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Relendo Juracy de Moura

aureliano, 28.02.25

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A grandeza do ser humano não está no sucesso, na posse de grandes fortunas, no reconhecimento social, em ocupar as “primeiras páginas dos jornais”, em ser elogiado e temido e admirado por todos. Não. A grandeza do ser humano está na sua capacidade de compadecer-se de quem sofre, de aproximar-se da dor do outro, de consolá-lo, de estar com ele na sua dor. Ainda que não possa eliminá-la, mas pode aliviá-la. Com essa paráfrase do Papa Bento XVI na Spe Salvi, n. 38, deixo aqui um memorial de Juracy de Moura, minha saudosa mãe.

Papai, nos últimos 10 anos de vida, escreveu três livrinhos. O primeiro foi um relato histórico da família e dos filhos, uma espécie de autobiografia: “Lutas e vitórias de uma vida”, 2013. O segundo foi uma homenagem à mamãe: “Juracy de Moura: uma vida de dores e alegrias”, 2015. O terceiro foi uma narrativa sobre pessoas e temas variados que cercaram sua vida: “Minhas memórias de vida e de fé”, 2020.

No segundo livrinho ele quis homenagear a mamãe, sua esposa amada, a quem se dirigia carinhosamente como “Tetéia”. Ele quis prestar-lhe essa homenagem por ocasião dos 60 anos de casamento: bodas diamantinas, como dirá o Felipe, em feldades.blogs.sapo.pt.

Mamãe fez sua Viagem definitiva no dia 29 de fevereiro de 2024, ano passado, quando contava 84 anos e nove meses de vida.

Sua vida foi de muitas dores. Muitas mesmo! Epiléptica desde a adolescência, sofria convulsões terríveis. Quantas vezes ela entrava numa espécie de crise epiléptica, dando convulsões seguidamente! Lembro-me de uma ocasião dessas. Era menino pequeno na “roça” de Vilas Boas. Em algum momento da noite, mamãe entrou nessa crise. Papai costumava trabalhar e dormir no serviço, pois às vezes era distante uns 10 a 15km. Vida difícil naqueles idos de 1970. Sem energia nem muito menos um veículo pra chamar o papai. Saíram os irmãos mais velhos: Maria Marta e o Felipe. O Anchieta acho que já tinha ido para  o Seminário, ser padre. Ambos, Marta e Felipe, com 10 ou 11 anos. Altas horas da noite. Vão chamar o papai. José Lopes era uma espécie de porto seguro de todos nós. Estando ele presente todos se sentiam seguros. A própria mamãe. E realmente ele era um soberano na fé e na confiança, na serenidade e na sabedoria. As coisas iam se ajeitando sem estresse. Era a bênção de Deus se derramando sobre todos nós, naquelas situações complicadas da vida. E, não sei como, mamãe ficava boa sem ir ao médico que, aliás, profissional raríssimo naqueles tempos difíceis de vida campesina e pobre.

Assim vivíamos nós. Uma vida simples, pobre, desprovida de quase tudo. Mas não nos faltou a graça de Deus. Nossos pais souberam transmitir-nos, à maneira deles, a essência da fé e o senso de humanidade. Papai era um baluarte por conta de sua vida em Deus. Indo para o serviço ou para outro local, estava rezando o terço ou cantarolando um hino religioso. Sua vida consistia em trabalhar, rezar e cuidar da família.

Mamãe sempre foi muito brava, muito nervosa. Nunca manifestou aqueles cuidados e carinho maternais que normalmente a mãe tem para com os filhos. Tinha, sim, carinho pelos filhos, mas seu jeito de manifestá-lo era bem próprio. Só quem conviveu com ela bem de perto foi capaz de captar seu jeito de manifestar seu sentimento de carinho pelos filhos. E mesmo assim eram gestos raros.

Mas mamãe nos deu o essencial: um legado de vida honesta, orante, fiel, perseverante, firmeza na fé cristã e católica, simples e despojada, dedicada. Tudo isso vivido dentro de seu horizonte de compreensão da vida e da fé.

Mamãe vivia um mundo próprio. Geralmente no quarto: ou rezando ou numa atitude de quem está pensando ou entre pedaços de pano, linhas, agulha e tesoura fazendo algum enfeite em suas próprias roupas. Ela sempre teve o desejo de ser costureira, mas não conseguiu, coitada!

Viveu vida longa! Deus foi muito generoso com ela. Recebeu cuidados prestimosos na sua debilidade senil e enfermiça. Particularmente do papai enquanto vivia e dos irmãos que moravam perto: Maria Marta, a decana, Maria Coraciana e João Vianei. Patrícia, neta, foi um anjo enviado do céu.

Papai sempre dizia que gostaria de morrer depois da mamãe. Ele achava que, pelo fato de a mamãe ser muito nervosa, daria muito trabalho para ser cuidada. Ledo engano, pois a graça de Deus estava presente. Ele partiu primeiro. Mamãe ficou ainda, por quase dois anos em nosso meio. E não deu trabalho nenhum. Somente mesmo os trabalhos provenientes da enfermidade. Quase sempre foi colaborativa nos cuidados recebidos.

Morreu serenamente ao lado do filho, Felipe. Tão serenamente que o acompanhante nem percebeu: enquanto merendava ao lado dela, inesperadamente percebeu que já tinha feito a viagem definitiva. Acompanhemos seu relato:

“Volto para a noite seguinte, que seria a última. Passava das nove da noite, tive fome e comecei a comer o lanche. O lusco-fusco não me permitia observar a minha mãe, mas eu espiava assim mesmo e via que ela dormia tranquilamente. Terminado o lanche, fiz a checagem de sempre: apalpei suas mãos, seu pescoço, tentei ver sua respiração, e me pareceu que algo não estava normal. Fui ao postinho e procurei uma enfermeira: olha, acho que mamãe parou de respirar. A enfermeira chegou, checou, me pediu para pegar o estetoscópio com a colega dela, auscultou e, meio assustada, já ia saindo quando a interpelei: o que acha? Ela respondeu: é melhor chamar a médica para dar certeza, mas acho que ela se foi.

Uma hora depois a médica veio, deu o veredito, me abraçou emocionada e saiu. Um minuto depois chegaram duas enfermeiras, que me abraçaram chorosas, me disseram palavras carinhosas sobre minha mãe e me pediram para sair. Elas iam trocar a mamãe e remover seu corpinho.

Eu saí dali meio sem ter para onde ir e resolvi me sentar no sofá numa área de descanso. Ali, fui rememorando a vida de minha mãe desde a sua juventude. A natureza indócil, difícil, sendo dobrada pouco a pouco com a idade; a vida de sofrimento com a epilepsia: muitas quedas, inúmeras quedas; a vida de oração: muitas rezas; a parcimônia alimentar: comia pouco, só pedia água e nunca pediu comida; seu rico patrimônio: as sacolinhas de meias, blusas, toucas, todas dentro das gavetas de uma cômoda; as inúmeras internações: algumas por queimadura; a gratidão: mamãe sempre agradecendo e abençoando” (Ela se foi vestida de branco, feldades.blgs.sapo.pt).

Deus seja louvado pela vida da mamãe. Sofreu bastante nesta vida. Sua vida foi socialmente apagada. Até mesmo relegada, discriminada devido à sua enfermidade e a compreensão que se tinha dela, a epilepsia. Mas a fé ardente, a convicção religiosa, seu amor a Deus e a Nossa Senhora a ajudaram a levar adiante sua vida até à morte serena e em paz.

Finalizo minha palavra com os dizeres do papai sobre sua noiva que viria a ser sua companheira por quase 67 longos anos e mãe de seus filhos. Assim escreveu o Bom Velhinho, José Lopes de Lima:

“Sendo noivo da Juracy desde que ela completara 15 anos, esperava que completasse 16 anos para nos casarmos. Sabendo que ela completaria essa idade no dia 23 de maio de 1955, e com o desejo de presenteá-la, pensei: ‘Vou registrá-la como Irmã Remida da Terra Santa’, e assim o fiz. Portanto, no dia em que ela completou 16 anos, entreguei a ela o diploma da Terra Santa, o terço, a medalha e um crucifixo, consagrando, assim, aquela que, dentro de poucos dias, receberia por esposa. Destarte, completo aqui o que não havia escrito no outro livro (Lutas e vitórias de uma vida, 2013). Deus seja louvado, pois d’Ele sou e a Ele pertence toda minha família” (Juracy de Moura: uma vida de dores e alegrias, 2015, p. 57-58).

Papai relata ainda sobre os caminhos de dores e alegrias da mamãe: “Juracy sofreu muito com a terrível epilepsia. Todas as vezes que caía e escoriava o tornozelo direito, começava novamente todo aquele sofrimento, que podia durar meses. Formava-se, com a queda, uma ferida que levava tempo para sarar e era acompanhada de muita dor e queimação. Com todo esse sofrimento, ainda quis ser mãe;  e mãe de treze filhos! Ter muitos filhos foi decisão dela. Eu já conhecia o método ‘Bilings’. Certamente Deus há de recompensá-la na eternidade. Pois sabemos que, quem muito planta, espera uma boa colheita. Deus seja louvado” (Ibidem, p. 18).

Descanse em paz, mamãe! Peça a Deus e a Nossa Senhora por nós que continuamos nossa peregrinação, animando nossa esperança, rumo Reino definitivo.

Teresina, 28 de fevereiro de 2025.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Cultivar um coração bom e reto

aureliano, 28.02.25

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8º Domingo do Tempo Comum [02 de março de 2025]

[Lc 6,39-45]

É a ultima parte do “Sermão da Planície”. Uma coletânea de sentenças em vista da construção da comunidade cristã. Tanto para os mestres, a liderança da comunidade, como para os discípulos, os fiéis participantes. O guia precisa enxergar bem para conduzir seus guiados (cf. Lc 6,39-40). Um guia desnorteado, vaidoso, iludido, insensato e mentiroso pode levar todos os seus guiados a se perderem. O mestre precisa estar bem iluminado, centrado no Mestre maior, Jesus, para que conduza com justiça e sabedoria os discípulos.

Sem hipocrisia

Jesus nos ensina que as pessoas devem ser avaliadas pelos seus frutos, e não por aquilo que aparece à primeira vista, pela aparência. A gente pode se enganar e se perder. Não são os belos discursos, as frases de efeito, as promessas de realização e sucesso que garantem a verdade e sinceridade do líder. Mas suas ações, sua atitude, os frutos produzidos. Isso é que garante a confiança que se pode colocar na pessoa que está à frente do grupo. Relembrando São Paulo VI: “O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres – dizíamos ainda recentemente a um grupo de leigos – ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas” (EN, 41).

Jesus condena um discurso marcado pela hipocrisia. “Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão” (Lc 6,42). Cada um deve olhar para dentro de si mesmo e avaliar como tem caminhado. O julgamento pertence a Deus. “Não julgueis, para não serdes julgados; não condeneis para não serdes condenados; perdoai, e vos será perdoado” (Lc 6,36-37).

Que frutos produzimos?

A nós compete tentar produzir frutos bons. E quais são os frutos que o Senhor espera de nós? A justiça amorosa, o serviço aos irmãos, o comprometimento com os desafios da família e da comunidade. O envolvimento nas políticas públicas. Sair daquele pensamento e atitude de conformismo e de que religião deve ser vivida dentro do templo. “Sujar” os pés na lama em busca de melhores condições de vida digna para os mais pobres a partir do Evangelho. “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (Papa Francisco).

Solidários e comprometidos

Uma Igreja que se empenha em ser fiel a Jesus Cristo, que assume o Evangelho como norma de vida, produz frutos. A verdadeira religião é aquela que atua pela libertação e salvação dos órfãos, das viúvas, dos pobres. “A religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,27).

E João já advertia a comunidade: “Se alguém, possuindo os bens deste mundo, vê o seu irmão na necessidade e lhe fecha o coração, como permaneceria nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com ações e em verdade” (1Jo 3,17-18).

Nossa confiança deve ser investida naqueles que, por suas ações, mostram-se participantes do projeto do Reino de Deus. Aqueles que trabalham pela fraternidade, pela justiça e pela paz. Não adianta proclamar a Palavra ou carregar a Bíblia debaixo do braço ou fazer longas e fervorosas orações, mas continuar com atitudes que manifestam frutos podres de uma vida hipócrita, distante do evangelho. Estes tais não merecem nossa confiança. Só é digno de nossa confiança quem se coloca, a exemplo de Jesus, a serviço dos fracos, dos injustiçados, dos pequenos e sofredores, dos perseguidos e marginalizados.

Como anda nossa acolhida?

Um modo muito interessante e necessário de produzirmos frutos é a acolhida, o respeito, a ajuda aos sofredores. Quando não tornamos a vida dos irmãos mais difícil do que já está. Quando sabemos acolher, ouvir, respeitar a partilha que nos fazem aqueles que passam por momentos de dor e angústia. Quando não envenenamos com nossas fofocas e calúnias a vida dos outros. Quando desenvolvemos em nós o espírito de compaixão e solidariedade com os pecadores, acolhendo-os e perdoando-lhes as fraquezas. Quando respeitamos os idosos e lhes proporcionamos um pouco de alegria e bom sabor na vida já marcada pela insegurança, pelo medo, pela enfermidade. Acolher é a primeira e mais fecunda forma de evangelizar.

Fé e vida

Podemos pensar também nos cultos e liturgias que celebramos. Jesus invocou certa vez o profeta Isaías ao recriminar a hipocrisia na oração: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. Em vão me prestam culto, pois o que ensinam são pensamentos humanos” (Mt 15,8-9). Deus não se interessa por práticas religiosas vazias, descomprometidas. Às vezes há mais comércio, panos, fumaça, ritos e louvações inflados de vaidade e busca de se “amostrar” do que corações sinceros e retos com desejo de louvar a Deus e de buscar a conversão sincera e a mudança de vida. Não são os “sacrifícios e holocaustos” que agradam ao Senhor, mas um coração puro e reto. Quando o interior não for puro e reto, o futuro não será humano. “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração” (Lc 6,5).

Ser amante da verdade

As sentenças do evangelho de hoje nos permitem fazer uma reflexão sobre a verdade. Vivemos numa sociedade marcada e descaradamente mentirosa e falsa. As aparências e as máscaras é que dão as cartas. Merece credibilidade o que aparece, que brilha, que agrada, que dá lucro.

Há especialistas em mentir, em montar e espalhar fake news, em compartilhar desinformação, em armar estratégias malignas para enganar a população. As guerras, por exemplo, são geralmente realizadas dentro de esquemas mentirosos. Como diz o ditado: “A primeira vítima da guerra é a verdade”. Vejam a mentira em torno da guerra do Iraque e do Afeganistão. Que amparo os Estados Unidos e seus aliados ofereceram a essas populações espoliadas e destruídas? Estes dias nos deparamos com a guerra na Ucrânia e na Palestina. As potências econômicas mundiais é que decidem sobre as vidas alheias. Os jogos de interesses, de poder e de ter prevalecem sobre as realidades das vidas humanas que se tornam meras marionetes para atender interesses escusos. Nós, cristãos, não podemos nos aliar nem avalizar nenhuma ação ou proposta que destrói a vida humana. Jesus veio para que todos tenham vida (cf. Jo 10,10). O Papa Francisco tem rezado e instado a que cessem as guerras: “Renovo o apelo para que, com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo global para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura duma vida mais digna” (Spes non confundit, 16).

A mentira não nos deixa ver os abusos, os desvios, os acordos perversos. A mentira nos cega. Líderes mentirosos trazem verdadeira miséria e desumanidade à população. Isso tanto em nível de política nacional e internacional, quanto em nível de Igreja, de comunidade, de família, de ambiente de trabalho.

Em nível de religião, é sabido que muitos se valem de discurso religioso mentiroso para enganar as pessoas e tirar proveito da situação. Incutem o medo, o desespero, o fanatismo na pessoa. Dominam. Então o “fiel” começa a fazer o que o falso mestre mandar. Há inúmeros charlatões enganando os pobres, sugando-lhes todas as forças e roubando-lhes o pouco que têm para sobreviver.

Pelos frutos é que se conhece a árvore. “Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons” (Lc 6,43). Estejamos, pois, atentos.

*Carnaval

Neste final de semana é tempo de carnaval. Inicialmente era uma festa pagã. A Igreja Católica quis dar-lhe um sentido. Então estabeleceu que, nos três dias imediatamente anteriores à Quarta-feira de Cinzas, dia em que tem início a Quaresma, se fariam as festas de despedida da “carne” (carne vale = adeus à carne) para se entrar com sobriedade no tempo de conversão e de penitência proposto pela Igreja aos seus fiéis.

Cada um vive esse tempo como lhe apraz: uns passeiam; outros rezam; outros brincam; outros fazem retiros. Não se pode perder de vista, porém, o respeito pela pessoa humana. O cristão precisa ser comedido e responsável no uso do álcool e outras drogas. Nesse tempo muitos acham que podem tudo. Há muita falta de respeito pelas pessoas. Muita droga e muito sexo desmedido. Realidades que não condizem com a vida cristã. Não há nada de mal em se festejar, brincar e se alegrar. O mal está na falta de respeito, no desperdício, nos excessos: “Conduzi-vos pelo Espírito e não satisfareis as obras da carne. (...) Os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com suas paixões e seus desejos. Se vivemos pelo Espírito, pelo Espírito também pautemos a nossa conduta” (Gl 5,16.24-25). Vamos nos divertir como cristãos e não como pagãos: “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor: andai como filhos da luz” (Ef 5,8).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Que a vingança dê lugar à reconciliação

aureliano, 21.02.25

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7º Domingo do Tempo Comum [23 de fevereiro de 2025]

[Lc 6,27-38]

Um sentimento que insiste em habitar no coração humano é o da vingança: pagar o mal com o mal. Uma forma de compensar a dor sofrida é fazer o outro sofrer também. Ou, no mínimo, desejar o mal a quem nos fez mal. Acompanhemos as palavras de Jesus no chamado “Sermão da Planície”, e guardemos no coração seu ensinamento para colaborarmos na construção de um mundo mais de acordo com o sonho de Deus.

Em A República, capítulo I, no diálogo em busca da definição de justiça no sentido de “dar a cada um o que lhe compete”, Sócrates faz Polemarco afirmar que “a Justiça é favorecer aos amigos e prejudicar os inimigos”. Ora, se o inimigo faz o mal, portanto deve-se-lhe devolver o que ele oferece: o mal. É muito bom prestarmos atenção nisso, pois é isso que escutamos e vemos todos os dias nas redes sociais e televisão. Pagar o mal com o mal. Quem faz o mal deve receber o mal. Recorrer às armas de fogo ou a qualquer outro armamento para combater o mal ou vingar-me do mal que recebi. Já prestaram atenção naquelas frases emblemáticas de para-brisa de carro ou para-choque de caminhões? “Que você receba em dobro tudo o que me deseja”. E por aí se vai...

A compreensão de justiça na Sagrada Escritura se distancia da compreensão filosófica. Jesus vem nos ensinar como se deve entender esse fazer justiça.  A justiça do Reino de Deus contesta e corrige a justiça humana. Colocar na mente e no coração a novidade trazida por Jesus que estabelece relações a partir do princípio da misericórdia não é tarefa fácil.

Nasce daqui a importância revolucionária que Jesus introduz nas relações humanas acometidas pelos conflitos e violência: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam” (Lc 6,27). Não se pode entender e praticar isso senão mediante o dom da fé. Uma relação amorosa e confiante com o Pai.

Quando Jesus fala do amor aos inimigos, não está falando de mero sentimento em relação a eles. Certamente o sentimento não será livre de dor, de mágoa, sobretudo quando ficam marcas, feridas profundas, cicatrizes que atravessam gerações. Quando deparamos com nossas dores diante do mal causado pelo inimigo, é natural dar-nos tempo para recuperar a paz. Aliás, não é possível ao ser humano simplesmente dizer que está perdoado, e pronto. O perdão não acontece de um dia para o outro. É um processo longo e trabalhoso. Não é fruto de sentimentos, mas de decisão.

Isso nos ajuda a entender que Deus também tem paciência conosco e nos espera no nosso tempo para nos perdoar.  Portanto, é bom compreendermos que Jesus está falando de atitude que brota da vontade, da decisão, de se interessar pelo bem do inimigo. E não de mero sentimento. Uma realidade que parte da experiência de fé. Por causa da minha fé em Jesus, da minha adesão a ele e ao seu evangelho, quero que o meu inimigo, aquele que me fez o mal, se converta e viva, mude de vida, peça perdão, assuma uma vida nova.

Há pessoas que dizem: “Fulano pra mim não existe mais. Não faz mais diferença em minha vida!”. Isso significa que o ofensor foi assassinado no coração. Está morto. Então não houve perdão, mas assassinato. Neste caso o ódio deu lugar à indiferença. Tanto pior.

A novidade introduzida por Jesus quebra a corrente da violência. Ao morrer na cruz, vítima do ódio e violência de seus inimigos, Jesus quis que a corrente da violência terminasse nele, em sua entrega de amor: “Ele é a nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro da separação e suprimido em sua carne a inimizade (...) e de reconciliar a ambos com Deus em um só Corpo, por meio da cruz, na qual ele matou a inimizade” (Ef 2,14.16). Nós, seus discípulos, queremos também quebrar a corrente da violência. Ao pagar o mal com o bem, ao abençoar quem nos amaldiçoa, ao pedir a Deus pelos inimigos e ofensores, enfraquecemos a força do mal que insiste em prevalecer no mundo.

O que está em jogo aqui é o amor de Deus que está para além e envolve toda miséria humana. “Faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 6,45). Um amor gratuito, generoso, que não exige nada em troca. Não tem nada a ver com aquela liberalidade humana do chefe que, para agradar os subordinados e ser querido por eles, dá um lauto banquete e distribui presente a todos. Não! Não é isso. Trata-se de uma atitude amorosa, gratuita que se fundamenta em Deus, por causa de Deus, por amor a Deus.

A primeira leitura de hoje (1Sm 25,2.7-9.12-13.22-23) traz uma demonstração disso. Saul quis matar Davi. E este conseguiu se salvar da lança do Monarca. Quando surge uma oportunidade de Davi acabar com a vida de seu perseguidor, não o faz. Por quê?  Pelo fato de ser um ungido do Senhor: “Não o mates! Pois quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor, e ficar impune?” (1Sm 26,11). Davi entrega a Deus a causa: “O Senhor retribuirá a cada um conforme a sua justiça e fidelidade. Pois ele te havia entregue hoje em meu poder, mas eu não quis estender a mão contra o ungido do Senhor” (1Sm 26,23). Quando vemos no outro, por pior que ele nos possa parecer, a imagem de Deus, nos predispomos a fazer um caminho de perdão e de amor.

Essa passagem da Escritura poderia iluminar também as guerras e conflitos mundiais. Governantes que se dizem cristãos ficam de espreita para avançar e destroçar as comunidades, povos e nações. Sem piedade nem constrangimento nenhum pelo mal causado aos pequenos e fracos. Uma sede satânica de destruição, de usurpação, de avançar e tomar territórios e patrimônios dos outros! Um prazer em perpetrar o mal! Que tristeza! Que falta de humanidade! Que falta de Deus e do evangelho em nosso mundo!

“Sede misericordiosos como vosso pai é misericordioso” (Lc 6,36). Jesus não está pedindo que sejamos perfeitos como o Pai (como está dito em Mt 5,48), mas que imitemos sua bondade, seu gesto de perdão. A medida de nosso perdão oferecido aos ofensores e inimigos faz com que o Pai não nos julgue, não nos condene, mas nos perdoe sempre (cf. Lc 6,37). Pois “com a mesma medida que medirdes, sereis medidos” (Lc 6,38).

Podemos também dizer que o gesto de perdão proposto por Jesus não é uma questão opcional. Não depende de nossa escolha, como se cada um pudesse decidir se perdoa ou não, sem implicação para a humanidade. Não! A generosidade, o perdão, a busca do bem para as pessoas são constitutivos da busca do querer de Deus. É obra de “justiça” no sentido bíblico: nossa relação filial com Deus justo e santo. No perdão acontece nossa realização como cristãos. Em síntese, poderíamos dizer que, sem esse espírito, o nome de cristãos não corresponderia ao que dizemos ser e acreditar.

O cristão é aquele que, no seguimento de Cristo, faz um caminho diferente da proposta social. Caminha na contramão da história. Coloca-se em contestação da sociedade de consumo, de vingança, de violência, de dominação, de mentira, de aparência, de busca de sucesso e poder. Suas atitudes são “estranhas”, incompreensíveis: amar os inimigos, abençoar os que nos amaldiçoam, rezar pelos perseguidores (cf. Lc 23,24. At 7,60).

Portanto, perdoar não é esquecer. Perdoar é dar tempo ao tempo. É saber trabalhar dentro de si o desejo de vingança, o sentimento de ódio. É compartilhar com alguém a dor da ferida sofrida. É buscar a paz interior. É amar de novo. É dar nova oportunidade. É entregar o “devedor” nas mãos do Pai misericordioso. Todas as vezes que se lembrar da ofensa/dívida, que sentir a dor doída no coração, oferta ao Pai do céu ambos: o ofendido e o ofensor. E poderá dizer com toda confiança: “Pai nosso... perdoai-nos como nós perdoamos”.

Contemplemos o Cristo na Cruz que disse: “Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Estêvão, nas pegadas de Jesus, também perdoou: “Senhor, não lhes leve em conta este pecado” (At 7,60). Trilhemos este caminho de vida e de salvação!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Pobres e ricos: que fim os aguarda?

aureliano, 14.02.25

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6º Domingo do Tempo Comum [16 de fevereiro de 2025]

[Lc 6,17.20-26]

No relato do evangelho do domingo passado (5º Domingo), vimos Jesus chamando os quatro primeiros discípulos. Quer que sejam “pescadores de homens”. E eles entendem que precisam se desapegar dos bens materiais para seguir a Jesus com liberdade e inteireza de coração (Lc 5,10-11). O relato transparece claramente que Jesus quer um novo modo de vida e de mentalidade para seus seguidores.

O relato do evangelho de hoje traz o “Sermão da Planície” em contraposição ao “Sermão da Montanha” de Mateus 5,1-12. Lucas tem perspectiva diferente de Mateus. Os destinatários são outros: comunidades provenientes da cultura grega, pagã. O conteúdo dos dois relatos é o mesmo. Mas aqui Jesus profere também uma maldição contra os ricos. Além disso, ao “descer a montanha”, Jesus quer mostrar a condescendência de Deus que vem até nós. Elemento fundante da nossa fé cristã é a revelação de um Deus que se faz um de nós (cf. Jo 1,14), que desceu e se tornou servo (cf. Fl 2,7). De rico que era, se fez pobre por nós (cf. 2Cor 8,9). Um Deus que “desce”.

A fé cristã provoca uma revolução no coração daquele que acredita. O encontro com Jesus Cristo transforma a pessoa, abre um horizonte novo, faz enxergar o mundo de modo diferente. Produz no coração do crente o desejo de Deus, o desapego, o espírito de partilha, de solidariedade, de cuidado com o outro e com a Casa Comum. Foi isso que aconteceu aos santos e santas: São Francisco de Assis, Beato Charles de Foucauld, Pe. Júlio Maria, Santa Teresa de Calcutá, Santa Dulce dos Pobres e tantos outros.

Mas convenhamos. Ouvir uma proclamação de felicidade para os pobres é muito bom! E todos gostam de ouvir e até de dizer. Mas ouvir que os ricos estão perdidos, não é coisa fácil: “Ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação”. O Profeta, na primeira leitura, visa a nos preparar para isso: “Maldito o homem que confia no homem e faz consistir sua força na carne humana” (Jr 17,5). Por outro lado, brota do coração de Deus uma palavra de consolo: “Bendito o homem que confia no Senhor, cuja esperança é o Senhor” (Jr 17,7).

Alguém poderia argumentar: “Deus criou os bens deste mundo para serem usufruídos”. É verdade! Porém há que se distinguir: uma coisa é possuir os bens e usufruí-los; outra coisa é ser possuído por eles, ser escravo dos bens materiais. E como se não bastasse, escravizar os outros para possuir sempre mais. Atentemos à advertência de São Paulo: “Eis o que digo, irmãos: o tempo se faz curto. Resta, pois, que aqueles que têm esposa, sejam como se não tivessem; aqueles que choram, como se não chorassem; aqueles que se regozijam, como se não regozijassem; aqueles que compram, como se não possuíssem; aqueles que usam deste mundo, como se não usassem plenamente. Pois passa a figura deste mundo” (1Cor 7,29-31). Os bens materiais não podem ocupar o primeiro lugar em nossa vida. Porque eles não trazem dentro de si a felicidade permanente, verdadeira, intransferível.

A Sagrada Escritura quer nos mostrar que nenhum bem material é definitivo. Na parábola do homem que construiu um grande armazém para guardar sua colheita e se locupletar sozinho, Jesus mostra que a vida e os bens só têm sentido na medida em que são vividos e empregados segundo os critérios do Reino de Deus: “Insensato, nessa mesma noite ser-te-á reclamada a alma. E as coisas que acumulaste, de quem serão?” (cf. Lc 12,16-21). A vida do ser humano não consiste em possuir muitos bens, em ter muito dinheiro, em ser reconhecido pelo que tem (cf. Lc 12,15). Há muita vaidade por aí. Há pessoas que pensam somente em trabalhar para ganhar dinheiro; ganhar dinheiro para comprar coisas; comprar coisas para se exibir. E por aí se vai. Depois vem a desavença, a rivalidade, a velhice, a doença, a morte. E Depois?...

O programa de vida de Jesus é “anunciar a boa nova aos pobres”. Deus ama o ser humano por si mesmo. Não faz parte de sua “agenda” admirar stutus quo, reconhecimento social, aparência, sucesso, títulos, diplonas e aplausos. Deus ama o ser humano de graça. E quer que ele se faça simples , pequeno, pobre.

Além disso, quando Jesus proclama “Bem-aventurados vós, os pobres” não quer dizer que o pobre seja mais virtuoso do que o rico. É que Deus quis fazer sua “opção preferencial” pelos pobres. Com isso entende-se que a graça vem de Deus e não de algum favor humano. Os pobres não são felizes por causa de sua pobreza. Eles são felizes por saber que Deus está com eles. Seu sofrimento não durará para sempre. O Senhor lhes fará justiça. Jesus deixa claro: os que não interessam a ninguém são os que mais interessam a Deus. Deus quer estar com eles. E, para nós que vivemos na abundância, quando voltamos nosso olhar e nossa presença junto aos pobres, podemos ter aí uma grande oportunidade de fazer um caminho de conversão.

É bom ressaltar que Jesus não é contra os ricos. Por isso os exorta a mudar de mentalidade, a se esvaziarem de si mesmos, a se desapegarem de seus bens fazendo com que todos possam também usufruí-los. Os bens da criação devem ser distribuídos a todas as pessoas. Deus criou a terra e a deu ao ser humano para que cuidasse dela: “O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 2,15). Basta ler o episódio de Jesus e Zaqueu (Lc 19, 1-10). O coração de Zaqueu encheu-se da salvação de Deus quando ele decidiu devolver o que roubara, e distribuir com os pobres parte dos bens: “Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: ‘Senhor, eis que dou a metade dos meus bens aos pobres, e se defraudei a alguém, restituo-lhe o quádruplo’. Jesus lhe disse: ‘Hoje a salvação entrou nesta casa’” (Lc 19,8-9).

Senhor Jesus, desperta nosso coração para maior sensibilidade e solidariedade com os mais pobres. Ajuda-nos a ter um coração de pobre, um coração que saiba consolar, que saiba cuidar, que saiba chorar com os choram aquela dor doída. Inspira-nos palavras e ações para confortar os desanimados e oprimidos. E não deixes que a preocupação e a busca desenfreada dos bens materiais, do sucesso a todo custo, do lucro a qualquer preço tomem conta de nosso coração. Dá-nos enfim aquela coragem suficiente para anunciar teu Reino de amor e denunciar as perversidades contra os pequenos e sofredores da terra.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

A palavra de Jesus e as “águas profundas”

aureliano, 07.02.25

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5º Domingo do Tempo Comum [09 de fevereiro de 2025]

[Lc 5,1-11]

Nos últimos dois domingos rezamos e refletimos a pessoa de Jesus, o Ungido do Pai, enviado para evangelizar os pobres. Enfrenta rejeição em sua própria terra e entre seus parentes e familiares. “O profeta só não é bem aceito em sua própria terra”.  O ungido de Deus para evangelizar os pobres é desprezado e perseguido na sua missão entre os seus.

No relato deste domingo, Lucas coloca Jesus em outra terra: às margens do lago de Genezaré. Aqui é ouvido por uma multidão que se aperta ao seu redor. Um detalhe interessante que não pode passar despercebido: as pessoas estavam ali “para ouvir a palavra de Deus”. Ao passo que, na sinagoga de Nazaré, o pessoal estava à cata de milagres: “Faze em tua terra o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum”. – Uma pergunta desconcertante: “Você frequenta a igreja para ouvir a Palavra de Deus e entrar num caminho de conversão ou para receber milagres e favores?”

No relato de hoje aparecem duas cenas: o anúncio da palavra de Deus às multidões e a pesca milagrosa. Dois acontecimentos que iluminam a caminhada e a missão da Igreja. A Palavra de Deus ilumina, aquece, inspira, fortalece, perdoa, abre caminhos. Por isso Simão Pedro dirá: “Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos. Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes”.

O trabalho sem a presença de Deus, sem a iluminação de sua Palavra, é inútil. Já rezava o salmista: “A salvação dos justos vem do Senhor, sua fortaleza no tempo da angústia. O Senhor os ajuda e liberta, ele vai libertá-los dos ímpios e salvá-los, porque neles se abrigaram” ”(Sl 37,39-40). E ainda: “Nosso refúgio e rocha firme é o Senhor” (Sl 62,8). E em outro lugar: “Se o Senhor não construir nossa cidade, em vão trabalharão os construtores” (Sl 127,1). Por isso Pedro e os demais pescadores, ainda que peritos no mar e na pesca, não conseguiram nada. – Outra pergunta: “Que lugar ocupa a Palavra de Deus na sua vida? E nas reuniões pastorais? Tem prioridade sobre trabalho, lazer e Redes Sociais?”

Esse relato quer mostrar à Igreja iniciante, representada na Barca de Simão, que a autossuficiência era a causa de prováveis desânimos na comunidade. Certamente a Palavra de Jesus, a confiança nele, a convicção de que os êxitos devem ser atribuídos a ele estavam meio distantes do horizonte da comunidade. O que os levava a voltar desanimados da “pesca”. A autossuficiência é uma praga que acaba com a comunidade, com a família, com a pessoa. Todo aquele que julga bastar-se a si mesmo, acha que não precisa de mais nada nem de ninguém, que tem todo conhecimento e dinheiro para sobreviver, que não aceita opinião nem sugestão de ninguém, está cavando seu próprio inferno e sendo um inferno para sua família e comunidade.

A abertura de Pedro, velho e experimentado pescador, em acolher a palavra de um “carpinteiro”, questiona nossos fechamentos e cabeça dura diante do novo que nos interpela. Uma mudança de época exige novos métodos de evangelização. Se as pessoas estão se afastando do evangelho, ou mesmo usando o evangelho para justificar suas falcatruas, é sinal de que precisamos rever nossa maneira de evangelizar. A “pesca” precisa ser diferente. A presença de Jesus deve ser mais concreta, real. Ele precisa “estar na barca”. A confiança nele precisa ser redobrada. O trabalho precisa ser feito em nome dele e para ele: “Em atenção à tua palavra vou lançar as redes”. Parece ser urgente retomar o lema de Carlos de Foucauld: “Gritar o evangelho com a vida”.

São Paulo VI, em 1975, ensinava: “E antes de mais nada, sem querermos estar a repetir tudo aquilo já recordado anteriormente, é conveniente realçar isto; para a Igreja, o testemunho de uma vida autenticamente cristã, entregue nas mãos de Deus, numa comunhão que nada deverá interromper, e dedicada ao próximo com um zelo sem limites, é o primeiro meio de evangelização. ‘O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, dizíamos ainda recentemente a um grupo de leigos, ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas’. São Pedro exprimia isto mesmo muito bem, quando evocava o espetáculo de uma vida pura e respeitável, ‘para que, se alguns não obedecem à Palavra, venham a ser conquistados sem palavras, pelo procedimento’. Será pois, pelo seu comportamento, pela sua vida, que a Igreja há de, antes de mais nada, evangelizar este mundo; ou seja, pelo seu testemunho vivido com fidelidade ao Senhor Jesus, testemunho de pobreza, de desapego e de liberdade frente aos poderes deste mundo; numa palavra, testemunho de santidade” (Evangelii Nuntiandi, 41).

Diante do milagre operado pela palavra do “filho do carpinteiro”, Pedro se lança aos pés de Jesus e se reconhece frágil, pecador: “Senhor, afasta-te de mim porque sou um pecador”. Notem a atitude de Jesus: diante do pedido de Pedro para que Jesus se afaste, este se aproxima ainda mais: “Não tenhas medo! De hoje em diante tu serás pescador de homens”. Essa atitude de Jesus revela a bondade e a misericórdia do Pai. O Deus de Jesus não é o Deus terrível que espanta, que amedronta, que se mantém distante. Ele está perto e diz: “Não tenhas medo!”. E ainda lhe dá uma missão. Jesus quer que aqueles discípulos sejam continuadores de sua missão no mundo. É a missão da Igreja. Perdoar o pecado. Expulsar o fantasma do medo. Ajudar a pessoas a viverem com alegria, encanto e dignidade.

As “águas profundas” por vezes espantam. É preciso ser forte e confiante para entrar em ambientes e situações desconhecidas, ameaçadoras. Mas os “peixes” estão lá. A gente muitas vezes prefere ficar com aquelas mesmas pessoas de sempre, que frequentam nossa capela/comunidade. Residem no bairro ou córrego duas mil pessoas. Mas nos contentamos com as oitenta que frequentam nossa comunidade. Ao passo que Jesus diz: “Avancem para águas mais profundas”. Além disso, o Papa Francisco nos convida a irmos às “periferias existenciais”. Ou seja, há realidades difíceis, terríveis, destruidoras de vida, dolorosas que precisam da presença missionária: “águas profundas...”.

A atitude dos primeiros discípulos de Jesus nos convida a rever nossos apegos. “Levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus”. Quais são os apegos que não nos deixam avançar? A Sagrada Escritura diz: “Não seja o vosso proceder inspirado pelo amor ao dinheiro” (Hb 13,5). E em outro lugar: “Quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; mas quem perde sua vida por causa de mim, vai salvá-la” (Lc 9,24). Como está o nosso seguimento a Jesus? Que coisas precisamos abandonar?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN