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O Reino de Deus é um tesouro

aureliano, 29.07.23

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17º Domingo do Tempo Comum [30 de julho de 2023]

[Mt 13,44-52]

Com este domingo a Igreja conclui o capítulo 13 de Mateus conhecido como o Sermão das Parábolas. Hoje temos as parábolas do tesouro e da pérola que convidam a investir no Reino de Deus. A parábola da rede mostra a situação da Igreja: mistura de fiéis convictos e mornos. Esta última parábola se assemelha muito à do joio. Na verdade, quem realiza a colheita é o Pai. Ele sabe quem deve entrar para a vida definitiva. A nós compete tentar melhorar a situação do Reino: mais paciência, mais tolerância, mais empenho em transformar as realidades de maldade em bondade. O resto é com Ele!

Essas parábolas sugerem duas atitudes fundamentais na vida humana: desprendimento e investimento. Desprender-se do supérfluo, daquelas coisas que não nos dão a verdadeira garantia. E investir naquilo que nos garante contra a ‘traça’ e a ‘ferrugem’. Porém é preciso considerar que, para se desprender de algo para investir em outra coisa é preciso conhecimento daquilo em que estamos investindo. Assim, ninguém vai investir na bondade, na justiça e na verdade se desconhece o fundamento dessa realidade que é o próprio Deus.

A descoberta do Reino de Deus revelado por Jesus gera tal alegria que a pessoa abre mão de tudo para aderir e participar desse Reino. O ensinamento de Jesus provoca encantamento no povo e o desejo de deixar tudo para servir ao Reino de Deus. Esse modo de realizar o trabalho deve ser aprendido pelas comunidades: encantar, entusiasmar.

No atual contexto social e religioso encontramos gente pregando e prometendo realidades que não têm nada a ver com o Reino anunciado por Jesus. Uma relação comercial com Deus como se as coisas que ele nos dá tivessem preço e se prestassem a troca, permuta. Como se ele exigisse de nós o dízimo, a oferta, a penitência, o jejum para nos abençoar e caminhar conosco. O evangelho não fala disso. Fala que, na medida em que a pessoa encontrou o tesouro, sente-se movida a sair e a buscar uma vida diferente, nova, desinstalada. O “tesouro” é aquela realidade que dá sentido à nossa vida, que responde às nossas buscas mais profundas, que preenche o vazio deixado dentro de nós pelos bens e prazeres mundanos.

Peçamos a Deus que nos ajude a ter coragem suficiente para nos desprendermos daquelas coisas que nos impedem de viver o ensinamento de Jesus, de anunciar sem medo o Reino, e de denunciarmos os projetos de anti-reino em nosso meio. Sobretudo nestes tempos de crise econômica, política e institucional, quando os rumos do País se encontram nas mãos dos donos do dinheiro e do mercado, provocando um número cada vez maior de sobrantes e deserdados dos bens da criação. Que tenhamos a coragem de nos colocar contra as reformas que prejudicam os mais pobres; contra os negociadores do mandato que receberam nas urnas; contra os propineiros que se vendem para garantir seu posto político em detrimento dos pobres e desempregados.

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A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO

A experiência de Deus é algo muito pessoal. Aliás, não fazemos experiência de Deus. Ele é quem faz experiência de nós. A iniciativa é sempre dele. Ele é quem nos possibilita alguma coisa.

A reflexão sobre o Reino de Deus nos ajuda a cair na conta se estamos ajudando as pessoas a se deixar experimentar por Deus. Se nossas celebrações, nossas atitudes cotidianas estão sendo meios que ajudam a “encontrar o tesouro”, a entrar em comunhão com Deus.

É muito difícil, quase impossível, introduzir alguém na experiência de Deus a partir de fora: ensinar teorias, discutir ideias sobre Deus e seu Reino. Diante de alguém que deseja conhecer a Deus, fazer experiência de fé, importa ajudá-la a rezar. Pedir a ela que reze, que busque encontrar-se com o Criador do seu jeito, como ela souber. E a gente pode ir dando umas dicas. Mas é a própria pessoa que deve buscar, encontrar o “tesouro”, apostar todas as forças nesse “tesouro” que ela encontrou.

Somos tentados a julgar e condenar a pessoa que abandona a participação nas celebrações e na vida da comunidade. Mas pode ser que ela não estivesse sendo ajudada a fazer a experiência de Deus naquela condição. Há situações na comunidade que precisam ser trabalhadas a fim de não atrapalhar os caminhos de fé dos participantes. Rezar, estar presente, atuar na comunidade nem sempre significa caminhos de fé, de experiência de Deus. É preciso fazer um caminho de busca e de encontro do “tesouro”. Uma vez que se coloca nesse processo, a fé vai se consolidando. O Reino de Deus começa a ser sentido de vida para aquele que nele entra. E ao experimentar a alegria desse encontro, não abandona mais, por maiores que sejam as provações e perseguições.

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“Nas duas parábolas a estrutura é a mesma. No primeiro relato, um lavrador ‘encontra um tesouro escondido no campo. Cheio de alegria, ‘vende tudo o que tem’ e compra o campo. No segundo relato, um comerciante de pérolas preciosas ‘encontra’ uma pérola de grande valor. Sem duvidar, ‘vende tudo o que tem’ e compra aquela pérola.

Assim acontece com o ‘reino de Deus’ escondido em Jesus, sua mensagem e sua atuação. Esse Deus se torna atrativo inesperado e surpreendente que quem o encontra, se sente tocado no mais fundo de seu ser. Então nada pode ser como antes.

Pela primeira vez começamos a sentir que Deus nos atrai de verdade. Não pode haver nada maior para alentar e orientar nossa existência. O ‘reino de Deus’ muda nossa forma de ver as coisas. Começamos a crer em Deus de maneira diferente. Agora sabemos por que viver e para que viver.

Falta à nossa religião o “atrativo de Deus”. Muitos cristãos se relacionam com Ele por obrigação, por medo, por costume, por dever. Porém, não por se sentirem atraídos por Ele. Mais cedo ou mais tarde poderão terminar por abandonar essa religião.

A muitos cristãos se lhes é apresentada uma imagem tão deformada de Deus e da relação que podemos viver com Ele que a experiência religiosa lhes parece inaceitável e, mesmo, insuportável. Não poucas pessoas estão abandonando a Deus porque não podem viver por mais tempo em um clima religioso insano, impregnado de culpas, ameaças, proibições ou castigos.

A cada domingo, milhares de presbíteros e bispos pregamos o Evangelho, comentando as parábolas de Jesus e seus gestos de bondade a milhões de crentes. Que experiência de Deus comunicamos? Que imagem transmitimos do Pai e de seu reino? Atraímos os corações para o Deus revelado em Jesus? Ou os afastamos de seu mistério de bondade?” (Pe. José Antônio Pagola, www.musicaliturgica.com).

“Quantas pessoas, quantos santos e santas, lendo o Evangelho com o coração aberto, foram literalmente conquistados por Jesus, e converteram-se a Ele. Pensemos em são Francisco de Assis: ele já era cristão, mas um cristão «ao sabor da corrente». Quando leu o Evangelho, num momento decisivo da sua juventude, encontrou Jesus e descobriu o Reino de Deus, e então todos os seus sonhos de glória terrena esvaeceram. O Evangelho leva-nos a conhecer o Jesus verdadeiro, faz-nos conhecer o Jesus vivo; fala-nos ao coração e muda a nossa vida. E então, sim, deixamos tudo. Podemos mudar de vida concretamente, ou então continuar a fazer aquilo que fazíamos antes, mas nós somos outra pessoa, renascemos: encontramos aquilo que dá sentido, sabor e luz a tudo, inclusive às dificuldades, aos sofrimentos e até à morte” (Papa Francisco, 2014).

Quais são minhas principais buscas? O que me move mais profundamente: o emprego, o salário, o lazer, o status, o sucesso? Qual é mesmo meu tesouro: aquela realidade da qual não abro mão de jeito nenhum? Ela confere com o ensinamento e a vida de Jesus? “Onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração” (Mt 6,21).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

O Senhor sempre dá uma nova chance

aureliano, 21.07.23

16º domingo do TC - A - 19 de julho.jpg

16º Domingo do Tempo Comum [23 de julho de 2023]

[Mt 13,24-43]

Continuamos no capítulo 13 de Mateus no qual Jesus conta uma série de parábolas do Reino. No domingo passado pudemos rezar a parábola do semeador na qual Jesus mostra a variedade de terreno e a força da semente que é a Palavra de Deus. A grande tentação é negar-se a prestar ouvido ao que Deus pede de nós: “quem tiver ouvidos, ouça” (Mt 13,9); é negar-se a olhar para Jesus (cf. Hb 12,2) e manter os olhos fixos em si mesmo, alimentando um narcisismo perverso.

Hoje a liturgia traz a narrativa de várias parábolas: do joio e do trigo > deixar crescer juntos entregando a responsabilidade da seleção para Deus; da semente de mostarda > um Reino revestido de humildade, sem grandeza, mas que revela sua força por isso mesmo; do fermento > a força de Deus escondida, porém transformadora.

A parábola do joio e do trigo adverte nossa falta de paciência, de longanimidade (grandeza de alma) diante das fraquezas e pecados alheios. Buscamos resultados imediatos, números, mudança segundo nossos critérios, muitas vezes legalistas e exigentes demais. Ainda mais: quantas vezes nos arvoramos em juízes implacáveis das pessoas! Jesus quer que demos sempre uma nova oportunidade ao ser humano que erra.

As atitudes devem ser avaliadas e julgadas, mas a pessoa deve ser sempre respeitada. Ninguém conhece perfeitamente os recônditos do coração humano. Isso é prerrogativa divina. Por isso, somente a Deus compete o juízo definitivo.

Quando Mateus escreve este texto, provavelmente quer mostrar uma realidade da comunidade que aguardava a vinda de Jesus (Parousia) para muito em breve. Por isso exorta à paciência. Hoje o que impacienta pode ser o ativismo, o imediatismo e mesmo o radicalismo de pessoas até muito engajadas na comunidade, mas que sufocam e matam a semente no coração dos outros.

Penso que a grande lição do evangelho de hoje para nós e nossas comunidades é a de termos mais paciência com as dificuldades dos irmãos, respeitando seus passos, acolhendo suas diferenças. Muitas vezes alguém que poderia crescer muito na comunidade, acaba por minguar-se por falta de incentivo, de apoio, de perdão, de respeito, de tempo, de oportunidade. É preciso dar força ao trigo para que não seja sufocado pelo joio.

Importa, mais do que nunca, acolher a grandeza de Deus que está muito além de nossos pobres e mesquinhos juízos sobre a salvação dada por Deus a todas as pessoas. A nós compete colaborar com o Pai na obra da salvação. Julgar, selecionar, recompensar, punir etc é atributo de Deus. Quando nos deixamos conduzir pelo Espírito de Deus, assumindo o jeito de viver de Jesus, seu projeto vai se realizando no mundo.

Devemos nos colocar sempre como colaboradores de Deus espalhando a semente do bem no mundo e tendo uma atitude que sempre incomode o reino de morte.

O REINO DE DEUS É FEITO DE MISERICÓRDIA, DE SIMPLICIDADE E DE FORÇA INTERIOR

A primeira parábola quer nos ajudar a entender a misericórdia de Deus. A pessoa sempre merece ter mais uma chance, uma oportunidade. O Pai dá sempre tempo para a conversão (cf. Lc 15: parábolas da misericórdia). Isso significa também que não nos podemos escandalizar diante de uma Igreja medíocre, pecadora, longe do ideal evangélico. Feita de santos e pecadores e mergulhada no mundo, ela corre sempre o risco de se contaminar pela maldade. Por isso precisamos mudar nossa ideia de Deus: de um deus violento, intolerante, ciumento, mesquinho, avarento, a um Deus misericordioso, compassivo, paciente e justo. É o Deus revelado por Jesus. Guardemos isso: A ideia que temos de Deus determina nossas atitudes, posturas, relações com o próprio Deus, com nós mesmos, com o mundo e com as outras pessoas.

A segunda parábola lembra-nos a dimensão da simplicidade do Reino de Deus. Dá uma ideia de amplidão, de crescimento, de espaço a partir da pequenez evangélica. A pequenez da semente vem mostrar que a força do Reino não está na aparência, na exterioridade, mas no conteúdo. O Reino de Deus anunciado por Jesus cresce e se expande pela força que vem do Alto.

A terceira parábola nos remete à força interior do Reino de Deus. O fermento age sem ser visto. A gente não vê o fermento no bolo ou no pão. Sabemos que está ali e agiu pelo gosto gostoso. O verdadeiro sabor da vida cristã não vem de fora: de ritos, de shows, de ativismo etc. A força que transforma o ser humano, o mundo, a história vem de Deus. Uma vida alimentada pela mística, pela espiritualidade, pela oração é que vai produzir frutos que transformam o mundo.

Essas parábolas não nos deixam esquecer que o Reino é de Deus. Não somos nós os protagonistas da transformação da história. É Deus que age e transforma as pessoas. Nós somos instrumentos, muitas vezes, desajeitados em suas mãos. Às vezes fazemos bem, às vezes fazemos mal; às vezes ajudamos, às vezes atrapalhamos. O importante é colocar-se sempre aberto e disponível para colaborar na obra da salvação da humanidade. O resto é por conta do Pai. Porque o Reino é dele: “Porque tudo é dele, por ele e para ele. A ele a glória pelos séculos. Amém” (Rm 11,36).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Os efeitos da Palavra em nossa vida

aureliano, 14.07.23

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15º Domingo do Tempo Comum [16 de julho de 2023]

[Mt 13,1-23]

Na segunda parte da oração do Pai-nosso fazemos a seguinte petição: “E não nos deixes cair em tentação”. Guardemos esse pedido que Jesus nos ensinou a fazer ao Pai.

Estamos no capítulo 13 de Mateus. É o terceiro livrinho ou discurso das Parábolas do Reino. Parábolas são um recurso literário para ajudar a compreender os ensinamentos de Jesus. São metáforas tiradas da vida cotidiana ou da natureza. Sua significação e simplicidade ajudam o ouvinte a entender o Reino que Jesus veio anunciar. Como as parábolas são uma tentativa de esclarecer os mistérios do Reino dos Céus, só as compreende quem se abre à novidade salvífica trazida por Jesus. É preciso assumir uma atitude de fé, de entrega total confiante.

Na parábola de hoje temos três elementos relacionados: a semente, o semeador e os vários tipos de terreno. A qualidade da semente é inquestionável: a Palavra de Deus. O semeador (Jesus e seus enviados) é o meio pelo qual essa Palavra chega aos ouvintes. Já o terreno é variado. Se na parábola o destaque recai na semente, na explicação da parábola feita por Jesus, o acento recai sobre os tipos de terreno. As disposições de cada um em receber a Palavra é que vão determinar os frutos ou a ausência deles.

Importa considerar aqui que ocorre, com frequência, de se receber a Palavra e depois abandoná-la na primeira dificuldade ou diante da primeira tentação. As artimanhas do inimigo para nos fazer desistir da Palavra ou desanimar do caminho são muitas e extremamente sedutoras. Assim, podem ser os bens e prazeres desmedidos que a sociedade de consumo oferece. Podem ser as festanças, noitadas e baladas que fazem deixar de lado os compromissos comunitários e mesmo familiares. Podem ser a preguiça e o comodismo que levam a ficar na “vidinha” privada deixando de lado o doente, o pobre, o sofredor que precisa de nossas mãos e de nosso coração. A ganância, que faz tanto mal, pode nos impelir a tirar vantagem de tudo, sem abrir mão de nada, ou mesmo, nos levando a ganhar dinheiro fácil em cima do suor dos pobres e/ou dos cofres públicos. Também o fato de que “todo mundo faz”, nos seduz pelas facilidades e influências de uma sociedade sem Deus, sem valores, sem princípios.

Poderíamos citar ainda muitas outras tentações. Importa ao discípulo de Jesus ter a Palavra de Deus constantemente diante de seus olhos. Palavra escrita e Palavra vivida por tantos testemunhos bonitos de pessoas que se doam aos mais sofredores, tornando-se “cartas vivas”, no dizer de Paulo: “sois uma carta de Cristo” (Cf. 2Cor 3,2-3), para nossa leitura e instrução.

Os acontecimentos da história são também meios pelos quais Deus se comunica conosco. As pessoas que gritam por socorro, o pobre que clama por justiça, a natureza que “geme dores de parto” vítima das queimadas, extração mineral insustentável e agrotóxicos, a postura perversa de magistrados e parlamentares gananciosos e mentirosos que não pensam nos pobres, mas somente no próprio bolso. É só olhar o mundo com um olhar de Deus que perceberemos sua Palavra que nos conclama a atitudes novas. Guardemos isso: Deus nos fala pelos acontecimentos da história. É preciso prestar atenção. Ouvir com o coração.

A grande tentação é recusar-se a escutar e perceber Deus nos falando, primeiro no seu Filho Jesus, depois na Palavra revelada e escrita. Também nos acontecimentos ao nosso redor. Tendemos a viver acomodados, em busca de nossos interesses egoístas, justificando, mesmo pela religião, nosso autocentramento. Mas a Palavra ouvida, lida, entendida na vida e nos acontecimentos da história será nosso Juiz naquele Dia.

 Vamos nos perguntar: por onde estou caminhando? Quais são as pedras (mentiras, ódio, espírito de vingança, indiferença) no terreno do meu coração que matam a Palavra que quer crescer e produzir frutos dentro de mim? Quais são os espinhos (apegos, ganância, comodismo, preguiça) que cultivo e que sufocam a Palavra de Deus em minha vida? Como anda minha relação com os bens, com o dinheiro, com o trabalho, com a família? O que tenho feito para que minhas atitudes e palavras sejam mais mansas, mais coerentes, mais parecidas com as de Jesus? A Palavra quer encontrar ressonância dentro de nós para produzir frutos de esperança e de salvação para todos.

Pai, não me deixes cair na tentação de rejeitar, de recusar tua Palavra. Ajuda-me a vivê-la com coragem, leveza e alegria. Não me deixes cair na tentação do desânimo, da anemia espiritual que me impede de viver com vigor e coragem minha fé. Pai, não me deixes cair na tentação da ambição e da ganância, mas fortalece minha vontade para que eu assuma em minha história a vida do teu Filho Jesus. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Simplicidade e compromisso do cristão

aureliano, 07.07.23

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14º Domingo do Tempo Comum [09 de julho de 2023]

[Mt 11,25-30]

O contexto do relato do evangelho deste domingo (capítulos 11 e 12) é o lamento de Jesus contra as cidades de Corozain, Betsaida e Cafarnaum, vizinhas ao mar da Galileia, onde realizou muitos sinais, mas não se abriram à conversão. Opuseram-se ao Reino de Deus. Também os fariseus aparecem aí em clara oposição a Jesus como expressão do Pai. Então Jesus dirige um hino de louvor ao Pai mostrando a ação de Deus no coração dos que se colocam como pequenos e abertos à sua revelação.

Alguns destaques do relato de hoje, reveladores do caminho que o discípulo de Jesus deve percorrer:

  1. “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos”. Essas palavras de Jesus nos confortam por demais. O Reino que ele anuncia só pode ser compreendido e acolhido por quem se coloca diante de Deus com humildade, reconhecendo sua pequenez. Quantas vezes somos surpreendidos por pessoas que, às vezes, não tiveram oportunidade de ser alfabetizadas, mas que possuem uma sabedoria imensa diante dos acontecimentos da vida. Sabem viver e servir aos mais necessitados com simplicidade, gratuidade e ternura que só podem proceder de Deus. Ninguém suporta conviver com gente orgulhosa, arrogante, pedante, petulante, “entendida”. E como é bom estar ao lado de pessoas humildes, simples, diplomadas ou não, e que não se prevalecem de seus conhecimentos ou postos de autoridade que ocupam para humilhar, diminuir, dominar, mas para acolher, ajudar, cuidar, favorecer a fraternidade.
  2. “Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados. Eu vos darei descanso”. É uma palavra de Jesus para todos aqueles que vivem a fé cristã como carga pesada. Em vez de trazer alegria, conforto, a religião lhes traz peso, desconforto, tristeza, medo. Isso pode provir de levarem, por vezes, uma vida centrada mais no pecado do que na graça. Realizam a prática religiosa mais por medo do inferno do que como resposta ao amor de Deus. O encontro com Jesus leva a experimentar a verdadeira alegria, como lembra o Papa Francisco: “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quando se deixam salvar por Ele e são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento” (EG, 01). Seguem a Jesus não por obrigação, mas por atração e adesão madura, livre e responsável.
  3. “Tomai sobre vós o meu jugo porque é suave e meu fardo é leve”. Jesus não sobrecarrega ninguém. Além do mais, ele caminha conosco. Não nos deixa sozinhos. Jugo é algo parecido com canga (peça de madeira) para junta de bois. Então Jesus fica do lado para ajudar a carregar e enfrentar as dificuldades de cada dia. Ele não faz como os fariseus e escribas que punham pesados fardos sobre os ombros dos fiéis, mas eles mesmos não tocavam sequer com o dedo (cf. Mt 23,4). Jesus não vem trazer medo e prisão; pelo contrário, vem nos libertar deles. Vem despertar a confiança, a simplicidade, a humildade. Convida-nos a fazer o bem. O jugo dos “sábios e entendidos”, dos poderosos é muito pesado, pois humilham, exploram, dominam. Jesus também tem um jugo, porém seu jugo é leve porque liberta, ilumina a mente, aquece o coração, abre os olhos (cf. Lc 24, 13-35). As exigências de Jesus pedem uma resposta amorosa, gratuita, generosa.
  4. “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração e achareis descanso”. É o convite a aprendermos de Jesus. Ele é nosso Mestre. Ele não vem complicar nossa vida, impor normas e leis pesadas, difíceis, esquisitas. Ele deu o exemplo e não exige nada mais do que seguir o caminho que ele seguiu, viver a vida que ele viveu. Ele oferece descanso. Quantas vezes buscamos férias, descanso, lazer, praias, churrascos, noitadas, jogos, bebidas, drogas, shows e voltamos ainda mais cansados. Por outro lado, a alegria do convívio fraterno, a festa em família, o silêncio de um bosque, um tempo passado em oração, a participação em uma celebração, a visita a um doente ou idoso pode nos trazer um descanso verdadeiro. A gente volta refeito, abastecido, confortado pela graça de Deus experimentada naquele encontro. Quando a atitude é vivificada pela Graça de Cristo ela ganha um novo sentido, abre novo horizonte, traz repouso para a alma.

É triste ver não poucas pessoas vivendo experiências de tristeza, de estresse, de cansaço, de estado psíquico alterado, de amargura, de melancolia como resultado de um modo equivocado de entender e de viver a fé cristã. Há falsos profetas e líderes religiosos por aí que exploram pessoas doentes, quando não as fazem adoecer para manipulá-las e explorá-las em nome da religião. Isso é um pecado gravíssimo! Jesus não veio adoecer ninguém nem muito menos explorar as pessoas em seus momentos de dor. Ele veio curar, libertar, recuperar a dignidade, tornar a pessoa autônoma, viva, livre, independente.

É urgente recuperar a confiança em Jesus de Nazaré, pois é ele que nos liberta, conforta e descansa. O salmista já cantava: “Só em Deus a minha alma tem descanso. É dele que me vem a segurança”. Então não há outra realidade que produza o verdadeiro descanso ao coração humano senão o Deus revelado em Jesus.

Um cristão que vive a experiência de fé, de encontro verdadeiro com Jesus Cristo, não estressa os outros, não provoca confusão, não ofende, não explora, não mente, não domina, não mata, não rouba, não destrói o meio ambiente. Sabe tolerar, compreender, perdoar, acolher, cuidar, preservar. Certamente o caminho passa por aí.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Pedro e Paulo, carismas complementares

aureliano, 01.07.23

sao pedro e sao paulo.jpg

Solenidade de São Pedro e São Paulo [02 de julho de 2023]

[Mt 16,13-19]

Hoje celebram-se na Igreja duas vocações distintas e complementares: Pedro governa as responsabilidades da evangelização. Alguns o identificam com o fundamento institucional da Igreja. Jesus lhe dá o nome de Pedro que significa “pedra”, “rocha”. Sobre sua profissão de fé a comunidade é edificada. Cefas, Kepha significa gruta escavada na rocha. Nessa gruta os pobres ou os animais se escondem e/ou moram. Aí é o lugar do cuidado, da proteção, da geração da vida. A Igreja torna-se, pois, o lugar privilegiado do cuidado da vida. É a caverna rochosa onde os pequeninos do Reino encontram abrigo e cuidado.

Pedro recebe o “poder das chaves”, isto é, o serviço de administrador da comunidade. Recebe também o poder de “ligar e desligar”, isto é, o poder da decisão, da responsabilidade pastoral para orientar os fiéis no caminho de Cristo. Esse ministério é confirmado por outros textos: “Confirma os teus irmãos” (Lc 22, 31). “Apascenta os meus cordeiros” (Jo 21, 15). É a intenção clara de Jesus em prover o futuro da Igreja.

Paulo é o fundador carismático da Igreja. Aquele que se preocupa com a ação missionária da Igreja. Tem a preocupação de anunciar além-mar. Por isso é cognominado “Apóstolo das Gentes”. Representa a criatividade missionária. Vai para além do institucionalizado. Rompe com normas e leis que prendem o evangelho: Verbum Dei non est alligatum – “A palavra de Deus não está algemada” (2 Tm 2,9).

A complementaridade desses dois carismas fundadores da Igreja continua atual: a responsabilidade institucional e a criatividade missionária. Alguém deve responder pela instituição, pois esta dá suporte ao missionário. Por outro lado, alguém tem que “pisar no acelerador” da missão, sem se prender muito, para que a missão não fique refém de normas rígidas e anacrônicas. O novo desafia o institucionalizado e o atualiza. A tensão entre ambos é que mantém acesa a chama da missão.

Nesse “Dia do Papa” seria bom reaquecermos nossa veneração e acolhida à pessoa e à palavra do Papa, sucessor de Pedro. Ele é o sinal da unidade e da caridade da Igreja. Com os limites que são próprios ao ser humano, ele continua sendo o sucessor de Pedro, o Bispo de Roma, reconhecido pela Igreja, desde a antiguidade, como aquele que “preside a assembléia universal da caridade” (Santo Inácio de Antioquia , século II).

O que importa nessas considerações é sermos pessoas que, como Pedro e Paulo, tenham a coragem de doar a vida pela causa do Reino de Deus. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. Eles se doaram até ao sangue.  E nós? Onde estamos na doação, na entrega, na missão? Como zelamos pela nossa Igreja? Como anda nossa identidade cristã e católica frente às afrontas e desrespeito ao evangelho, à vida e à Igreja? Até que ponto sou comprometido com minha comunidade eclesial?

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Pedro e Paulo: coragem e fidelidade batismal

São Pedro e São Paulo coroam o mês de junho e as festas juninas. É interessante notar que não se trata somente de festas populares, mas há uma espiritualidade subjacente a esses momentos dentro de nossas comunidades. A alegria, o encontro, a dança, as manifestações da piedade popular, as celebrações... Claro que, em grande medida, as festas são mais pagãs do que cristãs. Muitos se valem destas festividades para lucrar muito dinheiro e garantir “curral eleitoral”. Outros se entregam à bebida e às drogas, desvirtuando o clima de alegria, confraternização e celebração da comunidade. Mas não podemos deixar morrer o sentido original e cultural destas festividades. Ainda mais: deve ficar a mensagem de que os santos mais populares deste mês: Santo Antônio, São João e São Pedro, são homens que viveram para Deus e testemunharam com sua vida a fé que professaram em Jesus Cristo.

Hoje, ao celebrarmos São Pedro e São Paulo, solenizamos as duas colunas da Igreja. "Pedro, o primeiro a proclamar a fé, fundou a Igreja primitiva sobre a herança de Israel. Paulo, mestre e doutor das nações, anunciou-lhes o Evangelho da Salvação. Por diferentes meios, os dois congregaram à única família de Cristo e, unidos pela coroa do martírio, recebem, por toda a terra, igual veneração" (Prefácio da missa). Pedro representa a Igreja institucional, é a "Pedra" que recebe a incumbência de "confirmar os irmãos", enquanto Paulo representa o carisma missionário, atravessa mares e desertos para anunciar a Boa Nova do Reino, formando novas comunidades cristãs.

A profissão de fé de Pedro é a base da comunidade cristã: "Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo". É nessa fé que a Igreja se firma e caminha. É o Espírito que sustenta a caminhada da Igreja. Ela não se instituiu sobre "carne e sangue", mas no Amor gratuito do Pai revelado na entrega livre do Filho pela salvação da humanidade (cf. Jo 10,18).

As "chaves do Reino" que são confiadas a Pedro devem sempre abrir as cadeias e algemas daqueles que estão dominados pelo mal. Quanta gente presa nas amarras da mentira, da ambição, da corrupção, do ódio, do preconceito, do medo, da enganação! Nosso mundo precisa, cada vez mais,  das "chaves do Reino" para abrir-se a mais partilha, mais sentido de vida, mais perdão, mais fraternidade, mais respeito, mais equidade e compreensão.

Quando lançamos um olhar de fé sobre esses dois homens cuja solenidade celebramos hoje, percebemos quão distantes ainda estamos da vivência de uma fé autêntica, corajosa, testemunhal!

Pedro foi encarcerado por causa da fé! Levou às últimas consequências sua profissão de fé: "Tu és o Cristo". Paulo também foi preso, ameaçado e perseguido pelos de dentro e pelos de fora. Mas levou até ao fim sua missão: "Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. (...) O Senhor me assistiu e me revestiu de forças, a fim de que por mim a mensagem fosse plenamente proclamada e ouvida por todas as nações" (2Tm 4, 6-7.17).

Até que ponto damos conta de sustentar nossa fidelidade ao Evangelho, levando às últimas consequências nosso batismo? Quais são as ilusões ou dificuldades que nos fazem desanimar, abandonar a missão, a comunidade? O que constitui o "conteúdo" de nossa vida: Jesus Cristo ou as vaidades religiosas e sociais? O que preciso deixar e o que preciso abraçar com mais vigor para ser verdadeiro discípulo como Pedro e Paulo?

Nesse dia a Igreja nos pede orações pelo Papa. Ele é o sucessor de Pedro. É ele que “preside a assembleia universal da caridade” (Santo Inácio de Antioquia) e é o sinal visível da unidade da Igreja. Peçamos ao Senhor que lhe dê muita luz para conduzir a Igreja pelos caminhos de Jesus. E lhe dê muita força e coragem para enfrentar os obstáculos e as resistências que essa sociedade e as situações difíceis que os "de dentro" lhe oferecem. E que tenha a sabedoria necessária para ajudar a Igreja a se abrir ao diálogo com o novo que surge a cada dia na fidelidade a Jesus e à sua missão.

O Papa Francisco tem surpreendido o mundo com seus gestos de simplicidade, de humildade, de acolhida, de uma palavra profética. Precisamos prestar mais atenção a seus ensinamentos. Ele nos aponta o verdadeiro caminho pelo qual a Igreja deve passar. Ele pede uma Igreja em saída para as periferias geográficas e existenciais. Uma presença e defesa dos mais pobres. “Prefiro uma Igreja acidentada, a uma Igreja doente por fechar-se”.

“A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque nesse caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandona, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte. Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente” (Gaudete et Exsultate, 101).

*Neste dia de São Pedro e São Paulo ocorre a coleta para o Óbulo de São Pedro, uma coleta financeira, que é destinada para as obras sociais, iniciativas humanitárias e de promoção social do Papa Francisco. Toda a arrecadação deste dia é encaminhada integralmente à cúria de cada arqui/diocese, que por sua vez envia à Nunciatura Apostólica, que é a representação do Vaticano no Brasil .

 Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“Não tenhais medo!”

aureliano, 23.06.23

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12º Domingo do Tempo Comum [25 de junho de 2023]

[Mt 10,26-33]

Estamos no capítulo 10º de Mateus. Ele chama os discípulos e os envia em missão. Depois de transmitir aos seus discípulos sua própria autoridade (Mt 9,35 – 10,16), Jesus não lhes esconde que deverão enfrentar perseguição e sofrimento por causa dEle. Ao enviar os discípulos, Jesus lhes transmite algumas orientações. São sentenças orientadoras de Jesus para a ação missionária das comunidades. As orientações no relato de hoje querem fortalecer e prevenir o discípulo contra o medo. Não ter medo de ser perseguido por causa do evangelho.

Um dado interessante na vida é que sofrimento e perseguição são realidades diferentes. Enquanto o sofrimento é uma realidade angustiante que atinge a todas as pessoas, inocentes e culpados, a perseguição, na perspectiva da Sagrada Escritura, atinge os justos exatamente por serem justos. O amor e a fidelidade à Palavra de Deus trazem como consequência a perseguição. Nem sempre o sofrimento é fruto de perseguição. Mas a perseguição gera sofrimento. A confiança em Deus dá serenidade para lidar com a dor. É o que podemos notar em Jeremias, como nos atesta a primeira leitura deste domingo: Jr 20,10-13. Elemento fundamental neste relato é a confiança em Deus: “O Senhor está ao meu lado”.  “A ti confiei a minha causa”. “Ele livrou a vida do pobre das mãos dos malvados”.

Por três vezes o Senhor adverte: “Não tenhais medo.” Por que será que Jesus insiste tanto nesse ponto? Na verdade, o medo é um dos maiores impedimentos ao anúncio do evangelho. E este não pode permanecer escondido: “O que escutais ao pé do ouvido, proclamai-o sobre os telhados”. Além disso, o medo expõe o discípulo ao risco de ser renegado: “Aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus”.

Outra dimensão do medo está na linha existencial: medo de ser rejeitado pelo grupo, medo de perder oportunidades, medo de perder o emprego, medo de passar necessidades, medo de perder privilégios, medo de ser criticado, medo de perder o amigo, medo de ser contaminado por alguma doença, medo de ... Na verdade é sempre medo de perder. A gente só quer ganhar. Na hora de perder, de entregar algo de nós ou nosso, “o bicho pega”. E a vida é um “perde-ganha”. Não há ninguém que sempre ganhe na vida. Todo mundo perde alguma coisa: perde os cabelos, perde a beleza juvenil, perde parentes e amigos, perde oportunidade, perde a eleição, perde tempo, perde a alegria, perde demanda judicial, perde encantamento, perde...

Acho que a gente precisa aprender a perder, a lidar com os fracassos e frustrações da vida. Um dos grandes dramas da moçada nova (e velha também!) é lidar com os fracassos, com as perdas. Tem gente que acha que vai ser “brotinho” a vida toda! E começa a pintar aqui, espichar ali, cortar acolá, malhar pra ganhar corpo “sarado”, “bombado”. E onde vai parar? Não há jeito: o tempo é irreversível; a finitude humana é implacável. Todo mundo caminha para o fim. Então a gente precisa dar um novo sentido à vida. E Cristo veio dar esse sentido: “Se o grão de trigo caído na terra não morrer, permanece só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24).

Proclamar o Evangelho do Reino, na comunhão com Cristo, significa empenho pela paz, pela fraternidade, pela justiça. Há duas forças que pressionam o discípulo de Jesus para desistir da empreitada. Podemos nomeá-las em forças externas (perseguições, ameaças de morte, matança de líderes comunitários e agentes de pastorais) e forças internas (desânimo, acomodação, busca de vantagens pessoais, ganância, sede de ter e de poder etc).

Estas forças, de dentro e de fora do ser humano, podem criar uma estrutura fechada, impenetrável, egoísta, que o leva a colocar-se indiferente ao Evangelho. Poderá, talvez, escutá-lo todos os dias na igreja, mas não se deixa penetrar pela Palavra porque criou uma carapaça de busca de si mesmo, de fechamento, de egoísmo, de medo de se doar a quem mais precisa.

A grande questão que precisa ser colocada é que, se o evangelho não é vivido e anunciado, os ídolos, realidades que assumem o lugar de Deus Criador, vão consumindo a humanidade. Idolatria é uma realidade que suga todas as forças e energias que a pessoa tem. Ela mata tudo e todos. A busca do prazer, do ter e do poder a qualquer preço é vislumbre da idolatria. É colocar-se no lugar de Deus, invertendo o processo criacional. Em vez de reconhecer o Senhor como seu Deus, quer submeter o Criador ao seu domínio. Fomos criados por Deus; ele criou tudo para nós; e nós existimos por Ele e para Ele. Este é o sentido da Criação.

Podemos dizer que a mensagem principal do relato de hoje é que o discípulo de Jesus não pode se deixar levar pelo medo, pois Jesus prometeu estar com os seus. Ele não nos abandona, jamais. O medo é paralisante e contrário ao evangelho. Para anunciar o evangelho é preciso vencer o medo e ter a coragem de desapegar-se da própria vida. A confiança e a esperança devem superar o medo. Também é preciso enfrentar os inimigos internos: o comodismo, a preguiça, o envergonhar-se de assumir uma postura cristã, a busca do lucro a qualquer preço, querer sempre levar vantagem em cima dos outros etc. Vive como cristão aquele que coloca Jesus Cristo como centro de sua vida e de suas opções e decisões. O caminho que Jesus nos mostra é o caminho da vida. Sigamos por ele!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Você trabalha na Lavoura do Senhor?

aureliano, 17.06.23

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11º Domingo do Tempo Comum [18 de junho de 2023]

[Mt 9,36 – 10,8]

O relato do evangelho deste domingo está colocado no seguinte contexto: Jesus ensinando os discípulos (Sermão da Montanha: Mt 5, 6 e 7) e confirmando sua palavra com vários milagres/sinais (Mt 8 – 9,34). Depois destas ações magistrais ele escolhe um grupo para enviá-los em missão, dando-lhes autoridade e orientando-os no exercício da missão. É um Novo Povo constituído pelo próprio Jesus, novo Moisés. A lista dos Doze realiza o que prefigurava as Doze Tribos de Israel. Este Novo Povo não é apenas sinal da Aliança entre Deus e a humanidade, mas são constituídos missionários, anunciadores do Reino de Deus inaugurado por Jesus.

Ao chamar e constituir o grupo dos Doze e enviá-los em missão, Jesus se distancia dos mestres de seu tempo que reuniam discípulos para ficarem em torno de si. Eram alunos. Jesus quer missionários. Itinerante, quer discípulos também itinerantes. O discípulo de Jesus é formado de tal maneira que não espera que o ouvinte venha, mas vai-lhe ao encontro, coloca-se em marcha. É preciso ir “às ovelhas perdidas”. Os discípulos compreenderam perfeitamente o que o Mestre queria. Inicialmente cuidaram da “casa de Israel”. Depois estenderam sua missão “até os confins da terra”. Por isso a Boa Nova do Reino chegou até nós! Graças a Deus!

Um aspecto interessante que não pode passar despercebido é a presença de Judas Iscariotes na lista dos Doze. Isso mostra que Jesus quer contar com todos. Não discrimina ninguém. Dá oportunidade a todos. Mesmo aqueles que traem, que dissimulam, que não se dispõem a entrar no projeto de Jesus, são chamados e enviados. Esse fato pode nos ajudar a ter paciência para trabalhar com os dissimulados. É aquela paciência em deixar crescer juntos o joio e o trigo: a nós compete semear; é o Pai quem faz a colheita. Mas também nos adverte quanto ao risco que corremos de fazermos parte do grupo de eleitos, e sermos infiéis à oportunidade que Deus nos dá. Deus chama, consagra e envia, mas a resposta generosa e sincera compete a cada um na sua liberdade.

 “Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor”. Jesus quer contar conosco na sua “lavoura”. Quer que tenhamos aquela sensibilidade que ardia no seu coração. Só será possível despertar em nós essa sensibilidade se nos dispusermos a conviver com Jesus. Sem intimidade com o Mestre é impossível percebermos a dor e o sofrimento dos pobres. Sem convivência com Jesus não teremos coragem de sair de nossa vida cômoda e curarmos as feridas dos que sofrem.

Não é fácil lidar com problemas dos outros! “Curar os enfermos” significa trabalhar em favor de quem tem menos vida; lutar pelos que sofrem em suas residências ou nas filas dos postos de saúde e hospitais. Ter um olhar de carinho para com aqueles que vivem sofridos e angustiados pelas lutas de cada dia. Pensemos naquela mãe ou pai cujo filho com deficiência exige cuidados dia e noite! Também naquela mãe que não sabe o que fazer de seu filho/filha envolvido na droga e na criminalidade! Ou mesmo, que pensar daquele filho/a cuja mãe acamada ou desfalecida não encontra apoio nos irmãos ou familiares para colaborar nos cuidados com o doente? Triste realidade também a do idoso, enfraquecido e enfermo, surrupiado pelos familiares , descuidado e maltratado pelos seu!

Ressuscitar os mortos”: empenhar-se na defesa da vida das pessoas e da Casa Comum, o Jardim que Deus criou para nós. Alimentar a esperança naqueles que se encontram angustiados, sem perspectiva de vida, enlutados. Ajudar a fortalecer no coração a confiança em Deus e o desejo de lutar pela vida.

“Limpar os leprosos” pode significar purificar a sociedade de tanta corrupção que assola a economia do País e a vida dos pobres. Corrupção significa também estado de putrefação. A podridão moral e social em que vivemos é como uma lepra, doença contagiosa, que contamina os sãos. Não se contaminar, e trabalhar para que este mal não destrua ainda mais os pequenos e pobres. A violência no campo e na cidade, a disseminação de roubos e furtos, o desrespeito generalizado é como uma lepra que tem origem em líderes religiosos, políticos e profissionais do direito que são colocados como ‘modelos’ sociais, porém tomados pela “lepra”.

“Expulsar os demônios” significa libertar as pessoas de tudo o que escraviza, domina, oprime. Assim, podemos nomear alguns demônios: a mentira, a traição, o roubo, a desonestidade, a ganância, a exploração, o preconceito, a fofoca, o desrespeito, a preguiça, a disseminação do ódio etc. Esses demônios impedem a pessoa de se realizar como ser humano e gera muito mal na vida no mundo.

Jesus nos constituiu como Igreja, novo Povo de Deus, não para ficarmos em torno de nós mesmos, de nosso egoísmo, de nossos caprichos e vaidades. Somos Povo de Deus para uma ação mais eficaz na história: “a messe é grande e precisa de operários”. Há muitos batizados, mas poucos são os operários.

A propósito da escassez de operários e da vastidão da lavoura, transcrevo aqui uma sugestiva palavra de São Gregório Magno: “Ouçamos o que diz o Senhor aos pregadores enviados: A messe é grande, mas poucos os operários. Rogai, portanto, ao Senhor da messe que envie operários a seu campo. São poucos os operários para a grande messe (Mt 9,37-38). Não podemos deixar de dizer isto com imensa tristeza, porque, embora haja quem escute as boas palavras, falta quem as diga. Eis que o mundo está cheio de sacerdotes. Todavia na messe de Deus é muito raro encontrar-se um operário. Recebemos, é certo, o ofício sacerdotal, mas não o pomos em prática” (Das homilias sobre os Evangelhos, de São Gregório Magno, Papa, Séc. VI).

A participação na Eucaristia não pode ser um modo de nos tornarmos aceitos por Deus e tranquilizarmos nossa consciência. Participar da Eucaristia é nos colocarmos decididamente ao lado de Jesus e do Evangelho e assumirmos efetivamente a defesa da vida dos filhos de Deus. É revermos nossa missão, ocupar nosso lugar no Reino de Deus, assumir nosso trabalho sem preguiça e sem mediocridade como operários, trabalhadores da messe do Senhor.

Você participa da Eucaristia para se sentir em paz ou para trabalhar na vinha do Senhor? Você se sente operário na lavoura de Deus, ou procede como um batizado sem compromisso com o Jesus Cristo? Como você vive sua vida cristã? Ela tem algum traço de Jesus? Quais? Vamos fazer a lista? 

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

O amor do Coração de Jesus

aureliano, 16.06.23

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Sagrado Coração de Jesus [16 de junho de 2023]

[Mt 11,25-30]

“Desde a Patrística, a água e o sangue do Coração de Jesus são símbolos dos sacramentos do Batismo e da Eucaristia. A própria Igreja é vista como nascida do lado aberto de Cristo na Cruz. A contemplação do Coração de Jesus, jorrando sangue e água, sempre foi na Igreja fonte de piedade, oração, fé, graça.

No entanto, uma festa propriamente dita do Coração de Jesus foi celebrada pela primeira vez em 20 de outubro de 1672, pelo padre São João Eudes. Pouco tempo depois, as revelações de Santa Margarida Maria Alacoque (1675) contribuíram imensamente para a difusão dessa devoção.

A característica própria dessa solenidade é a ação de graças pela riqueza insondável de Cristo e a contemplação reparadora do Coração Transpassado. O Papa Pio IX, em 1856, estendeu a festa a toda a Igreja Latina. Em 1899, Leão XIII consagrou o mundo ao Sagrado Coração de Jesus” (fonte: CNBB)..

Na sequência da solenidade do Sagrado Coração de Jesus, é celebrada a memória do Imaculado Coração de Maria. Neste ano, amanhã, sábado, 17 de junho.

Um coração para amar

O coração, na cultura judaica, é a sede das decisões, do pensamento, da vontade. O coração era considerado a própria vida das pessoas. Seu movimento de contração e expansão (sístole e diástole) lembrava ao israelita o movimento da terra e dos astros. Sede da vida emotiva e intelectual, os poetas e o povo em geral têm no coração o símbolo do amor, das emoções, dos sentimentos mais profundos.

A bíblia cita o coração mais de mil vezes, mas pouquíssimas vezes no sentido fisiológico. Quase sempre no sentido figurado, simbólico. Como sede das faculdades intelectuais e sentimentais, é conhecido por Deus em suas dobras mais profundas. Ele penetra os “rins e corações”. As más ações que brotam do ser humano tem como fonte o coração. A boca fala daquilo que está cheio o coração.

Deus disse, pelo profeta Ezequiel, que trocaria o “coração de pedra em coração de carne”. A dureza de coração do ser humano sempre foi objeto de crítica e condenação por parte dos profetas.

Porém sabemos que o coração, do ponto de vista fisiológico, não é mais do que um órgão responsável por bombear o sangue no organismo, desprovido, portanto, de qualquer sentimento ou emoção.

Do ponto de vista simbólico, na Sagrada Escritura, ele representa a mente, o cérebro. Nesse sentido o coração termina por ser o responsável pelos sentimentos de medo, de ansiedade, de desejos variados, de ódio, de alegria, de entusiasmo, de raiva etc. Toda essa onda de sentimentos e emoções que passam pela nossa vida é atribuída ao coração  no sentido de mente, daquela parte do cérebro responsável por controlar e comandar nosso “sistema límbico” (saciedade, fome e memória).

Tudo isso para entendermos o sentido da celebração do Coração de Jesus. Para dizer que não se trata do órgão fisiológico, mas de uma expressão simbólica para dizer do pulsar amoroso do Coração de Deus por nós. Nesse sentido a celebração de hoje conduz à essência da fé cristã: o amor de Deus pela humanidade, manifestado em Jesus de Nazaré, que entregou sua vida por nós. No coração de Jesus nunca pulsou sentimentos de maldade, de ódio ou de destruição. O coração de Jesus foi sempre fonte de amor, de entrega, de generosidade, de perdão, de acolhida, de abertura, de salvação de todas as pessoas.

Amar é agir segundo Deus

Na primeira leitura de hoje temos o autor da primeira carta de João afirmando que o amor é a essência da vida cristã. É o amor que distingue quem é de Deus e quem não é de Deus. E o ponto de partida é o Deus-Amor. Deus se manifesta ao mundo como bondade, ternura, misericórdia. As palavras e ações de Jesus manifestam o ser de Deus. É a entrega total, o dom radical de Deus em seu Filho amado na cruz.

Se Deus nos amou então devemos amar-nos uns aos outros (1Jo 4,11). A vivência do amor de Deus não permite que assistamos de braços cruzados aos acontecimentos trágicos e dolorosos da história. É preciso agir. Esse amor coloca o ser humano numa dinâmica de entrega, de generosidade, de serviço, de saída de si, de querer bem aos outros. Essa é a dinâmica do “conhecer” Deus. Isto é, viver uma intimidade fecunda com Deus que nos coloca em movimento de fecundidade de mais vida.

Deus se revela aos pequenos

Nos versículos antecedentes ao relato do evangelho de hoje, Jesus diz palavras veementemente fortes contra as cidades de Cafarnaum, Corozaim e Betsaida que foram indiferentes aos sinais que ele aí realizara. Os habitantes destas cidades, fechados em si mesmos e autossuficientes, julgam não precisar da proposta de Jesus. O Homem de Nazaré então dirige-se aos excluídos e marginalizados na esperança de encontrar nestes acolhida de sua proposta do Reinado de Deus.

Jesus eleva um louvor ao Pai por ter escondido as “coisas” do Reino aos “sábios e entendidos”, compreendendo-se aqui, certamente, os fariseus e mestres da Lei, cheios de si, julgando agradarem a Deus com seus ritos externos de culto e cumprimento do que prescrevia a Lei. Jesus louva ao Pai por revelar essas “coisas” aos pequeninos, representados aqui nos seus discípulos que por primeiro acolheram seu chamado, e também por tantos outros homens, mulheres e crianças, marcados pelo preconceito, pela doença, considerados malditos pela Lei, pelos infortúnios da vida. Vêem em Jesus a cura de seus males e uma esperança para suas vidas.

Para se fazer a experiência de Deus, conhecer a Deus, é necessário levar uma vida de intimidade com o Pai, à semelhança de Jesus, o Filho amado. Essa intimidade é que garante a revelação de Deus, ou seja, a suspensão e abertura do véu que encobre o conhecimento de Deus. Entrando na intimidade do Pai, descobrimos o sentido da vida, enxergamos o mundo com os olhos de Deus, à semelhança de Jesus.

A vida em Deus, na pessoa de Jesus, libertava do jugo. Na época a Lei com seus 613 mandamentos era um peso enorme para os pobres judeus e prosélitos. Em lugar de conduzir, a Lei afastava as pessoas de Deus. Jesus vem libertar deste peso.

Na nova dinâmica de vida proposta por Jesus, o povo experimenta alegria de viver; sente no coração o Deus que os ama e os salva. Compreendem que a salvação não vem da prática externa da Lei, mas da bondade e graça de Deus. Todos se sentirão filhos e filhas de Deus.

Por detrás dessas palavras de Jesus está o amor de Deus. Ele ama a todos com amor eterno e gratuito. Ele veio trazer, em Jesus, a liberdade plena, o alívio nos sofrimentos, a comunhão com Deus que cuida de todos nós.

E só conhece a Deus aquele que se coloca no seguimento de Jesus, com humildade, com docilidade de coração, com espírito de abertura à novidade do Reino de Deus que Jesus veio inaugurar.

Ter o coração parecido com o de Jesus é a meta do cristão. Ser parecido com a criança que está sempre aberta, como uma tábula rasa, em disponibilidade para aprender e fazer como aprendeu.

Peçamos ao Senhor que tire do nosso coração todo sentimento de autossuficiência, de fechamento, de nos julgarmos sabedores de tudo, donos do dinheiro, do poder e das pessoas. Deus nos livre da arrogância, da soberba, do orgulho, da vaidade, da prepotência, da ganância e do egoísmo que arruína a nós e às pessoas ao nosso redor.

Os pobres que encontramos nas calçadas, nas nossas portas, nas portas de nossas igrejas têm de nossa parte um sorriso, um olhar de compaixão? Como tratamos o catador de reciclável, o enfermo de mente e de corpo, o gari, o flanelinha, o vendedor de bombom no semáfora etc?

Nossas atitudes para com os pequenos e pobres podem ser um bom “termômetro” para medir a “temperatura” de nosso amor a Deus. Nossos apegos a práticas externas de devoção podem revelar nossa distância do Deus de Jesus quando não nos convertem em pessoas mais humanizadas e misericordiosas.

Nossa meta como cristãos deve ser a de tornar o amor de Deus uma realidade viva no mundo lutando contra tudo o que gera ódio, injustiça, opressão, mentira, sofrimento…

Para refletir e rezar: Faço pacto (com o meu silêncio, indiferença, cumplicidade) com os sistemas que geram injustiça, ou esforço-me ativamente por destruir tudo o que é uma negação do amor de Deus? As nossas comunidades são espaços de acolhimento e de hospitalidade, oásis do amor de Deus, não só para os amigos, mas também para os pobres, os marginalizados, os sofredores que buscam em nós um sinal de amor, de ternura e de esperança?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

A mesa da misericórdia. O olhar de Jesus

aureliano, 10.06.23

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10º Domingo do Tempo Comum [11 de junho de 2023]

[Mt 9,9-13]

Acompanhando os passos de Jesus no evangelho percebemos que havia uma categoria de pessoas pelas quais ele tinha verdadeira aversão: aqueles que se consideravam justos. Carregam o pecado da autossuficiência: não tem necessidade de conversão nem de perdão nem de salvação. Percorrendo o evangelho de Lucas, marcado pela misericórdia, vemos o pai acolhendo com bondade o filho mais novo esbanjador dos bens e que volta arrependido (Lc 15,11-32). E, em outro lugar, enquanto o fariseu se apresenta na oração como justo, o publicano invoca a misericórdia de Deus (Lc 18,9-14).

Jesus manifesta no evangelho de hoje sua simpatia pelos pecadores, desprezados e excomungados de seu tempo. Quando acusado de amigo dos pecadores ele responde que os publicanos e as prostitutas os precederão no Reino dos céus (cf. Mt 21,31). Quer mostrar-lhes que ele veio para salvar e não para condenar. E que a justiça de Deus não se compara com a justiça dos homens, pois a justiça de Deus é misericordiosa, transbordante.

O OLHAR DE JESUS

O evangelho diz que “Jesus viu um homem chamado Mateus”. O olhar é uma realidade que tem uma força sobre as pessoas. Tem gente que acredita e tem medo de “mau-olhado”. O olhar pode ser de julgamento ou de acolhida; de condenação ou de perdão; o olhar pode ser sensual ou inocente; de cobiça ou de bendição; de inveja ou de alegria; pode ser fulminante ou de soerguimento. O olhar de uma criança, de um pedinte, de um enfermo tem teor diferente do olhar de um adulto, de um cobiçoso, de alguém dominador e prepotente. Corações petrificados, imersos no mal têm olhar que fulmina, que mata. Corações cheios de bondade e de amor têm um olhar que cura, perdoa e conforta.

O olhar de Jesus atingiu Mateus antes que este o visse. É o olhar do Senhor que nos alcança primeiro. Mateus estava parado, na mesa, desprezado e condenado pelos olhares de seus correligionários. O olhar de Jesus não condena nem julga, mas acolhe e perdoa. Mais do que isso: convida a segui-lo.

Jesus lhe oferece outra mesa. Uma mesa de perdão, de misericórdia, de acolhida, de iguais.  Uma mesa onde todos têm lugar. É a mesa da misericórdia que inclui, que comporta as diferenças, que enche o coração dos convivas de amor, de entusiasmo, de alegria. É assim a mesa de Jesus. É assim o olhar de Jesus. E nosso olhar? E nossas mesas? E nossas celebrações?

VEIO PARA OS PECADORES

Mateus é o cobrador de impostos em Cafarnaum. Odiado pelos seus correligionários por ser colaboracionista do Império Romano que dominava a Palestina naqueles tempos. Também por não observar os rigores da Lei ao manter contato com os pagãos. Portanto, era um homem considerado impuro e traidor.

Jesus, no entanto, o convida a segui-lo. E ele deixa a coletoria de impostos e segue a Jesus. Ainda mais, oferece-lhe uma refeição como gesto de gratidão e reconhecimento ao mestre que o viu e o chamou. A comunhão de mesa era algo que tinha um peso muito grande naqueles tempos culturas. Trouxe até controvérsia nas comunidades cristãs (cf. Gl 2,11-13). Tomar refeição juntos significava estar em comunhão de vida com aqueles que partilhavam o mesmo pão. E quando Jesus recebe os pecadores à mesa era como se ele estivesse comungando daquele estilo de vida levado pelos publicanos e pecadores.

Jesus, no entanto, tem uma intencionalidade muito mais profunda: quer ajudar aquelas pessoas marginalizadas a fazer uma experiência profunda de Deus, um caminho diferente. Quer mostrar-lhes que não são os ritos e práticas externas que salvam, mas uma vida de conversão para Deus. Um coração que seja capaz de amar. Aliás, quando Jesus chamou Mateus não fez apelo à conversão, mas pediu que o seguisse. A convivência com Jesus é que transforma a pessoa. Um encontra que transforma, converte e salva.

Aos fariseus, que murmuram diante da atitude de Jesus, ele lhes diz: “eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”. E ainda lembra o profeta Oséias: “Aprendei o que significa: quero misericórdia e não sacrifício”. Com essas sentenças Jesus dá uma guinada na compreensão que os fariseus e mestres da lei tinham de Deus.  Jesus quer que mudemos nosso modo de pensar  a fé, a religião, a relação com Deus.

A atitude de abertura de Jesus à humanidade pecadora com o desejo de salvá-la encontra ainda resistência em nossas comunidades. Tendemos a nos fechar em pequenos guetos ou  oásis religioso, composto de pessoas puras. Dividimos o mundo em “justos” e “ injustos”, “puros” e impuros”, “santos” e “pecadores”. Com essa mentalidade dualista e farisaica terminamos por afastar as pessoas dos sacramentos e celebrações da Igreja. A consequência é impedir a ação salvadora e libertadora de Cristo no coração dos fiéis.

Jesus à mesa com publicanos e pecadores nos remete à mesa eucarística, sacramento do Corpo e Sangue de Cristo, que nos dá também o perdão, convida à reconciliação, formando o Corpo de Cristo que é sua Igreja.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Eucaristia para a vida do mundo

aureliano, 07.06.23

Convidados ao banquete.JPG

Corpo e Sangue de Cristo [08 de junho de 2023]

[Jo 6,51-58]

O evangelho de hoje é o final do discurso de Jesus sobre o Pão da Vida. Jesus multiplicou os pães e explicou o sentido desse sinal. Ele mesmo é o pão descido do céu como presente de Deus para a humanidade. Nós nos alimentamos de sua Palavra e do sacramento de seu Corpo e Sangue, vida doada para nossa salvação. A vida dele torna-se nossa vida. Nossa vida de comunhão e intimidade com ele deve nos levar àquela experiência de Paulo: “Já não sou eu que vivo: é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Ou seja, nossa vida se torna uma presença e uma carta de Cristo para os irmãos e irmãs. Vamos nos tornando capazes de entregar nossa vida, de empenhar nossas energias, nossos dons, nossos bens para o bem de todos. Isso é vida eucarística.

O pão eucarístico é também sinal do pão cotidiano, como rezamos na segunda parte da Oração do Senhor: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. O pão na mesa dos pobres. O pão do perdão e da comunhão nas famílias e comunidades. O pão do respeito e do cuidado pelo meio ambiente, a Casa Comum. O pão da partilha contra todo acúmulo e ganância. Lembremo-nos de que, antes de falar da Eucaristia, Jesus multiplicou o pão comum para alimentar uma multidão faminta.

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O SENTIDO DO “FAZEI ISTO”

Celebramos, hoje, na Igreja Católica, a Solenidade de Corpus Christi. Gostaria de abordar um aspecto desta celebração que julgo ser constitutivo da essência da Eucaristia. Trata-se do verbo fazer: “Fazei isto em memória de mim” (cf. 1Cor 11,24-25).

Quero, em primeiro lugar, chamar a atenção para o gesto de Jesus: “fazei isto”. Não se trata de u’a mera repetição do rito de tomar o pão e o cálice e pronunciar as palavras sagradas. Este “fazei” está se referindo ao gesto de Jesus se entregar por nós. Pão partido e entregue e sangue derramado. Deu-se totalmente: “amou-os até o fim” (Jo 13,1).

Em segundo lugar, este “fazei” se liga a outros gestos e palavras de Jesus. Assim, na Última Ceia, depois de lavar os pés dos discípulos, diz: “O que fiz por vós, fazei-o vós também” (Jo 13,15). Ou seja, o gesto de lavar os pés dos discípulos foi um gesto eucarístico: Jesus saiu da mesa, depôs o manto, tomou o avental, desceu e se abaixou para lavar os pés dos discípulos. Sair de si e ir ao encontro de alguém: gesto eucarístico de Jesus, gesto eucarístico do discípulo. Jesus, na Ceia, se refere a este “fazer”.

outro “fazer” muito significativo nos relatos evangélicos. Trata-se da parábola do Bom Samaritano. Na conclusão da parábola o Senhor diz ao doutor da lei que lhe perguntara sobre o que “fazer” para alcançar a vida eterna: “Vai tu também e faze o mesmo” (Lc 10,37).

Para não estender mais, concluo com as palavras da Virgem Maria ao anjo que lhe anunciara o Mistério da Encarnação: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Um Mistério que traz a salvação para toda a humanidade quis passar pelo “fiat” de uma mulher: Maria de Nazaré.

Estas considerações sobre o “fazei isto em memória de mim” do relato da instituição da Eucaristia podem nos ajudar a entrar um pouco mais no sentido da solenidade que celebramos neste dia: Corpus Christi. Não se trata apenas de “ver” a Hóstia consagrada nem mesmo de simplesmente “comê-la”. Mas há uma consequência ética: o “fazer” de Jesus precisa coincidir com nosso fazer para que não somente levemos o nome de cristãos, mas o sejamos verdadeiramente.

Eucaristia celebrada deve coincidir com Eucaristia vivida. Pão partilhado, mesa farta para todos, nada de desperdício, direitos de todos ao pão, ao trabalho e ao chão para sustento cotidiano; cuidados com a Casa Comum: lutando contra a agressão ao meio ambiente, contra as grilagens e queimadas, agrotóxicos, destruição do Jardim de Deus; empenho em políticas públicas que levem em consideração aqueles que realmente precisam; luta contra preconceitos, violência, feminicídio, exclusão social; celebrações que ajudem os participantes a serem mais eucaristizados e eucaristizantes. “Tendo levantado os olhos, Jesus viu uma grande multidão que acorria a ele. E disse a Filipe: ‘Onde compraremos pães para que tenham o que comer?’ ... Então Jesus tomou os pães, deu graças e os distribuiu aos convivas” (Jo 6,5.11).

Tomai e comei, tomai e bebei

Meu corpo e sangue que vos dou

O Pão da vida sou Eu mesmo em refeição.

Pai de bondade, Deus de Amor

E do universo sustentai

Os que se doam por um mundo irmão.

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QUE É MESMO A EUCARISTIA?

A Eucaristia é o memorial da morte e ressurreição de Jesus. Fazer memória significa não somente lembrar, mas celebrar e mergulhar no mistério de Cristo. É nos colocarmos dentro de toda a vida de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus que, vindo a esse mundo, entregou sua vida por nós. Por isso, na celebração da Eucaristia nós devemos nos empenhar para fazer com que “a mente, o coração concorde com a voz, com as palavras”, no dizer de São Gregório.

Se celebramos a entrega de Cristo, não estamos fazendo um show. Então a missa não é show, promoção pessoal do padre e seja lá de quem for. Nossa atitude deve ser de compenetração, de humildade, de escuta atenta, de acolhimento, de exame de consciência. Isso nos tem recomendado insistentemente o Papa Francisco: “A Missa não é um espetáculo: é ir ao encontro da paixão e ressurreição do Senhor” (08 de novembro de 2017).

No decorrer da História a missa teve várias conotações. Serviu para coroar papas e reis, para agradecer vitórias de guerra, para enfeitar festas e agradar monarcas e senhores poderosos. Os músicos transformaram partes da missa em concertos belíssimos. Outros faziam da missa sua devoção particular. Ainda hoje, em vários lugares, é quase uma “exigência” para falecidos: “missa de corpo presente”, “missa de sétimo dia” etc. É claro que tem sua importância, mas ocorre que muitos pedem esse tipo de celebração para “salvar o falecido”, sem se envolver pessoalmente com a comunidade de fé. Uma espécie de superstição. Há casos de celebrações eucarísticas “privadas”, “especiais”! Por isso é urgente e necessário compreendermos o que é mesmo a Eucaristia.

O Concílio Vaticano II recuperou o sentido originário da Eucaristia: Memorial da Morte e Ressurreição do Senhor. Quando a comunidade se reúne para celebrar a Eucaristia, ela traz sua vida, suas dores e alegrias e coloca no Coração de Cristo, para que ele, verdadeiro Celebrante, pela oração da Igreja, ofereça ao Pai.

Ao participarmos da Eucaristia estamos nos comprometendo a ser “um só Corpo”. A comunhão no Corpo e Sangue de Cristo nos compromete com Ele. A entrega de Cristo que celebramos pede, exige de nós o gesto de entrega, de doação, de comprometimento com Cristo pela reconstrução da História segundo os critérios do Reino de Deus. Não pode ser verdadeira “comunhão” a busca de um intimismo egoísta que não abre nossos olhos para “ver as necessidades e os sofrimentos de nossos irmãos e irmãs”, e não nos inspira “palavras e ações para confortar os desanimados e oprimidos, os doentes e marginalizados”.

Nesse dia que celebramos a solenidade do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue do Senhor, somos instados a olhar para o Cristo que se doa, que se entrega, que salva, que enfrenta a morte para que tenhamos vida. Essa contemplação deve nos levar a dar mais um passo em direção a uma vida mais comprometida. Não adianta adorar o Cristo no altar e desprezá-lo no pobre. De pouco vale celebrar a Eucaristia, participar de uma adoração, e depois falar mal dos outros, negar o salário justo, sonegar os impostos e direitos sociais, enganar os outros, ser desonesto nos negócios e no trabalho, se omitir diante das injustiças sociais, levantar bandeiras que defendem a discriminação, a violência, o armamento da população, o aborto, o preconceito, o desrespeito, a morte.

A Eucaristia, “fonte e ápice de toda a vida cristã”, deve ocupar o centro de nossa espiritualidade, de nossa oração, de nossas escolhas e decisões. Se Cristo decidiu firmemente enfrentar a morte pela nossa salvação, também nós, seus discípulos e discípulas, precisamos nos dispor a esse caminho. Pois “o discípulo não é maior do que o mestre”.

Pe Aureliano de Moura Lima, SDN