Configurar nossa vida à de Cristo Jesus
2º Domingo da Quaresma [25 de fevereiro de 2024]
[Mc 9,2-10]
O finalzinho do capítulo 8 de Marcos relata as exigências do seguimento de Jesus: “Se alguém quer vir em meu seguimento, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. Em seguida traz o relato da Transfiguração como a convidar o discípulo a dar uma ‘espiadinha’ no céu. É Jesus revelando sua glória a seus discípulos para que confiassem nele: é o Filho de Deus, Salvador.
Domingo passado (1º da quaresma) acompanhamos Jesus, levado pelo Espírito ao deserto, sendo tentado pelo adversário do projeto salvífico e libertador do Pai. Na força do mesmo Espírito Jesus venceu o tentador. Aquele tempo de preparação para a sua missão foi árduo. Mas Jesus não se deixou abater. Venceu a tentação que queria desviá-lo da vontade do Pai.
Hoje Jesus sobe a montanha. Se no deserto ele passou pela tentação, aqui ele faz um encontro com o Pai. O Deserto é lugar da prova, da tentação: ouve-se a voz sedutora de Satanás. A Montanha é lugar do encontro com o Senhor: ouve-se a voz confortadora de Deus. Essa realidade nos remete à doutrina dos “dois caminhos” de que falava a Lei de Moisés: “Eu te proponho a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida para que vivas” (cf. Dt 30, 15-20). E também aquela divisão interna que há dentro de nós e que fazia Paulo exclamar: “Querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero” (cf. Rm 7, 14-20).
Na montanha Moisés e Elias se encontraram com Deus e receberam d’Ele as instruções para a sua missão. Por isso o evangelista apresenta essas duas figuras memoráveis do Primeiro Testamento. Moisés representa a Lei e a libertação do povo das mãos do Faraó. Elias representa o profetismo, pois libertou o povo da idolatria que oprimia Israel. Jesus aparece na cena como alguém superior a Moisés e Elias. As roupas brilhantes, o fato de eles estarem conversando com ele, tudo mostra Jesus como centro do relato. Isso significa que Jesus está para além dessas figuras proeminentes do passado: é o “Filho amado do Pai”.
Pedro gostou daquela amostragem do paraíso. Queria ficar por ali. “É bom ficarmos aqui. Façamos três tendas”. Representa o discípulo acomodado, que quer experimentar a Páscoa sem passar pela Sexta-feira da Paixão. Que quer fugir dos embates cotidianos, da luta cotidiana pelo Reino. Quer glória sem cruz. Não quer “descer” a montanha para a missão.
A voz do Pai identifica seu filho: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!”. É ele que veio oferecer sua vida pela salvação da humanidade. O Pai o entrega, como Abraão outrora entregou seu filho Isaac (cf. Gn 22, primeira leitura da missa de hoje). “Deus, com efeito, amou tanto o mundo que deu o seu Filho, o seu Único, para que todo homem que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). No batismo o Pai se dirige ao próprio filho: “Tu és o meu Filho bem amado” (Mc 1, 11). Aqui o Pai apresenta seu filho ao mundo: “Este é o meu Filho amado”. Aquele que fora consagrado e confirmado no batismo e no deserto, deve ser acreditado, seguido, ouvido. Por isso a insistência: “Escutai-o”. É preciso prestar atenção, ouvir com ouvido de discípulo, a cada manhã (cf. Is 50, 4-5; 55, 3).
“Olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles”. Isto é, os discípulos não têm outro mestre (nem Moisés nem Elias), a não ser Jesus: “Um só é o vosso mestre” (Mt 23, 10).
O relato da transfiguração do Senhor, na liturgia quaresmal, quer ajudar o discípulo de Jesus a firmar-se na fé n’Aquele que será contemplado sem figura de homem na cruz, reconhecendo-o como o Filho de Deus, cheio da beleza divina, por alguns momentos oculta no véu da carne, mas que será manifestada na glória do Pai.
O discípulo deve também, por sua vez, rezar sua própria transfiguração em Cristo. E trabalhar para que os rostos desfigurados pela dor e sofrimento produzidos por uma sociedade que exclui, discrimina, escraviza e mata, que se pauta pela competição e que valoriza a pessoa pelo que tem e não pelo que é, sejam reconfigurados ao rosto do Cristo transfigurado. Na medida em que ajudamos os irmãos sofredores a minimizarem sua dor, estamos transfigurando seu rosto no Cristo ressuscitado.
O dar-se de Cristo pela salvação do mundo, mistério que celebramos em cada Eucaristia, nos move a sair do nosso egoísmo na direção de uma entrega mais generosa e gratuita, tornando mais visíveis os frutos da Eucaristia: fraternidade, simplicidade, alegria, generosidade, solidariedade, partilha, perdão.
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Campanha da Fraternidade 2024:
Um dos grandes desafios a ser superado e caminho de conversão a ser feito é a capacidade de ouvir e de escutar. Como é difícil escutar o outro, no sentido de ouvir e prestar atenção no que a pessoa diz, entrar em sintonia com sua realidade, compreender, acolher. Como é difícil silenciar-se para que o outro possa falar com confiança. Como é difícil acolher a partilha e a dor do outro sem julgamento ou condenação. Nossa sociedade nos prepara para falar, julgar, condenar, doutrinar, ser donos da verdade e do mundo, donos das pessoas e de suas histórias. Jesus nos ensina a escutar, a acolher a dor, a ver a angústia, a perceber as batidas do coração. Jesus nos ensina a “alargar a tenda” (Is 54,2) e acolher quem chega, a quem encontramos pelo caminho, a quem muitas vezes é ignorado, invisibilizado. Jesus nos ensina a chamar pelo nome, a olhar nos olhos, a sentir a dor muitas vezes expressa no olhar. Jesus nos ensina a devolver a alegria, a dignidade, o sonho de um horizonte luminoso.
“Nosso desafio é ‘ser ainda mais uma Igreja que escuta: escuta do Espírito por meio da escuta da Palavra, da escuta dos acontecimentos da história e da escuta mútua como indivíduos e entre as comunidades eclesiais, desde o nível local até os níveis continental e universal (...) Este estilo de ouvir precisa marcar e transformar seus membros, bem como com outras comunidades religiosas e com a sociedade como um todo, especialmente em relação àqueles cuja voz é mais frequentemente ignorada’” (TB, 126).
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Em tempos de vírus nas relações humanas e nas redes sociais, rezemos com o Cardeal Tolentino:
Livra-nos do vírus do pânico disseminado, que em vez de construir sabedoria nos atira desamparados para o labirinto da angústia.
Livra-nos do vírus do desânimo que nos retira a fortaleza de alma com que melhor se enfrentam as horas difíceis.
Livra-nos do vírus do pessimismo, pois não nos deixa ver que, se não pudermos abrir a porta, temos ainda possibilidade de abrir janelas.
Livra-nos do vírus do isolamento interior que desagrega, pois o mundo continua a ser uma comunidade viva.
Livra-nos do vírus do individualismo que faz crescer as muralhas, mas explode em nosso redor todas as pontes.
Livra-nos do vírus da comunicação vazia em doses massivas, pois essa se sobrepõe à verdade das palavras que nos chegam do silêncio.
Livra-nos do vírus da impotência, pois uma das coisas mais urgentes a aprender é o poder da nossa vulnerabilidade.
Livra-nos, Senhor, do vírus das noites sem fim, pois não deixas de recordar que Tu Mesmo nos colocaste como sentinelas da aurora (Texto-Base da CFE 2021, p. 66).
Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN