Misericordiosos como o Pai
7º Domingo do Tempo Comum [24 de fevereiro de 2019]
[Lc 6,27-38]
Um sentimento que insiste em habitar no coração humano é o da vingança: pagar o mal com o mal. Uma forma de compensar a dor sofrida é fazer o outro sofrer também. Ou, no mínimo, desejar o mal a quem nos fez mal.
Em A República, capítulo I, no diálogo em busca da definição de justiça no sentido de “dar a cada um o que lhe compete”, Sócrates faz Polemarco afirmar que “a Justiça é favorecer aos amigos e prejudicar os inimigos”. Ora, se o inimigo faz o mal, portanto deve-se-lhe devolver o que ele oferece: o mal. Mas a compreensão de justiça na Sagrada Escritura se distancia da compreensão filosófica. Jesus vem nos ensinar como se deve entender e fazer justiça. A justiça do Reino de Deus contesta e corrige a justiça humana.
Daí nasce a importância revolucionária que Jesus introduz nas relações humanas: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam” (Lc 6,27). Não se pode entender isso senão mediante o dom da fé. Uma relação amorosa e confiante com o Pai.
Quando Jesus fala do amor aos inimigos, não está falando de mero sentimento em relação a eles. Certamente o sentimento não será livre de dor, de mágoa, sobretudo quando ficam marcas, feridas profundas, cicatrizes. Quando deparamos com nossas dores diante do mal causado pelo inimigo, é natural dar-nos tempo para recuperar a paz. Aliás, não é possível ao ser humano simplesmente dizer que está perdoado, e pronto. O perdão não acontece de um dia para o outro. É um processo longo e trabalhoso.
Isso nos ajuda a entender que Deus também tem paciência conosco e nos espera no nosso tempo para nos perdoar. Portanto, é bom compreendermos que Jesus está falando de atitude que brota da vontade, do querer, de se interessar pelo bem do inimigo. E não de mero sentimento. Uma realidade que parte da experiência de fé.
Há pessoas que dizem: “Fulano pra mim não existe mais. Não faz mais diferença em minha vida!”. Isso significa que o ofensor foi assassinado no coração. Está morto. Então não houve perdão, mas assassinato. Aqui o ódio deu lugar à indiferença. Um tanto pior.
O que está em jogo aqui é o amor de Deus que está para além e envolve toda miséria humana. Um amor gratuito, generoso, que não exige nada em troca. Não tem nada a ver com aquela liberalidade humana do chefe que, para agradar os subordinados e ser querido por eles, dá um lauto banquete e distribui presente a todos. Não! Não é isso. Trata-se de uma atitude amorosa, gratuita que se fundamenta em Deus, por causa de Deus, por amor a Deus.
A primeira leitura de hoje (1Sm25,2.7-9.12-13.22-23) traz uma demonstração disso. Saul quis matar Davi. E este conseguiu se salvar da lança do Monarca. Quando surge uma oportunidade de Davi acabar com a vida de seu perseguidor, não o faz. Por quê? Pelo fato de ser um ungido do Senhor: “Não o mates! Pois quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor, e ficar impune?” (1Sm26,11). Davi entrega a Deus a causa: “O Senhor retribuirá a cada um conforme a sua justiça e fidelidade. Pois ele te havia entregue hoje em meu poder, mas eu não quis estender a mão contra o ungido do Senhor” (1Sm 26,23). Quando vejo no outro, por pior que ele me possa parecer, a imagem de Deus, me predisponho a fazer um caminho de perdão e de amor.
Essa passagem da Escritura poderia iluminar também as guerras e conflitos mundiais. Governantes que se dizem cristãos ficam de espreita para avançar e destroçar as comunidades, povos e nações. Sem piedade nem constrangimento nenhum pelo mal causado aos pequenos e fracos. Uma sede satânica de destruição, de usurpação, de avançar e tomar territórios e patrimônios dos outros! Que tristeza! Que falta de humanidade! Que falta de Deus e do evangelho em nosso mundo!
“Sede misericordiosos como vosso pai é misericordioso” (Lc 6,36). Jesus não está pedindo que sejamos perfeitos como o Pai (como está dito em Mt 5,48), mas que imitemos sua bondade, seu gesto de perdão. A medida de nosso perdão oferecido aos ofensores e inimigos faz com que o Pai não nos julgue, não nos condene e nos perdoe sempre (cf. Lc 6,37). Pois “com a mesma medida que medirdes, sereis medidos” (Lc 6,38).
Podemos também dizer que o gesto de perdão proposto por Jesus não é uma questão opcional. Não depende de nossa escolha, como se cada um pudesse decidir se perdoa ou não, sem implicação para a humanidade. Não! A generosidade, o perdão, a busca do bem para as pessoas são constitutivos da busca do querer de Deus. É obra de “justiça” no sentido bíblico: nossa relação filial com Deus justo e santo. Acontece nossa realização como cristãos. Em síntese, poderíamos dizer que, sem esse espírito, o nome de cristãos não corresponderia ao que dizemos ser e acreditar.
O cristão é aquele que, no seguimento de Cristo, faz um caminho diferente da proposta social. Caminha na contramão da história. Coloca-se em contestação da sociedade de consumo, de vingança, de violência, de dominação, de mentira, de aparência, de busca de sucesso e poder. Suas atitudes são “estranhas”, incompreensíveis: amar os inimigos, abençoar os amaldiçoam, rezar pelos perseguidores (cf. Lc 23,24. At 7,60).
Portanto, perdoar não é esquecer. Perdoar é dar tempo ao tempo. É saber trabalhar dentro de si o desejo de vingança, o sentimento de ódio. É compartilhar com alguém a dor da ferida sofrida. É buscar a paz interior. É amar de novo. É dar nova oportunidade. É entregar o ofensor nas mãos do Pai misericordioso. Todas as vezes que se lembrar da ofensa, que sentir a dor doída no coração, oferta ao Pai do céu ambos: o ofendido e o ofensor. E poderá dizer com toda confiança: “Pai nosso... perdoai-nos como nós perdoamos”.
Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN