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aurelius

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Crer em Jesus significa comprometer-se com Ele

aureliano, 30.07.21

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18º Domingo do Tempo Comum [1º de agosto de 2021]

   [Jo 6,24-35]

Uma pergunta intrigante: Por que continua o interesse pela pessoa de Jesus mesmo depois de dois mil anos de sua vida em Nazaré? Por que seus ensinamentos continuam mexendo com os corações e as mentes de tanta gente?

Aproximando-nos do evangelho deste domingo (Jo 6, 24-35), quando Jesus, depois de alimentar uma multidão faminta, lhe diz: “Esforçai-vos pelo alimento que não se perde”, notamos aí que o pão material não preenche o vazio do coração humano. Este busca algo maior, mais consistente, permanente, que ultrapasse a fome de apenas consumir, de satisfação físico-psíquica.

Em primeiro lugar deve vir o pão material, é claro. Não é possível evangelizar alguém que passa fome, pois o primeiro sinal do evangelho é a promoção da vida: “Eu vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10). Por isso Jesus multiplica os pães. Ou seja, move as pessoas a realizar a partilha daquilo que elas mesmas já têm: cinco pães e dois peixes. Nas mãos de um só, alimentava o individualismo humano. Nas mãos de Jesus, depois de dar graças, alimenta uma multidão. Tudo que é partilhado se multiplica. Tudo que é acumulado estraga e míngua (a vida própria e dos outros).

A resposta de Jesus a um povo que o procura por causa dos milagres, pode parecer, à primeira vista, um tanto dura e, até mesmo, sinal de desprezo pelos que saciara no dia anterior. Mas não se trata nem de menosprezo nem de indelicadeza nem de dureza. Jesus quis mostrar que o sinal realizado deveria servir de lição para os líderes do povo. Estes são os primeiros responsáveis por promover entre o povo a partilha e a solidariedade. Confiar em ‘salvador da pátria’ ou ‘herói nacional’ sempre foi desastroso. A História mostra isto. O líder deve ajudar o grupo a desenvolver suas próprias capacidades e seus próprios dons para que não falte a ninguém as condições necessárias à vida.

Porém, Jesus quer ajudar ainda o grupo a sair de uma dimensão materialista e mesquinha da vida. O relato mostra que o povo tem sede de algo mais. E que, além disso, não sabe caminhar sozinho. E pode, por conseguinte, entrar numa relação de dependência e comodismo.  Por isso Jesus recomenda realizar as obras de Deus que é “crer naquele que ele enviou”. E crer significa comprometer-se, acolher na esperança, investir todas as forças e energias na proposta do Reino que Jesus veio revelar, aderir à sua Pessoa. Significa assumir na própria vida as atitudes de Jesus. Ainda mais: fé cristã não é aderir ou cumprir uma série de regras e normas eclesiásticas e divinas.  Fé cristã é a busca permanente, cotidiana de conformar a própria vida com a vida de Jesus. É procurar ter as atitudes de Jesus: acolhida, perdão, compreensão, respeito, partilha, entrega.

Jesus percebe nossa fome e quer saciar-nos. Sabe que temos fome de justiça, de paz, de fraternidade, de perdão, de sentido de vida, de verdade. Jesus se apresenta como “o pão da vida”, aquele que alimenta, que “dá vida ao mundo”. É esse alimento que nos dá alento no sofrimento, nas tribulações, nas angústias, na hora da morte. É o pão que perdura para a vida eterna. Quem come deste pão, a vida de Jesus, nunca mais terá fome ou sede.

É por isso que a vida e a pessoa de Jesus, não obstante dois mil anos passados, continuam atraindo e provocando as pessoas. Ele é o pão verdadeiro. Há muitos alimentos por aí com aparência de ‘pão’, mas envenenados. Quanto mais a pessoa os consome, mais fome tem, mais vazia fica. Somente Jesus preenche o vazio do coração humano. Por isso aquela gente grita: “Senhor, dá-nos sempre deste pão”.

Com aquela multidão queremos também pedir ao Senhor que desperte em nós a preocupação com os que passam fome de pão e de paz, de alegria e de harmonia, de justiça e de fraternidade. Não pensemos apenas no nosso pão, na nossa mesa, na nossa casa, mas também nos que precisam de nossa colaboração para conseguir o pão. Esse é o sentido da Eucaristia que semanalmente celebramos: uma vez eucaristizados, nos tornamos eucaristia para os outros: pão tomado por Deus, partido e entregue para o povo: “Fazei isto em memória de mim”.

*Neste primeiro domingo de agosto celebramos o Dia do Padre. É oportunidade de agradecermos a Deus pelos padres que passaram por nossa vida, nos ajudaram, nos deram os sacramentos. Alguns já partiram desta vida. Outros continuam no meio de nós. É dia também de rezarmos e refletirmos sobre as vocações sacerdotais. O que você tem feito pelas vocações? Você ajuda, reza, apoia os vocacionados? Você ajuda a nós padres a sermos mais pastores, mais próximos, mais dedicados? Não trate o padre como ‘coitadinho’, não! Ele escolheu essa vocação atendendo ao chamado de Deus e da Igreja. Colocou-se livremente a serviço do evangelho. Precisa ser ajudado a viver com fidelidade e dedicação. E você, cristão leigo, deve ajudá-lo a ser um verdadeiro colaborador e servidor das comunidades, rezando por ele, fazendo a correção fraterna quando necessário, sendo colaborativo nos serviços e ministérios da comunidade! Ajude-nos a sermos mais pastores, mais misericordiosos, mais generosos, mais paternais. Ajude-nos a ser homens de Deus, santos.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Corpo doado, Sangue derramado por nós

aureliano, 02.06.21

Corpus Christi - 03 de junho 2021.jpg

Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Cristo

[03 de junho de 2021]

[Mc 14, 12-16.25-26]

Essa perícope do evangelho encontra-se nos relatos de Marcos sobre a Paixão de Jesus. A expressão bíblica que ouvimos em toda celebração eucarística - “Sangue da Aliança” - remete-nos à entrega de Jesus por nós. A Aliança no Antigo Testamento foi selada com o sangue de touros e carneiros. A “Nova e Eterna Aliança” foi selada na vida de Jesus entregue ao Pai por nós. Aliança como compromisso recíproco: Deus nos ama e nos orienta no caminho. Nós nos comprometemos em corresponder ao seu amor por nós, trilhando os caminhos de seus ensinamentos. Sobretudo colocando nossos passos nos passos de Jesus.

Jesus, na celebração da Ceia Pascal, antecipa os acontecimentos pelos quais em breve passaria. O “corpo dado” significa sua presença atuante no mundo; seu “sangue derramado” significa sua morte violenta como sacrifício da Aliança (cf. Ex 24,3-8). A consequência disso para nossa vida é que, cada um de nós deve dizer: “Eis meu corpo e meu sangue”, isto é, minha vida doada para o bem da humanidade, para que todos tenham mais vida”. É a vivência da Aliança de Deus conosco. É a Eucaristia vivida.

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A Eucaristia é o memorial da morte e ressurreição de Jesus. Fazer memória significa não somente lembrar, mas celebrar e mergulhar no mistério de Cristo. É nos colocarmos dentro de toda a vida de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus que, vindo a esse mundo, entregou sua vida por nós. Por isso, na celebração da Eucaristia nós devemos nos empenhar para fazer com que “a mente, o coração concorde com a voz, com as palavras”, no dizer de São Gregório.

Se celebramos a entrega de Cristo, não estamos fazendo um show. Então a missa não é show, promoção pessoal do padre e seja lá de quem for. Nossa atitude deve ser de compenetração, de humildade, de escuta atenta, de acolhimento, de exame de consciência. Isso nos tem recomendado insistentemente o Papa Francisco.

No decorrer da História a missa teve várias conotações. Serviu para coroar papas e reis, para agradecer vitórias de guerra, para enfeitar festas e agradar monarcas e senhores poderosos. Os músicos transformaram partes da missa em concertos belíssimos. Outros faziam da missa sua devoção particular. Ainda hoje, em vários lugares, é quase uma “exigência” para falecidos: “missa de corpo presente”, “missa de sétimo dia” etc. É claro que tem sua importância, mas ocorre que muitos pedem esse tipo de celebração para “salvar o falecido”, sem se envolver pessoalmente com a comunidade de fé. Uma espécie de superstição.

O Concílio Vaticano II recuperou o sentido originário da Eucaristia: Memorial da Morte e Ressurreição do Senhor. Quando a comunidade se reúne para celebrar a Eucaristia, ela traz sua vida, suas dores e alegrias e coloca no Coração de Cristo, para que ele, verdadeiro Celebrante, ofereça ao Pai.

Ao participarmos da Eucaristia estamos nos comprometendo a ser “um só Corpo”. A comunhão no Corpo e Sangue de Cristo nos compromete com Ele. A entrega de Cristo que celebramos pede, exige de nós o gesto de entrega, de doação, de comprometimento com Cristo pela reconstrução da História segundo os critérios do Reino de Deus. Não pode ser verdadeira “comunhão” a busca de um intimismo egoísta que não abre nossos olhos para “ver as necessidades e os sofrimentos de nossos irmãos e irmãos”, inspirando “palavras ações para confortar os desanimados e oprimidos, os doentes e marginalizados”.

Nesse dia que celebramos a solenidade do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue do Senhor, somos instados a olhar para o Cristo que se doa, que se entrega, que salva, que enfrenta a morte para que tenhamos vida. Essa contemplação deve nos levar a dar mais um passo em direção a uma vida mais comprometida. Não adianta adorar o Cristo no altar e desprezá-lo no pobre. De pouco vale celebrar a Eucaristia, participar de uma adoração, e depois falar mal dos outros, negar o salário justo, sonegar impostos e dívidas, enganar os outros, ser desonesto nos negócios e no trabalho, levantar bandeiras que defendem a discriminação, a violência, o preconceito, o desrespeito, o armamento, o desmatamento.

A Eucaristia, “fonte e ápice de toda a vida cristã”, deve ocupar o centro de nossa espiritualidade, de nossa oração, de nossas escolhas e decisões. Se Cristo decidiu firmemente enfrentar a morte pela nossa salvação, também nós, seus discípulos, precisamos nos dispor a esse caminho. Pois “o discípulo não é maior do que o mestre”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Amar como Jesus amou

aureliano, 08.05.21

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6º Domingo da Páscoa [09 de maio de 2021]

[Jo 15,9-17]    

Falar em amor nesses nossos tempos tornou-se difícil e ambíguo porque esse conceito tomou várias conotações. De modo geral equivale a relações afetivo-sexuais. Daí a expressão tão corriqueira que a ‘galera’ toda entende: “fazer amor”, que equivale a “fazer sexo”.

O evangelho de hoje nos ajuda a perceber a profundidade do sentido da palavra amor. “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor” (Jo 15,9). Jesus fez a experiência do amor do Pai. O que ele viveu foi expressão de seu amor ao Pai e por nós. Ele não nos amou porque somos amáveis. Mas ele nos tornou amáveis por seu amor. Seu amor nos tornou seus amigos em vez de servos: “Já não vos chamo servos, (...) mas vos chamo amigos porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai” (Jo 15, 15).

O amor que Jesus viveu e ensinou é um amor de doação, desinteressado. Ama pelo outro e não por si mesmo. É como aquela mulher que ama seu marido, mesmo que não tenha lá muitas qualidades, mas porque ela o escolheu como marido. Ou porque tem uma motivação maior, mais sublime: ser sinal da Aliança do Pai com a humanidade. Ou mesmo pelo cuidado e amor para com os filhos etc. Outra imagem também é a de Ricardo Pinheiro, rapaz que morreu na tragédia no Largo do Paissandu, São Paulo, em 2018: antes de se salvar pela corda oferecida pelo Corpo de Bombeiros estava ajudando a resgatar vizinhos. Em uma das vezes foi visto carregando quatro crianças. Mas acabou sendo consumido pelo desabamento do prédio. Também o exemplo da professora Helley de Abreu, da creche incendiada em Janaúba, norte de Minas. Salvou muitas crianças. Terminou vítima de sua própria doação.

Então o amor não significa antes de tudo que nós amamos a Deus, mas que Deus nos amou primeiro dando seu Filho por nós (cf. 1Jo 4,10). É um amor de gratuidade, sem limites. Ele nos amou até o fim (cf. Jo 13,1). Amar é iniciativa de Deus. Para que permaneçamos no amor precisamos de estabelecer uma intimidade profunda com Ele para que seu amor esteja em nós e não desanimemos de amar como Ele nos amou.

É interessante notar ainda que o mandamento do amor ao próximo já estava na Lei Antiga: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18). Que novidade então Jesus introduziu? A novidade do mandamento de Jesus está no “como eu vos amei”. Esse “como ele nos amou” é que torna esse mandamento diferenciado, significativo, cristão. É ter a coragem de sair de si e de dar a vida. É amar na gratuidade, sem esperar nada em troca. Ainda mesmo o céu como recompensa! Se Deus não tivesse nada a nos dar, continuaríamos a fazer o bem!

Podemos falar então de um amor como dom e de um amor como missão. O amor como dom é a entrega generosa, gratuita de Deus por nós em Jesus. Já o amor como missão é nossa capacidade de amar, fundada no amor primeiro, o de Jesus. Ele nos dá a missão de fazer multiplicar seu amor no mundo. “Nisto meu Pai é glorificado: que deis muitos frutos e vos torneis meus discípulos” (Jo 15,8).

A dinâmica do amor de Deus também não é geral: amar todo mundo indistintamente, como uma massa informe. Não! Ele ama a todos e a cada um individualmente. Tem uma amizade criadora e íntima para cada um que acolhe seu amor manifestado em Jesus.

No amor de Jesus não há manipulação, dominação ou submissão. É um amor que liberta, que dá autonomia, confiança. Quando Jesus nos envia a produzir frutos não é uma carga pesada que ele coloca em nossos ombros, mas é participação na missão que Ele recebeu do Pai. É comunhão com Jesus e com os irmãos. Onde há comunhão, solidariedade, doação o peso fica mais leve.

Quando Jesus diz “permanecei no meu amor” ele não fala de permanecer em uma religião, mas no seu amor. Significa que, ser cristão não é questão de doutrina, mas de amor. O fundamental da fé cristã é não se desviar do amor. É “guardar seus mandamentos”. O seu mandamento é o amor fraterno. Esse mandamento não pode ser um peso, mas fonte de alegria.

Quando falta o verdadeiro amor, caímos no vazio, na falta de sentido para a vida, na tristeza. Jesus veio preencher nosso vazio de sentido com a alegria verdadeira gerada pelo amor sem medida. É o amor que gera alegria. Sem amor cultiva-se um cristianismo triste, ressentido, pesado, insuportável.

Por vezes em nossas comunidades cristãs sobra tristeza. O peso das normas e leis, da falta de acolhida, da incompreensão, do desejo e busca de poder e de dominação dentro da comunidade, do preconceito e desprezo aos mais pobres e pequenos deixa um rastro de dor, de tristeza, de desencanto. Sente-se também a falta de convicção na fé. É a convicção que nos leva a reproduzir na vida o modo de vida de Jesus, o seu mandamento: “Amai-vos uns aos outros”.

Vamos tornar mais leves nossas relações através de uma fé mais convicta, de um seguimento mais radical a Jesus, de uma atenção e compreensão a cada um na sua necessidade e dificuldade. “Para que a minha alegria esteja em vós”. A fé cristã precisa trazer mais alegria ao mundo e à vida das pessoas, começando pela nossa família, pelos companheiros de trabalho, pelas nossas comunidades.

* Celebramos hoje o Dia das Mães. Rezemos hoje por todas as mães, mas particularmente pelas mães sofredoras. Há mães que não experimentam alegrias neste dia. Talvez experimentem ainda uma dor maior. Que tal fazermos uma oração, enviarmos uma mensagem a alguma mãe sofrida? Mais do que festanças, comilanças e bebedeiras, precisamos caminhar na direção de maior solidariedade! E esse tempo difícil de pandemia da covid-19 está a nos ensinar também isso: solidariedade, partilha, comunhão, sensibilidade diante da dor, espírito de simplicidade e despojamento.

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13 de maio: Vamos celebrar, no próximo dia 13, a festa de Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento. É a padroeira de nossa Congregação Sacramentina. A devoção a Maria com esse título começou em 1868, com São Julião Eymard, fundador dos Sacramentinos da Adoração Perpétua. Pe. Júlio Maria, Fundador da Congregação dos Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora, divulgou muito essa devoção. Dizia que “a Eucaristia é o prolongamento da Encarnação”. Com isso ele queria dizer que, aquele Jesus nascido de Maria, Filho de Deus, continua na Eucaristia alimentando e animando a missão da Igreja. São João Paulo II vai dizer, mais tarde, que (embora os textos da Escritura não mencionem explicitamente) a Virgem Maria “não podia deixar de estar presente, nas celebrações eucarísticas, no meio dos fiéis da primeira geração cristã, que eram assíduos à ‘fração do pão’” (At 2,47) (EE, 53). Maria foi uma mulher eucaristizante. Sejamos também nós, a exemplo de Maria, pessoas eucaristizadas e eucaristizantes, trabalhando para um mundo mais humano, mais fraterno, para que todos tenham acesso aos bens da Criação. Uma eucaristia que ajude a diminuir a distância entre ricos e pobres. Uma eucaristia que se empenhe para que não falte o pão na mesa dos pobres. Uma eucaristia que não nos deixe acomodados num “mundanismo espiritual” estéril e sacrílego. Nenhuma família sem casa. Nenhuma família sem terra. Nenhuma família sem trabalho. Nenhuma família sem pão!

                Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN.

Repartir o pão de Deus

aureliano, 01.08.20

18º Domingo do TC - A - 02 de agosto.jpg

18º Domingo do Tempo Comum [02 de agosto de 2020]

[Mt 14,13-21]

Mateus retrata dois relatos da multiplicação dos pães, a saber, o relato de hoje e também Mt 15, 32-39. O mesmo ocorre com Marcos. Somente João e Lucas relatam uma única vez. Marcos e Mateus fazem como que uma reprise da primeira, diferindo somente o lugar do acontecimento: a primeira, na Galiléia; a segunda, em território exclusivo dos gentios.

O discípulo está iniciado no Reino de Deus a partir do capítulo 13: as parábolas do Reino. O relato de hoje dá uma amostra para o discípulo de como deve ser o Reino de Deus: curar os doentes e dar pão aos famintos: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. A missão da Igreja deve ser a de tomar a defesa dos famintos, distribuindo o pão da Palavra que leva à partilha do pão material, ao cuidado com os mais necessitados. Não adianta a comunidade se reunir para o culto da Palavra, para a oração do Terço, para a Adoração se essa oração não leva a atitudes concretas de comprometimento com o Reino de Deus. O fruto da Palavra, e esta vem primeiro, deve ser a partilha que brota de um coração compadecido como o de Jesus.

É importante observar no relato do evangelho alguns símbolos que nos ajudam a perceber por onde o autor do evangelho nos quer conduzir. O texto fala de 5 pães, de 2 peixes, de 12 cestos e 5 mil homens. O número 5 nos remete à Torá, os cinco primeiros livros da Bíblia, que contêm os Ensinamentos de Deus para todo judeu. Os 5 mil homens podem corresponder àqueles que ouvem e seguem a Lei de Deus. O peixe lembra a presença salvadora de Jesus. Nos primeiros séculos tornou-se o símbolo dos cristãos diante da perseguição romana. Isso porque, em grego, a palavra peixe se escreve IXTUS, como um acróstico para a formulação da fé cristã: Iesùs Xristòs Theòu Uiòs Soteèr, que significa “Jesus Cristo Filho de Deus Salvador”. O número 12, símbolo da plenitude, lembra as 12 Tribos de Israel e os 12 Apóstolos.

Outro elemento como o deserto, lembra o lugar da peregrinação do Povo de Israel e sua organização quando se liberta da escravidão do Faraó; lugar da provação, do encontro com Deus. Aqueles que vêm ao encontro de Jesus querem se libertar do poder opressor de Herodes que, no relato anterior, mandara executar João Batista. O sentar-se na grama também tem seu sentido: sentar-se, na tradição judaica, é sinal de acolhida, de dignidade, de soberania. O pão distribuído recorda o maná que alimentou o povo no deserto. Aqui aponta para a Eucaristia, o Pão que nos alimenta e nos impulsiona à partilha.

Por esses elementos percebemos que esse relato quer nos indicar a pessoa de Jesus como aquele que veio dar um novo sentido à vida. O povo estava como “ovelha sem pastor”’, sequioso de uma palavra, um gesto que enchesse seu coração. E Jesus lhes dirige a Palavra e dá-lhes o pão. Indica o caminho que deve seguir: dar de comer a quem tem fome (cf. Mt 25,31-46).

Não adianta permanecer num ritualismo estéril: preocupação com o que pode e não pode dentro da celebração, mas trazer para a celebração a vida das pessoas, seus anseios, alegrias e dores. É preciso dar um novo sentido às nossas celebrações. Os dois gestos significativos de Jesus quando cura os doentes e alimenta os famintos nos impelem a continuar sua ação no mundo: “Dai-lhes vós mesmo de comer”. A Eucaristia urge consequência em nossa vida.

A propósito da celebração eucarística, os bispos advertem: “É necessário promover uma liturgia essencial, que não sucumba aos extremos do subjetivismo emotivo nem tampouco da frieza e da rigidez rubricista e ritualística, mas que conduza os fiéis a mergulhar no mistério de Deus, sem deixar o chão concreto da história de fora da oração comunitária” (Diretrizes Gerais, 2019-2023, 162). E mais adiante recomendam não desligar fé e vida, culto e misericórdia: “Em tempo de individualismo extremo, em que o eu parece ser o centro de tudo, é preciso dar o salto para uma espiritualidade comunitária, na qual a oração pessoal e comunitária sejam abertas ao coletivo, especialmente aos que estão nas periferias sociais, existenciais, geográficas e eclesiais” (Ibidem, 163).

A multiplicação do pão material mostra que Jesus nos alimenta com o pão que vem de Deus, sua palavra, a mensagem do Reino. É um gesto que inaugura o Reino de Deus. O pão material é o primeiro fruto do pão da Palavra. O pão material não é o último dom, mas é o aperitivo do Reino. Por isso mesmo precisamos cuidar que ele tenha gosto de Deus e não do materialismo. Para isso, antes de realizar o sinal da multiplicação, Jesus “ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção”. A propósito de remeter tudo o que temos a Deus, dizia um rabino dos primeiros séculos que ‘tomar o alimento sem dar graças é roubar o pão a Deus’. O reconhecimento de que o pão não é nosso, mas de Deus, portanto, para todos.

É missão da Igreja também denunciar toda forma de exploração e de usurpação dos direitos dos pequenos e pobres. A Igreja precisa dizer com Jesus: “Dai-lhes de comer”. Quando o Estado e/ou donos do poder exploram ou cometem qualquer tipo de injustiça que leve a faltar o pão na mesa dos pobres, a Igreja precisa levantar a voz profética, sob pena de ser perseguida e  seus líderes profetas serem assassinados.  “Na dúvida, fique do lado dos pobres” (Dom Pedro Casaldáliga).

É muito oportuno, quanto se trata do cuidado para com os pobres, lembrar algumas palavras do Papa Francisco por ocasião do Encontro Mundial dos Movimentos Populares em Roma (2014): “Terra, teto, trabalho. É estranho, mas quando falo sobre estas coisas, para alguns parece que o Papa é comunista. Não se entende que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho.” E acrescenta Francisco que terra, casa e trabalho são “direitos sagrados”, “é a Doutrina social da Igreja”. E pronuncia esse apelo emblemático: “Nenhuma família sem casa. Nenhum camponês sem terra! Nenhum trabalhador sem direitos! Nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”.

*Neste primeiro domingo de agosto celebramos o Dia do Padre. É oportunidade de agradecermos a Deus pelos padres que passaram por nossa vida, nos ajudaram, nos deram os sacramentos. Alguns já partiram desta vida. Outros continuam no meio de nós. É dia também de rezarmos e refletirmos sobre as vocações sacerdotais. O que você tem feito pelas vocações? Você ajuda, reza, apoia os vocacionados? Você ajuda a nós padres a sermos mais pastores, mais próximos, mais dedicados? Não trate o padre como ‘coitadinho’, não! Ele escolheu essa vocação atendendo ao chamado de Deus e da Igreja. Colocou-se livremente a serviço do evangelho. Precisa ser ajudado a viver com fidelidade e dedicação. E você, cristão leigo/a, deve ajudá-lo a ser um verdadeiro colaborador e servidor das comunidades, rezando por ele, fazendo a correção fraterna quando necessário, sendo colaborativo nos serviços e ministérios da comunidade! Ajudem-nos a sermos mais pastores, mais misericordiosos, mais generosos, mais paternais.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Eles O reconheceram no pão repartido

aureliano, 25.04.20

3º Domingo da Páscoa - A - 26 de abril.jpg

3º Domingo da Páscoa [26 de abril de 2020]

[Lc 24,13-35]

Esse relato de Lucas traz muitos elementos para serem refletidos e rezados.  Mostra a experiência de uma comunidade em relação à morte e à ressurreição de Jesus e consequente missão. Essa experiência faz reconhecer Cristo nas Escrituras e na celebração do pão repartido. Para além da materialidade do pão partido está a presença de Jesus. Por isso ele ficou invisível aos discípulos. Jesus abriu-lhes os olhos e eles o reconheceram, mas não o viram. A experiência de fé é algo que brota da ação de Deus em nós através de algum sinal. Mas transpõe o sinal. Por isso a Igreja proclama na celebração eucarística: “Eis o Mistério da Fé”.

É interessante acompanhar os passos de Jesus nessa dinâmica de formar o discípulo. Dois discípulos que haviam estado com os Onze na manhã de domingo dirigem-se a Emaús depois de ouvir o relato das mulheres e de Pedro. Jesus é tomado por eles como outro peregrino que volta da festa de Jerusalém. Os dois discípulos não o reconhecem. Seus olhos “estavam impedidos” pela cegueira espiritual. Os discípulos estão angustiados pela morte de Jesus e têm dificuldade para acreditar que outro peregrino não saiba do acontecimento trágico. Descrevem Jesus como profeta poderoso em palavras e obras. Esperavam dele algo mais: o libertador de Israel. O relato do “túmulo vazio” não os levou a concluir que ele havia ressuscitado, pois a ressurreição esperada pelos judeus era a vitória geral de todos os justos, e não uma ressurreição individual no meio da história.

A cegueira dos discípulos é repreendida e ao mesmo tempo curada pelo estranho peregrino. Explica-lhes as Escrituras e eles ficam impressionados com o que Jesus dizia, a ponto de convidá-lo para ficar com eles. Este ficar ou permanecer remete-nos a Jo 15, 4-10: Permanecei em mim como eu em vós. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto.  Permanecei no meu amor.

Jesus partilha com eles o pão que recorda a multiplicação dos pães e a Última Ceia. Nessa “fração do pão”, nome que se dava à Eucaristia nos inícios da Igreja, eles o reconhecem. Então se lembram de que o coração “ardia” quando ele lhes falava pelo caminho. É a experiência que fazem do Ressuscitado. Essa experiência não pode ser guardada, mas compartilhada, proclamada. Por isso voltam para Jerusalém. Se antes voltavam da Cidade nas trevas, impossibilitados de enxergar, imersos em profunda angústia, decepcionados, agora retornam à Cidade cheios de ardor e de entusiasmo, iluminados.  É o que deve realizar em nós a Eucaristia, a Celebração, o encontro com Jesus Cristo na Palavra, no Pão Eucarístico. Se saímos da Celebração acabrunhados, desanimados, há alguma coisa errada. Não deveria ser assim.

Foi no “partir o pão” que eles reconheceram o Senhor. A esse propósito é oportuno recordar uma exortação de São João Crisóstomo a respeito das consequências da Eucaristia na vida do discípulo de Jesus:

De que serve ornar de vasos de ouro a mesa do Cristo, se ele mesmo morre de fome? Começa por alimentá-lo quando está faminto, e então poderás decorar sua mesa com o supérfluo. Dize-me: se, vendo alguém privado do sustento indispensável, o deixasses em jejum e fosses enfeitar sua mesa com vasos de ouro, achas que ele te seria agradecido? Ou não ficaria indignado? Ou ainda, se vendo-o vestido de andrajos e trêmulo de frio, o deixasses sem roupa para erigir-lhe monumentos de ouro, pretendendo assim honrá-lo, não diria ele que estarias zombando dele com a mais refinada ironia?

Confessa a ti mesmo que ages assim com o Cristo, quando ele é peregrino, estrangeiro e está sem abrigo, e tu, em lugar de recebê-lo, decoras os pavimentos, as paredes e os capitéis das colunas. Suspendes candelabros com correntes de prata, e quando ele está acorrentado, não vais consolá-lo. Não digo isto para reprovar esses ornamentos, mas afirmo que é necessário fazer uma coisa sem omitir a outra; ou melhor, que se deve começar por esta, isto é, por socorrer o pobre.

Esta exortação do “Boca de Ouro” do século IV em Antioquia/Constantinopla deveria retumbar naquelas realidades de nossas comunidades que promovem bingos, festas, quermesses e dízimo em função preponderantemente de construções, obras e reformas, ou mesmo para ornamentos e materiais litúrgicos de preços exorbitantes, reservando-se, por vezes, uma migalha para ações sociais e missionárias. A postura e as homilias de Crisóstomo deveriam ser retomadas em nossa Igreja!

Mais do que nunca esta palavra vale também para ações governamentais de gestão dos bens públicos. Há verdadeira espoliação dos pobres, desperdício criminoso e pecaminoso do erário brasileiro, desgoverno total em nosso País. Um pecado que brada aos céus! O que se desperdiça, se rouba, se frauda, se estorque, se destrói com queimadas criminosas em nosso País seria mais do que suficiente para dar perfeitas condições de vida digna para todos os brasileiros e brasileiras como saúde, moradia, segurança, alimentação.

São João Paulo II, na Carta Mane nobiscum, Domine, refletindo sobre este relato do Evangelho, diz: “Quando os corações são aquecidos e as mentes, iluminadas, os sinais falam”. Se permitimos que a Palavra de Deus seja a única luz a iluminar nossas decisões e a aquecer nossos corações, conseguiremos perceber os sinais de Deus na História: nos gestos simples de um pobre invisível, no olhar de uma criança, no clamor de um doente sobrante, num rio poluído que pede socorro, numa planta vicejante, na mulher oprimida, nos direitos ameaçados. Realidades que atraem nosso olhar e imploram uma atitude de ação contemplativa e de contemplação ativa.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Eucaristia: um amor que se reparte

aureliano, 08.04.20

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Quinta-feira Santa [09 de abril de 2020]

[Jo 13,1-15]

Neste primeiro dia do Tríduo Pascal celebramos a instituição da Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do Senhor, que se desdobra em dois aspectos: a instituição do Sacerdócio Ministerial e o Serviço Fraterno da Caridade.

Perpassando o evangelho de João, notamos que não há referências aos gestos rituais de Jesus sobre o pão e vinho como o fazem os outros evangelistas. O discurso de Jesus sobre a Eucaristia está no capítulo 6° de seu evangelho.

No discurso de despedida, João salienta o gesto de Jesus ao lavar os pés de seus discípulos. Não pede que seu gesto seja reproduzido ritualmente, mas que devemos “fazer como ele fez”. Ou seja, devemos refazer em nossas relações o que Jesus fez naquele gesto simbólico: amor gratuito que torna presente o “sacramento” do amor de Cristo por todos nós. O “lava-pés” deve ser o modo de proceder, o estilo de vida da comunidade dos seguidores de Jesus: “Dei-vos o exemplo para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,15).

O sacramento do amor

A Eucaristia, memorial do sacrifício de Jesus, é o sacramento do Corpo e Sangue de Cristo que nos é dado como alimento: “Todas as vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor até que ele venha” (1Cor 11,26). Esta presença real-sacramental do Senhor ressuscitado no pão e no vinho se estende também, de algum modo, aos irmãos. Por isto não se pode conceber a comunhão eucarística sem referência aos irmãos. Particularmente aos mais pobres e necessitados. E Paulo alerta: “Quando, pois, vos reunis, o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor; cada um se apressa em comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado” (1Cor 11,20).

Enquanto a Igreja propõe reflexão e ação sobre Políticas Públicas, sobre o cuidado do ser humano: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”, na busca de se efetivarem os direitos dos cidadãos, Executivo, Legislativo e Judiciário, por vezes “em nome de deus”, retiram os poucos direitos adquiridos. Assistimos recentemente à morte de vários conselhos de participação popular nas políticas de gestão do patrimônio público e de direitos do cidadão. Enquanto uns se locupletam, outros passam fome. Dizer-se crente em Jesus Cristo e decretar a morte dos indefesos é um pecado que “brada aos céus e pede a Deus vingança”.

Se a Eucaristia que celebramos não nos move a gestos eucarísticos de partilha, de respeito, de cuidados, de acolhida a cada irmão e irmã, não estamos celebrando a Memória de Jesus. A Eucaristia se efetiva em nossos gestos e atitudes de misericórdia para com nossos irmãos e irmãs.

SACERDÓCIO MINISTERIAL

Os gestos que Jesus realiza de “levantar-se”, “tirar o manto”, “vestir o avental”, “lavar os pés” revelam como devem ser as relações na comunidade: não de poder, mas de serviço. Portanto, o sacerdócio ministerial, para ser coerente com o dom recebido, deve ter como inspiração os gestos de Jesus no ‘Lava-pés’.

Quem preside à comunidade, preside também a Eucaristia. Reúne a comunidade para a oração, para a escuta da Palavra, para o serviço aos pobres, distribui as tarefas e partilha os bens ofertados. Assim proclama o Concílio Vaticano II sobre a missão do sacerdote: “De coração, feitos modelos para o rebanho, presidam e sirvam de tal modo sua comunidade local, que esta dignamente possa ser chamada com aquele nome pelo qual só e todo o Povo de Deus é distinguido, a saber: Igreja de Deus” (LG, 28).

Neste dia, na Missa Crismal (que esse ano será adiada pelo motivo do isolamento social), o presbitério renova as promessas sacerdotais diante do Bispo. Uma destas promessas revela claramente a missão do padre. Ela reza assim: “Quereis ser fiéis distribuidores dos mistérios de Deus pela missão de ensinar, pela sagrada Eucaristia e demais celebrações litúrgicas, seguindo o Cristo Cabeça e Pastor, não levados pela ambição dos bens materiais, mas apenas pelo amor aos seres humanos?”

CENA SIMBÓLICA

Vamos contemplar os gestos de Jesus e sua relação com nossa vida:

- vestir o avental: revestir-se de simplicidade, de ternura, de presença, de serviço desinteressado.

- tirar o manto: arrancar tudo que impede o serviço, a prontidão, a disponibilidade.

- levantar-se da mesa: estar à mesa é muito bom. Mas há sempre uma situação que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Levantar-se da mesa e sentar-se à mesa é uma dinâmica constante em nossa vida. Movimentos de partida e de chegada.

- levantou-se da mesa: não se pode servir permanecendo no comodismo. Algo precisa ser feito. O Senhor “precisa” de mim, como precisou do jumentinho: “O Senhor precisa dele”.

- ficar de pé: é a atitude que tomamos quando ouvimos o evangelho na celebração. Significa prontidão para deslocar-se, para sair em qualquer direção. Prontidão para viver a Boa Nova do Reino de Deus. Estar à mesa é sinal de fraternidade, mas é preciso saber a hora certa de se levantar e sair para servir.

- tirou o manto: é abrir mão do poder. Algo que brota de dentro. O manto impede a liberdade dos movimentos. Ele traz a aparência de poder. Há “mantos” que prendem e amarram. O Senhor trocou o manto pelo avental. Quais são meus “mantos”? Costumo colocar o avental?

- colocou água na bacia...: Jesus não faz serviço pela metade. Não tem receio de se inclinar até o chão para lavar os pés dos seus discípulos. Não faz distinção de ninguém. Lava os pés de todos.

- depois, voltou à mesa: retomou o manto, mas não tirou o avental. Ele quer mostrar que seu discípulo deve ser sempre servidor. Não se pode tirar o avental do serviço. Qualquer posto ou cargo ou ministério que se ocupar deve estar ali, sob o manto do poder, o avental do serviço. Então deve ser poder-serviço. Todo exercício de poder sem a dimensão do serviço (avental) está fadado a oprimir, a se corromper, a sacrificar vidas.

Vê-se, pois, que a Eucaristia foi instituída para formar um só Corpo. O corpo sacramental de Cristo no pão consagrado deve transformar o comungante no Corpo eclesial. O Espírito Santo transforma o pão e o vinho no Corpo e Sangue de Cristo, para que a assembléia celebrante e comungante se transforme no Corpo do Senhor, a Igreja. Provém daí a expressão clássica: a Eucaristia faz a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia. Isto tem consequências profundas em nossa vida. A comunhão eucarística nos compromete com os membros (do corpo) que sofrem, que passam fome, que pecam, que estão afastados, que experimentam o abandono, que padecem por causa de nossas omissões e covardias. O senhor deu-nos o exemplo para que façamos o mesmo que ele fez: amou-nos até o fim!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Corpo doado, Sangue derramado por nós

aureliano, 19.06.19

Corpus Christi - 20 de junho - C.jpg

Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Cristo [20 de junho de 2019]

[Lc 9, 11-17]      

O relato da multiplicação dos pães está emoldurado pelo contexto de fim de missão dos discípulos e profissão de fé de Pedro seguida do anúncio da Paixão e condições para o seguimento. Parece que Lucas quer dizer que a Eucaristia refaz as forças do missionário e lhe dá condições de continuar seguindo o Mestre em meio às incompreensões e perseguições. O discípulo é chamado a reafirmar a fé: “Tu és o Cristo de Deus” (Lc 9,20). Ou como em João: “Senhor, a quem iremos? Tens palavras de vida eterna e nós cremos e reconhecemos que tu és o Santo de Deus” (Jo 6,68-69).

No livro dos Atos dos Apóstolos lemos que as primeiras comunidades cristãs tinham como distintivo a refeição comunitária: “Punham tudo em comum... Dividiam os bens entre todos segundo as necessidades de cada um... Partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade” (cf. At 2, 42ss).

O gesto de Jesus ao reunir o povo no deserto e repartir com eles o pão é uma imagem da Igreja. Ele quis que a Eucaristia fosse alimento para todos, representados nessa multidão. Não quis tomar como modelo as refeições que se faziam para alguns poucos, pessoas da mesma classe ou que podiam pagar pelo banquete.

A Eucaristia é sinal dos tempos novos e definitivos trazidos por Jesus. Neles as divisões e perseguições são superadas. O escândalo da desigualdade econômica e social, da fome crescente, da concentração de renda, da marginalização, da destruição do meio ambiente é incompatível com a Eucaristia. Não é possível ter comunhão com Cristo entregue por nós e desprezarmos os irmãos: “Quando, pois, vos reunis, o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor; cada um se apressa por comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado” (1Cor 11,20-21). Na Eucaristia Cristo identifica a comida partilhada com sua própria pessoa. Onde não se reparte o pão, Cristo não pode estar presente.

“Na multiplicação dos pães, Jesus não fez descer pão do céu, como o maná de Moisés. Nem transformou pedras em pão, como lhe sugerira o demônio quando das tentações no deserto. Mas ordenou aos discípulos: ‘Vós mesmos, dai-lhes de comer’... e o pão não faltou. Porém, se não observarmos esta ordem de Jesus e não dermos de comer aos nossos irmãos, ele também não poderá tornar-se presente em nosso dom. Então, não só o pão, mas Cristo mesmo faltará” (Pe. Johan Konings, in Liturgia Dominical, p. 397).

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A Eucaristia é o memorial da morte e ressurreição de Jesus. Fazer memória significa não somente lembrar, mas celebrar e mergulhar no mistério de Cristo. É nos colocarmos dentro de toda a vida de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus que, vindo a esse mundo, entregou sua vida por nós. Por isso, na celebração da Eucaristia nós devemos nos empenhar para fazer com que “a mente, o coração concorde com a voz, com as palavras”, no dizer de São Gregório.

Se celebramos a entrega de Cristo, não estamos fazendo um show. Então a missa não é show, promoção pessoal do padre e seja lá de quem for. Nossa atitude deve ser de compenetração, de humildade, de escuta atenta, de acolhimento, de exame de consciência. Isso nos tem recomendado insistentemente o Papa Francisco: “A Missa não é um espetáculo: é ir ao encontro da paixão e ressurreição do Senhor” (08 de novembro de 2017).

No decorrer da História a missa teve várias conotações. Serviu para coroar papas e reis, para agradecer vitórias de guerra, para enfeitar festas e agradar monarcas e senhores poderosos. Os músicos transformaram partes da missa em concertos belíssimos. Outros faziam da missa sua devoção particular. Ainda hoje, em vários lugares, é quase uma “exigência” para falecidos: “missa de corpo presente”, “missa de sétimo dia” etc. É claro que tem sua importância, mas ocorre que muitos pedem esse tipo de celebração para “salvar o falecido”, sem se envolver pessoalmente com a comunidade de fé. Uma espécie de superstição.

O Concílio Vaticano II recuperou o sentido originário da Eucaristia: Memorial da Morte e Ressurreição do Senhor. Quando a comunidade se reúne para celebrar a Eucaristia, ela traz sua vida, suas dores e alegrias e coloca no Coração de Cristo, para que ele, verdadeiro Celebrante, pela oração da Igreja, ofereça ao Pai.

Ao participarmos da Eucaristia estamos nos comprometendo a ser “um só Corpo”. A comunhão no Corpo e Sangue de Cristo nos compromete com Ele. A entrega de Cristo que celebramos pede, exige de nós o gesto de entrega, de doação, de comprometimento com Cristo pela reconstrução da História segundo os critérios do Reino de Deus. Não pode ser verdadeira “comunhão” a busca de um intimismo egoísta que não abre nossos olhos para “ver as necessidades e os sofrimentos de nossos irmãos e irmãos”, e não nos inspira a termos “palavras e ações para confortar os desanimados e oprimidos, os doentes e marginalizados”.

Nesse dia que celebramos a solenidade do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue do Senhor, somos instados a olhar para o Cristo que se doa, que se entrega, que salva, que enfrenta a morte para que tenhamos vida. Essa contemplação deve nos levar a dar mais um passo em direção a uma vida mais comprometida. Não adianta adorar o Cristo no altar e desprezá-lo no pobre. De pouco vale celebrar a Eucaristia, participar de uma adoração, e depois falar mal dos outros, negar o salário justo, sonegar as impostos e direito sociais, enganar os outros, ser desonesto nos negócios e no trabalho, levantar bandeiras que defendem a discriminação, a violência, o porte e a posse de arma de fogo, o aborto, o preconceito, o desrespeito, a morte.

A Eucaristia, “fonte e ápice de toda a vida cristã”, deve ocupar o centro de nossa espiritualidade, de nossa oração, de nossas escolhas e decisões. Se Cristo decidiu firmemente enfrentar a morte pela nossa salvação, também nós, seus discípulos, precisamos nos dispor a esse caminho. Pois “o discípulo não é maior do que o mestre”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Eucaristia para formar um só Corpo

aureliano, 04.02.19

"Fazei de nós um só Corpo e um só Espírito"

 

“O cálice de bênção que abençoamos não é comunhão com o sangue de Cristo?

 O pão que partimos não é comunhão com o Corpo de Cristo?

 Já que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo,

 visto que todos participamos desse único pão” (1Cor 10, 16-17).

 

A eucaristia é o sacramento que faz a Igreja. Participar do cálice de bênção e do pão partido é tornar viva e dinâmica a presença de Jesus em nosso meio. Enquanto a comunidade participa e celebra a vida de Jesus ela está continuando a sua missão. E a grande obra de Jesus foi a de revelar o rosto misericordioso do Pai que não quer que ninguém se perca (Cf. 1Tm 2,4). Conhecedor das intrigas, ciúmes e divisões presentes no coração humano, que retardam a concretização do Reino, Jesus rezou: “Que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que estejam em nós, para que o mundo creia” (Jo 17, 21).

Criar, gerar, promover comunhão na comunidade cristã não se faz como num passe de mágica; não é obra de um dia. É algo que deve ser constantemente construído. É preciso de ternura para perceber e acolher o outro na sua fraqueza e fragilidade; é preciso de sensibilidade e intuição para captar as necessidades, as luzes e sombras que surgem na comunidade; é preciso de muita humildade para acolher e aceitar as diferenças bem como perceber a riqueza que elas podem trazer; é preciso de muita abertura para ouvir queixas, reclamações, opiniões discordantes; é preciso de muito espírito de oração, de comunhão e intimidade com Deus para percebermos cada vez mais que a missão é d’Ele, que a comunidade é d’Ele, que a Igreja é d’Ele, que o trabalho que realizamos é missão que Ele nos confiou: “Evangelizar não é um título de glória para mim, mas uma necessidade que se me impõe”.

Estando à mesa com os seus discípulos, Jesus “tomou o pão, partiu e o deu aos seus discípulos”. Portanto, Eucaristia é pão, corpo tomado, partido, doado... é sangue derramado (Cf Lc 22, 19-20). Também o cristão que participa da mesa do Senhor deve sentir-se, no seu dia a dia, tomado, isto é, consagrado por Deus no batismo para a missão; partido e repartido para os irmãos (nas dificuldades da missão, nas crises, nas lágrimas, no suor, na falta de reconhecimento, nas ingratidões, quando tem que abrir mão do que gosta...). E, finalmente, doado: dado por Deus ao povo. O cristão não existe para si mesmo, existe para os irmãos.

Nesta construção da comunidade e da pessoa é que a eucaristia vai transformando a sociedade. O cristão eucaristizado vai percebendo que a sociedade que mata, que rouba, que corrompe, que sonega impostos, que acumula, que explora, que destrói precisa ser modificada. Então ele entende aquela recomendação que São João Crisóstomo, nos idos do século IV, fazia à comunidade: “Queres honrar o Corpo de Cristo? Então não o desprezes quando o vês em andrajos. Depois de tê-lo honrado na igreja em vestes de seda  não deixes que morra de frio fora, porque não tem com que vestir-se. É, de fato, o mesmo Jesus que diz: ‘Isto é o meu Corpo’ e aquele que diz: ‘tu me viste com fome e não me deste de comer – aquilo que recusaste ao menor de meus irmãos foi a mim que o recusaste’. O corpo de Cristo na Eucaristia exige almas puras, não ornamentos preciosos. Mas no pobre, Ele pede todos os teus cuidados. Comportemo-nos como santos: honremos o Cristo como ele mesmo quer ser honrado: a homenagem mais agradável é sempre aquela que o homenageado deseja receber, não aquela que nós queremos fazer-lhe. Pedro pensava estar honrando seu Mestre não permitindo que o Senhor lhe lavasse os pés. Entretanto, fazia exatamente o contrário. Dai-lhe, pois, a honra que Ele mesmo pediu, doando ao pobre o vosso dinheiro. Ainda uma vez, aquilo que Deus quer não são cálices de ouro, mas almas de ouro”.

Precisamos dar passos para uma nova compreensão da Eucaristia: não mais como hóstia para ser vista (2º milênio), mas como evento salvífico, memorial da Páscoa (1º milênio) que compromete nossa vida na entrega de Cristo. O Vaticano II e as posteriores reflexões em torno da Eucaristia buscam entendê-la como refeição festiva do Pão e do Vinho em memória do mistério pascal de Cristo.

Podemos afirmar que a meta suprema da Eucaristia não é a transformação dos dons (pão e vinho); os dons são sinais do que deve acontecer conosco. A meta suprema é a transformação das pessoas, da comunidade no Corpo de Cristo; isto é expresso na oração, pedindo ao Espírito Santo que transforme a comunidade no Corpo de Cristo (2ª epiclese). Na Eucaristia somos, pois incorporados a Cristo, e não nas coisas.

A intuição que teve nosso Fundador, o Servo de Deus Pe. Júlio Maira, da dimensão missionária da Eucaristia e sua estreita relação com Maria que nos introduz na intimidade do mistério eucarístico (Cf. Maria e a Eucaristia, p. 55), nos convoca a reviver o gesto de Jesus sendo uma presença eucarístico-mariana no meio do povo, contagiando-o com o ardor missionário.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

"Dai-lhes vós mesmos de comer"

aureliano, 27.07.18

17º Domingo do TC - 29 de julho.jpg

17º Domingo do Tempo Comum [29 de julho de 2018]

 [Jo 6,1-15]

Estávamos até então refletindo o evangelho de Marcos. Neste e nos próximos domingos vamos refletir o capítulo 6º de João. A Igreja pensou numa oportunidade de se considerar o evangelho de João tão rico, mas com pouco espaço no calendário litúrgico.

Marcos, o evangelho mais antigo, trata do sinal da multiplicação dos pães de modo a notar maior solidariedade entre os cristãos. Ele envolve os discípulos na cena: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.

Mas o fato é que os discípulos não se preocupam com a fome das pessoas. Por isso eles recomendam a Jesus que os despeça para que comprem pão pelo caminho. Ou seja: deixe que eles se virem.

O problema é que, quem tem dinheiro vai se alimentar. Mas quem não o tem, vai continuar com fome. Notamos que a solução apresentada pelos discípulos foi extremamente egoísta. Cada um deve se virar! É a proposta da economia neoliberal: quem tem condições, capital, investe e cresce. Quem não tem, sobra. O caminho do atual governo do nosso País é exatamente esse: preocupação absoluta com o mercado e abandono das políticas públicas e sociais.

No evangelho de João, Jesus age de modo soberano. Enquanto Marcos esconde o mistério e a missão de Jesus aos ouvintes, pois não eram capazes de compreender, João revela para o cristão a glória de Deus.

Interessante no texto de hoje é esse olhar misericordioso de Jesus. No evangelho do domingo passado vimos Jesus manifestando sua compaixão pelo povo, pois estava “como ovelhas sem pastor”. Então ele inventa um jeito de cuidar do rebanho.

Ninguém precisa ficar esperando milagre do céu. É só mudar a mente e o coração e começar a colocar em comum os bens e os dons. Aqueles pães e peixes, depois que estão nas mãos de Jesus, que dá graças sobre eles, não são mais do jovem nem dos apóstolos, mas de Deus para a multidão faminta. Isso mostra que os bens e dons que temos, vividos na dimensão da “ação de graças” não são mais nossos, mas “eucaristizados” para “eucaristizar”, ou seja, usados numa partilha alegre e comprometida.

A Eucaristia de que participamos semanalmente deve nos levar a essa “vida eucarística”, numa partilha generosa para que “todos tenham vida”.

Vimos, pelo evangelho de hoje, que o problema da fome no mundo não se resolve com dinheiro. Somente o espírito de partilha e de solidariedade é capaz de diminuir a fome nos países e regiões empobrecidos. Enquanto prevalecer desperdício, acúmulo, ganância, propina, desonestidade haverá famintos e necessitados no mundo.

A Igreja tem a missão de atuar profeticamente no mundo para que haja mais partilha e justa distribuição de renda. Para isso a Igreja precisa ser pobre. Somente uma Igreja pobre, no espírito de São Francisco de Assis, conforme tem preconizado tantas vezes o Papa Francisco, poderá ter credibilidade e influência na história. Tudo isso, porém a partir do encontro profundo com a pessoa de Jesus de Nazaré. Pois sem conversão do coração, atuada pela graça libertadora de Deus em nós, não se entende nem se exerce a partilha dos dons e dos bens.

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AS CONSEQUÊNCIAS DA CELEBRAÇÃO DA EUCARISTIA

Os exegetas interpretam Jo 6,1-15 como um relato eucarístico. Ou seja, ele quer significar o sentido da celebração da Eucaristia na Igreja. Sendo assim podemos afirmar que só faz sentido a celebração eucarística que compromete os participantes com os necessitados da comunidade. Aliás, há um belíssimo texto do século II, escrito por São Justino, que fornece as indicativas para a celebração da Eucaristia: “No dia que se chama do Sol [domingo] celebra-se uma reunião dos que moram nas cidades e nos campos e ali se lêem, quanto o tempo permite, as Memórias dos Apóstolos ou os escritos dos profetas. Assim que o leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos tais belos exemplos. Erguemo-nos, então, e elevamos em conjunto as nossas preces, após as quais se oferecem pão, vinho e água, como já dissemos. O presidente também, na medida de sua capacidade, faz elevar a Deus suas preces e ações de graças, respondendo todo o povo ‘Amém’. Segue-se a distribuição a cada um, dos alimentos consagrados pela ação de graças, e seu envio aos doentes, por meio dos diáconos. Os que têm, e querem, dão o que lhes parece, conforme sua livre determinação, sendo a coleta entregue ao presidente, que assim auxilia os órfãos e viúvas, os enfermos, os pobres, os encarcerados, os forasteiros, constituindo-se, numa palavra, o provedor de quantos se acham em necessidade.” (Apologias).

Esse último parágrafo nos remete ao texto do evangelho de hoje: a Eucaristia deve nos mover à partilha, à sensibilidade para com os necessitados. Os bens e os dons são oferecidos para o bem dos mais pobres e carentes.

Por vezes se levantam questões meramente rituais: se o ministro deixou de fazer isso ou aquilo dentro da celebração. Outros ficam implicados se a comunhão deve ser dada na mão ou na boca. Se o fulano pode ou não pode comungar etc. Com isso se esquece do essencial da Eucaristia que é o louvor ao Pai em Cristo e na força do Espírito que se concretiza na caridade fraterna.

Outro texto dos primeiros séculos do cristianismo também vai nessa mesma direção. São Cipriano (século III), bispo de Cartago, exortava a uma matrona rica da cidade: “De resto, tal como és, nem podes praticar a caridade na Igreja. Com efeito, teus olhos cobertos por espessas trevas e pela escuridão da pintura negra, não vêem o necessitado e o pobre. És abastada e rica e pensas que celebras o domingo. Tu, que nem sequer olhas para a caixa de esmolas, vens à celebração dominical sem oblação, e ainda participas da oblação que o pobre ofereceu?” (Patrística, Obras Completas I, Vol. 35,1).

A Eucaristia é o espaço e o ambiente cultual próprio que deve mover à partilha. Participar, comungar e voltar para casa como se nada acontecesse ao derredor é um descaso e uma ofensa ao Senhor que se oferece por nós. Pois ele lançou um olhar sobre a multidão faminta e providenciou-lhe o alimento (cf Mc 6, 35-44).

Ainda insistindo na importância da Eucaristia na vida da Igreja chamada a ser Sinal de Cristo no mundo, tomo aqui uma catequese do Papa Francisco para nos ajudar a perceber o sentido e as consequências da celebração da Ceia do Senhor: “Ao primeiro gesto de Jesus, ‘tomou o pão e o cálice do vinho’, corresponde assim a preparação dos dons, é a primeira parte da preparação eucarística. É bom que sejam os fiéis a apresentar o pão e o vinho ao sacerdote, porque eles significam a oferta espiritual da Igreja ali recolhida para a Eucaristia. Ainda que hoje os fiéis já não levem, como antes, o seu próprio pão e vinho destinados à Liturgia, todavia o rito da apresentação destes dons conserva o seu valor e significado espiritual.

A propósito, é significativo que, na ordenação de um presbítero, o bispo, quando lhe entrega o pão e o vinho, diz: ‘Recebe as ofertas do povo santo para o sacrifício eucarístico’; é o povo de Deus que leva a oferta para a missa. Portanto, nos sinais do pão e do vinho o povo fiel coloca a própria oferta nas mãos do sacerdote, o qual a depõe sobre o altar ou mesa do Senhor, que é o centro de toda a Liturgia Eucarística. O centro da missa é o altar e o altar é Cristo. No ‘fruto da terra e do trabalho do homem’ é por isso oferecido o compromisso dos fiéis a fazer de si próprios, obedientes à Palavra divina, um ‘sacrifício agradável a Deus Pai todo-poderoso’, ‘para o bem de toda a sua santa Igreja’. Desta maneira a vida dos fiéis, o seu sofrimento, a sua oração, o seu trabalho são unidos aos de Cristo e à sua oferta total, e deste modo adquirem um valor novo.

É verdade que a nossa oferta é coisa pouca, mas Cristo precisa deste pouco – como acontece na multiplicação dos pães – para o transformar no dom eucarístico que a todos alimenta e irmana no seu Corpo que é a Igreja. Pede-nos pouco o Senhor e dá-nos tanto, boa vontade, coração aberto, sermos melhores, e na Eucaristia pede-nos estas ofertas simbólicas que se tornarão Corpo e Sangue. Uma imagem deste movimento oblativo de oração é representada pelo incenso que, consumido no fogo, liberta um fumo perfumado que sobe para o alto: incensar as ofertas, a cruz, o altar, o sacerdote e o povo sacerdotal manifesta visivelmente o vínculo do ofertório que une toda esta realidade ao sacrifício de Cristo. Recordemos que o primeiro altar é a Cruz.

É quanto exprime também a oração sobre as ofertas. Nela o sacerdote pede a Deus que aceite os dons que a Igreja lhe oferece, invocando o fruto do admirável intercâmbio entre a nossa pobreza e a sua riqueza. No pão e no vinho apresentamos-lhe a oferta da nossa vida, a fim de que seja transformada pelo Espírito Santo no sacrifício de Cristo e se torne com Ele uma única oferta espiritual agradável ao Pai. Enquanto se conclui assim a preparação dos dons, a assembleia dispõe-se para a Oração Eucarística.

A espiritualidade do dom de si, que este momento da missa nos ensina, possa iluminar os nossos dias, as relações com os outros, as coisas que fazemos, os sofrimentos que encontramos, ajudando-nos a construir a cidade terrena à luz do Evangelho” (fonte: www.snpcultura.org).

Não é o dinheiro que vai resolver o problema da fome no Brasil e no mundo. Resolve-se a fome com a partilha, com a generosidade, com a disponibilidade de não reter somente para si “os cinco pães e os dois peixes”. Quem tem muito dinheiro, ao invés de ajudar a diminuir a fome, aprofunda o fosso da miséria. A fome é debelada pelo espírito de partilha, de solidariedade, de cuidado, de justiça, de não deixar desperdiçar-se o alimento, de distribuir equitativamente o pão. E essa compreensão e atitude estão enraizadas na vida de Jesus de Nazaré cujo Memorial é a Eucaristia.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Amou-nos até o fim

aureliano, 29.03.18

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Quinta-feira Santa [29 de março de 2018]

[Jo 13,1-15]

Neste primeiro dia do Tríduo Pascal celebramos a instituição da Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do Senhor, que se desdobra em dois aspectos: a instituição do Sacerdócio Ministerial e o serviço fraterno da caridade.

Perpassando o evangelho de João, notamos que não há referências aos gestos rituais de Jesus sobre o pão e vinho como o fazem os outros evangelistas. O discurso de Jesus sobre a Eucaristia está no capítulo 6° de seu evangelho.

No discurso de despedida, João salienta o gesto de Jesus ao lavar os pés de seus discípulos. Não pede que seu gesto seja reproduzido ritualmente, mas que devemos “fazer como ele fez”. Ou seja, devemos refazer em nossas relações o que Jesus fez naquele gesto simbólico: amor gratuito que torna presente o “sacramento” do amor de Cristo por todos nós. O “lava-pés” deve ser o modo de proceder, o estilo de vida da comunidade dos seguidores de Jesus: “Dei-vos o exemplo para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 15,15).

O sacramento do amor

A Eucaristia, memorial do sacrifício de Jesus, é o sacramento do Corpo e Sangue de Cristo que nos é dado como alimento: “Todas as vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor até que ele venha” (1Cor 11,26). Esta presença real-sacramental do Senhor ressuscitado no pão e no vinho se estende também, de algum modo, aos irmãos. Por isto não se pode conceber a comunhão eucarística sem referência aos irmãos. Particularmente aos mais pobres e necessitados. E Paulo alerta: “Quando, pois, vos reunis, o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor; cada um se apressa em comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado” (1Cor 11,20).

Nesta perspectiva pode-se interpretar o relato joanino como profundamente eucarístico, pois os gestos de Jesus no ‘Lava-pés’ não foram outra coisa senão gestos eucarísticos.

Sacerdócio ministerial

Os gestos que Jesus realiza de “levantar-se”, “tirar o manto”, “vestir o avental”, “lavar os pés” revelam como devem ser as relações na comunidade: não de poder, mas de serviço. Portanto, o sacerdócio ministerial, para ser coerente com o dom recebido, deve ter como inspiração os gestos de Jesus no ‘Lava-pés’.

Quem preside à comunidade, preside também a eucaristia. Reúne a comunidade para a oração, para a escuta da Palavra, para o serviço aos pobres, distribui as tarefas e partilha os bens ofertados. Assim proclama o Concílio Vaticano II sobre a missão do sacerdote: “De coração, feitos modelos para o rebanho, presidam e sirvam de tal modo sua comunidade local, que esta dignamente possa ser chamada com aquele nome pelo qual só e todo o Povo de Deus é distinguido, a saber: Igreja de Deus” (LG, 28).

Neste dia, na Missa Crismal, o presbitério renova as promessas sacerdotais diante do Bispo. Uma destas promessas revela claramente a missão do padre. Ela reza assim: “Quereis ser fiéis distribuidores dos mistérios de Deus pela missão de ensinar, pela sagrada Eucaristia e demais celebrações litúrgicas, seguindo o Cristo Cabeça e Pastor, não levados pela ambição dos bens materiais, mas apenas pelo amor aos seres humanos?”

Cena simbólica

Vamos contemplar os gestos de Jesus e sua relação com nossa vida:

- vestir o avental: revestir-se de simplicidade, de ternura, de presença, de serviço desinteressado.

- tirar o manto: arrancar tudo que impede o serviço, a prontidão, a disponibilidade.

- levantar-se da mesa: estar à mesa é muito bom. Mas há sempre uma situação que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Levantar-se da mesa e sentar-se à mesa é uma dinâmica constante em nossa vida. Movimentos de partida e de chegada.

- levantou-se da mesa: não se pode servir permanecendo no comodismo. Algo precisa ser feito. O Senhor “precisa” de mim, como precisou do jumentinho: “O Senhor precisa dele”.

- ficar de pé: é o gesto que fazemos quando ouvimos o evangelho na celebração. Significa prontidão para deslocar-se, para sair em qualquer direção. Prontidão para viver a Boa Nova do Reino de Deus. Estar à mesa é sinal de fraternidade, mas é preciso saber a hora certa de se levantar e sair para servir.

- tirou o manto: é abrir mão do poder. Algo que brota de dentro. O manto impede a liberdade dos movimentos. Ele traz a aparência de poder. Há “mantos” que prendem e amarram. O Senhor trocou o manto pelo avental. Quais são meus “mantos”? Costumo colocar o avental?

- colocou água na bacia...: Jesus não faz serviço pela metade. Não tem receio de se inclinar até o chão para lavar os pés dos seus discípulos. Não faz distinção de ninguém. Lava os pés de todos.

- depois, voltou à mesa: retomou o manto, mas não tirou o avental. Ele quer mostrar que seu discípulo deve ser sempre servidor. Não se pode tirar o avental do serviço. Qualquer posto ou cargo ou ministério que se ocupar deve estar ali, sob o manto do poder, o avental do serviço. Então deve ser poder-serviço. Todo exercício de poder sem a dimensão do serviço (avental) está fadado a oprimir, a se corromper, a sacrificar vidas.

Vê-se, pois, que a Eucaristia foi instituída para formar um só Corpo. O corpo sacramental de Cristo no pão consagrado deve transformar o comungante no Corpo eclesial. O Espírito Santo transforma o pão e o vinho no Corpo e Sangue de Cristo, para que a assembléia celebrante e comungante se transforme no Corpo do Senhor, a Igreja. Provém daí a expressão clássica: a Eucaristia faz a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia. Isto tem consequências profundas em nossa vida. A comunhão eucarística nos compromete com os membros (do corpo) que sofrem, que passam fome, que pecam, que estão afastados, que experimentam o abandono, que padecem por causa de nossas omissões e covardias. O senhor deu-nos o exemplo para que façamos o mesmo que ele fez: amou-nos até o fim!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN