A lei foi feita para o bem do ser humano
9º Domingo do Tempo Comum [02 de junho de 2024]
[Mc 2,23 – 3,6]
O relato do evangelho para esse domingo sugere dois pontos de reflexão: o repouso dominical e a transgressão da lei.
São João Paulo II escreveu uma cartinha sobre o domingo (Dies Domini). Ali ele tenta mostrar a importância de se recuperar o Domingo como Dia do Senhor, Dia da Criação, Dia do Ser Humano, Dia do Descanso.
A preocupação do Papa revelava o que estamos vivendo: o domingo perdeu quase por completo seu sentido original que traz no próprio nome: Dominica, Dies Domini: Dia do Senhor. As mudanças nas relações econômicas, culturais, sociais e religiosas pelas quais tem passado o nosso mundo, trazem consigo esse novo modo de viver o Domingo. Isso não somente entre os agnósticos e arreligiosos, mas também entre os próprios cristãos e católicos.
Se por um lado essa espécie de indiferença diante do domingo e outras celebrações litúrgicas ditas “de preceito” trazem certa dificuldade e tristeza, por outro, ajudam a reconsiderar caminhos feitos e fortalecer aqueles que ainda acreditam na força e importância de celebrar o Domingo como dia do Senhor e do descanso.
A ordem de Deus a Moisés para que se guardasse o Sábado era um meio de se fazer memória da libertação do Egito operada pelo próprio Senhor. Também traz dentro de si o eterno desejo do Criador: o ser humano não é escravo; precisa viver em liberdade. Quando o texto sagrado diz que “o sétimo dia é sábado para o Senhor teu Deus” (Dt 5,14), quer nos lembrar que o “Sábado” não é mera prescrição ou observância legal, mas uma exigência de liberdade e diálogo entre Deus e seu povo. É um dia de descanso “para o Senhor”. Não é preciso dizer que o Sábado dos judeus se converteu no Domingo para nós cristãos por causa da Ressurreição do Senhor.
Outra reflexão que fazemos a partir do evangelho de hoje é referente à transgressão das leis e normas. Até que ponto a Lei deve ser cumprida e desde quando deve ser transgredida?
Nos tempos de Jesus a observância do Sábado se transformara num peso insuportável. Em vez de ser dia de repouso, de descanso, tornou-se dia de peso, de cansaço. Uma escravidão. O culto sabático caiu numa ação externa e formal.
Jesus veio dar novo sentido à Lei, ao Sábado. Ele não transgride nem suprime a Lei, mas vem dar-lhe pleno sentido (cf. Mt 5,17). Para isso ele parte de dois princípios: a misericórdia e a consciência. Uma realidade divina e outra humana. Apelo do Alto e resposta humana.
No princípio da Misericórdia ele parte da realidade do ser humano e suas necessidades imediatas que precisam estar acima de qualquer lei. Uma legislação ou código de normas que não leva em conta o ser humano como prioridade é vazia de sentido. “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). A misericórdia deve prevalecer sobre as exigências legais. Por isso Jesus cura aquele homem no dia de Sábado. Quem quiser viver o princípio da Misericórdia coloca em risco sua vida à semelhança de Jesus: é uma atitude eucarística.
Um dado interessante no relato do evangelho de hoje é que, estando dentro da sinagoga, num momento de culto a Deus, enquanto as atenções se voltam para Deus, Jesus volta seu olhar para aquele homem doente. E pede que ele “fique no meio”. Foi, certamente, uma afronta aos dirigentes do culto. Deus não deve ocupar o primeiro e absoluto lugar no culto? Será que Jesus está invertendo o sentido da celebração? O que levou Jesus a colocar o homem doente no centro? – Jesus não inverte o sentido do culto, mas quer ensinar que um culto que não nos compromete com os irmãos é vazio para o Pai. É como se ele dissesse: “O culto que agrada ao Pai é aquele que converte o coração do ser humano e o coloca em empatia, em solidariedade, em atitude de misericórdia para com aqueles que sofrem” (cf. Is 58,6-7). – Convenhamos: há atitudes dentro de nossas celebrações eivadas de egoísmo, vaidade, desprezo, arrogância, indiferença, discriminação... (cf. Tg 2,2-4).
Jesus veio mostrar um novo modo de se relacionar com Deus. O culto que não leva a cuidar do ser humano não chega ao coração do Pai. Podemos afirmar então que a grande contribuição de Jesus em relação às outras religiões é a de revelar um Deus que não existe para si mesmo. Deus criou o ser humano para que participasse de sua vida e glória. Deus é amor que se doa, que sai de si, que se interessa pelo ser humano. E sua glória consiste em buscar o bem de todas as criaturas.
Portanto, não basta defender a ordem no País, como reza nossa bandeira, se não se busca a defesa e os cuidados dos direitos fundamentais da pessoa humana. O Estado existe para administrar e distribuir equitativamente os bens da Nação. Se, em nome da ordem, o Estado prejudica o ser humano, tal ordem não pode ser cumprida. É um pecado e um crime empenhar-se num progresso que se faz em detrimento da humanidade. O “descartado”, o “inválido”, o “sobrante”, o “invisível” precisa estar “no meio”: para receber visibilidade e cuidado.
O mesmo pode-se dizer em relação à Igreja. Suas leis devem estar sempre a serviço da humanidade. Não podem constituir-se em uma carga pesada que sufoca e oprime. Não é suficiente defender uma disciplina da Igreja por si mesma. Se tal disciplina não ajuda a comunidade a ser mais generosa, mais tolerante, mais misericordiosa, mais inclusiva precisa ser revista, refeita na medida do Evangelho.
A primeira missão da Igreja não é impor leis morais, mas ajudar o ser humano a descobrir que Deus o ama. Ajudá-lo a encontrar aquele ponto no qual descobre a bondade e o amor de Deus por ele e pela humanidade toda, manifestado em Jesus de Nazaré. E levá-lo a perceber que ele é chamado por Deus a colaborar na obra da salvação e cuidados da humanidade.
Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN