. Descer a Montanha para estar com os outros de modo novo, iluminado, transfigurado, encantado, fortalecido.

*Campanha da Fraternidade 2023: Encontramos resistência por parte de alguns grupos em trabalhar o tema da fome, julgando ser coisa de política, de esquerda, de comunista etc. Vale a pena relembrar aquela famosa palavra do Servo de Deus, Dom Helder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”. A Campanha da Fraternidade este ano, à luz do Evangelho, quer nos sensibilizar sobre o flagelo da fome que afeta e ceifa a vida de milhões de brasileiros. E nos ajuda a olhar mais de perto as causas estruturais da fome. “As raízes da fome estão, especialmente, na distribuição iníqua da renda e das riquezas, que se concentram nas mãos de poucos, deixando, na pobreza, enormes contingentes populacionais nas periferias urbanas e nas áreas rurais. Esta concentração de renda e riqueza vem de longa data e segue uma lógica na qual o crescimento econômico do Brasil sempre aumenta a riqueza dos ricos, sem estender seus benefícios a quem não tem poder no mercado. A desregulamentação e a flexibilização dos mercados vêm retirando do Estado sua função social e política, em prejuízo do seu dever de justa intervenção na economia e na redistribuição da renda. Entregue à lógica do jogo de concorrência que lhe é própria, o mercado premia os fortes e pune os fracos, aumenta o desemprego e oferece remuneração tão baixa aos trabalhadores e à maioria dos aposentados que não lhes permite adquirir alimento para uma subsistência saudável” (Texto-base, 54).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Tentação: desviar-nos do Caminho

aureliano, 01.03.23

1º Domingo da Quaresma [26 de fevereiro de 2023]

[Mt 4,1-11]

O tempo da Quaresma nos remete aos quarenta anos de travessia do deserto pelo Povo de Israel. Tempo e lugar de provação, de cansaço, de dor, de carências e privações. Lugar de encontro com Deus e com o Diabo. Lugar de fortalecer as raízes no caminho do bem. Por que não dizer que o deserto é também o nosso cotidiano? As desordens da vida, as seduções, as provações, as aflições e desafios que a vida nos coloca são nosso deserto. A quem recorremos? Como lidamos? De que armas nos servimos? Por quem optamos? De que lado nos colocamos?

Jesus faz essa experiência: quarenta dias se preparando para a missão. Esse tempo representa toda a sua vida que foi tempo de prova, das tentações de um messianismo sectário, mas também de experiência do Pai a quem foi sempre fiel.

As tentações de Jesus são também as nossas. O tentador quer levá-lo a desviar-se do projeto do Pai. Primeiro sugere-lhe transformar a pedra em pão. Jesus não veio para si, mas para todos. Não veio fazer milagres; veio anunciar um Reino de partilha fundado na vivência da Palavra de Deus. Quem se alimenta da Palavra de Deus partilha, multiplica, solidariza-se. “Vê, sente compaixão e cuida da pessoa” (Lc 10,33-34). Não vive em função de si, mas do Reino do Pai.

A segunda tentação coloca Jesus no ponto mais alto do Templo sugerindo que ele se lance dali, pois os anjos o tomarão nas mãos. É a tentação da busca de prestígio pessoal, da fama, da ostentação de poder, de capricho próprio. É a tentação de deixar tudo por conta de Deus, de lançar-se na vida sem as devidas precauções, pensando que Deus deve fazer tudo por nós, sem nenhum esforço de nossa parte. Ou seja, não se pode jogar para Deus aquilo que é responsabilidade do ser humano. Essa tentação mostra explicitamente o uso da religião para busca de sucesso. Quanta gente anda atrás de promessa, de milagres, de adivinhações etc. Na verdade, cada um deveria assumir seu papel na sociedade. Como cristãos o Senhor nos chama a lançar sobre o mundo um olhar de misericórdia. Ele nos convida a deixarmos de buscar a nós mesmos, nosso bem-estar, nossos desejos realizados, nosso sucesso e voltarmos nosso olhar para fora, para o outro. O rosto do outro precisa me interpelar, me incomodar e me desacomodar. Essa foi a atitude que Jesus assumiu diante do Pai.  É diabólico organizar uma religião como um sistema de crenças e práticas para se conseguir segurança. Não se constrói um mundo mais humano refugiando-se cada um em sua religião. É preciso arriscar-se confiando em Deus, como Jesus.

A terceira e última tentação é a de servir ao projeto do diabo, abandonando o projeto de Deus em troca de poder e glória mundanos. São aquelas tentações que sofremos diante de possibilidade de ganhar mais dinheiro, de ter mais, de dominar mais, com prejuízo para muitos. É trocar o projeto do Pai pelo próprio projeto egoísta e consumista. É aquela situação que nos possibilita crescer dando prejuízo aos outros; que leva a abandonar a família, os filhos para vantagem pessoal, deixando muitos no sofrimento. É a exploração irresponsável da natureza com prejuízo para o meio ambiente: a terra geme dores de agonia. É também a troca de projetos de políticas públicas que tiram milhões da miséria, por projetos de políticas capitalistas que entregam bens e serviços nas mãos de banqueiros, latifundiários, empresários e políticos sem consciência que só pensam em tirar proveito dos espaços de poder.

Estão aí as tentações de Jesus que são também nossas. Ele as venceu todas pela força da Palavra, da oração, da comunhão profunda com o Pai. E nós? Quais são os instrumentos de que lançamos mão para vencer as tentações do poder, da glória, do consumismo? Como está nossa vida de oração? Que lugar ocupa a Palavra de Deus em nossa vida? Quanto tempo tiramos por dia para fazer oração? Quanto tempo reservamos para a comunidade, para o serviço gratuito, generoso? Quando nos ocorre uma tentação, que fazemos? De que nos valemos?

Quaresma é tempo de revisão de vida, de conversão, de convergir as forças para o “único necessário” (cf. Lc 10,42). É bom que cada um de nós verifique qual pecado precisa ser excluído de sua vida a fim de curar as feridas que por vezes provocou no coração e na vida dos irmãos.

*Campanha da Fraternidade 2023: “O ser humano, contudo, não tem só fome de comida, isto é, necessidade de alimento saudável e nutritivo, ele tem fome de justiça, necessidade de relações justas que lhe garantam a sobrevivência; tem fome de cidadania, quer ser respeitado como cidadão, tendo seus direitos e sua participação garantidos; tem fome de beleza - contemplar o belo através da arte, da música, ou de uma simples paisagem natural é uma necessidade humana que sacia a fome interior, reidrata a alma, harmoniza o coração - ; tem fome de sentido, é racional, precisa compreender as razões dos acontecimentos da sua própria vida e da história da humanidade, a fim de direcionar suas ações;  e, ainda mais, tem fome de transcendência, não se contenta, por sua própria natureza incompleta, com as realidades terrenas, deseja o infinito, 'tem sede de Deus' (Sl 42, 3)” (Texto-base, 11).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Oração, Jejum e Esmola para a conversão

aureliano, 01.03.23

Quarta-feira de Cinzas [22 de fevereiro de 2023]

[Mt 6,1-6.16-18]

Não nos é dado saber com certeza data e local precisos do surgimento da Quaresma na vida litúrgica da Igreja. O que sabemos é que ela foi se formando progressivamente. Estava entranhada na consciência dos cristãos a necessidade de dedicar um tempo em preparação à celebração da Páscoa do Senhor. As primeiras alusões a um período pré-pascal estão registradas lá pelo século IV. Consta também que, na Quinta-Feira Santa, acontecia a reconciliação dos pecadores; e que na Vigília Pascal se realizavam os batizados dos catecúmenos (aqueles que estavam preparados para o batismo). Esses dois costumes, vividos desde a antiguidade da fé cristã, vem mostrar que esse tempo nos remete à renovação das promessas batismais ou preparação para o batismo e a práticas penitenciais que nos levem a uma conversão profunda do coração.

A propósito desse elemento da história, o Concílio Vaticano II recomenda: “Tanto na liturgia quanto na catequese litúrgica, esclareça-se melhor a dupla índole quaresmal, que, principalmente pela lembrança ou preparação do batismo e pela penitência, fazendo os fiéis ouvirem com mais frequência a Palavra de Deus e entregarem-se à oração, os dispõe à celebração do Mistério Pascal. Por isso, utilizem-se com mais abundância os elementos batismais próprios da liturgia quaresmal; segundo as circunstâncias, restaurem-se certos elementos da tradição anterior. Diga-se o mesmo dos elementos penitenciais” (SC 109).

É bom entender que a Quaresma não é um tempo de práticas penitenciais ultrapassadas, mas é um tempo de experiência de um Deus que está vivo no nosso meio e quer que todos vivam: “Eu vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10). Um tempo em que somos chamados a participar dos sofrimentos de Cristo para participarmos também de sua glória (cf. Rm 8,17). O acento não está, portanto, nas práticas de penitência, mas na graça santificadora do Senhor que nos convida todos os dias à conversão.

Por possuir um caráter fundamentalmente batismal, a Quaresma nos convida a entrar numa dinâmica de permanente conversão para nos mantermos no caminho encetado pelo batismo. Mortos com Cristo, ressuscitamos com ele para uma vida nova. Quem ressuscitou com Cristo busca as “coisas do alto”. Compromete-se com a vida de todas as pessoas, particularmente com aqueles que não contam, que não são visíveis aos olhos da sociedade, os “sobrantes”.

As três práticas propostas pela Igreja, com raiz na tradição judaica são a oração, o jejum e a esmola. Elas nos ajudam no processo de conversão.

O JEJUM quer nos ajudar a deixar de lado o consumismo proposto por uma sociedade governada por ricos e poderosos que querem ganhar sempre mais à custa dos pobres. Querem arrancar o pouco que o pobre tem. Neste tempo é bom a gente aprender a viver com pouco, a reaproveitar as coisas, a levar uma vida mais simples, mais sóbria. Não se trata de passar necessidade ou fome, pois não é isso que Deus quer. Mas a gente pode viver de modo mais simples sem entrar no modismo da sociedade consumista que mata e exclui. Mais do que jejuar, talvez fosse muito proveitoso evitar o desperdício, jogar o lixo na lixeira, manter limpo os espaços públicos; cuidar das fontes e rios; usar a água tratada com mais consciência, como dom do Pai; reutilizar lixo e água; preocupar-se e solidarizar-se com quem passa necessidade; superar toda forma de violência; ser mais terno e comedido nas palavras; evitar ofender, maldizer; ser mais paciente no trânsito; tomar as dores e defender aqueles que sofrem violência; promover a paz através do diálogo, da tolerância e do respeito às diferenças; maior empenho por uma educação que leve em conta a totalidade da pessoa humana; lutar por um sistema de saúde que trabalhe preventivamente e que cuide com zelo e responsabilidade dos doentes etc. Trata-se de um ‘esvaziar-se’ para encher-se dos sentimentos de Jesus; encher-se da bondade de Deus.

A ESMOLA quer despertar-nos para a solidariedade com os mais pobres. Uma conversão que nos torne capazes de partilhar com os outros os bens e os dons que temos. Que nos mobilize pelas causas justas, em favor dos menores, dos ‘invisíveis’, sem voz nem vez. É a luta contra a ganância que faz tantas vítimas em nosso meio. A esmola nos tira de nós mesmos e nos remete em direção dos irmãos pelo gesto da partilha solidária. Não se trata apenas de darmos algo de nós, mas darmo-nos a nós mesmos. A visita a um doente, idoso, pobre é um bom gesto que ajuda no processo de conversão. É a oferta do tempo que temos para nós e que doamos a alguém.

A ORAÇÃO nos coloca numa profunda comunhão com o Pai. Sem uma vida orientada pela oração não podemos construir um mundo de acordo com o sonho de Deus. E a oração verdadeira é aquela que nos coloca em sintonia com o querer de Deus, que nos move em direção aos pobres e sofredores. Ele veio “para que todos tenham vida”. Aproveitar esse tempo para reforçar a leitura orante da bíblia. Rezar todos os dias algum texto bíblico! Oramos não porque Deus desconhece nossas necessidades, mas porque queremos nos entregar a Ele e descobrir a melhor forma de servi-lo nos irmãos. A Leitura Orante ilumina nosso caminho, nossa vida. Oramos para nos colocarmos na presença de Deus gratuitamente, generosamente. Talvez fosse bom redistribuir o tempo despendido às redes sociais: não deixar que os bate-papos e diversões da internet roubem o tempo da oração.

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A Campanha da Fraternidade deste ano tem como tema: “Fraternidade e Fome”, com o lema: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Vejamos alguns números que nos  ajudam a perceber a importância da temática:

“O Papa Francisco nos ensina: 'Jesus era assim: tinha sempre compaixão, pensava sempre nos outros. Jesus se comove. Jesus não é insensível., Não tem um coração enrijecido. Jesus é capaz de se comover. Sente-se ligado àquela multidão. A sua compaixão não é sentimento indefinido; ao contrário, mostra toda a força da sua vontade de estar próximo de nós e de nos salvar'" (Texto Base, 15).

“A fome é uma realidade no Brasil. E este fato não pode ser negado. Ela é o flagelo de uma multidão de brasileiros. Mas no Brasil não falta alimento. A cada ano, o País bate recordes de produção, dentre os quais, milho, soja, trigo, de cana de açúcar, de carne etc. O que então nos falta? Falta-nos convertermo-nos ao Evangelho, olhar com sinceridade as necessidades do outro, aprender a repartir para que ninguém fique com fome, edificar aqui e agora o Reino de Deus que buscamos e que se realizará em plenitude na eternidade. (Texto-Base, 29).

"Aqui nem todos têm vida em plenitude! Ainda não somos verdadeiramente irmãos e irmãs! Nosso País ainda não é nossa Casa Comum! Não formamos uma só família dos filhos e filhas de Deus! Se assim fosse, a ganância, o individualismo, o domínio dos interesses individuais e, sobretudo, a fome não existiriam entre nós, ceifando vidas. Mas não podemos deixar de sonhar o sonho de Deus" (Texto-Base, 112).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

É santo quem manifesta a bondade do Pai

aureliano, 01.03.23

7º Domingo do Tempo Comum [19 de fevereiro de 2023]

[Mt 5,38-48]

No Sermão da Montanha Jesus continua mostrando a grande novidade que veio trazer ao mundo para que se estabeleçam novas relações regidas pelo amor.

O judaísmo sempre entendeu a estreita relação existente entre o amor ao Senhor e ao próximo. Prova disso é a insistência do Ensinamento de Deus (Lei) em relação aos pobres: estrangeiro, viúva e órfão não podem ser afligidos, torturados como temos visto em nosso Brasil e pelo mundo afora (cf. Ex, 22, 20-23). A primeira leitura de hoje (Lv 19, 1-2.17-18) insiste em que não se guarde ódio nem se busque vingar de ninguém. A santidade se manifesta no amor ao próximo. Amor que se expressa no perdão, no cuidado, na solidariedade, na partilha, na correção fraterna etc.

O problema enfrentado por Jesus com seus irmãos na fé judaica foi que essa relação fraterna era guardada somente para com os correligionários (da própria religião e raça). Jesus quer universalizar essa relação de perdão e de não violência. Vai além: não enfrentar o malvado, ou seja, evitar toda violência, ainda que custe ao discípulo uma atitude de humildade: “Você é um bobo, um besta! Eu não aceitaria isso!”. É preciso ainda mais: amar o inimigo. Enquanto alguns contemporâneos de Jesus pregavam: “Ame o que Deus escolheu e odeie o que Deus rejeitou” (Essênios).

O que Jesus introduz de novo em tudo isso? – Seu discípulo deve manifestar sempre mais na sua vida as atitudes do Pai que ama a todos os seres humanos. “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito”. A perfeição de que fala Jesus não é psicológica, legalista, cumpridora da lei pela lei. Mas Jesus quer dizer que o discípulo do Reino precisa ser perfeito no amor como o Pai que ama todas as pessoas, independente do que são: “faz chover sobre bons e maus”. O amor não está na linha do merecimento, mas da gratuidade, generosidade. Ou seja, é preciso superar a mentalidade mundana, e enxergar o mundo e as pessoas com o olhar de Deus.

O Papa Francisco tem uma palavra muito bonita sobre esse novo olhar de cuidado: “Cada ser humano é objeto da ternura infinita do Senhor, e Ele mesmo habita a sua vida. Na cruz, Jesus Cristo deu o seu sangue precioso por essa pessoa. Independentemente da aparência, cada um é imensamente sagrado e merece o nosso afeto e a nossa dedicação.  Por isso, se consigo ajudar uma pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida. É maravilhoso ser povo fiel de Deus. E ganhamos plenitude quando derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de nomes!” (EG, n. 274).

Faz-se necessário mudar o registro da mente e do coração. Entrar num processo de conversão. É poder dizer: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23,33). O amor proposto por Jesus é o ágape: não há exclusividade no amor, ele é aberto. Parecido com aquele amor da Graça, mãe do Ronildo, por ocasião da morte do filho (lá em Vilas Boas, Guiricema): “Meu Deus, eu te entrego meu filho. Assim como o Senhor me deu ele, eu te devolvo”. E cuidou dele a vida inteira, gratuitamente, amorosamente!

Talvez nos ajude mais o conceito de santidade, presente no Levítico 19, 1-2. Santidade e pecado coabitam em nós: somos santos e pecadores. Mas perfeição e pecado, não. Perfeição é atributo divino. É um ideal, algo que dá ideia de completude. A Escritura, com exceção de Mateus, não diz que Deus é perfeito, mas que Deus é Santo. É separado das criaturas, não se confunde com elas. É o Criador. Se Deus, o Santo, ama a todos, aqueles que Ele criou à sua imagem e semelhança, também devem amar para participar da santidade de Deus e comunicá-la aos demais.

Num comentário magnífico ao relato sobre o paralítico colocado na presença de Jesus pelo telhado da casa (Mc 1,1-12), Papa Francisco diz, com toda simplicidade: “Sem dúvida, «o povo é pecador, como eu sou pecador, todos o somos». Mas o povo «procura Jesus, procura algo, procura a salvação». Ao contrário, aquele «grupo» de homens «parados estavam ali, na varanda, a olhar e a julgar» (Homilia em 13/01/17). Ou seja, ainda que a motivação inicial esteja eivada de algum egoísmo, a Graça pode transformar a pessoa. O importante é buscar, é sair da “varanda” e caminhar atrás de Jesus. O ideal cristão deve ser colocar os pés nos passos de Jesus.

Perfeição dá ideia de subida, de degraus. Santidade traduz descida, esvaziamento da auto-suficiência, de toda ambição e busca de riquezas, de prestígio, de projeção social, de dominação dos outros, de opressão. Santidade não é resultado matemático que possa ser contabilizado. É antes uma tendência para Deus, busca de se viver na presença de Deus, uma luta diária contra os desejos egoístas presentes no “homem velho”, para usar a linguagem paulina (Rm 6,6). É a verificação da própria indigência e, ao mesmo tempo, uma esperança confiante no amor, na graça, na salvação que vem de Deus. É um caminhar lentamente, passo a passo. “Caminheiro, não existe caminho. Passo a passo, pouco a pouco, o caminho se faz”. Não por nós, mas pela graça e perdão do Pai, com nossa resposta generosa, cotidianamente, pacientemente, confiantemente...

Assim como os filhos refletem a fisionomia dos pais, assim o discípulo de Jesus deve expressar, em suas relações, a santidade e o amor do Pai.

*Na próxima quarta-feira, dia 22, vamos dar início à Quaresma e abrir a Campanha da Fraternidade: Fraternidade e fome. “Dai-lhes vós mesmos de comer ” (Mt 14,16). Seria muito oportuno que cada um se preparasse para celebrar bem esse tempo de conversão, de graça, de intensa vida espiritual para sermos pessoas melhores, mais compassivas, solidárias, pacificadoras, comprometidas com a vida desde a concepção até o ocaso.

Não deixe de ler, ouvir, refletir sobre o tema da Campanha da fraternidade. Há uma realidade de dor, de violência e de miséria em nosso País, provocada pela relação desumana com os bens, o dinheiro, o patrimônio público e entre as pessoas. É urgente repensar nossa vida cristã.

Quarta-feira de Cinzas é dia de Jejum e Abstinência de carne. Busca de conversão para Deus e para os irmãos.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN