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Pedro e Paulo: instituição e carisma

aureliano, 27.06.24

São Pedro e São Paulo - 04 de julho.jpg

Solenidade de São Pedro e São Paulo [30 de junho de 2024]

[Mt 16,13-19]

Hoje celebram-se na Igreja duas vocações distintas e complementares: Pedro governa as responsabilidades da evangelização. Alguns o identificam com o fundamento institucional da Igreja. Jesus lhe dá o nome de Pedro que significa “pedra”, “rocha”. Sobre sua profissão de fé a comunidade é edificada. Cefas, Kepha significa gruta escavada na rocha. Nessa gruta os pobres ou os animais se escondem e/ou moram. Aí é o lugar do cuidado, da proteção, da geração da vida. A Igreja torna-se, pois, o lugar privilegiado do cuidado da vida. É a caverna rochosa onde os pequeninos do Reino devem encontrar abrigo e cuidados.

Pedro recebe o “poder das chaves”, isto é, o serviço de administrador da comunidade. Recebe também o poder de “ligar e desligar”, isto é, o poder da decisão, da responsabilidade pastoral para orientar os fiéis no caminho de Cristo. Esse ministério é confirmado por outros textos: “Confirma os teus irmãos” (Lc 22, 31). “Apascenta os meus cordeiros” (Jo 21, 15). É a intenção clara de Jesus em prover o futuro da Igreja.

Paulo é o fundador carismático da Igreja. Aquele que se preocupa com a ação missionária da Igreja. Tem a preocupação de anunciar além-mar. Por isso é cognominado “Apóstolo das Gentes”. Representa a criatividade missionária. Vai para além do institucionalizado. Rompe com normas e leis que prendem o evangelho: Verbum Dei non est alligatum – “A palavra de Deus não está algemada” (2 Tm 2,9).

A complementaridade desses dois carismas fundadores da Igreja continua atual: a responsabilidade institucional e a criatividade missionária. Alguém deve responder pela instituição, pois esta dá suporte ao missionário. Por outro lado, alguém tem que “pisar no acelerador” da missão, sem se prender muito, para que a missão não fique refém de normas rígidas e anacrônicas. O novo desafia o institucionalizado e o atualiza. A tensão entre ambos é que mantém acesa a chama da missão.

Nesse “Dia do Papa” seria bom reaquecermos nossa veneração e acolhida à pessoa e à palavra do Papa, sucessor de Pedro. Ele é o sinal da unidade e da caridade da Igreja. Com os limites que são próprios ao ser humano, ele continua sendo o sucessor de Pedro, o Bispo de Roma, reconhecido pela Igreja, desde a antiguidade, como aquele que “preside a assembléia universal da caridade” (Santo Inácio de Antioquia , século II).

O que importa nessas considerações é sermos pessoas que, como Pedro e Paulo, tenham a coragem de doar a vida pela causa do Reino de Deus. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. Eles se doaram até ao sangue.  E nós? Onde estamos na doação, na entrega, na missão? Como zelamos pela nossa Igreja? Como anda nossa identidade cristã e católica frente às afrontas e desrespeito ao evangelho, à vida e à Igreja? Até que ponto sou comprometido com minha comunidade eclesial?

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Pedro e Paulo: coragem e fidelidade batismal

São Pedro e São Paulo coroam o mês de junho e as festas juninas. É interessante notar que não se trata somente de festas populares, mas há uma espiritualidade subjacente a esses momentos dentro de nossas comunidades. A alegria, o encontro, a dança, as manifestações da piedade popular, as celebrações... Claro que, em grande medida, as festas são mais pagãs do que cristãs. Muitos se valem destas festividades para lucrar muito dinheiro e garantir “curral eleitoral”. Outros se entregam à bebida e às drogas, desvirtuando o clima de alegria, confraternização e celebração da comunidade. Mas não podemos deixar morrer o sentido original e cultural destas festividades. Ainda mais: deve ficar a mensagem de que os santos mais populares deste mês: Santo Antônio, São João e São Pedro, são homens que viveram para Deus e testemunharam com sua vida a fé que professaram em Jesus Cristo.

Hoje, ao celebrarmos São Pedro e São Paulo, solenizamos as duas colunas da Igreja. "Pedro, o primeiro a proclamar a fé, fundou a Igreja primitiva sobre a herança de Israel. Paulo, mestre e doutor das nações, anunciou-lhes o Evangelho da Salvação. Por diferentes meios, os dois congregaram à única família de Cristo e, unidos pela coroa do martírio, recebem, por toda a terra, igual veneração" (Prefácio da missa). Pedro representa a Igreja institucional, é a "Pedra" que recebe a incumbência de "confirmar os irmãos", enquanto Paulo representa o carisma missionário, atravessa desertos e mares, enfrenta perseguições dentro e fora da comunidade para anunciar a Boa Nova do Reino, formando novas comunidades cristãs.

A profissão de fé de Pedro é a base da comunidade cristã: "Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo". É nessa fé que a Igreja se firma e caminha. É o Espírito que sustenta a caminhada da Igreja. Ela não se instituiu sobre "carne e sangue", mas no Amor gratuito do Pai revelado na entrega livre do Filho pela salvação da humanidade (cf. Jo 10,18).

As "chaves do Reino" que são confiadas a Pedro devem sempre abrir as cadeias e algemas daqueles que estão dominados pelo mal. Quanta gente presa nas amarras da mentira, da ambição, da corrupção, do ódio, do desejo de vingança, do preconceito, do medo, da enganação! Nosso mundo precisa, cada vez mais,  das "chaves do Reino" para abrir-se a mais partilha, mais sentido de vida, mais perdão, mais fraternidade, mais respeito, mais equidade e compreensão.

Quando lançamos um olhar de fé sobre esses dois homens cuja solenidade celebramos hoje, percebemos quão distantes ainda estamos da vivência de uma fé autêntica, corajosa, testemunhal!

Pedro foi encarcerado por causa da fé! Levou às últimas consequências sua profissão de fé: "Tu és o Cristo". “Tu sabes tudo! Tu sabes que te amo!”. Paulo também foi preso, ameaçado e perseguido pelos de dentro e pelos de fora. Mas levou até ao fim sua missão: "Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. (...) O Senhor me assistiu e me revestiu de forças, a fim de que por mim a mensagem fosse plenamente proclamada e ouvida por todas as nações" (2Tm 4, 6-7.17).

Até que ponto damos conta de sustentar nossa fidelidade ao Evangelho, levando às últimas consequências nosso batismo? Quais são as ilusões ou dificuldades que nos fazem desanimar, abandonar a missão, a comunidade? O que constitui o "conteúdo" de nossa vida: Jesus Cristo ou as vaidades religiosas e sociais? O que preciso deixar e o que preciso abraçar com mais vigor para ser verdadeiro discípulo como Pedro e Paulo?

Nesse dia a Igreja nos pede orações pelo Papa. Ele é o sucessor de Pedro. É ele que “preside a assembleia universal da caridade” (Santo Inácio de Antioquia) e é o sinal visível da unidade da Igreja. Peçamos ao Senhor que lhe dê muita luz para conduzir a Igreja pelos caminhos de Jesus. E lhe dê muita força e coragem para enfrentar os obstáculos e as resistências que essa sociedade e as situações difíceis que os que se dizem católicos, os "de dentro" lhe oferecem. E que tenha a sabedoria necessária para ajudar a Igreja a se abrir ao diálogo com o novo que surge a cada dia, na fidelidade a Jesus e à sua missão.

O Papa Francisco tem surpreendido o mundo com seus gestos de simplicidade, de humildade, de acolhida, de uma palavra profética. Precisamos prestar mais atenção a seus ensinamentos. Ele nos aponta o verdadeiro caminho pelo qual a Igreja deve passar. Ele pede uma Igreja em saída para as periferias geográficas e existenciais. Uma presença e defesa dos mais pobres. “Prefiro uma Igreja acidentada, a uma Igreja doente por fechar-se”.

“A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque nesse caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandona, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte. Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente” (Gaudete et Exsultate, 101).

*Neste dia de São Pedro e São Paulo ocorre a coleta para o Óbulo de São Pedro, uma coleta financeira, que é destinada para as obras sociais, iniciativas humanitárias e de promoção social do Papa Francisco. Por exemplo, o Papa retira dessas ofertas as doações que ele faz para grupos e organizações carentes que estão resgatando e cuidando das vidas. Ajuda e apoio a projetos sociais, às vítimas da guerra ou de catástrofes naturais. Ajuda a dioceses, paróquias e missões, sobretudo nos países pobres. É como se fosse um cofre pessoal para ele ajudar os pobres.

Toda a coleta deste dia é encaminhada integralmente à cúria de cada arqui/diocese, que por sua vez envia à Nunciatura Apostólica, que é a representação do Vaticano no Brasil. Esta se incumbe de fazer chegar às mãos do Papa.

 Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Isabel gerou; Zacarias falou; a vizinhança se alegrou

aureliano, 24.06.24

Natividade de João Batista.jpg

Nascimento de São João Batista [24 de junho de 2024]

[Lc 1,57-66.80]

Estamos celebrando as festas juninas. Muita manifestação de alegria por todo lado. Arraiá, dança, quadrilha, comidas típicas, canjica (mugunzá), caldo de feijão, etc. Muita coisa boa, sem dúvida. Não se pode admitir, porém, em nossas comunidades eclesiais, as malditas cerveja e cachaça, pois, no contexto de celebração religiosa cristã, fazem muito mal. É maldito o dinheiro ganho às custas da venda de bebida alcoólica em nossas comunidades eclesiais. Há famílias inteiras destruídas e em sofrimento por causa de bebida alcoólica. Pedimos aos dependentes frequentar o AA, construímos e/ou ajudamos a manter Casas de Recuperação, mas os incitamos ao vício da bebida alcoólica. Não é uma incoerência absurda? Graças a Deus nossos Bispos estão tendo a coragem de decretar a proibição da comercialização e consumo de bebida alcoólica nas quermesses e celebrações de nossas comunidades.

Embora se festejem, por vezes não se sabe a origem das festividades neste mês. Foram introduzidas no Brasil pelos portugueses desde o início da colonização. E pegou com facilidade, pois eram parecidas com as festas das culturas indígenas e africanas das quais muitos elementos foram incorporados. Neste mês a Igreja católica celebra três santos muito populares: Santo Antônio (dia 13), São João Batista (dia24) e São Pedro (dia 29). É provável que a alegria e a festa estejam mais ligadas a São João pelo mesmo fato de que, por ocasião de seu nascimento, os parentes e vizinhos ficarem muito felizes e alegres. Mas qual foi o motivo de tanta alegria?

Poderíamos elencar três razões: duas explícitas, claras, evidentes: o desatar da língua de Zacarias e a fecundidade do seio estéril de Isabel. E uma, implícita, oculta, presente apenas na interrogação: “o que virá a ser este menino?”. Aquele que veio dar “testemunho da luz”, pois “a mão do Senhor estava com ele”.

A esterilidade de Isabel e a mudez de Zacarias eram sinais do que ocorria na comunidade de Israel: ausência de fervor, de entusiasmo, de vibração por Deus, de fidelidade à Aliança.

Esterilidade de Isabel: A dominação implantada pelos romanos, aliada à cooperação da liderança religiosa e política do povo, matava a esperança da comunidade. Diversos grupos brigavam entre si disputando o poder ou tentando se livrar de um poder opressor. Além disso, o serviço e o culto verdadeiro a Deus estavam cada vez mais distantes da vida da comunidade. A capacidade generativa da comunidade estava obstruída.

Mudez de Zacarias: Esse fato evoca a voz emudecida dos profetas de então: voz calada, embargada. Não havia mais quem se levantasse, em nome de Deus, para apontar caminhos. A mudez pode significar também que a oração e o culto estavam sem expressão, sem sentido, esvaziados pela incoerência dos dirigentes do culto e da nação. Não ressoava nem aos ouvidos de Deus nem aos ouvidos da assembleia celebrante.

Santo Agostinho vai dizer que “o fato de Zacarias recuperar a voz no nascimento de João tem o mesmo significado que o rasgar-se o véu do templo, quando Cristo morreu na cruz. Se João se anunciasse a si mesmo, Zacarias não abriria a boca. Solta-se a língua, porque nasce aquele que é o voz. Com efeito, quando João já anunciava o Senhor, perguntaram-lhe: Quem és tu? (Jo 1,19). E ele respondeu:  Eu sou a voz que clama no deserto (Jo 1,21). João é a voz; o Senhor, porém, no princípio era a Palavra (Jo 1,1). João é a voz no tempo. Cristo é, desde o princípio, a Palavra eterna” (Ofício das Leituras).

Lição para nós: Não parece que essa realidade se repete em nosso meio? A palavra de Deus, as celebrações, as orações parecem estar estéreis, sem fruto, sem sentido. Não se vêem os frutos, a alegria de ser cristão. Uma vida cristã apagada, desencantada, desencarnada. E a profecia está sumida de nosso meio. Estamos vivendo um marasmo espiritual. O desencanto e a decepção tomaram conta de nós. Há uma espécie de conivência com o mal: “todo mundo faz”; “não tem mais jeito”... Esse é o grande perigo da humanidade: indiferença, desânimo, desencanto. Paralelo a isso toma corpo uma onda espiritualista, uma religiosidade baseada na emoção e na sensação. Realidade sem base, sem consistência, pobre de convicção que brota da confiança no Pai e da lucidez da razão. O Papa Francisco chama isso de “Mundanismo espiritual”.

O nascimento de João Batista irrompe o novo na história: uma mulher cheia de Deus vence a esterilidade. É a possibilidade de vida nova de onde não se esperava mais nada. Um homem que desata a língua e proclama o nome do filho: “João é o seu nome”, e prorrompe em louvor a Deus: “Bendito o Deus de Israel que visitou e libertou o seu povo”. Ou seja, Zacarias proclama que Deus é misericórdia (significado do nome João) e olhou para nós. Por isso canta: “Deus visitou e libertou o seu povo. Sobre nós fará brilhar um Sol nascente, para iluminar a todos que se acham nas trevas e nas sombras da morte”. A luz voltou a brilhar. O Sol nasceu. Agora somos aquecidos, iluminados, fecundos. João Batista aponta esse Sol que ilumina e dá novo sentido à vida. Eis o motivo da grande alegria que contagiou todos os moradores das montanhas da Judéia.

A Solenidade do Nascimento de João Batista nos ajuda a pensar na nossa missão. O que nos torna mudos diante da história? Como romper nossa mudez e celebrar, proclamar e denunciar profeticamente? Será que estamos comprometidos com o poder escuso, com o dinheiro, com a politicagem, propinas, ameaças que nos calam diante das maldades e injustiças?

Refletindo acerca da esterilidade rompida de Isabel, poderíamos perguntar: como está nossa capacidade de gerar? Geramos alegria, mais vida, fraternidade, harmonia, alegria? Ou ainda a fofoca, o preconceito, a competição, o ciúme continuam matando a vida em nós e fora de nós? A capacidade generativa do seio materno está intimamente relacionada à generosidade, à gratuidade. Como está nossa a capacidade de sermos gratuitos, generosos?

João significa “Deus é misericórdia”. Ele vem e aponta a luz que é Jesus, aquele que salva (Cf. Jo 1, 7-12). Trabalhamos em nós o sentimento de misericórdia? Podemos dizer que nossa vida aponta a luz que é Jesus? Nossas atitudes correspondem a nossas palavras, às realidades que celebramos? “É preciso que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3, 30).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Fé confiante e as tempestades da vida

aureliano, 21.06.24

12º Domingo do TC - B - 23 de junho 2021.jpg

12º Domingo do Tempo Comum [23 de junho de 2024]

   [Mc 4,35-41]

A semente da fé lançada no coração humano pelo batismo precisa ser cultivada, regada, adubada para germinar, crescer e produzir frutos. O evangelista coloca Jesus fazendo um caminho com os discípulos. Depois de lhes falar a respeito da semente, leva-os a atravessar o mar. A fé vai ser provada.

Não podemos perder de vista que Marcos é o evangelista do ‘segredo messiânico’. Ou seja, Jesus não se dá a conhecer plenamente enquanto caminha com eles. Diante dos sinais e palavras de poder de Jesus eles se inquietam: “Quem é este?”. A resposta virá somente no final, na entrega de Jesus na cruz. O centurião romano fará a profissão de fé: “Verdadeiramente, este homem era filho de Deus” (Mc 15,39). Em outras palavras, Jesus deve ser reconhecido na fé. Os sinais que ele realiza devem levar o discípulo a depositar nele total confiança. Com Jesus, o discípulo deve entregar-se confiante nas mãos do Pai. Nesta confiança realiza sua missão, sabendo que o Pai não abandona na morte aqueles que viveram como seu Filho Amado viveu.

Quando lemos o relato de Jesus convidando os discípulos para irem à outra margem, precisamos abstrair um pouquinho para entendermos o que significa ‘barco’, ‘margem’ e ‘mar’, no texto. Os relatos do evangelho não são hitórico-jornalísticos. São relatos teológicos. Não estão aí para serem compreendidos na literalidade do texto, mas para serem interpretados à luz da fé da Igreja. É Deus que nos fala nas ações e palavras de Jesus. São fatos interpretados, à luz do Espírito Santo, que indicam o caminho de construção do Reino de Deus.

Então vamos lá. Na outra margem estava a Decápole, cidade pagã, com outros costumes, cujos moradores detestavam os religiosos judeus. Ir para outra margem significa entrar em ‘território estranho’. É correr risco de rejeição, de conflito, de morte. Quando os discípulos entram no barco e começam a travessia, faz-se dentro deles uma grande ‘tempestade’. Então a tempestade não vinha do mar... E Jesus os chama de medrosos, covardes. Sem entender mais profundamente o texto, podemos ser levados a interpretar as palavras de Jesus como grosseria, insensibilidade, falta de compreensão. Mas não é isso. O problema aqui está em que, já estando com Jesus um bom tempo, os discípulos não tinham ainda depositado a confiança n’Ele. Não tinham ainda coragem de entregar a vida. Sua fé era interesseira, demasiadamente humana. Mais precisamente, as dificuldades enfrentadas pelas primeiras comunidades, representadas aqui na tempestade do mar, levaram muitos a fracassar, a desistir do caminho de Jesus, da comunidade. O episódio mostra a necessidade de retornar a Jesus, de buscar nele a força e a inspiração para prosseguir em meio às tempestades da vida. Estas seriam comuns na vida dos discípulos.

Quando o Papa Francisco fala da necessidade da saída: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças”, ele traz a possibilidade do risco de ser perseguido, de ser rejeitado, de ser ridicularizado. É mais cômodo deixar as coisas como estão, fechar-se no comodismo. Mas o risco pode ser maior: a tempestade virá. E quem vai se salvar? Aliás, quando as coisas estão bem, tendemos a confiar em nossas próprias forças. Quando ‘o bicho pega’, buscamos refúgio em algo ou alguém. Com frequência entra-se em desespero. Por isso Jesus ‘dormia’. Ou seja, ele confiava plenamente no Pai. Não se trata de uma confiança infantil, irresponsável. É uma entrega filial: aconteça o que acontecer, ele sabe que o Pai não o abandona. Ele não se exime de atravessar o mar e ir à outra margem.

O mar, nos relatos do Primeiro Testamento, embora sujeito ao domínio de Deus, era sempre expressão de uma força insuperável, ameaçadora ao ser humano. As gerações antigas não tinham o entendimento de que o planeta é redondo, levando-os, portanto a pensar que no ‘final’ do mar caía-se no abismo. Entendiam também que as tempestades do mar eram fruto da fúria de poderes sobrenaturais (deuses). Então, somente o Senhor Todo-poderoso era capaz de dominá-lo. Quando Jesus acalma as ondas do mar provoca neles a admiração intrigante: “Quem é este?” Ou seja, começam a perceber em Jesus um poder semelhante ao do Senhor que domina os mares (cf. Jó 38,1.8-11).

Vivemos hoje uma situação muito parecida com a dos discípulos. As ‘ondas do mar’ batem forte, tentam solapar nossas valores e princípios. O que aprendemos na família, na catequese, na comunidade está ameaçado. Há muita gente confusa, sem saber o que fazer, a quem recorrer, em quem dar crédito. O consumismo e o materialismo, a corrupção e a violência, o individualismo e o hedonismo estão tomando conta dos corações. O Servo de Deus Pe. Júlio Maria já nos ensinava a rezar: “A fé vai se apagando nas almas, os corações se afastam do único amor verdadeiro, e as trevas do erro envolvem o espírito da maior parte dos homens” (Suspiros). É o que constatamos!

Jesus repreende os discípulos pela falta de fé. De que fé se trata? Fé interesseira: para ter proteção, cura, bem-estar? É certo que esperamos tudo isso de Deus. Mas a fé não é algo abstrato: passa por uma pessoa: Jesus de Nazaré. Fé é acreditar em Jesus, não somente por causa do poder que ele manifesta, mas por causa do seu gesto maior: entrega de sua própria vida em fidelidade ao Pai que o ressuscita dos mortos. A tempestade acalmada está no início da caminhada de Jesus. Mas no fim está a cruz, a morte e a ressurreição. É na sua entrega até à cruz que se revela o amor de Deus por nós. Confiantes nele enfrentamos as tempestades de nossa vida e da nossa história. Uma fé confiante. Para tanto, pedimos: “Senhor, aumenta a minha fé!”.

Portanto, a ‘outra margem’, o ‘mar tempestuoso’ e o ‘barco’ são conceitos teológicos. Relatos que querem revelar a ação de Deus na história através de Jesus de Nazaré. Perguntamos:

  1. Você tem coragem de enfrentar o ‘mar’ e ir para a ‘outra margem’? Qual é a ‘outra margem’ de sua vida?
  2. Você é capaz de identificar seu ‘mar tempestuoso’? Quais são seus medos? Sua fé é interesseira, de conveniência como a dos discípulos ou é parecida com a fé de Jesus?
  3. Para atravessar o mar é preciso entrar no barco. Em que ‘barco’ você está? Jesus está no seu ‘barco’? De que forma você o reconhece?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

É Deus quem faz crescer

aureliano, 14.06.24

11º Domingo do TC - B - 13 de junho de 2021.jpg

11º Domingo do Tempo Comum [16 de junho de 2024]

   [Mc 4,26-34]

O Reino trazido por Jesus é obra de Deus e não dos homens. Essa é a mensagem central da liturgia de hoje. Jesus se remete à realidade rural de seu tempo, certamente experimentada por ele, e compara a dinâmica do Reino com a semente. Conta duas parábolas: a semente que cresce sozinha e a semente pequenina que cresce e se torna grande. Então o povo poderia facilmente compreender o que Jesus queria dizer. Falava a linguagem deles.

A semente que cresce sozinha: Ela não depende da pessoa que a semeou. Possui uma força interna que a faz crescer e produzir frutos. Aquele que a semeou nem sabe como isso se dá. Essa historinha de Jesus quer mostrar que assim acontece com o Reino de Deus. As coisas de Deus não dependem do ser humano. Deus age no coração e na vida das pessoas independente de nós. Ou melhor: ninguém deve pensar que as pessoas se tornam mais cristãs por causa do anúncio que fizemos a elas. Atribuindo ao evangelizador o bom êxito da mensagem. Não! É Deus que age no coração de cada um. É preciso entender também que Deus tem seu tempo. O tempo de Deus não é o nosso tempo. A nós compete semear. A colheita é de Deus.

A semente pequenina que se torna uma grande árvore: Nesta parábola Jesus mostra que seu Reino não é de grandeza, de holofotes, de aparência, de sucesso, de palco, de televisão. Deus age de modo simples e discreto na vida das pessoas. A própria vida de Jesus foi assim. Ele foi perseguido, caluniado, condenado, morto. Mas está vivo, presente no meio de nós. Nossa fé assim acredita, pois verifica sua presença e ação na história. Crer em Jesus revoluciona as relações: um novo modo de ser que se torna “escândalo para os judeus e loucura para os pagãos” (Cf. 1Cor 1,22-25). Do ponto de vista da sociedade do consumo, da aparência, da fama, da competição, é uma “loucura”.

A mensagem que Jesus nos transmite, hoje, nos ajuda a entender a dinâmica de nossa missão. Não podemos pensar que vamos mudar o mundo com nossas próprias forças. É o poder de Deus que atua através de nós. Não podemos trabalhar com vistas a resultados imediatos. Nossa missão é semear a boa semente. A colheita não é nossa. A seara é de Deus. Por que então essa ânsia em ver resultado, em colher os frutos? E o anúncio deve ser feito na simplicidade de nosso cotidiano. Não podemos andar a cata de aplausos, de holofotes, de reconhecimento, de sucesso. Jesus não foi assim. O “acontecimento Jesus” deve nos iluminar e inspirar sempre. Precisamos ser mais parecidos com ele. Ainda que nossa comunidade seja pequena, insignificante; ainda que nosso trabalho não tenha reconhecimento; ainda que nossa vida e ação sejam anônimas, invisíveis: a Graça de Deus está aí, agindo. Embora não compreendamos ou percebamos, Deus age. É o processo da fecundidade e não do fazimento. O mundo é dele. Nossa comunidade é dele. Nossa família lhe pertence. Nossa vida foi consagrada por Ele e a Ele no batismo. Entreguemo-nos a Ele com confiança. E empenhemo-nos na missão com entusiasmo.

O extraordinário de Deus se esconde nas coisas ordinárias e comuns da vida de cada dia. Pe. Júlio Maria, fundador de nossa Congregação, costumava dizer    que “a santidade consiste em fazer as coisas ordinárias de modo extraordinário”.

Podemos, portanto, concluir que três atitudes são imprescindíveis para a atuação do Reino de Deus no mundo:

Despojamento: a Igreja não se anuncia a si mesma, mas o Senhor. Ela deve ter consciência de que é a graça do Espírito Santo que opera nela para que seja sinal de Cristo no mundo. Neste sentido o cristão deve ser pobre, despojado de apegos e alianças inconsequentes (dinheiro, poder, política, cultura), sabedor de que o Reino não depende dessas coisas. Aliás costumam ser empecilhos para a realização do Reino.

Paciência: se a realização do Reino não depende de mim, preciso ter paciência. Não se trata de quietismo, de ficar esperando de braços cruzados as coisas se realizarem, mas agir com nova mentalidade, sabendo que “é Deus quem faz crescer”. Deus chama, converte, consagra, envia e sustenta na missão. O Reino é de Deus.

Humildade: o cristão deve fazer tudo sem atribuir a si mérito de nada. Trabalha com todas as forças sem pretender colher os frutos, ver o resultado. “Quem é, portanto, Apolo? Quem é Paulo? Servidores pelos quais fostes levados à fé: cada um deles agiu segundo os dons que o Senhor lhe concedeu. Eu plantei; Apolo regou; mas era Deus quem fazia crescer” (1Cor 3,5-6).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O Espírito de Jesus nos reúne

aureliano, 08.06.24

10º Domingo do TC - B - 06 de junho 2021.jpg

10º Domingo do Tempo Comum [09 de junho de 2024]

[Mc 3,20-35]

Estamos no capítulo 3º do evangelho de Marcos. Depois da eleição dos Doze, o evangelista retoma a controvérsia que contesta e questiona o poder de Jesus. O centro da questão é saber “quem é este? De onde vem o poder que manifesta?” Os parentes o acusam de louco; os escribas, de possuído pelo demônio.

Jesus é o vencedor dos poderes do mal. Ele tira o pecado do mundo. Traz nova perspectiva de vida para todos. Introduz novo horizonte de sentido na vida daqueles que o assumem como Salvador e Mestre. Quem se recusa a reconhecer isso peca contra o Espírito Santo e exclui-se da salvação.

Pecado contra o Espírito Santo é a atitude (não uma ação isolada) de recusa a ouvir e colocar em prática o ensinamento de Jesus. É encarquilhar-se no mal (cf. Dn 13,52). É fazer a opção fundamental por viver de modo egoísta, narcisista, fechado nas próprias ideias, recusando-se a fazer um caminho cotidiano de conversão. Pecado contra o Espírito Santo é recusar-se conscientemente a ver os sinais da graça e da luz de Deus na história. É não ver o bem nas pessoas, mas servir-se delas como objeto de prazer e de lucro. É entrar sempre mais numa vida de trevas, de consumismo, de ambição, de ganância, de mesquinhez, fugindo sempre da luz da graça de Deus.

Aqueles, porém, que reconhecem realidade da luz e da graça manifestadas nas palavras e nos gestos de Jesus, estão no caminho do cumprimento da vontade do Pai, entrando, consequentemente, para a família de Deus: “E repassando com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: ‘Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe’” (Mc 3,34-35).

O relato do evangelho deste domingo nos mostra Jesus em pleno exercício da missão. Não desiste nem desanima mesmo diante da perseguição familiar e religiosa. Ninguém fá-lo desistir. Ele compreende a missão que o Pai lhe dera e a assume até às últimas consequências.  Familiares e pessoas poderosas (politiqueiros, por exemplo) costumam nos ‘enredar’ (colocar numa rede) para nos afastar da vivência da fé cristã. Fazem promessas de facilidades ou armam ciladas para nos fazer cair. É preciso ser forte e cheio de Deus para que esses inimigos do evangelho (“inimigos da cruz de Cristo” na expressão do Apóstolo das Gentes - Fl 3, 18)), não nos façam fraquejar e desanimar ou mesmo mudar o foco. Há muitas pessoas que tiveram uma formação cristã, foram educadas em bons princípios e valores na família, na comunidade, na escola, mas que se descambaram para a uma vida perversa, mentirosa, corrupta, desonesta e violenta ao associar-se a gente pervertida: “Salvai-vos desta geração perversa” (At 2,40).

A atitude de Jesus em relação à família nos faz repensar nossas relações familiares. Ele rompe com uma cultura machista e patriarcalista que colocava o apego e defesa da raça, do sangue, da cultura acima dos valores do Reino. Jesus amplia o conceito de família. Na dinâmica do Reino trazido por Jesus, a família de Deus não se constitui de alguns privilegiados que passaram por um ritual ou por serem de uma mesma raça ou religião. Deus é maior do que a religião e laços familiares. Jesus não está preso a nenhuma religião nem a nenhum grupinho seleto. Para Jesus, o mais importante é “fazer a vontade do Pai”.

A ‘família de Deus’ é aquela que coloca os valores do Reino como prioridade em sua vida: a justiça, a verdade, a generosidade, o perdão, a solidariedade, a fraternidade, o serviço desinteressado, o cuidado com a pessoa e com o meio ambiente; a quebra dos preconceitos de raça, sexo, condição social, religião; a tolerância e convivência respeitosa com mentalidades, culturas e crenças diferentes, o diálogo respeitoso, a sensibilidade aos sofrimentos dos pobres etc.

Há muita gente que pensa somente nos “seus” familiares e amigos, nas “suas” coisas. Jesus nos ensina que precisamos sair dessa atitude bairrista, provinciana, de pensar somente em nós e na “nossa” família, para lançarmos um olhar mais além. O batismo nos faz irmãos uns dos outros, rompendo assim com a estratificação social. Portanto, não pode haver mais exclusão nem discriminação entre nós. Nosso cuidado não pode se restringir, então, apenas aos “da nossa casa”. Nosso olhar deve-se voltar para aqueles que estão perto de nós e precisam de nossa ação. Como aquela mãe de família, separada do marido, que trabalha com afinco para tratar de suas duas filhas. Percebendo que uma criança de seu local de trabalho (creche) não tem onde ficar com sua mãe (que trabalha durante o dia), abandonada pelo companheiro, levou ambas para dentro de sua casa a fim de ampará-las, mãe e filho, até que arranjassem uma forma de viver com o mínimo de dignidade. São gestos pequenos, mas significativos que ilustram o que Jesus disse no evangelho de hoje. Ultrapassam os laços de sangue.

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PECADOS CONTRA O ESPÍRITO SANTO

“Em verdade vos digo: tudo será perdoado aos homens, tanto os pecados como qualquer blasfêmia que tiverem dito. Mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado, mas será culpado de um pecado eterno” (Mc 3,28-29).

Muitas pessoas ficam curiosas em saber que pecado é esse que não tem perdão. O que é mesmo o pecado contra o Espírito Santo? O contexto do evangelho de hoje o revela: um clima de fechamento, de resistência às palavras e às ações de Jesus. Falta de acolhida à novidade do Reino de Deus. Ora, Deus não salva ninguém à força. Santo Agostinho já o entendera bem: “Quem te criou sem ti, não te salvará sem ti”.

A falta de cultivo da vida interior, a busca frenética pelo bem-estar, o acúmulo de coisas, a busca de si e de seus próprios interesses em detrimento do bem da coletividade são realidades que fecham o coração e impedem a ação do Espírito de Deus em nós.

Seria bom, portanto, que cada um verificasse que importância está dando àquelas realidades que são o essencial de sua vida: a vida eclesial, a vida familiar, o cuidado com os mais sofridos, o zelo pela verdade e pela coerência de vida, a sinceridade e honestidade nas relações de trabalho e vizinhança, o carinho e cuidado para com os pais ou idosos, a abertura de coração. Confrontar a própria vida com a vida de Jesus que se deixou conduzir pelo Espírito.

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EXPULSAR DEMÔNIOS

Há muitos religiosos por aí “especialistas” em “expulsar demônios”. Se a pessoa não os tem, eles arranjam para ela. É uma forma de enganar e arrancar o dinheiro dos incautos e sofredores, além de mantê-los reféns de seu poder. Com o avanço das Ciências e da Medicina sabemos de muitas doenças que, no tempo de Jesus, eram consideradas possessões diabólicas, não passam de distúrbios ou deficiências mentais. É só procurar o psiquiatra ou o psicólogo que a pessoa vai ser tratada. Além, é claro, de se preparar um ambiente adequado que a ajude a viver. Não se trata de ‘possessões diabólicas’, mas de doenças mentais. Cuidado com os falsos pastores!

Os demônios que precisam ser expulsos têm nomes e estão dentro de nós: a mentira, a traição, a falsidade, a preguiça, a safadeza, a inveja, a ganância, a cobiça, a vingança, a ingratidão, o fechamento, o orgulho, o parasitismo, a corrupção, a grosseria, a incoerência, a dureza de coração etc. Esses demônios fazem um mal enorme. Em alguns eles agem com mais força; em outros, são enfraquecidos pelo esforço de se viver em Deus. Vamos exorcizar esses demônios! E eles são teimosos: não gostam nem querem sair de dentro de nós!

Senhor Jesus, ajuda-nos a compreender que nosso pecado, nossa omissão, nossas escolhas erradas, nosso egoísmo podem fazer muito mal e causar muito sofrimento. Dá-nos a graça de romper com o mal em nós e fora de nós para que nossa vida seja mais parecida com a tua. Que nossas palavras e ações sejam de mais abertura, acolhida, discernimento, tolerância e perdão. Faze de nós instrumentos de paz e de justiça para construirmos um mundo mais irmão e solidário, em que todos tenham acesso aos bens da criação, à vida digna e feliz, à “vida plena”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN