O culto mariano na Igreja
O culto mariano[1]
Introdução
No decorrer da história cristã, o culto mariano sofreu muitas interpretações. Desde os Evangelhos Apócrifos, que narram fatos mirabolantes a respeito da Virgem Maria, até os nossos dias com os numerosos santuários e igrejas a ela dedicados, nota-se a constante presença da piedade mariana na vida do povo. Diga-se de passagem, também, as centenas de controversas aparições da Virgem em diversas regiões do mundo.
Não obstante a pequena referência a Maria na Escritura, ao longo da história cristã Maria esteve muito presente na vida da Igreja, sendo objeto de discussão por alguns Concílios - mesmo que secundariamente, pois a questão primordial era cristológica: a humanidade de Cristo com implicações soteriológicas.
Na Reforma Protestante volta a discussão da devoção mariana, devido, sobretudo, ao maximalismo católico em relação à Virgem Maria.
Os dogmas da Imaculada Conceição e da Assunção reforçaram a piedade mariana. É bom verificar com mais cuidado os termos de sua definição e o contexto em que se deram para não se emitirem sobre eles juízos infundados.
Somente a partir do Vaticano II o culto mariano é revisto de maneiras a evitar maximalismos ou minimalismos.
Em meio a tão complexa realidade, como prestar um culto verdadeiro a Maria?
Maria na Bíblia
As referências bíblicas a Maria são bastante escassas. Gn 3,15: vitória sobre a serpente; Is 7,14: a virgem conceberá e dará à luz um filho cujo nome será Emanuel (cf. Mq 5,2-3 e Mt 1,22-23): são textos entendidos à luz da revelação posterior (NT) como referidos à Mãe do Redentor.
Mesmo durante a vida de Jesus e os primeiros 30 anos mais ou menos que lhe sucederam não se estava interessado em saber quem fora a Mãe de Jesus. O interesse pela Virgem Maria surgiu com a primeira heresia, o docetismo: negação da realidade humana de Jesus. Percebeu-se a necessidade de uma leitura “retropopulsora” para afirmar a realidade humana de Jesus: seu nascimento de uma mulher. Então surgem os Relatos da Infância de Jesus, portanto, referências à Virgem Maria. É final do século I. Lucas tem a intenção de afirmar que Jesus é o Filho de Deus desde o início de sua existência. E ressalta a figura de Maria. Mateus ressalta a legitimidade do nascimento de Jesus: origem davídica. Ambos evangelistas tem como pano de fundo o Antigo Testamento.
Assim interpretado o nascimento de Jesus e a atuação de Maria no Mistério da Encarnação, a Igreja caminhou sem problemas até o surgimento de outra heresia: o arianismo. Jesus era chamado de Senhor, Kyrios. Então surge a questão cristológica: Como compreender Jesus humano e divino ao mesmo tempo? Nicéia proclama contra Ario, que Jesus é “consubstancial” ao Pai.
O Patriarca de Constantinopla, Nestório, começou a pregar que Maria era mãe do homem Jesus, filho por graça, e não mãe de Deus. A discussão aqui não é mariológica diretamente, mas cristológica: como se deu a união do humano e do divino em Jesus? O Concílio de Éfeso (431) resolve o impasse proclamando dogmaticamente Maria “Mãe de Deus” – Theotokos. Maria é mãe de Jesus enquanto Deus e enquanto homem. A união do Verbo com a humanidade se dá pela união hipostática (pessoal) no seio de Maria. Este mistério manifesta um mistério humano-divino: a Encarnação de Deus. A verdade da maternidade divina sublinha que Cristo é Filho de Deus e ao mesmo tempo verdadeiro homem.
Essas controvérsias cristológicas com implicações mariológicas atestam a importância da Virgem Maria na piedade cristã desde os primeiros séculos. As comunidades cristãs reconheciam que o que aconteceu na Virgem Maria faz parte do projeto de Deus.
As definições da Imaculada Conceição e da Assunção se fundamentam no testemunho da fé eclesial ao longo da Tradição. Portanto, algo já fazendo parte da fé da Igreja desde os primeiros séculos do cristianismo.
O decurso da história traz consigo suas variantes produzidas pela diversidade cultural e avanços científicos. Não é diferente no âmbito da fé, e no nosso caso, em relação ao culto mariano. É o que veremos a seguir.
Maximalismo e Minimalismo
O culto à Virgem Maria só tem sentido em referência a Cristo, ou melhor, à Trindade. Um culto mariano que não leve a Cristo pode tornar-se Mariolatria: atribuir a Maria o culto devido a Cristo. Isso seria depreciar a verdadeira glória de Maria.
Lutero levantou-se contra exageros e tendências malsãs no culto mariano. Seus três princípios: sola Gratia, sola Fides, sola Scriptura, tiraram qualquer cooperação do homem no processo da salvação, levando a colocar em questão algumas afirmações que se faziam na Igreja Católica a respeito de Maria. No entanto Lutero dava grande importância a Maria; seus escritos provam sua fé na maternidade divina, na virgindade perpétua e na ausência de pecado em Maria.
A partir de Lutero, num nível popular, e não tanto no campo da reflexão teológica, desenvolveu-se um minimalismo mariano. Por um lado entre os protestantes: Maria, mãe de Jesus, é uma mulher como qualquer outra, sem nenhuma importância na obra da Redenção. Isso provocado pela sola Scriptura que rejeitava todo elemento da Tradição oral (interpretativa). E no meio católico prosperou uma piedade mariana que não levava muito em conta a Escritura, mas que parecia se basear nos Evangelhos Apócrifos e também como rejeição à doutrina protestante, rejeição esta alimentada pela apologética do pós-Trento. Essa situação levou a práticas de devoção mariana que não condiziam com a Tradição cristã e mariana. À primeira vista parecia que Maria ocupara o lugar de Cristo. Tal situação foi revista no Vaticano II, embora ainda persistam alguns resquícios de tais práticas.
Restaurando o culto mariano: Vaticano II
Lumen Gentium 54 diz que Maria “ocupa o lugar mais alto depois de Cristo e o mais perto de nós”. É uma proposição que deve ser bem entendida. Se no maximalismo da piedade mariana se exaltava a Virgem Maria de modo excessivo e no minimalismo se colocava a Virgem Maria num lugar impróprio à sua condição de Mãe de Deus, o Vaticano II quer colocar a Virgem no seu devido lugar na piedade mariana: perto de Cristo como lugar de primazia: Mãe de Deus; e perto de nós como participante que foi de nossa vida, como primeira discípula, nossa Mãe (LG 62).
É sintomático o fato de se dividirem as opiniões na Igreja a respeito da piedade mariana popular. Se por um lado alguns líderes de comunidade desmerecem toda atitude de devoção a Maria, por outro, há os que exageram nas manifestações de piedade. Pode-se dizer que o maximalismo e minimalismo continuam, porém ambos dentro da própria Igreja Católica.
Parece-me que tais atitudes procedem de uma ignorância acerca do ensinamento e prática da Igreja a respeito do culto à Virgem Maria. Lumen Gentium VIII, Marialis Cultus, Redemptoris Mater são documentos que mostram o posicionamento atual e ortodoxo da Igreja em relação à Virgem Maria e ajudam a clarear o culto que se lhe deve prestar.
Conclusão
O eixo da devoção mariana deve se constituir em saber se essa devoção fecha a pessoa sobre si mesma, ou a abre para o projeto de Deus. Se a faz regredir para uma relação infantil com uma mãe imaginária, ou a lança a serviço de Cristo entre os homens. É o que o Magistério da Igreja propõe.
Para ilustrar o que foi dito, colocamos a seguir, alguns excertos dos documentos da Igreja supracitados no que se refere à importância do culto à Virgem Maria:
Lumen Gentium:
“Saibam os fiéis que a verdadeira devoção (a Maria) não consiste num estéril e transitório afeto, nem numa certa vã credulidade, mas procede da fé verdadeira pela qual somos levados a reconhecer a excelência da Mãe de Deus, excitados a um amor filial para com nossa Mãe e à imitação de suas virtudes” (LG 67).
Marialis Cultus:
"A Igreja Católica, apoiada numa experiência de séculos, reconhece na devoção à Virgem Santíssima um auxilio poderoso para o homem em marcha para a conquista de sua própria plenitude. Maria, a Mulher nova, está ao lado de Cristo, o Homem novo, em cujo mistério, somente, encontra verdadeira luz o mistério do homem; e está aí, qual penhor e garantia de que numa simples criatura – n’Ela – se tornou já realidade o plano de Deus em Cristo, para a salvação de todo homem” (MC 57, §7).
Redemptoris Mater:
"Os cristãos, levantando os olhos com fé para Maria, ao longo de sua peregrinação na terra ‘continuam ainda a esforçar-se por crescer na santidade’. Maria, a excelsa filha de Sião, ajuda a todos os seus filhos – onde quer que vivam e como quer que vivam – a encontrar em Cristo o caminho para a casa do Pai. (...) (A Igreja) venera-a como Mãe espiritual da humanidade e Advogada na ordem da graça” (RM 47, §§3 e 4).
Bibliografia
- PAULO VI, O Culto da Virgem Maria (apresentação didática), São Paulo, Loyola, s/d.
- SCHILLEBEECKX, E., Maria, Mãe da Redenção, Petrópolis, Vozes (1966).
- BEINERT, WOLFANG (Org.), O Culto a Maria hoje, São Paulo, Paulinas (1980).
- ROUET, A., Maria e a vida cristã, São Paulo, Paulinas (1980), pp. 97-135.
- Lumen Gentium VIII – Compêndio do Vaticano II, Petrópolis, Vozes (1967).
- GEBARA, I. – BINGEMER, M. C., Maria, Mãe de Deus e Mãe dos Pobres: um ensaio a partir da mulher e da América Latina. Col. Teologia e Libertação, Petrópolis, Vozes (1987).
Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN
[1] Este foi um trabalho de conclusão da cadeira de Mariologia, a partir das aulas do Prof. Pe. Cleto Caliman, em 2001.