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Deixar-se podar pelo Pai

aureliano, 26.04.24

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5º Domingo da Páscoa [28 de abril de 2024]

[Jo 15,1-8]       

A alegoria da vinha como o Povo de Deus aparece já no Antigo Testamento: “A vinha do Senhor dos Exércitos é a casa de Israel. Deles esperava o direito, mas o que produziram foi a transgressão” (Is 5, 7). E ainda: “Eu te plantara como uma vinha excelente, toda de cepas legítimas. Como te transformaste para mim em ramos degenerados de uma vinha bastarda?” (Jr 2, 21). Israel, qual vinha de agricultor zeloso, era cuidado por Deus com todo carinho, porém os frutos eram pouco generosos. A infidelidade, a idolatria, impedia a ação de Deus na vida do seu povo.

No relato de hoje Jesus se apresenta como “videira verdadeira” (no domingo passado apresentava-se como bom Pastor). O Pai é o agricultor. Vários cuidados são empregados para que produza frutos: poda dos galhos “bons”; corte e queima dos ramos secos; permanecer ligado ao tronco; produzir frutos.

O essencial deste relato é o “permanecer”. Este verbo aparece oito vezes nestes poucos versículos. Percebemos aí a importância da ligação com Jesus. Sem uma vida de encontro profundo com Cristo ressuscitado que faça com que a vida de Cristo corra em nossas veias, não haverá produção abundante de frutos. Galho seco agarrado ao tronco não serve para nada. Rama de uva cheia de folhas, mas sem nenhuma uva, não serve para nada. As palavras do Mestre devem “permanecer” em nós. Vida de oração é manter-se “plugado” a Jesus na busca permanente da vontade do Pai. É vida de permanente comunhão e intimidade com Deus.

As palavras de Jesus: “Sem mim nada podeis fazer”, nos remete a uma realidade que vivemos hoje de desconhecimento da pessoa de Jesus e do desejo prometéico incutido no coração e na mente humana de autossuficiência e de autorreferencialidade. O ser humano caminha para o caos levado pelo desejo da absoluta autonomia e independência. Julga-se o senhor de tudo e de todos. Prescinde cada vez mais da experiência de fé e de fraternidade. As crises morais, existenciais, hídricas (sic!), étnicas, culturais, econômicas que vivemos estão profundamente vinculadas à autossuficiência humana. Sem a referência a Jesus e aos valores vividos e ensinados por ele, não é possível uma transformação social que perdure.

Ainda mais. O tronco é Jesus. Nós somos os ramos. Ninguém pode ter a petulância de se colocar como tronco: dono da verdade, dono do poder, dono das pessoas, dono do dinheiro, dono das decisões, dono da comunidade. O ensinamento de Jesus quer incutir em nós a igualdade na comunidade. Todos somos ramos. Cuidado com o poder (da hierarquia e da política, do mercado e do dinheiro) que por vezes seca os ramos ou se enche de folhagem inútil! É preciso levar os ramos a se ligarem profundamente ao Tronco para que produzam frutos.

Sem cultivo da intimidade com Jesus Cristo, colocando-o como centro de nossa vida e de nossas decisões, corremos o risco de reduzir nossa fé a um folclore, a um ritualismo vazio, a uma relação comercial com uma realidade sagrada que denominamos deus. Então nos tornaremos galho seco ou ramo enfeitado, mas vazio daquilo que é essencial: frutos, uva doce, atitude que dê sabor à vida dos outros. Enganamos os outros, exploramos sem escrúpulo, azedamos a vida daqueles que nos circundam e machucamos aqueles que nos buscam.

Os frutos que devem ser produzidos são claros: crer em Jesus e amar uns aos outros (cf. 1Jo 3, 23). É o resultado do permanecer em Deus que, consequentemente, produz frutos.

As podas que o Pai faz são integrantes do processo de cultivo e produção. Elas ajudam a produzir. Por isso precisamos estar abertos a outras possibilidades: abertura ao novo, diálogo, correção fraterna, abrir mão das próprias idéias, conviver com diferenças, ser mais tolerante, superar preconceito de raça, religião, condição social ou orientação sexual. As podas não são necessariamente provação vazia, perseguição inócua; elas são graça de Deus para produzirmos frutos. É deixar o Pai arrancar de nós aqueles excessos que nos impedem de ser melhores.

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Quando Jesus chama seu Pai de “agricultor”, ele derruba essa imagem que insistem em incutir em nós de um Deus todo poderoso e distante, juiz implacável, alguém que nos ameaça constantemente. Agricultor: aquele que cuida do campo, das plantas, que cultiva a terra. Ele nos deu seu filho Jesus como “verdadeira videira”. Quem quiser produzir frutos bons precisa permanecer nessa videira e deixar-se cultivar, limpar, podar pelo Pai/Agricultor.

Os ramos devem produzir frutos. Do contrário precisam ser cortados. Não adianta estar grudado na videira e permanecer seco, sem vida, sem fruto. O ramo seco é retirado. Os ramos verdes são limpos, podados para produzir ainda mais.

O Pai/Agricultor nos limpa e faz produzir frutos com que instrumento? A Palavra de seu filho Jesus. Ela é viva e eficaz. A palavra de Jesus mexe com a vida da gente. Ela nos incomoda e desacomoda. Ela nos tira de nós mesmos, de nosso egoísmo e fechamento. Ela nos purifica dos desejos de grandeza, de um coração ganancioso, da busca de ser mais do que outros.

Somos todos ramos. Não tem ninguém mais do que ninguém. Seja cristão leigo, seja padre, seja bispo, todos somos ramos. Jesus é o tronco. O que mais importa é estarmos plugados nele. Esse verbo “permanecer” que aparece várias vezes nesse capítulo 15 de João insiste em nos dizer que o mais importante na vida cristã é permanecer em Jesus. A grande luta de todos nós deve ser a de permanecer em Jesus. Não buscarmos nas coisas e nas pessoas razões para vivermos. Jesus é o sentido e orientação absolutos de nossa vida. “Sem mim nada podeis fazer”.

Oração: Pai, ajuda-nos a reconhecer nossa pequenez, nossos excessos, nossa infidelidade. Faze com que tua vida penetre cada vez mais em nós para que não sejamos ramos secos, desligados de ti e dos irmãos, nem ramagem formosa, mas improdutiva. Enche-nos de teu amor e de tua vida. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Importa dar a vida por mais vida

aureliano, 19.04.24

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4º Domingo da Páscoa [21 de abril de 2024]

[Jo 10,11-18] 

O quarto domingo da Páscoa sempre traz o tema do Bom Pastor. A comunidade de Israel estava habituada a lidar com a imagem de pastor porque era um povo de pastores de ovelhas e cabras. Um grande pastor que se tornou ícone para a comunidade israelita foi Davi. De simples pastor do rebanho de seu pai, tornou-se rei de Israel e Judá. Ainda jovem salvou o rebanho de seu pai enfrentando o leão, arriscando sua própria vida (cf. 1Sm 17,34-37).

Houve outros líderes da comunidade, além de Davi, que foram pastores como Moisés e Saul. Com o passar do tempo os chefes de Israel eram tidos como pastores. Mas a maioria portava-se como mercenária. Os profetas levantaram a voz contra estes tais: “Ai dos pastores de Israel que apascentam a si mesmos! Não é o rebanho que eles devem apascentar? Comeis as partes gordas, vos vestis com a lã, sacrificando os animais cevados; mas o rebanho, não o apascentais” (Ez 34, 2-3).

Num tempo em que começaram a haver desentendimentos nas primeiras comunidades cristãs acerca da compreensão de liderança, o relato de hoje quer mostrar que Jesus não é ‘um’ pastor, mas ele é ‘o’ Pastor. Os olhares e os corações devem se voltar para ele. A liderança religiosa deve se inspirar nele, permitir que ele, Jesus, pastoreie as comunidades.

Jesus é o Bom Pastor. Ele tem coragem de dar a vida “livremente”. Ele é a “porta” do curral: não prende, não fecha. Ele veio libertar das garras dos lobos e mercenários. Ele enfrenta o lobo, cura as feridas, protege as ovelhas tornando-as autônomas e protagonistas. Enfrenta a morte “para que todos tenham vida”.

Algumas considerações:

  1. O mercenário não se interessa pelas ovelhas, pois busca seu próprio interesse. Há mercenários na política e na religião que continuam confundindo e explorando os pobres e simples, enganando com promessas de solução fácil. Só enganam e exploram os incautos. É preciso ter cuidado!
  2. Hoje é o dia das Pastorais da Igreja. Estas são um modo de Jesus pastorear seu rebanho. Um modo de servir às várias necessidades das comunidades. Pastoral do batismo, da liturgia, da catequese, da criança, das vocações, da mulher marginalizada, do menor, dos encarcerados etc. Não se trata de uma mera organização. Trata-se de um modo de serviço, a partir de Jesus, dentro da Igreja, às várias necessidades das pessoas. É importante assumir esse serviço como um ‘lavar os pés’. Jamais como meio de autopromoção, de desfile dentro do templo nos corredores e presbitérios a cata de aplausos e reconhecimento. Há pessoas na liderança da comunidade (padres e leigos) que vivem buscando vantagens, lucros, em constante competição, atrás de benesses sociais e financeiras. Contemplemos os gestos do Bom Pastor...
  3. Há muitas formas de ser pastor: pastores devem ser os pais, os professores, os chefes de órgãos públicos. Como você está exercendo seu serviço? Suas atitudes se aproximam mais das de Jesus ou das atitudes do mercenário? Qual é o grau de seu interesse pela pessoa humana? De que modo você manifesta isso?
  4. Ovelhas ou protagonistas? Em tempos de aprofundamento e vivência do laicato na Igreja, uma pergunta se faz necessária e oportuna: como anda o protagonismo do cristão leigo em contraposição à submissão da ovelha? Os pastores enfrentam o grande desafio de conhecer e compreender a nova situação do leigo. Para isso precisam conhecer os verdadeiros anseios que estão no coração de todas as pessoas tanto rurais como urbanas. Devem conhecer suas angústias, seus desejos e frustrações. Já as ovelhas: que se decidam a ser protagonistas de suas vidas, para que a decisão de seguir o Bom Pastor não seja apenas um ato de acompanhamento da massa, mas a  decisão livre e corajosa de construir o Reino de Deus junto ao Bom Pastor, para um mundo mais justo, fraterno e acolhedor.
  5. Reforçando essa ideia do pastoreio, gostaria de enfatizar ainda o seguinte: Jesus é o “bom Pastor” porque ele “dá a vida”. Não pode vir em primeiro lugar a ideia de que pastor é o organizador, o controlador, o coordenador, o mantenedor da ordem, o zelador da doutrina e das normas litúrgicas. A partir de Jesus, deve vir em primeiro lugar a disposição de “dar a vida” para aliviar o sofrimento e transmitir a alegria de viver. Não foi isso que Jesus fez? Então pastor/pastora é todo aquele/a que está disposto a sair de si, a doar a vida, a cuidar dos sofredores, a aliviar a dor, a acolher, a curar as feridas, a carregar nos ombros, a zelar pelas ovelhas mais sofridas e abandonadas. É em consequência disso e para o maior bem do rebanho que ele vai se preocupar com a doutrina e o ensinamento. Jesus é o “bom pastor” não por saber governar e guiar melhor do que os outros, mas porque “amou até o fim”, porque foi capaz de empenhar a sua vida pelo rebanho.

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É oportuno também, neste dia do Bom Pastor, refletir sobre a Mensagem da CNBB ao Povo Brasileiro por ocasião da 61ª Assembleia em Aparecida. Eles são nossos Pastores.

“O passado recente nos ensina que a busca de soluções para o Brasil passa necessariamente pelo diálogo e pelo entendimento. Muito do que superamos deveu-se à articulação entre agentes lúcidos e cidadãos compromissados com a vida, a democracia e o país. As instituições brasileiras e a sociedade civil são fundamentais nesse processo. Os três poderes da República são instados a viver o que preconiza a Constituição. Independência e harmonia não são opções de momento, são deveres permanentes e irrenunciáveis.

Na sociedade do diálogo, a paz é um imperativo. O primeiro dom do Ressuscitado foi de que a paz estivesse no nosso meio (cf. João 20,21). Papa Francisco recorda que a paz, por ação da força “mansa e santa” dos que creem, deve ser buscada como forma de “se opor ao ódio da guerra” (Papa Francisco, 1º. de janeiro de 2024). Desejamos paz para os inúmeros países em guerra, cujas consequências são milhares de mortes e milhões de deslocados e refugiados. Os gastos militares em 2023 foram os mais altos desde a Segunda Guerra Mundial, enquanto a fome cresceu e alcança parcela significativa da população mundial” (Mensagem dos Bispos Católicos ao Povo Brasileiro).

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Nesse Domingo a Igreja é convidada a rezar pelas vocações. Há vários anos que o Papa escreve uma mensagem motivando a oração pelas vocações. Na mensagem para este ano Francisco recomenda a gratidão, a esperança e a oração. Agradecer pelos que dizem um sim generoso cotidianamente, incansavelmente: na família ou na vida consagrada. Alimentarmos a esperança que nos ilumina e inspira nas incertezas e escuridão da vida. E rezarmos pelas vocações, pedindo ao Senhor da messe que desperte em nossos jovens o desejo de seguir a Jesus, de se deixar fascinar por ele.

“Este Dia proporciona-nos sempre uma boa ocasião para recordar, com gratidão, diante do Senhor o compromisso fiel, quotidiano e muitas vezes escondido daqueles que abraçaram uma vocação que envolve toda a sua vida. Penso nas mães e nos pais que não olham primeiro para si mesmos, nem seguem a tendência dum estilo superficial, mas organizam a sua existência cuidando das relações com amor e gratuidade, abrindo-se ao dom da vida e pondo-se ao serviço dos filhos e seu crescimento. Penso em todos aqueles que realizam, dedicadamente e em espírito de colaboração, o seu trabalho; naqueles que, em diferentes campos e de vários modos, se empenham por construir um mundo mais justo, uma economia mais solidária, uma política mais equitativa, uma sociedade mais humana, isto é, em todos os homens e mulheres de boa vontade que se dedicam ao bem comum. Penso nas pessoas consagradas, que oferecem a sua existência ao Senhor quer no silêncio da oração quer na atividade apostólica, às vezes na linha de vanguarda e sem poupar energias, servindo com criatividade o seu carisma e colocando-o à disposição de quantos encontram. E penso naqueles que acolheram a chamada ao sacerdócio ordenado, se dedicam ao anúncio do Evangelho, repartem a sua vida – juntamente com o Pão Eucarístico – pelos irmãos, semeiam esperança e mostram a todos a beleza do Reino de Deus. (Mensagem do Papa Francisco para o 61º Dia Mundial de Oração pelas Vocações).

Refletindo: Você reza pelas vocações? O que você faz para que mais pessoas tenham a coragem de dar seu sim generoso ao chamado do Pai para um serviço específico na Igreja como padre, religioso, religiosa? Precisamos pedir ao Pai que “envie trabalhadores para a messe”. E, junto à oração, incentivar e apoiar aqueles que se dispõem a entrar nesse caminho.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

José Lopes: portas sempre abertas aos pobres

aureliano, 13.04.24

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Neste dia 13 de abril de 2024 celebramos o 2º ano de Páscoa definitiva de meu pai, José Lopes de Lima. Ele viveu uma vida configurada a Cristo crucificado e ressuscitado. Como registra seu primeiro livrinho que, aliás, lhe trouxe grande alegria: “Lutas e vitórias de uma vida”.

Ainda esses dias estava escutando meus irmãos, mais novos e mais velhos, relatando histórias do papai: estava sempre de portas abertas acolhendo visitas, andarilhos, pessoas pobres e sofredoras. Sempre com as portas da casa e do coração abertas para recebê-los, sem nenhum receio, preconceito ou constrangimento.

Nós mesmos ficávamos com medo das pessoas que chegavam, pois eram um tanto estranhas para nós. Mas ele não tinha receio. Acolhia, oferecia o que tinha para matar a fome, deixava que dormissem lá em casa. Sem receio nenhum.

Papai sempre confiou na Providência divina. Poderia afirmar que papai não era ingênuo, era confiante em Deus. Ele entregava tudo, absolutamente tudo nas mãos de Deus. Suas últimas palavras registradas por um irmão (Gabriel) foram: “Estamos todos juntos nas mãos de Deus”.

Ele nunca se preocupou com os filhos que o visitavam e partiam em viagem de retorno. Não procurava saber onde estavam, se tinham chegado bem etc. Certa vez, perguntado sobre isso, respondeu: “Meus filhos estão nas mãos de Deus. Mesmo se acontecer algum acidente ou tragédia, não me preocupo: estão nas mãos de Deus”.

Mas voltando ao assunto das “portas abertas”, lá em casa, para quem quer que chegasse, veio-me à memória, nesses dias de celebração pascal, a consideração das “portas fechadas” onde se encontravam os discípulos de Jesus. Eles estavam com as portas fechadas por medo. Jesus entra, mesmo estando as portas fechadas, e tira-lhes o medo com o dom da paz, do perdão e do Espírito Santo. Jesus ressuscitado lhes dá novo vigor, encoraja-lhes o coração, enche sua vida de alegria em meio às dores e angústias que experimentavam pela morte trágica de Jesus, o mestre em quem sempre confiaram.

Usando, pois, a metáfora da porta, estava me recordando que o papai nunca manteve nada trancado, escondido, fechado. Quarto, pastas e cadernos, lugar de guardar o dinheiro (o pouco que tinha), gavetas, guarda-roupas (celular e computador nos últimos anos de vida). Tudo lá em casa era aberto. Não havia segredo. Ainda me lembro que, quando era criança, havia uma latinha empretecida pelo tempo, sem tampa, sobre uma tábua/prateleira, acima do banco da cozinha, onde ele guardava o dinheiro (quando tinha).

A casa de meu pai tinha as portas abertas. Ele não tinha medo de nada nem de ninguém. Não era valente. Era confiante. Seu refúgio e rocha firme era o Senhor: “O Senhor é minha rocha e minha fortaleza, quem me liberta é o meu Deus. Nele me abrigo, meu rochedo, meu escudo e minha força salvadora, minha torre forte e meu refúgio” (Sl 18,3).

E a Mãe, Maria, sua companheira inseparável. Quando era criança, quantas vezes o ouvia rezar o “Lembrai-vos, ó piíssima Virgem Maria”, de São Bernardo, enquanto fazia o café da manhã, no fogão a lenha. Quando não tinha pó de café, era água doce de rapadura. Não desesperava, não desanimava. Seguia seu caminho.

O pouco que possuía “não era seu”. Como nos lembra Atos dos Apóstolos: “Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum” (At 4,32). Ficava zangado quando alguém tomava uma ferramenta emprestada e não devolvia ou devolvia quebrada. Mas não deixava de emprestar. E nunca deixou de ajudar com alimento a quem precisava.

Agora, um detalhe curioso é que as pessoas que às vezes pediam hospedagem lá em casa eram bem pobres e por vezes, com alguma deficiência mental. E o papai recebia esse povo como a qualquer outro. Sem cerimônia nem enfeite. A pessoa partilhava de nossa vida: da pobreza, das pulgas (que não faltavam), da comida (simples: abóbora, feijão, arroz, angu, ovo frito - quando tinha, pois carne era coisa raríssima nos tempos idos), das roupas de cama. Não tinha nada de especial senão aquele jeito de receber as pessoas com a porta aberta, o coração aberto e a casa aberta.

Quando dizemos que o papai fez a Páscoa definitiva significa que ele viveu uma vida pascal, como ressuscitado, de pé, com as portas abertas, sem medo de testemunhar o amor de Deus, cuidando dos pequenos e sofredores como Jesus ensinou. Não pode fazer páscoa definitiva quem não vive a vida de Jesus.

E a mamãe? Tadinha. Estava por ali. Nunca se opôs que papai realizasse o gesto samaritano. Como ela nunca foi proativa devido aos limites que lhe impunham a enfermidade, dava o apoio que lhe era possível. Quando estava de bom humor e “seu anjo da guarda combinava com o da visita”, “cerrava um papo”. Senão, ficava no quarto, quietinha.

Viver como ressuscitado é viver de portas abertas, em espírito de acolhida a pessoas que nem sempre correspondem ao nosso afeto. Viver como ressuscitado é viver a amizade social alargando nossa tenda a fim de que outros possam aí se abrigar da chuva e do sol, das intempéries da vida. É abrir o coração para doar um pouco de afeto, de atenção, de cuidados para com os pequenos e sofredores.

Papai foi um homem que nos ensinou com sua vida o desprendimento, a partilha, a solidariedade, o espírito de oração, a não discriminação, a não fazer distinção de pessoas. Qualquer um que chegasse lá em casa tinha o mesmo tratamento, a mesma acolhida.

Pe. Anchieta, o irmão mais velho, que fora adolescente para o seminário, sempre levava visitas lá em casa. As coisas que tinham na casa eram sempre as mesmas para todos. E cada um chegava e se ajeitava. Ninguém tinha privilégio. Nem os filhos. Papai estabeleceu um regime igualitário para os filhos e visitantes.

Papai foi um homem honesto. Viveu pobremente, morreu sem ter nada de próprio. O pouco que herdara de seus pais, distribuíra com os filhos. Tomou prejuízo em serviço e negócios. Mas nunca prejudicou a ninguém. E um pequeno recurso que deixou na poupança, já dissera à Maria Marta, irmã mais velha que zelava por e pela mamãe: “É para os cuidados para com a Juracy”. E assim foi feito. Deu para cuidar muito bem da mamãe durante os quase dois anos que ela sobrevivera a ele. Todas as despesas foram pagas, inclusive os funerais, com aquele dinheirinho abençoado. Graças a Deus.

E essa atitude de estar com as portas abertas aos sofredores que pediam comida ou hospedagem marcou nosso coração. Na ocasião a gente não entendia, mas hoje fazemos a leitura de como ele vivia o evangelho: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Papai tinha um coração compadecido pelos pobres.

E assim o ele nos ensinava a viver. Seus exemplos ecoam em nossa vida, em nossos corações. Um adágio latino reza assim: “Verba volant. Exempla trahunt”. (As palavras voam. Os exemplos arrastam). Papai era de poucas palavras. Ia à nossa frente. E nós tentando ir atrás dele. E ele atrás de Jesus. Uma vida pascal na terra. Plenificada na eternidade.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Uma vida que fascina e atrai

aureliano, 12.04.24

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3º Domingo da Páscoa [14 de abril de 2024]

[Lc 24,35-48]

Crer na ressurreição de Jesus não é algo fácil, que acontece de um dia para outro. Quando se diz ‘crer na’, quer-se dizer “entregar-se confiante” a Cristo e assumir uma postura de vida cada vez mais parecida com a de Jesus. Isso é que é ‘ter fé’. Não é crer na narrativa do evangelho como um fato jornalístico, histórico, literário etc. Mas crer que esse acontecimento muda minha história, nossa história. Abre-nos um novo horizonte de vida e de compreensão da realidade. Um acontecimento que, vivido, constrói um mundo mais humano e justo.

A comunidade estava assustada, perdida, sem saber o que fazer. Dois discípulos chegam e começam a contar a experiência que tiveram: “O que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão”.

O próprio Jesus se manifesta a eles com o dom da paz. Mas ainda pensavam que fosse um fantasma. Porém Jesus continua insistindo, comendo do peixe, mostrando-lhes as mãos e os pés. Ou seja, quer lhes dizer que é ele mesmo, o mesmo que havia caminhado com eles pela Palestina e que tinha sido pregado na cruz.

Somente depois de lhes explicar as Escrituras é que “abriu a inteligência deles” (Lc 24,45). As Escrituras aquecem o coração e iluminam a mente. No caminho de Emaús, Jesus explicava-lhes as Escrituras. Depois disseram: “Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 32). A tristeza não lhes fechou o coração, pois havia neles um sincero desejo de seguimento. É importante alimentar o bom desejo no coração: é porta de entrada para Deus.

Não podemos perder de vista aqui a menção ao “caminho”. É um conceito que lembra a itinerância durante a qual o ser humano vai aprendendo a caminhar, a entender o sentido da vida, vai amadurecendo sua experiência de fé. É lugar também de encruzilhadas, de curvas, de tropeços etc. É lugar de riscos, de ameaças, de tentações, de seduções, de decisões. A ‘Resposta’ (que é Jesus) se aproxima, entra na conversa, anima, ilumina a mente e ajuda a enxergar. É preciso estar atento aos ‘sinais’ de Deus no caminho.

Ninguém nasce pronto. Ninguém está acabado, mas faz processo de aprendizado, de discipulado, de experiência de Deus. Por isso os discípulos estavam ainda com medo e perturbados. Ainda estavam a caminho. Estavam na itinerância da fé.

Assim acontece conosco. No princípio nasce um desejo. Depois esse desejo começa a amadurecer na simplicidade e na humildade. E perguntamos com os discípulos: ‘Será verdade um mistério tão grande?’. É algo que está muito acima de nós, é infinitamente maior do que nós. Por isso mesmo nos toma, nos envolve, nos fascina, nos encanta, nos atrai.

Então nos tornamos discípulos missionários. É Jesus que nos faz “testemunhas de tudo isso”. A iniciativa é dele. A resposta é nossa. Se nos deixamos instruir por ele, se nos deixamos perdoar por ele, se nos deixamos converter, a força dele faz de nós discípulos missionários do Reino que ele deixou no meio de nós.

Nossa fraqueza não será mais obstáculo para a ação dele em nós. Ele fará de nós instrumentos de conversão e salvação da humanidade. Nosso povo não quer saber de mestres, de palavras, de ensinamentos vazios, mas de testemunho. É preciso mostrar ao mundo nossa alegria de crer em Jesus, nossa firmeza em seu ensinamento, nossa vida coerente com o que dizemos crer, nosso olhar de misericórdia sobre o pobre e indefeso. O mundo quer e precisa de testemunhas mais do que de mestres. Dizia o Papa São Paulo VI: “Por força deste testemunho sem palavras, estes cristãos fazem aflorar no coração daqueles que os vêem viver, perguntas indeclináveis: Por que é que eles são assim? Por que é que eles vivem daquela maneira? O que é – ou quem é – que os inspira? Por que é que eles estão conosco?  (EN, 21). Nosso modo de viver deve encantar e atrair as pessoas para Cristo.

Nota importante: A expressão “era preciso” do evangelho de hoje e presente em muitos outros textos evangélicos, precisa ser bem entendida. Muitos pensam tratar-se de um destino, uma predeterminação do Pai de que Jesus tinha de morrer violentamente. Um determinismo absoluto como se Deus fosse um masoquista que tem prazer em ver a pessoa sofrer. Isso dá margem a uma ideia errônea de Deus e negaria a liberdade em Jesus. Trata-se de um modo de compreender a história da salvação. Jesus compreende como um apelo à obediência ao plano de Deus ao qual ele quer manter-se fiel até o fim: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Essa fidelidade lhe acarretou o sofrimento, a perseguição, a morte.

A essa vontade salvífica de Deus está submetida também a comunidade dos discípulos. Eles também enfrentarão sofrimento e morte por causa da fé comprometida com o Reino inaugurado por Jesus. O que conta aqui é que o Pai é o garante da realização da salvação, por isso não abandona seu Filho na morte, mas o ressuscita. O mesmo faz com todos aqueles que vivem como ele viveu. Isso é ressurreição!

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NOSSAS EUCARISTIAS E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Foi no “partir o pão” que eles reconheceram o Senhor. A esse propósito é oportuno recordar uma exortação de São João Crisóstomo a respeito das consequências da Eucaristia na vida do discípulo de Jesus:

“De que serve ornar de vasos de ouro a mesa do Cristo, se ele mesmo morre de fome? Começa por alimentá-lo quando está faminto, e então poderás decorar sua mesa com o supérfluo. Dize-me: se, vendo alguém privado do sustento indispensável, o deixasses em jejum e fosses enfeitar sua mesa com vasos de ouro, achas que ele te seria agradecido? Ou não ficaria indignado? Ou ainda, se vendo-o vestido de andrajos e trêmulo de frio, o deixasses sem roupa para erigir-lhe monumentos de ouro, pretendendo assim honrá-lo, não diria ele que estarias zombando dele com a mais refinada ironia?

Confessa a ti mesmo que ages assim com o Cristo, quando ele é peregrino, estrangeiro e está sem abrigo, e tu, em lugar de recebê-lo, decoras os pavimentos, as paredes e os capitéis das colunas. Suspendes candelabros com correntes de prata, e quando ele está acorrentado, não vais consolá-lo. Não digo isto para reprovar esses ornamentos, mas afirmo que é necessário fazer uma coisa sem omitir a outra; ou melhor, que se deve começar por esta, isto é, por socorrer o pobre”.

Esta exortação do “Boca de Ouro” do século IV em Antioquia/Constantinopla deveria retumbar naquelas realidades de nossas comunidades que promovem leilões, bingos, festas, quermesses e dízimo em função preponderantemente de construções, obras e reformas, ou mesmo para ornamentos e materiais litúrgicos de preços exorbitantes, reservando-se, por vezes, uma migalha para ações sociais e missionárias. A postura e as homilias de Crisóstomo deveriam ser retomadas em nossas paróquias e comunidades!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

A comunidade brota e se alimenta do Ressuscitado

aureliano, 05.04.24

2º Domingo da Páscoa - B - 08 de abril.jpg

2º Domingo da Páscoa [07 de abril de 2024]

 [Jo 20,19-31]

O evangelho narra a aparição de Jesus aos Apóstolos no dia da Páscoa, primeiro dia da semana, e o episódio de Tomé oito dias depois. Por isso, ao primeiro dia da semana, chamamos Domingo: o dia do Senhor. É o dia da Ressurreição de Jesus, dia da Criação, dia do descanso do Homem/Mulher criados por Deus à sua imagem. Dia em que a comunidade cristã se reúne para dar graças ao Pai na celebração eucarística.

O relato mostra a identidade entre aquele que ressuscitou e o que foi crucificado. Por isso o Ressuscitado mostra a Tomé as marcas da paixão. Tomé representa a comunidade que duvida e que depois acredita. Aqueles que devem crer no testemunho dos apóstolos. Se no início a comunidade é acometida pelo medo, agora é tomada pelo novo vigor e alegria de crer no Cristo ressuscitado, presente em seu meio.

“Bem-aventurados os que crerem sem terem visto”. Em vez de provas palpáveis, nos é transmitido o testemunho escrito das testemunhas oculares de tudo quanto Jesus fez e ensinou. Vivemos num mundo em que se exigem provas para se acreditar. Muitos correm atrás de “milagres”. Se para acreditar precisamos de provas, de sinais do céu, restar-nos-ia acreditar em quê? Nossa fé não vem de provas palpáveis, mas das “testemunhas designadas por Deus” (At 10, 41). Nós acreditamos naquelas realidades que elas acreditaram e no-las anunciaram. Sabemos que seremos felizes se crermos sem ter visto.

Acreditamos na comunidade que os Apóstolos fundaram a partir da fé na ressurreição. É nesta comunidade que somos iniciados na fé, no discipulado. “A fé e o tesouro da mensagem evangélica são realidades que não se recebem pessoalmente, mas através da comunidade. A iniciação cristã pressupõe uma comunidade de fé” (Dom A. Possamai). Não é possível ser cristão sem estar inserido numa comunidade de fé. Nossa fé não é privada, mas apostólica e eclesial. “Para ser fiel a Cristo não basta orar e celebrar; é preciso fazer o que ele fez: repartir a vida com os irmãos. Crer não é somente aceitar verdades. É agir segundo a verdade do ser discípulo e seguidor de Cristo” (Pe. J. Konings).

Mais. Enquanto Tomé não fizera o encontro com o Senhor Ressuscitado tocando-lhe a chaga, não acreditara naquele a quem seguira por anos. O texto não diz que Tomé tocou a chaga do Mestre, mas permite perceber que ele a vira: “Estende tua mão e põe-na no meu lado... Porque viste, creste...” (Jo 20,27.29). Concluímos que, somente aquele que “tocar” a chaga do Ressuscitado poderá fazer uma profissão de fé que brota de dentro, isto é, verdadeira e comprometida. E que “chaga” é esta? Os pobres, preferidos do Senhor com quem ele se identifica: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Em outras palavras: quem diz crer em Jesus Ressuscitado e não o reconhece (“toca”) nos pobres e sofredores, mostra uma fé cristã imatura e inadequada. E se Tomé representa a comunidade cristã, o que foi dito vale para a comunidade que se diz cristã, mas não “toca” os pobres.

A propósito ainda de Tomé, esta figura controvertida do evangelho de João, podemos afirmar que suas dúvidas e objeções transformaram-se em bênçãos para nós. Quando na Ceia Jesus afirmou: “Para onde eu vou, vós já conheceis o caminho”, Tomé responde: “Senhor, não sabemos para onde vais; como podemos conhecer o caminho?” Esta objeção de Tomé arrancou de Jesus uma das mais sublimes palavras do evangelho: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,4-6). São Gregório Magno, a propósito de Tomé, escreveu em uma de suas homilias: “A incredulidade de Tomé foi para nós mais útil do que a fé dos discípulos que haviam acreditado”. Suas dúvidas beneficiaram a fé na ressurreição.

Mais um pouquinho de Tomé. O Mestre, naquele encontro com seu apóstolo “incrédulo”, faz com que eleve seu nível de fé. Restabelecido pela presença do Ressuscitado, Tomé pronuncia aquelas palavras que ainda nenhum apóstolo atrevera a dizer, ao menos que se tenha registrado nos Evangelhos, a respeito de Jesus: “Meu Senhor e meu Deus”.

Peçamos ao Senhor que nos ajude na nossa pouca fé para que as sombras da dúvida, as incertezas e mesmo a perseguição ou o fracasso não nos dominem impedindo de levar a alegria da boa nova àqueles que jazem no desencanto, na desesperança, no isolamento. A experiência do encontro com o Ressuscitado deu novo vigor à comunidade para que pudesse continuar a missão de Jesus. E, já que não podemos “tocar” ou “ver” as chagas do Ressuscitado, Ele, como fizera ao leproso que lhe suplicara: “Senhor, se queres podes curar-me”, ao que responde: “Quero; fica curado!” (cf. Mt 8,2-3), toque e cure nossas chagas, incontestavelmente diversas das suas, pois produzidas pelo pecado ou pela nossa própria condição humana. Que a Eucaristia que celebramos, encontro com o Ressuscitado, nos liberte do medo, nos encha de alegria e de ardor para partilharmos com os mais necessitados o pão, a palavra, o afeto, a acolhida, a solidariedade, o perdão.

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UM ENCONTRO QUE TRANSFORMA

O evangelho deste domingo nos convida a lançar um olhar sobre nossas assembleias dominicais: como celebramos e que sentido continua tendo o domingo para nós cristãos? As celebrações não precisam ser teatrais nem shows para “atrair” as pessoas. Nem se destinam a isso! Precisamos de celebrações que ajudem os fiéis a fazer uma verdadeira experiência de Deus. E o domingo, o dia do Senhor, dia do descanso, dia da Criação, dia da Ressurreição, precisa recuperar seu sentido na vida do cristão.

Vivemos um tempo de crise sem precedentes na história da Igreja. Também a trajetória política e econômica de nosso País nos desencanta e entristece. Se não nos voltarmos para Jesus Cristo, realizando um encontro profundo com ele, um encontro capaz de renovar nossas estruturas mentais, de romper as dobras de nosso coração, não se manterá viva na história a memória de Jesus Ressuscitado. Pois há motivos de sobra para nos desacorçoarmos e desistirmos de nossa missão profética na história. Assim a Igreja ficaria omissa na sua missão de continuadora e atualizadora, pela força do Espírito Santo, dos gestos e palavras de Jesus.

O encontro com Jesus ressuscitado transformou a vida dos discípulos. E Tomé foi movido por aquela alegria contagiante de seus companheiros que lhe disseram: “Vimos o Senhor!” Embora tenha, inicialmente, relutado a crer, a fé dos seus irmãos o motivou a continuar dentro da comunidade. E Jesus lhe confirma a fé.

Tomé duvidou. O relato tem duas intenções: primeiro, quer mostrar que fora da comunidade é muito difícil de se crer e se salvar; segundo, esse relato quer dizer que é preciso crer no testemunho dos discípulos. Não é preciso ver para crer. Confirma o que ocorreu ao discípulo que Jesus amava: viu o túmulo vazio e creu (cf. Jo 20,8). Sem ter visto o Senhor ressuscitado, acreditou. Quem ama, crê. Isso veio desfazer uma mentalidade crescente, na época, que todos os que quisessem aderir à fé cristã precisavam “ver” o Ressuscitado. De ora em diante se confirmou: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto”.

Ainda um elemento que não pode ser esquecido no relato de hoje é o dom da Paz que Jesus dá aos discípulos e o dom do Perdão, grande presente pascal. A alegria da comunidade é experimentar, em meio ao medo da perseguição das autoridades judaicas, a paz que brota do coração amoroso de Cristo. E Jesus, sabendo das fraquezas humanas e dos pecados que daí provinham, oferece a “segunda tábua de salvação”, o sacramento da Reconciliação: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados”.

Mais do que nunca é urgente reafirmar nossa fé no Ressuscitado e na sua presença em nosso meio. Não se trata de pregar, de falar, de tentar convencer com afirmações doutrinais apenas, num proselitismo fanático. Isso vale muito pouco para o mundo em que vivemos. É preciso fazer experiência de um encontro verdadeiro. É notável quando uma comunidade está verdadeiramente imbuída do espírito de Jesus Ressuscitado. Ela procura viver como Jesus viveu: sabe escutar, tem sensibilidade, está atenta ao mais sofrido e necessitado. Não se rege por normas e leis, mas pela misericórdia. Não tem medo de enfrentar dificuldades e perseguições por causa de Cristo e em defesa dos pequenos e sofredores. Essa comunidade não se deixa levar pelo medo nem pela mania de grandeza nem pela ganância do dinheiro, do poder e da competição. Ela manifesta, no seu agir, o agir de Cristo. A comunidade se torna um espaço em que se experimenta a presença viva do Ressuscitado.

Sem a força do Cristo ressuscitado continuaremos com medo e de portas fechadas. Se não buscamos nele a força e orientação de como lidar com os desafios atuais, não conseguiremos alimentar a esperança daqueles que ainda permanecem em nossas comunidades e, muito menos, atingiremos os ‘de fora’.

A paz, o perdão e a alegria são frutos da ressurreição. Quando participamos das celebrações e atividades de nossas comunidades precisamos voltar para casa mais animados, mais apaixonados por Jesus Cristo, mais confiantes, mais seguros de que estamos no caminho certo, mais vibrantes em nossa fé, mais dispostos a colaborar e em construir fraternidade. Se isso não estiver acontecendo, precisamos rever nossas celebrações, nossas comunidades e nossa vida.

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LUZ QUE DISSIPA AS TREVAS E AFASTA O MEDO

“Era noite e as portas estavam fechadas por medo”. Não nos pode passar despercebida essa realidade vivida pelos discípulos logo após a tragédia do Calvário. Para eles não havia luz: era noite. Não tinham horizonte. Não podiam vislumbrar novas possibilidades. Aquele em quem depositaram sua confiança “fracassara na cruz”.

As portas estavam fechadas. A missão lhes era impossível. Não tinham coragem de sair.  Portas fechadas para que ninguém entrasse. Também ninguém podia se beneficiar da ação deles, pois se prenderam dentro da casa. Quem está de portas fechadas não sai nem permite alguém entrar. Uma espécie de morte: sem presença, sem oxigenação, sem vida. No Apocalipse temos aquelas provocadoras palavras: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele” (Ap 3,20). Comunidade cristã, discípulo de Jesus não combina com porta fechada. Aliás, o Papa Francisco tem alertado para nossos templos católicos com portas fechadas: “A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais concretos dessa abertura é ter, por todo lado, igrejas com portas abertas” (EG, 47).

E o medo? Realidade terrível! Esse sentimento paralisa as pessoas. Impede que se façam boas ações. Muitas vezes reduz a pessoa dentro de seu eu, tornando-a ensimesmada. O medroso não arrisca. Mantém a porta fechada. Investe em sua própria segurança, por vezes em detrimento dos demais. O medo não permite amar. Impede de amar o mundo como Jesus amou. Não lhe confere o ‘sopro’ da vida e da esperança.

Eis que Jesus entra na casa. Para ele não há noite nem portas fechadas nem, muito menos, medo. Ele vem libertar os discípulos desses males que emperram a missão que lhes confiara. Não lhes impõe as mãos nem lhes dá a bênção, como sói fazer aos doentes. Jesus sopra sobre eles o sopro da força que vence o medo e lhes comunica a esperança. O sopro santo que tira o pecado e os envia em missão. As portas então se abrem, o medo se dissipa, pois a Luz venceu a escuridão que os envolvia.

É Jesus ressuscitado que salva a Igreja. É ele que vence o medo que nos envolve e paralisa. É ele que abre as portas do egoísmo e da indiferença. É ele que dá a esperança. Na força dele realizamos a missão. Cremos que ele continua vivo em nosso meio. Conhecedor de nossa fragilidade, ele continua a nos dizer: “Recebei o Espírito Santo”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN