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aurelius

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A fé operosa produz alegria

aureliano, 20.12.24

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4º Domingo do Advento [22 de dezembro de 2024]

[Lc 1,39-45]

Depois de celebrarmos o Domingo da Alegria, a proximidade da celebração do grande Dom de Deus para humanidade, a Igreja nos chama a dar mais uma olhadinha para dentro de nós. Se no domingo passado (Lc 3,10-18), João Batista nos chamava a uma mudança de atitude diante da vida, uma postura ética responsável: “que devemos fazer?”, hoje se nos é apresentada a figura de Maria, Mãe de Jesus, como modelo de mulher de fé consequente.

O evangelho relata o episódio do encontro de duas mulheres: Maria e Isabel. Os varões não aparecem - nem José! Duas mulheres de fé profunda, convicta. Uma, a Mãe do Senhor; outra, a mãe do Precursor. Em inteira disponibilidade nas mãos do Pai. Disseram com o Filho: “Eu vim, ó Deus, para fazer vossa vontade” (Hb 10,9). Não buscam a si mesmas. Colocam toda sua vida, na juventude ou na senectude, a serviço do Senhor. – Felizes dos filhos cujas mães são cheias de fé, plenas de Deus, cheias de alegria, tomadas pelo espírito de serviço!

O relato evangélico nos faz notar que a fé acolhida e vivida traz profunda alegria. Maria, ao aproximar-se e saudar Isabel grávida, faz a criança saltar de alegria no ventre da mãe. Não o faz pela própria força, mas pela ação do Redentor que ora traz em seu seio. Aquela Força do Alto trazida por Maria em seu ventre provoca a alegria em João, alegria essa produzida pela graça de Deus, e enche Isabel do Espírito Santo. Então, quando Maria diz sim ao Pai e assume participar do projeto de salvação da humanidade, leva a alegria ao coração das pessoas, pois ela mesma já recebera a Alegria de Deus: “Alegra-te, cheia de graça”.

E Isabel exclama: “Feliz és tu que creste”. É o reconhecimento de que Maria era uma mulher plena da felicidade que brota de uma fé acolhida e vivida com intensidade. E vê em Maria aquela escolhida para trazer a Bênção de que a humanidade precisava para ser feliz: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre”.

Ouçamos ainda o que diz Santo Ambrósio:

Repara como cada palavra está escolhida com perfeita precisão e propriedade: Isabel foi a primeira a escutar a voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça. Aquela escutou segundo a ordem da natureza; este exultou em virtude do mistério. Ela apreendeu a chegada de Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz da mulher; o menino sentiu a presença do Filho. Aquelas proclamam a graça de Deus, estes realizam-na interiormente, iniciando no seio de suas mães o mistério de piedade. E por um duplo milagre, as mães profetizam sob a inspiração de seus filhos.

   O filho exultou de alegria; a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe não se antecipou ao filho; foi este que, uma vez cheio do Espírito Santo, o comunicou a sua mãe. João exultou; igualmente exultou o espírito de Maria. A alegria de João comunica-se a Isabel; de Maria, porém, não se nos diz que recebesse então o Espírito, mas que o seu espírito exultou de alegria. – Aquele que é incompreensível atuava já em sua Mãe de maneira incompreensível –. Enfim, Isabel recebe o Espírito Santo depois de conceber, Maria recebera o Espírito Santo antes de conceber. Por isso, Isabel diz a Maria: “Feliz de ti, que acreditaste” (Ofício das Leituras do dia 21 de dezembro).

Outro elemento que brota de uma fé amadurecida é a capacidade de aproximação. Vejamos: logo que recebera o anúncio do anjo, “Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judéia”. O encontro com o Senhor, a acolhida generosa da missão que lhe fora confiada, a notícia de que sua parenta estava grávida em idade avançada despertaram na Jovem de Nazaré o sentimento de solidariedade, de presença, de aproximação.

Ao “pôr-se a caminho”, Maria nos ensina a necessidade da saída. Uma fé que não nos coloca a caminho, que não provoca em nós movimento de proximidade dos mais necessitados, é uma fé morta, no dizer da Carta de Tiago (Tg 2,14). Nossa sociedade está a caminho daquilo que Jürgen Moltmann chamava de “segregarismo social”. Ou seja, tendemos a criar espaços de ajuntamento das pessoas de acordo com sua classe e necessidades: ajuntar as crianças em situação de risco ou em outras necessidades, na creche; amontoar os idosos nos asilos; confinar os delinquentes na prisão; colocar dependentes de drogas em Casas de Recuperação. 

É claro que, em certa medida, estes espaços são necessários e extremamente úteis. Percorrendo a biografia dos Santos, sobretudo dos fundadores de ordens e congregações religiosas, vemo-los preocupados com essa situação e buscando meios de reunir essas categorias de pessoas em espaços apropriados para que tivessem qualidade de vida. O problema que coloco é a terceirização dos cuidados para se “livrar”’ da pessoa. Por exemplo: ao colocar no asilo o idoso da minha casa, me livro de um “peso” que me impedia de “gozar a vida”. Segrega enquanto se constitui em busca de acercar-se de pessoas saudáveis, sem problemas. É uma forma de eugenismo, de purificação social: é preciso “limpar” a área! Realidade triste! O mesmo se pode dizer em relação aos migrantes. Negar-lhes acolhida, deixá-los morrer à míngua ou submetê-los a trabalho escravo porque eles “incham” nosso País. Não nos esqueçamos de que somos todos caminheiros, peregrinos. Peregrinamos para o fim da vida e para o “outro lado” da História.

Bem. Se se compreende a vida a partir do imediatismo, do presentismo, do gozo em detrimento dos pobres, o batismo, que nos comunica a fé, ficará desprovido de sentido. Os gestos de Jesus e de Maria, indicativos de uma fé autêntica, não encontrarão eco em nossa vida. Por conseguinte, experimentaremos, ao invés da alegria, um vazio infernal.

E não há necessidade de se fazerem coisas extraordinárias. Basta aproximar-se do vizinho entristecido; visitar e ouvir um velhinho marcado pela solidão; dar uma palavra de conforto à mãe cujo filho está na prisão; alegrar o rosto de uma criança entristecida pela separação dos pais; fazer uma visitinha a alguém que perdeu um ente querido. Emprestar o ouvido a pessoas que não têm com quem falar de suas dores e angústias. Juntar-se às pessoas que pensam e planejam organizar a rua, o bairro, o córrego em prol das políticas públicas para toda a comunidade. Enfim, são pequenos gestos, mas que dão sentido à nossa vida porque nos colocam em sintonia com o evangelho. São expressões de fé autêntica, coerente. Foi isto que Maria fez. Por isto mereceu as palavras: “És feliz porque creste”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Agere sequitur esse

aureliano, 13.12.24

3º Domingo do advento - C.jpg

3º Domingo do Advento [15 de dezembro de 2024]

[Lc 3,10-18]

Este 3º Domingo do Advento é considerado pela tradição litúrgica da Igreja, como Domingo Laetare, pela alegria que resplandece nos corações e nas mentes dos fiéis que aguardam para muito breve a celebração do Natal do Senhor: “Canta de alegria, cidade de Sião..., pois o Senhor está no meio de ti” (Sf 3,14-15). “Alegrai-vos sempre no Senhor; eu repito, alegrai-vos... O Senhor está próximo” (Fl 4,4-5). É a proclamação das leituras da Liturgia da Palavra.

Essa alegria que inunda o coração do fiel só é possível pelo perdão de Deus que é dado a quem faz um caminho de conversão. Pois o pecado é a grande fonte de tristeza e de dor para a humanidade. As alegrias da salvação que queremos alcançar, conforme a oração da missa deste domingo, estão profundamente vinculadas ao caminho que fazemos. Aqui podemos nos remeter ao início do capítulo 3º de Lucas (2º domingo do advento): João pregava um batismo de conversão para o perdão dos pecados (cf Lc 3,3). O perdão de Deus é gratuito. Mas Ele não tem como perdoar alguém que não quer se arrepender, não quer mudar de vida, não quer se converter. A conversão é a acolhida do perdão do Pai que, por sua vez, enche o coração de alegria divina.

O relato do evangelho deste domingo mostra os efeitos da pregação de João. Tocadas pelo testemunho e pelas palavras do profeta e asceta João, as pessoas começaram a perguntar: “Que devemos fazer?” Essa pergunta é reveladora do grande mistério que é o ser humano: “O ser humano supera o ser humano”, dizia Paschal. Ou seja, há uma fagulha divina dentro do ser humano que o deixa inquieto, incomodado diante da vida e da história. Ele pode fazer de conta que não existe nada, mas lá no núcleo mais secreto de sua consciência sente um apelo para algo maior do que ele mesmo e os bens que possui. É o sopro de vida insuflado pelo Criador em suas narinas, na criação (cf. Gn 2,7).

Aparecem no texto três categorias de pessoas fazendo a mesma pergunta. E o Batista lhes indica o caminho de acordo com a categoria a que pertencem. Não lhes recomenda jejum, oração, deserto ou outro ato ‘religioso’. Mas vai direto à recomendação de um agir moral, ético para resolver o problema da fome (repartir com os mais pobres), da nudez (vestir os nus: dar dignidade) e da corrupção (não aceitar propina nem sonegar ou desviar impostos) que acarretam dor e sofrimento.

Às multidões João recomenda: “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo”. Ou seja, a humanidade precisa preocupar-se, em primeiro lugar, para que ninguém passe fome nem fique ‘nu’. Que todos possam viver com dignidade através da partilha equitativa dos bens. Quantos freezers e guarda-roupas abarrotados, a ponto de não caber mais! Quantas contas bancárias gordas e quanto dinheiro em paraísos fiscais ou em bolsas de valores! Quanto dinheiro público desperdiçado, roubado, desviado! Quanta comida jogada fora, desperdiçada! Enquanto um terço da humanidade passa necessidade e fome! “Que devemos fazer?”

Aos cobradores de impostos, odiados pelos judeus, pois se enriqueciam às custas de seus correligionários, recomenda: “Não cobreis mais do que foi estabelecido”. João não lhes diz que precisam deixar o emprego. Mas que sejam honestos. Essa passagem nos faz lembrar a corrupção presente em nosso meio. É terrível conviver com gente desonesta, mentirosa, injusta, gananciosa. Desde o pobretão até o ricaço, há uma onda de desonestidade e de roubalheira escandalosa em nossa sociedade! De modo geral, se o sujeito tem oportunidade, rouba, engana, tira proveito, pede ou oferece ‘gorjeta’ para dar um “jeitinho”. Faz-se passar por bom, mas é um malvado, ganancioso que faz de tudo para enriquecer-se às custas de outros. Quem paga a conta são os pobres!

A terceira categoria que acorre a João na busca de um caminho de conversão são os soldados. João é enfático: “Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com vosso salário”. É uma condenação à violência, à dominação, ao uso da força injusta e prevalecida para tirar da pessoa o que ela tem. Uma sociedade que se diz cristã e que emprega suas maiores forças econômicas na fabricação de armas é a maior prova da distância que ainda existe entre o dizer-se cristão e o ser cristão. Temos assistido às tragédias provocadas pela posse e porte de armas. Nesses dias o Congresso Nacional aprovou a tributação de produtos da cesta básica, mas deixou de fora dos tributos ao comércio de armas munição. Por aí se vê onde estão os interesses da maioria de nossos congressistas e legisladores. Sem falar dos espertalhões que se valem dos cargos, do conhecimento das leis, dos espaços de poder, do ‘jeitinho brasileiro’, para engordarem suas contas ou escamotearem suas dívidas e compromissos seja com o Estado seja com os cidadãos que trilham o caminho da paz, do bem e da justiça.

Esse relato do evangelho nos remete a Lc 19,1-10 que trata do encontro de Jesus com Zaqueu. Aquele homem queria se encontrar com o Senhor. Mas, inicialmente, não estava disposto a mudar de vida. Quando vê Jesus entrando em sua casa, refaz seu projeto de vida! Promete fazer um caminho de conversão: “Eu reparto aos pobres a metade dos meus bens e, se prejudiquei alguém, restituo-lhe o quádruplo”. Diante deste propósito do “fazer” de Zaqueu que lhe transforma o “ser”, Jesus lhe diz: “Hoje veio a salvação a esta casa”. A salvação está, de alguma forma, condicionada à conversão. O agir ético, a caridade fraterna, a partilha dos bens, a luta pela justiça, pela igualdade de direitos e pela paz, a luta do cristão por políticas públicas, por melhoria para a população mais pobre. Em uma palavra: a saída de si, como João Batista, o “ex-cêntrico”, isto é, aquele que colocou o Senhor como centro de sua vida, é um caminho de salvação no sentido de ser uma resposta ao amor de Deus que nos salvou em Jesus Cristo.

Uma adágio latino atribuído a Santo Tomás diz que "agere sequitur esse": o agir segue o ser. Ou seja, a essência do ser humano determina seu agir. Assim, se ele é uma pessoa boa, irá praticar atos de bondade; se é uma pessoa verdadeira, irá dizer sempre a verdade; se é uma pessoa gananciosa, irá usar todos os meios possíveis para obter lucro, fazer crescer seu patrimônio financeiro. Portanto, importa cuidar bem de nosso ser, de nossa essência, daquilo que nos define nesta vida como filhos de Deus, seguidores de Jesus, a fim de que nossas nossas ações sejam marcadas pela bondade, justiça e verdade.

“Que devemos fazer?” Ele está com a pá na mão. O Trigo recolherá no celeiro, mas a palha será lançada no fogo inextinguível. Sou trigo ou palha? Qual o meu conteúdo? O que estou fazendo de minha vida? O que cultivo dentro do coração?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Isabel gerou; Zacarias falou; a vizinhança se alegrou

aureliano, 24.06.24

Natividade de João Batista.jpg

Nascimento de São João Batista [24 de junho de 2024]

[Lc 1,57-66.80]

Estamos celebrando as festas juninas. Muita manifestação de alegria por todo lado. Arraiá, dança, quadrilha, comidas típicas, canjica (mugunzá), caldo de feijão, etc. Muita coisa boa, sem dúvida. Não se pode admitir, porém, em nossas comunidades eclesiais, as malditas cerveja e cachaça, pois, no contexto de celebração religiosa cristã, fazem muito mal. É maldito o dinheiro ganho às custas da venda de bebida alcoólica em nossas comunidades eclesiais. Há famílias inteiras destruídas e em sofrimento por causa de bebida alcoólica. Pedimos aos dependentes frequentar o AA, construímos e/ou ajudamos a manter Casas de Recuperação, mas os incitamos ao vício da bebida alcoólica. Não é uma incoerência absurda? Graças a Deus nossos Bispos estão tendo a coragem de decretar a proibição da comercialização e consumo de bebida alcoólica nas quermesses e celebrações de nossas comunidades.

Embora se festejem, por vezes não se sabe a origem das festividades neste mês. Foram introduzidas no Brasil pelos portugueses desde o início da colonização. E pegou com facilidade, pois eram parecidas com as festas das culturas indígenas e africanas das quais muitos elementos foram incorporados. Neste mês a Igreja católica celebra três santos muito populares: Santo Antônio (dia 13), São João Batista (dia24) e São Pedro (dia 29). É provável que a alegria e a festa estejam mais ligadas a São João pelo mesmo fato de que, por ocasião de seu nascimento, os parentes e vizinhos ficarem muito felizes e alegres. Mas qual foi o motivo de tanta alegria?

Poderíamos elencar três razões: duas explícitas, claras, evidentes: o desatar da língua de Zacarias e a fecundidade do seio estéril de Isabel. E uma, implícita, oculta, presente apenas na interrogação: “o que virá a ser este menino?”. Aquele que veio dar “testemunho da luz”, pois “a mão do Senhor estava com ele”.

A esterilidade de Isabel e a mudez de Zacarias eram sinais do que ocorria na comunidade de Israel: ausência de fervor, de entusiasmo, de vibração por Deus, de fidelidade à Aliança.

Esterilidade de Isabel: A dominação implantada pelos romanos, aliada à cooperação da liderança religiosa e política do povo, matava a esperança da comunidade. Diversos grupos brigavam entre si disputando o poder ou tentando se livrar de um poder opressor. Além disso, o serviço e o culto verdadeiro a Deus estavam cada vez mais distantes da vida da comunidade. A capacidade generativa da comunidade estava obstruída.

Mudez de Zacarias: Esse fato evoca a voz emudecida dos profetas de então: voz calada, embargada. Não havia mais quem se levantasse, em nome de Deus, para apontar caminhos. A mudez pode significar também que a oração e o culto estavam sem expressão, sem sentido, esvaziados pela incoerência dos dirigentes do culto e da nação. Não ressoava nem aos ouvidos de Deus nem aos ouvidos da assembleia celebrante.

Santo Agostinho vai dizer que “o fato de Zacarias recuperar a voz no nascimento de João tem o mesmo significado que o rasgar-se o véu do templo, quando Cristo morreu na cruz. Se João se anunciasse a si mesmo, Zacarias não abriria a boca. Solta-se a língua, porque nasce aquele que é o voz. Com efeito, quando João já anunciava o Senhor, perguntaram-lhe: Quem és tu? (Jo 1,19). E ele respondeu:  Eu sou a voz que clama no deserto (Jo 1,21). João é a voz; o Senhor, porém, no princípio era a Palavra (Jo 1,1). João é a voz no tempo. Cristo é, desde o princípio, a Palavra eterna” (Ofício das Leituras).

Lição para nós: Não parece que essa realidade se repete em nosso meio? A palavra de Deus, as celebrações, as orações parecem estar estéreis, sem fruto, sem sentido. Não se vêem os frutos, a alegria de ser cristão. Uma vida cristã apagada, desencantada, desencarnada. E a profecia está sumida de nosso meio. Estamos vivendo um marasmo espiritual. O desencanto e a decepção tomaram conta de nós. Há uma espécie de conivência com o mal: “todo mundo faz”; “não tem mais jeito”... Esse é o grande perigo da humanidade: indiferença, desânimo, desencanto. Paralelo a isso toma corpo uma onda espiritualista, uma religiosidade baseada na emoção e na sensação. Realidade sem base, sem consistência, pobre de convicção que brota da confiança no Pai e da lucidez da razão. O Papa Francisco chama isso de “Mundanismo espiritual”.

O nascimento de João Batista irrompe o novo na história: uma mulher cheia de Deus vence a esterilidade. É a possibilidade de vida nova de onde não se esperava mais nada. Um homem que desata a língua e proclama o nome do filho: “João é o seu nome”, e prorrompe em louvor a Deus: “Bendito o Deus de Israel que visitou e libertou o seu povo”. Ou seja, Zacarias proclama que Deus é misericórdia (significado do nome João) e olhou para nós. Por isso canta: “Deus visitou e libertou o seu povo. Sobre nós fará brilhar um Sol nascente, para iluminar a todos que se acham nas trevas e nas sombras da morte”. A luz voltou a brilhar. O Sol nasceu. Agora somos aquecidos, iluminados, fecundos. João Batista aponta esse Sol que ilumina e dá novo sentido à vida. Eis o motivo da grande alegria que contagiou todos os moradores das montanhas da Judéia.

A Solenidade do Nascimento de João Batista nos ajuda a pensar na nossa missão. O que nos torna mudos diante da história? Como romper nossa mudez e celebrar, proclamar e denunciar profeticamente? Será que estamos comprometidos com o poder escuso, com o dinheiro, com a politicagem, propinas, ameaças que nos calam diante das maldades e injustiças?

Refletindo acerca da esterilidade rompida de Isabel, poderíamos perguntar: como está nossa capacidade de gerar? Geramos alegria, mais vida, fraternidade, harmonia, alegria? Ou ainda a fofoca, o preconceito, a competição, o ciúme continuam matando a vida em nós e fora de nós? A capacidade generativa do seio materno está intimamente relacionada à generosidade, à gratuidade. Como está nossa a capacidade de sermos gratuitos, generosos?

João significa “Deus é misericórdia”. Ele vem e aponta a luz que é Jesus, aquele que salva (Cf. Jo 1, 7-12). Trabalhamos em nós o sentimento de misericórdia? Podemos dizer que nossa vida aponta a luz que é Jesus? Nossas atitudes correspondem a nossas palavras, às realidades que celebramos? “É preciso que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3, 30).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Amar como Jesus amou

aureliano, 03.05.24

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6º Domingo da Páscoa [05 de maio de 2024]

[Jo 15,9-17]    

Falar em amor nesses nossos tempos tornou-se difícil e ambíguo porque esse conceito tomou várias conotações. De modo geral equivale a relações afetivo-sexuais. Daí a expressão tão corriqueira que a ‘galera’ toda entende: “fazer amor”, que equivale a “fazer sexo”.

O evangelho de hoje nos ajuda a perceber a profundidade do sentido da palavra amor. “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor” (Jo 15,9). Jesus fez a experiência do amor do Pai. O que ele viveu foi expressão de seu amor ao Pai e por nós. Ele não nos amou porque somos amáveis. Mas ele nos tornou amáveis por seu amor. Seu amor nos tornou seus amigos em vez de servos: “Já não vos chamo servos, (...) mas vos chamo amigos porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai” (Jo 15, 15).

O amor que Jesus viveu e ensinou é um amor de doação, desinteressado. Ama pelo outro e não por si mesmo. É como aquela mulher que ama seu marido, mesmo que não tenha lá muitas qualidades, mas porque ela o escolheu como marido. Ou porque tem uma motivação maior, mais sublime: ser sinal da Aliança do Pai com a humanidade. Ou mesmo pelo cuidado e amor para com os filhos etc. Outra imagem também é a de Ricardo Pinheiro, rapaz que morreu na tragédia no Largo do Paissandu, São Paulo, em 2018: antes de se salvar pela corda oferecida pelo Corpo de Bombeiros estava ajudando a resgatar vizinhos. Em uma das vezes foi visto carregando quatro crianças. Mas acabou sendo consumido pelo desabamento do prédio. Também o exemplo da professora Helley de Abreu, da creche incendiada em Janaúba, norte de Minas, em outubro de 2017. Salvou muitas crianças. Terminou vítima de sua própria doação.

Então o amor não significa antes de tudo que nós amamos a Deus, mas que Deus nos amou primeiro dando seu Filho por nós (cf. 1Jo 4,10). É um amor de gratuidade, sem limites. Ele nos amou até o fim (cf. Jo 13,1). Amar é iniciativa de Deus. Para que permaneçamos no amor precisamos de estabelecer uma intimidade profunda com Ele para que seu amor esteja em nós e não desanimemos de amar como Ele nos amou.

É interessante notar ainda que o mandamento do amor ao próximo já estava na Lei Antiga: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18). Que novidade então Jesus introduziu? A novidade do mandamento de Jesus está no “como eu vos amei”. Esse “como ele nos amou” é que torna esse mandamento diferenciado, significativo, cristão. É ter a coragem de sair de si e de dar a vida. É amar na gratuidade, sem esperar nada em troca. Ainda mesmo o céu como recompensa! Se Deus não tivesse nada a nos dar, continuaríamos a fazer o bem!

Podemos falar então de um amor como dom e de um amor como missão. O amor como dom é a entrega generosa, gratuita de Deus por nós em Jesus. Já o amor como missão é nossa capacidade de amar, fundada no amor primeiro, o de Jesus. Ele nos dá a missão de fazer multiplicar seu amor no mundo. “Nisto meu Pai é glorificado: que deis muitos frutos e vos torneis meus discípulos” (Jo 15,8).

A dinâmica do amor de Deus também não é geral: amar todo mundo indistintamente, como uma massa informe. Não! Ele ama a todos e a cada um individualmente. Tem uma amizade criadora e íntima para cada um que acolhe seu amor manifestado em Jesus.

O amor por vezes deve enfrentar as potências da morte. O amor defende a vida ameaçada, enfrenta perseguição, suporta desaforo, humilhação e maledicência por causa da justiça, da vida e da paz. Essa dimensão do amor deve ser levada em conta para não pensarmos que o amor é somente uma atitude de benevolência passiva para com alguém. Às vezes precisamos enfrentar perseguição e morte. Jesus dizia: “Se o mundo vos odeia, sabei que primeiro odiou a mim” (Jo 15,18).

No amor de Jesus não há manipulação, dominação ou submissão. É um amor que liberta, que dá autonomia, confiança. Quando Jesus nos envia a produzir frutos não é uma carga pesada que ele coloca em nossos ombros, mas é participação na missão que Ele recebeu do Pai. É comunhão com Jesus e com os irmãos. Onde há comunhão, solidariedade, doação o peso fica mais leve.

Quando Jesus diz “permanecei no meu amor” ele não fala de permanecer em uma religião, mas no seu amor. Significa que, ser cristão não é questão de doutrina, mas de amor. O fundamental da fé cristã é não se desviar do amor. É “guardar seus mandamentos”. O seu mandamento é o amor fraterno. Esse mandamento não pode ser um peso, mas fonte de alegria.

Quando falta o verdadeiro amor, caímos no vazio, na falta de sentido para a vida, na tristeza. Jesus veio preencher nosso vazio de sentido com a alegria verdadeira gerada pelo amor sem medida. É o amor que gera alegria. Sem amor cultiva-se um cristianismo triste, ressentido, pesado, insuportável.

Por vezes em nossas comunidades cristãs sobra tristeza. O peso das normas e leis, da falta de acolhida, da incompreensão, do desejo e busca de poder e de dominação dentro da comunidade, do preconceito e desprezo aos mais pobres e pequenos deixa um rastro de dor, de tristeza, de desencanto. Sente-se também a falta de convicção na fé. É a convicção que nos leva a reproduzir na vida o modo de vida de Jesus, o seu mandamento: “Amai-vos uns aos outros”.

Vamos tornar mais leves nossas relações através de uma fé mais convicta, de um seguimento mais radical a Jesus, de uma atenção e compreensão a cada um na sua necessidade e dificuldade. “Para que a minha alegria esteja em vós”. A fé cristã precisa trazer mais alegria ao mundo e à vida das pessoas, começando pela nossa família, pelos companheiros de trabalho, pelas nossas comunidades.

                Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Frades Menores, servidores da alegria

aureliano, 30.01.24

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“Queremos que você oriente nosso retiro em janeiro”, me segredava Frei Wainer, na procissão da missa do jubileu de 50 anos da Congregação dos Frades Menores Missionários, em 15 de agosto de 2023. “Mas eu nunca orientei retiro para padres! Não dou conta disso, não!” respondi.

Ficou de fazer contato depois. E insistiu que eu assumisse, inclusive enviando a data: 24 a 30 de janeiro de 2024. Falei com o Frei Gabriel, mano querido que pertence à Congregação. E ele me asseverou que Frei Wainer é o responsável pela equipe de espiritualidade da Congregação e é ele quem cuida disso.

Em setembro o Frei volta a insistir. Não tive alternativa: assumi dizendo que iria rezar com eles e propor algumas coisas. Mas no dia que não desse certo, rezaríamos o terço etc.

Desde então vim pensando algumas propostas de oração. Em meio a várias situações novas que se sucederam: minha transferência de paróquia, minha cirurgia da tireóide e outras coisas mais. E o serviço na paróquia aumentando. Mas, finalmente me ocorreu um tema: “Caminhos de santidade”. A partir de então comecei a elaborar o cronograma do retiro. Aos poucos fui preenchendo o esqueleto.

Parti para o sul com o coração da mão e o conteúdo do retiro por terminar. Chegando a Curitiba dia 23/02 às 23:30, frei Amarildo, Ministro Geral, já estava lá, generosamente, para me levar a Ponta Grossa, convento São Francisco, onde se daria o retiro. Frei Antônio Roberto encaminhara tudo, inclusive a única suíte do convento muito bem arrumada. Ah! São duas: encontrei mais uma no corredor do convento.

Eu já sabia que o grupo é muito simples, muito acolhedor etc. Mas temia pelo nível acadêmico e pastoral dos frades. Porém todos estavam abertos, serenos, tranquilos, acolhedores. “Como Deus é bom!” exclamaria meu velho e finado pai.

Como a fraternidade e a simplicidade dessa Congregação marcam a gente! Na verdade, eu vim para orientar um retiro. Mas fui eu que fiquei enriquecido, edificado com o testemunho destes filhos de Francisco de Assis. No grupo de quase quarenta participantes, havia religiosas do ramo feminino da Congregação, noviços, pré-noviços, vocacionados. Um rol de pessoas dos mais variados tempos de vida religiosa encantadas pelo exemplo de Francisco de Assis.

Forma sancti evangelii” (assumir a forma do Santo Evangelho) foi a regra de vida que Francisco de Assis deu a seus irmãos. Anos depois fez alguns adendos à regra, mas para o Pobrezinho de Assis, o frade tem como norma absoluta de vida assumir o Santo Evangelho em sua vida. Viver e amar a Irmã Pobreza e anunciar o Evangelho da Paz.

E os Frades Menores Missionários assumiram essa forma de vida!

Como é admirável contemplar a vida dos frades menores missionários no Convento São Francisco, em Ponta Grossa/PR! Simplicidade, despojamento, fraternidade, alegria.

Os banheiros e lavatórios são comunitários. Lavanderia cheia de frades entrando e saindo lavando suas próprias roupas. Instalados cada um numa celinha de 3x2m², com uma simples cama, uma mesinha, às vezes uma estante; idosos e jovens, Geral e Guardião, todos na mesma condição, sem privilegiados. Muitos se movimentando durante os intervalos, sem perder o espírito orante do retiro, para manter a ordem e relativa limpeza dos espaços comunitários bem como preparar os ambientes litúrgicos para as celebrações.

Ninguém murmura nem reclama de nada. Todos alegres, satisfeitos, orantes, ajudando-se mutuamente. A uma palavra do Ministro Geral: “Precisamos de voluntários para lavar a louça do almoço e da janta todos os dias”, acolhida serena. Imediatamente, vários estão lá, no serviço solicitado.

Café da manhã: por equipes. Pelas 05:00h já estão se movimentando na cozinha e refeitório do convento para deixar o café pronto e participarem do Ofício Divino às 07:00h. Impreterivelmente, todos na capela, numa liturgia lindamente preparada pela equipe do dia e celebrada piedosamente por todos. Aliás, uma beleza de momentos celebrativos que eram pelo menos cinco durante o dia!

Vi aqui homens que procuram viver o Evangelho, como propôs São Francisco. A fraternidade, a ajuda mútua, a simplicidade na veste (hábitos remendados, puídos), a piedade e bom gosto nas celebrações, o espírito de obediência, o despojamento e a alegria! Não obstante as fraquezas humanas, vi aqui homens desejosos e empenhados em seguir a Jesus Cristo, a serem franciscanos de verdade. Homens de Igreja, servidores do Reino de Deus.

Vim temeroso, inseguro, desconfiado de mim mesmo. Volto fortalecido, revigorado pela participação na experiência de vida dos frades menores missionários. São homens de Deus! São servidores da alegria! A Igreja se enriquece com sua presença e missão.

“Altíssimo, onipotente, bom Senhor,

Teus são o louvor, a glória, a honra e toda a bênção.

Só a ti, Altíssimo, são devidos;

E homem algum é digno de te mencionar.

Louvado sejas, meu Senhor,

Com todas as tuas criaturas” (Cântico das criaturas).

Ponta Grossa, PR, 30 de janeiro de 2024.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Alegrem-se: a morte foi vencida!

aureliano, 08.04.23

Domingo da Ressurreição - 09 de abril.jpg

Páscoa do Senhor [09 de abril de 2023]

[Jo 20,1-9; Mt 28,1-10]

Pedro e Madalena representam, aqui, a comunidade que ainda duvidava da ressurreição de Jesus. Estavam em busca de provas e elementos que dessem sentido à vida deles, uma vez que, aquele em quem confiavam, morrera na cruz.

Quando o evangelho menciona “o primeiro dia da semana”, remete o leitor à criação do mundo, narrada no livro do Gênesis, para mostrar que a Ressurreição de Jesus é a Nova Criação. O fiel cristão, batizado, entra numa vida nova, na Nova Criação de Deus. O mundo velho passou. Agora, é tudo novo.

A “madrugada” lembra o alvorecer que desfaz as trevas da morte. Agora a vida brilhou no horizonte. A madrugada, embora traga em si o sinal do dia, possui também uma penumbra que impede de enxergar com clareza. É o que acontecia com Maria Madalena: “ainda estava escuro”. A comunidade ainda estava temerosa.

A “pedra removida” e o “túmulo vazio” são sinais de que algo novo aconteceu. É um sinal negativo da ressurreição. Esses sinais indicavam que Jesus não estava ali, porém não garantiam sua ressurreição.  A “pedra removida” significa que a morte foi vencida. O túmulo não é o último lugar do ser humano. Este, pelo Cristo ressuscitado, vence também a morte e entra na vida que não tem fim, a vida eterna que já começara aqui, a partir da vida vivida em Deus, à semelhança de Cristo.

O “túmulo vazio” não é prova da ressurreição. A fé na ressurreição não vem da visão, mas da experiência de fé. As “aparições” de Jesus ressuscitado é que vão consolidar a fé dos discípulos. É o dado da fé. Uma realidade que transcende a razão. Não contradiz a razão, mas está para além da compreensão puramente racional. Por isso Santo Agostinho dirá: “Credo ut intelligam”: creio para compreender. Nós cremos pelo testemunho de fé da comunidade. A fé nos é transmitida. Cremos a partir da experiência que outros fizeram. Fazendo nós também essa experiência, transmitimo-la àqueles que a buscam. Porém, tudo é ação da Graça de Deus.

Pedro e o “outro discípulo” vão correndo ao túmulo. O “discípulo amado” chega primeiro que Pedro. Quem ama tem pressa. Ele “viu, e acreditou”. É o amor que faz reconhecer na ausência (túmulo vazio) a presença gloriosa do Cristo ressuscitado. Agora os discípulos entendem o que significa “ressuscitar dos mortos”. Agora eles vêem, não com os olhos humanos, mas com os olhos da fé. Agora estão iluminados pelo sopro do Espírito Divino que animou Jesus.

Nenhum evangelista se atreveu a narrar a ressurreição de Jesus. Não é um fato “histórico” propriamente dito, como tantos outros que acontecem no mundo e que podemos constatar e verificar, empiricamente. É um “fato real”, que aconteceu realmente. Para nós cristãos, é o fato mais importante e decisivo que já aconteceu na história da humanidade. Um acontecimento que traz sentido novo à vida humana, que fundamenta a verdadeira esperança, que traz sentido para uma das realidades mais angustiantes do ser humano: a morte. Esta não tem mais a última palavra. A pedra que fechava o túmulo foi retirada. A ressurreição é um convite, em última instância, a crer que Deus não abandona aqueles que o amaram até o fim, que tiveram a coragem de viver e de morrer por Ele.

O núcleo central da ressurreição de Jesus é o encontro que os discípulos fizeram com ele, agora cheio de vida, a transmitir-lhes o perdão e a paz. Daqui brota a missão: transmitir, comunicar aos outros essa experiência nova e fundante de suas vidas. Não se trata de transmitir uma doutrina, mas despertar nos novos discípulos o desejo de aprender a viver a partir de Jesus e se comprometer a segui-lo fielmente.

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ELE VIVE PARA ALÉM DA MORTE

O Senhor ressuscitou em verdade (cf Lc 24, 34). A Igreja celebra a ressurreição do Senhor no primeiro dia da semana, o domingo. Domingo vem de dominus, senhor. Ele dominou a morte e o pecado. Por isso é Senhor. Ele exerce o senhorio sobre nós. Nós somos seus servos, servidores do Reino de Deus que Jesus inaugurou.

O evangelho diz que Maria Madalena foi ao túmulo “quando ainda estava escuro”. Essa escuridão simboliza as sombras (angústias) vividas pelos discípulos após a morte de Jesus. Era como se todo o sonho tivesse acabado. Não sabiam o que fazer. Estavam na escuridão.

O testemunho da ressurreição inclui dois elementos: o sepulcro vazio e a aparição do Ressuscitado. O sepulcro vazio constitui um sinal negativo. Só fala ao “discípulo que ele amava”: “Ele viu e acreditou”. Ou seja, os sinais falam quando o coração está aquecido pelo amor. É preciso ser amigo de Jesus para compreender seus sinais. Já a aparição do Ressuscitado acontece no caminho de Emaús (Lc 24), aos discípulos desejosos de ver o Senhor e auscultar sua Palavra. No gesto da partilha do pão seus olhos se abrem e eles o reconhecem. Em seguida assumem a missão: “Naquela mesma hora, levantaram-se e voltaram para Jerusalém” (Lc 24, 33).

A escuridão da madrugada e o túmulo vazio nos dizem que por vezes ficamos confusos diante da maldade humana, diante de tantos abusos do poder, de tanta violência e morte, de tanta corrupção que desencanta e desestimula o poder do voto nas eleições, diante do sofrimento sem fim dos refugiados de guerras civis, diante das vítimas desassistidas do covid-19, diante da fome e do desmonte das políticas públicas; e somos levados a perguntar: “Deus, onde estás?”. Mas a experiência de fé nos diz que na morte (‘túmulo vazio’, ‘noite’) há sinais de vida; na escuridão há lampejos de luz. Para isso é preciso ser “amigo de Jesus” (discípulo amado), ou seja, ser próximo dele, conviver com ele, reclinar-se sobre seu peito (cf. Jo 13,25).

Esse tempo pascal nos convida a assumir a vida nova que Jesus Ressuscitado veio nos trazer sendo uma presença de luz, de testemunho vivo contra toda maldade junto àqueles que o Pai colocou no nosso caminho.

Ressurreição é luta contra o tráfico de seres humanos, contra as injustiças sociais, contra a prostituição e abuso de crianças e adolescentes. É dizer não ao desrespeito aos povos indígenas, ao mundo das drogas, à indiferença ecológica. Ressurreição é se contrapor, ainda que à semelhança de alguém que ‘clama no deserto’, a esse mar de corrupção e mentiras, ganância e deslealdade que pervadem nossa sociedade brasileira; é dizer não aos desmandos de quem se julga no direito de retirar o pão da mesa dos trabalhadores pobres, das mulheres sofridas, das crianças sem amparo, negando-lhes o salário mínimo do benefício da Previdência Social. Páscoa é libertação de tudo o que oprime, maltrata e fere.

Ressurreição é ser testemunha da esperança numa sociedade materialista e desumana, onde o túmulo está vazio e as sombras da morte parecem prevalecer. Páscoa é continuar afirmando com a vida: “Ele vive e está no meio de nós!”. A obscuridade e o desalento trazidos pelo coronavírus, levando as pessoas ao desencanto e ao adoecimento emocional, bem como a realidades de dor e sofrimento, não são o fim. O Senhor está vivo e caminha conosco. Como aos discípulos de Emaús, ele abre nossos olhos para enxergarmos o mundo com um novo olhar: “Então seus olhos se abriram e eles o reconheceram” (Lc 24,31). Somente o encontro com o Senhor Ressuscitado é capaz de nos devolver a verdadeira alegria de viver, como ao etíope, funcionário de Candace, rainha da Etiópia: “Prosseguiu na sua jornada alegremente” (At 8,39).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Vinho novo: a alegria de ser cristão

aureliano, 15.01.22

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2º Domingo do Tempo Comum [16 de janeiro de 2022]

[Jo 2,1-11]

Estamos no Tempo Comum da liturgia da Igreja. Esse tempo é caracterizado pelo cotidiano, que não deve ser menosprezado, mas alimentado pela contemplação dos mistérios da vida de Cristo. A cor verde recorda a esperança que deve alimentar o cristão, e o pinheiro, árvore forte, recorda ao cristão que deve ser forte e perseverante em meio às intempéries da vida.

O evangelho deste 2º domingo do Tempo Comum vem como que coroar todo o mistério natalino que acabamos de celebrar. É o início da vida pública de Jesus.

“Este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele”. Este versículo é vital para a interpretação deste “Sinal” realizado por Jesus O acontecimento de Caná da Galileia foi decisivo para que os discípulos acreditassem em Jesus.

Notem que João não chama de milagre, mas de sinal. O que Jesus realizou era um “sinal’ (o primeiro dos sete que João narrará ao longo do evangelho) de sua messianidade já anteriormente reconhecida: Cordeiro de Deus (Jo 1,29.36), Messias (Jo 1,41), aquele sobre quem escreveu Moisés e os profetas (Jo 1,45), Filho de Deus e Rei de Israel (Jo 1,49). É uma confirmação para os discípulos de tudo aquilo que fora dito a seu respeito.

“Seus discípulos creram nele”. Para o seguimento de Jesus era imprescindível a fé. Esta leva a agir segundo as palavras e as atitudes de Cristo. Aquele que crê empenha-se sempre na prática da justiça e da fraternidade, da concórdia e da paz, do cuidado e defesa da vida. O agir daquele que crê assume contornos novos. Quem crê assume as atitudes de Jesus: “Vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim. Pois a minha vida presente na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20).

Tratando-se de Igreja, a fé é vital para que haja renovação na vida pessoal, eclesial, social e comunitária. Bento XVI, na Carta Apostólica Porta Fidei afirma: “A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho prestado pela vida dos crentes: de fato, os cristãos são chamados a fazer brilhar, com sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou” (nº 6).

No relato, João afirma que Jesus fez um “sinal”: transformou a água em vinho numa festa de casamento. Aqui se faz necessário certo nível de abstração para que nosso espírito adentre no que o texto quer dizer. Ele não está falando de casamento, simplesmente. Este relato precisa ser interpretado à luz da intencionalidade de João ao escrever seu evangelho: o noivo é Jesus, a água e as jarras são a Lei, o vinho novo é a presença inovadora da vida e do ensinamento de Jesus, Maria é a comunidade eclesial etc. Enfim, todos os elementos deste relato estão carregados de sentido e significados para despertarem e gerarem a fé nos discípulos.

A ‘glória’ e a ‘hora’ de que fala Jesus se concretizarão mais tarde em sua morte na cruz.: “Agora o Filho do Homem é glorificado, e Deus foi glorificado por ele” (Jo 13,31). E na oração ao Pai, antes da paixão, diz: “Pai, é chegada a hora, glorifica o teu Filho, a fim de que o teu Filho te glorifique” (Jo 17,1).

A propósito da expressão “mulher”, entendemos que Jesus tencionava falar da Igreja. Maria sua mãe é ícone dessa Igreja sonhada que ele sonhou. Na cruz ele volta à expressão, cumprindo a sua “hora”: “Vendo assim sua mãe, e perto dela o discípulo que ele amava, Jesus disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí o teu filho’. A seguir disse ao discípulo: ‘Eis a tua mãe’” (Jo 19,26-27). Maria, a mulher atenta à falta de vinho na festa, estava presente ao pé da cruz. Ali é feita mãe dos crentes. Maria é bendita porque é a mulher que acreditou (cf. Lc 1,45).

A liturgia da Palavra de hoje nos leva a pensar e a rezar um pouco mais nossa vida de fé. Sem entrar na ‘festa de casamento’ que o Pai nos preparou em seu Filho não é possível uma dinâmica de fé que nos faça pensar e agir de modo novo, vibrante, entusiasmado, transformador.

Aquele vinho novo que deve ser ‘bebido’ por nós, significa também todos nós, Igreja de Jesus. Não podemos continuar como água engarrafada, parada, represada, sem sentido. Deixemos o Pai nos transformar em vinho novo, para levar alegria e alento a tantas pessoas desiludidas, sem voz e sem vez. Há muita gente sem alegria, sem esperança, sem sentido de vida. Se experimentamos o vinho novo, que é a própria vida de Jesus, seremos sua extensão na história.

A ordem que a Mãe de Jesus nos transmite com seu agir discreto e oportuno é clara: “Fazei tudo o que ele vos disser”.

Um pensamento do Pe. Pagola poderá ajudar-nos a entender melhor o ‘vinho novo’ trazido por Jesus e tão necessário à sociedade em que vivemos:

 “Estas bodas anônimas nas quais os esposos não têm rosto nem voz própria, é figura da antiga aliança judia. Nestas bodas falta um elemento indispensável. Falta o vinho, sinal da alegria e símbolo do amor, como cantava o Cântico dos Cânticos.            

É uma situação triste que só se transformará pelo ‘vinho’ novo trazido por Jesus. Um ‘vinho’ que só o saboreia quem crê no amor gratuito de Deus Pai e vive animado pelo espírito de verdadeira fraternidade.

Vivemos numa sociedade em que, cada vez mais, se enfraquece a raiz cristã do amor fraterno desinteressado. Com frequência o amor se reduz a uma troca mútua, prazerosa e útil, em que as pessoas buscam somente seu próprio interesse. No entanto se pensa, talvez, que é melhor amar que não amar. Porém, na prática, muitos estariam de acordo com aquele princípio anticristão de S. Freud: ‘Se amo alguém, é preciso que este o mereça por alguma razão” (Pe. José Antônio Pagola).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Uma grande alegria: Deus está no meio de nós

aureliano, 24.12.21

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Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo [25 de dezembro de 2021]

[Lc 2,1-14]

Durante quatro semanas viemos nos preparando para a celebração do Natal. A cada domingo uma vela era acesa na Coroa do Advento. O acender progressivo das velas – uma por semana – quis significar a Luz que brilhou progressivamente nas trevas. A expectativa dessa Luz vem de longa data. No século VIII a. C., o Primeiro Isaías já a anunciava: “O povo que andava na escuridão viu uma grande luz; para os que habitavam as sombras da morte uma luz resplandeceu” (Is 9,10).

As trevas são o egoísmo que insiste em impedir a entrada da Luz de Deus na história, no coração humano. A força da luz, porém, é maior do que as trevas do pecado. Embora este insista em prevalecer através da ganância, do consumismo, da competição desleal, da exploração, do desrespeito, da corrupção, do preconceito, da indiferença. Porém, “A graça de Deus se manifestou trazendo salvação para todos os homens” (Tt 2,11). Para que a luz vença as trevas é preciso, porém, que o ser humano abandone a “impiedade e as paixões mundanas” vivendo “neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade” (Tt 2,12).

A sociedade pós-moderna e neoliberal sufoca o sentido do Natal. E os cristãos vão perdendo de vista seu sentido verdadeiro. As compras de presentes e mais presentes, despesas inúteis, gastos e festas com verniz de generosidade, bondade e emoção. Ações de momento que não trazem a libertação verdadeira do ser humano. Pelo contrário, costuma aprisioná-lo ainda mais nas malhas de uma ideologia assistencialista, por vezes marcada por um espiritualismo alienante ou uma fé emocionalista que proclama: “Deus mandou isso para você!”. “Tenha fé que você vai conseguir!”. “Levante a mão quem aceita a salvação”. “Tive uma revelação: você está sendo curado nesse momento”. Fica parecendo que as dificuldades da vida se resolvem como num passe de mágica! Vamos sair dessa fé infantil e artificial e viver uma fé mais madura, mais consistente! Chega de enganar as pessoas ou de iludir-se a si mesmo! Há programas religiosos de rádio e televisão que se dizem cristãos, mas que não têm nada a ver com o Evangelho, com Jesus de Nazaré! Insistem em mensagens que alimentam uma fé infantil, uma fé com capa cristã, mas com miolo pagão.

O Jesus que celebramos neste Natal é gente de verdade. Um menino pobre, filho de um casal de trabalhadores anônimos da Galiléia. Experimenta a condição dos excluídos: nasce entre os pastores – pois não havia lugar na hospedaria da cidade – excluídos e odiados pelos citadinos porque o rebanho era ameaça às lavouras dos proprietários de terra residentes na cidade. Não veio justificar a exclusão e a miséria que atingia (e atinge ainda hoje) a maior parte da humanidade. Nem muito menos endossar o assassinato de pequenos indefesos. – Isso foi atitude de Herodes, perseguidor de Jesus por medo de perder o poder –. Jesus, pelo contrário, veio para anunciar que o Reino de Deus é partilha, é respeito, é acolhida das diferenças, é vida em abundância para todos. E que todos nós que nos dizemos cristãos, só o seremos de fato quando nos comprometermos com o Evangelho que ele veio anunciar.

O “Filho de Davi” nasce entre os pastores na cidade de Belém, a cidade de Davi. Este rei, quando menino, era pastor. Foi consagrado para ser o pastor de Israel. Porém, assediado pelo poder, assumiu uma postura de rei poderoso. E perpetrou muitos atos de maldade e de infidelidade, muito embora tenha pedido perdão. Porém, aquele que devia ser a salvação de Israel descenderia de Davi. Ao nascer, o faz em meio aos pastores para lembrar que veio para ser pastor do rebanho, e não para se servir das ovelhas (cf. Ez 34). – Quando olhamos para os dirigentes e legisladores de nosso País (e quase todos se dizem cristãos!), que metem a mão no dinheiro público para fazerem lobby (influência) junto ao grande capital e aos eleitores, somos acometidos por uma grande decepção e indignação: as ovelhas estão sendo devoradas e/ou abandonadas pelos lobos travestidos de pastores!

O sinal para identificar o menino é também interessante: “Um recém-nascido envolto em faixas e deitado numa manjedoura”. É o sinal da mudança de valores: aqueles que esperavam um Messias poderoso não poderão encontrá-lo. A salvação brota do meio dos marginalizados, dos simples, dos pequeninos. Os sinais para encontrá-lo não são luzes brilhantes, nem milagres estupendos, nem roupas de grife. Mas “um recém-nascido envolto em faixas”. Ademais os primeiros a visitá-lo não são os dignitários da cidade, mas os simples pastores. Sua presença como primeiras testemunhas do nascimento do Salvador evidencia a gratuidade e simplicidade de Deus, que dispensa aparatos oficiais.

Eis, pois, a grande Luz que nos enche de alegria. Experimentar e contemplar a salvação de Deus, em Jesus, deve ser motivo de profunda alegria para todos nós: “Eis que eu vos anuncio uma grande alegria”. Renunciando às trevas do egoísmo, colocamo-nos na grande Luz de Deus. Nesse encontro amoroso e gratuito com o Senhor, somos fortalecidos para continuar trabalhando em favor dos excluídos, dissipando as trevas com a luz que recebemos de Deus na participação da vida divina que nos mereceu Jesus pela sua morte e ressurreição. Então não precisamos temer as trevas, pois em Jesus recebemos “graça sobre graça” (Jo 1,16).

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POR QUE 25 DE DEZEMBRO?

Muita gente pensa que o dia 25 de dezembro é a data do aniversário de Jesus. Porém é preciso esclarecer que não se tem nenhum registro do dia nem do mês em que Jesus nasceu. O que se sabe com bastante certeza é que terá nascido entre os anos 04 e 06 antes da Era Cristã.

E como se estabeleceu o dia 25 de dezembro para celebrar o Natal do Senhor? É que em Roma, nesta data, se celebrava o “Nascimento do Sol Invicto”. Ou seja, na noite mais longa e no dia mais curto, devido à distância entre o sol e a linha do equador, acreditava-se que o sol “renascia”. Era o solstício do inverno, ou seja, a volta do sol que marcava o fim do inverno e início do verão. Como o sol representava uma divindade pagã, 25 de dezembro era dia de festa religiosa. Ora, a Igreja, com a sabedoria que lhe é própria, valeu-se deste fato para introduzir os cristãos na celebração daquele que é o Sol que não tem ocaso, a Luz definitiva da vida do fiel, o “Sol Invicto”. Assim, os pagãos que se convertiam à fé eram introduzidos na celebração de Jesus Cristo, a “Sol nascente que brilha nas trevas” (cf. Lc 1, 78-79). A festa pagã foi cristianizada.

Se na Igreja Romana se celebra o Natal no dia 25 de dezembro pelas razões aludidas, a Igreja Oriental celebra esta mesma solenidade no dia 06 de janeiro, denominando-a Epifania, Manifestação do Senhor. Neste dia os cristãos de rito oriental celebram numa mesma liturgia o nascimento do Salvador e a visita dos Reis Magos (Dia de Reis).

O que tudo isso importa para nós? Que a liturgia da Igreja é sempre uma busca de inculturar a fé na realidade que vivemos. Símbolos e celebrações pagãs foram cristianizados e introduzidos na liturgia cristã para que o ensinamento e a vida de Jesus encontrem ressonância dentro de nós e nos ajudem a transparecer na vida cotidiana as realidades que celebramos na liturgia.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

A alegria que brota de uma fé operante

aureliano, 17.12.21

4º Domingo do Advento [19 de dezembro de 2021]

[Lc 1,39-45]

Depois de celebrarmos o Domingo da Alegria, a proximidade da celebração do grande Dom de Deus para humanidade, a Igreja nos chama a dar mais uma olhadinha para dentro de nós. Se no domingo passado (Lc 3,10-18), João Batista nos chamava a uma mudança de atitude diante da vida, uma postura ética responsável: “que devemos fazer?”, hoje se nos é apresentada a figura de Maria, Mãe de Jesus, como modelo de mulher de fé consequente.

O evangelho relata o episódio do encontro de duas mulheres: Maria e Isabel. Os varões não aparecem - nem José! Duas mulheres de fé profunda, convicta. Uma, a Mãe do Senhor; outra, a mãe do Precursor. Em inteira disponibilidade nas mãos do Pai. Disseram com o Filho: “Eu vim, ó Deus, para fazer vossa vontade” (Hb 10,9). Não buscam a si mesmas. Colocam toda sua vida, na juventude ou na senectude, a serviço do Senhor. – Felizes dos filhos cujas mães são cheias de fé, plenas de Deus, cheias de alegria, tomadas pelo espírito de serviço!

O relato evangélico nos faz notar que a fé acolhida e vivida traz profunda alegria. Maria, ao aproximar-se e saudar Isabel grávida, faz a criança saltar de alegria no ventre da mãe. Não o faz pela própria força, mas pela ação do Redentor que ora traz em seu seio. Aquela Força do Alto trazida por Maria em seu ventre, provoca a alegria em João e enche Isabel do Espírito Santo. Então, quando Maria diz sim ao Pai e assume participar do projeto de salvação da humanidade, leva a alegria ao coração das pessoas, pois ela mesma já recebera a Alegria de Deus: “Alegra-te, cheia de graça”.

E Isabel exclama: “Feliz és tu que creste”. É o reconhecimento de que Maria era uma mulher plena da felicidade que brota de uma fé acolhida e vivida com intensidade. E vê em Maria aquela escolhida para trazer a Bênção de que a humanidade precisava para ser feliz: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre”.

Ouçamos ainda o que diz Santo Ambrósio:

Repara como cada palavra está escolhida com perfeita precisão e propriedade: Isabel foi a primeira a escutar a voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça. Aquela escutou segundo a ordem da natureza; este exultou em virtude do mistério. Ela apreendeu a chegada de Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz da mulher; o menino sentiu a presença do Filho. Aquelas proclamam a graça de Deus, estes realizam-na interiormente, iniciando no seio de suas mães o mistério de piedade. E por um duplo milagre, as mães profetizam sob a inspiração de seus filhos.

   O filho exultou de alegria; a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe não se antecipou ao filho; foi este que, uma vez cheio do Espírito Santo, o comunicou a sua mãe. João exultou; igualmente exultou o espírito de Maria. A alegria de João comunica-se a Isabel; de Maria, porém, não se nos diz que recebesse então o Espírito, mas que o seu espírito exultou de alegria. – Aquele que é incompreensível atuava já em sua Mãe de maneira incompreensível –. Enfim, Isabel recebe o Espírito Santo depois de conceber, Maria recebera o Espírito Santo antes de conceber. Por isso, Isabel diz a Maria: “Feliz de ti, que acreditaste” (Ofício das Leituras do dia 21 de dezembro).

Outro elemento que brota de uma fé amadurecida é a capacidade de aproximação. Vejamos: logo que recebera o anúncio do anjo, “Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judéia”. O encontro com o Senhor, a acolhida generosa da missão que lhe fora confiada, a notícia de que sua parenta estava grávida em idade avançada despertaram na Jovem de Nazaré o sentimento de solidariedade, de presença, de aproximação.

Ao “por-se a caminho”, Maria nos ensina a necessidade da saída. Uma fé que não nos coloca a caminho, que não provoca em nós movimento de proximidade dos mais necessitados, é uma fé morta, no dizer da Carta de Tiago (Tg 2,14). Nossa sociedade está a caminho daquilo que Jürgen Moltmann chamava de “segregarismo social”. Ou seja, tendemos a criar espaços de ajuntamento das pessoas de acordo com sua classe e necessidades: ajuntar as crianças em situação de risco ou em outras necessidades, na creche; amontoar os idosos nos asilos; confinar os delinquentes na prisão; colocar dependentes de drogas em Casas de Recuperação. 

É claro que, em certa medida, estes espaços são necessários e extremamente úteis. Percorrendo a biografia dos Santos, sobretudo dos fundadores de ordens e congregações religiosas, vemo-los preocupados com essa situação e buscando meios de reunir essas categorias de pessoas em espaços apropriados para que tivessem qualidade de vida. O problema que coloco é a terceirização dos cuidados para se “livrar”’ da pessoa. Por exemplo: ao colocar no asilo o idoso da minha casa, me livro de um “peso” que me impedia de “gozar a vida”. Segrega enquanto se constitui em busca de acercar-se de pessoas saudáveis, sem problemas. É uma forma de eugenismo, de purificação social: é preciso “limpar” a área! Realidade triste! O mesmo se pode dizer em relação aos migrantes. Negar-lhes acolhida, deixá-los morrer à míngua ou submetê-los a trabalho escravo porque eles “incham” nosso País. Não nos esqueçamos de que somos todos caminheiros, peregrinos. Peregrinamos para o fim da vida e para o “outro lado” da História.

Bem. Se se compreende a vida a partir do imediatismo, do presentismo, do gozo em detrimento dos pobres, o batismo, que nos comunica a fé, ficará desprovido de sentido. Os gestos de Jesus e de Maria, indicativos de uma fé autêntica, não encontrarão eco em nossa vida. Por conseguinte, experimentaremos, ao invés da alegria, um vazio infernal.

E não há necessidade de se fazerem coisas extraordinárias. Basta aproximar-se do vizinho entristecido; visitar e ouvir um velhinho marcado pela solidão; dar uma palavra de conforto à mãe cujo filho está na prisão; alegrar o rosto de uma criança entristecida pela separação dos pais; fazer uma visitinha a alguém que perdeu um ente querido. Emprestar o ouvido a pessoas que não têm com quem falar de suas dores e angústias. Juntar-se às pessoas que pensam e planejam organizar a rua, o bairro, o córrego em prol das políticas públicas para toda a comunidade. Enfim, são pequenos gestos, mas que dão sentido à nossa vida porque nos colocam em sintonia com o evangelho. São expressões de fé autêntica, coerente. Foi isto que Maria fez. Por isto mereceu as palavras: “És feliz porque creste”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“Que devemos fazer?”

aureliano, 10.12.21

3º Domingo do Advento [12 de dezembro de 2021]

[Lc 3,10-18]

Este 3º Domingo do Advento é considerado pela tradição litúrgica da Igreja, como Domingo Laetare, pela alegria que resplandece nos corações e nas mentes dos fiéis que aguardam para muito breve a celebração do Natal do Senhor: “Canta de alegria, cidade de Sião..., pois o Senhor está no meio de ti” (Sf 3,14-15). “Alegrai-vos sempre no Senhor; eu repito, alegrai-vos... O Senhor está próximo” (Fl 4,4-5). É a proclamação das leituras da Liturgia da Palavra.

Essa alegria que inunda o coração do fiel só é possível pelo perdão de Deus que é dado a quem faz um caminho de conversão. Pois o pecado é a grande fonte de tristeza e de dor para a humanidade. As alegrias da salvação que queremos alcançar, conforme a oração da missa deste domingo, estão profundamente vinculadas ao caminho que fazemos. Aqui podemos nos remeter ao início do capítulo 3º de Lucas (2º domingo do advento): João pregava um batismo de conversão para o perdão dos pecados (cf Lc 3,3). O perdão de Deus é gratuito. Mas Ele não tem como perdoar alguém que não quer se arrepender, não quer mudar de vida, não quer se converter. A conversão é a acolhida do perdão do Pai que, por sua vez, enche o coração de alegria divina.

O relato do evangelho deste domingo mostra os efeitos da pregação de João. Tocadas pelo testemunho e pelas palavras do profeta e asceta João, as pessoas começaram a perguntar: “Que devemos fazer?” Essa pergunta é reveladora do grande mistério que é o ser humano: “O ser humano supera o ser humano”, dizia Paschal. Ou seja, há uma fagulha divina dentro do ser humano que o deixa inquieto, incomodado diante da vida e da história. Ele pode fazer de conta que não existe nada, mas lá no núcleo mais secreto de sua consciência sente um apelo para algo maior do que ele mesmo e os bens que possui. É o sopro de vida insuflado pelo Criador em suas narinas, na criação (cf. Gn 2,7).

Aparecem no texto três categorias de pessoas fazendo a mesma pergunta. E o Batista lhes indica o caminho de acordo com a categoria a que pertencem. Não lhes recomenda jejum, oração, deserto ou outro ato ‘religioso’. Mas vai direto à recomendação de um agir moral, ético para resolver o problema da fome (repartir com os mais pobres), da nudez (vestir os nus: dar dignidade) e da corrupção (não aceitar propina nem sonegar ou desviar impostos) que acarretam dor e sofrimento.

Às multidões João recomenda: “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo”. Ou seja, a humanidade precisa preocupar-se, em primeiro lugar, para que ninguém passe fome nem fique ‘nu’. Que todos possam viver com dignidade através da partilha equitativa dos bens. Quantos freezers e guarda-roupas abarrotados, a ponto de não caber mais! Quantas contas bancárias gordas e quanto dinheiro em paraísos fiscais ou em bolsas de valores! Quanto dinheiro público desperdiçado, roubado, desviado! Quanta comida jogada fora, desperdiçada! Enquanto um terço da humanidade passa necessidade e fome! “Que devemos fazer?”

Aos cobradores de impostos, odiados pelos judeus, pois se enriqueciam às custas de seus correligionários, recomenda: “Não cobreis mais do que foi estabelecido”. João não lhes diz que precisam deixar o emprego. Mas que sejam honestos. Essa passagem nos faz lembrar a corrupção presente em nosso meio. É terrível conviver com gente desonesta, sacana, injusta, gananciosa. Desde o pobretão até o ricaço, há uma onda de desonestidade e de roubalheira escandalosa em nossa sociedade! De modo geral, se o sujeito tem oportunidade, rouba, engana, tira proveito, pede ou oferece ‘gorjeta’ para dar um “jeitinho”. Faz-se passar por bom, mas é um malvado, ganancioso que faz de tudo para enriquecer-se às custas de outros. Quem paga a conta são os pobres!

A terceira categoria que acorre a João na busca de um caminho de conversão são os soldados. João é enfático: “Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com vosso salário”. É uma condenação à violência, à dominação, ao uso da força injusta e prevalecida para tirar da pessoa o que ela tem. Uma sociedade que se diz cristã e que emprega suas maiores forças econômicas na fabricação de armas é a maior prova da distância que ainda existe entre o dizer-se cristão e o ser cristão. Temos assistido às tragédias provocadas pela posse e porte de armas. A saúde e a educação ficam com as migalhas. Sem falar dos espertalhões que se valem dos cargos, do conhecimento das leis, dos espaços de poder, do ‘jeitinho brasileiro’, para engordarem suas contas ou escamotearem suas dívidas e compromissos seja com o Estado seja com os cidadãos que trilham o caminho da paz, do bem e da justiça. O que está acontecendo com a humanidade é uma barbaridade!

Esse relato do evangelho nos remete a Lc 19,1-10 que trata do encontro de Jesus com Zaqueu. Aquele homem queria se encontrar com o Senhor. Mas, inicialmente, não estava disposto a mudar de vida. Quando vê Jesus entrando em sua casa, refaz seu projeto de vida! Promete fazer um caminho de conversão: “Eu reparto aos pobres a metade dos meus bens e, se prejudiquei alguém, restituo-lhe o quádruplo”. Diante deste propósito do “fazer” de Zaqueu que lhe transforma o “ser”, Jesus lhe diz: “Hoje veio a salvação a esta casa”. A salvação está, de alguma forma, condicionada á conversão. O agir ético, a caridade fraterna, a partilha dos bens, a luta pela justiça, pela igualdade de direitos e pela paz, a luta do cristão por políticas públicas, por melhoria para a população mais pobre. Em uma palavra: a saída de si, como João Batista, o “ex-cêntrico”, isto é, aquele que colocou o Senhor como centro de sua vida, é um caminho de salvação no sentido de ser uma resposta ao amor de Deus que nos salvou em Jesus Cristo.

“Que devemos fazer?” Ele está com a pá na mão. O Trigo recolherá no celeiro, mas a palha será lançada no fogo inextinguível. Sou trigo ou palha? Qual o meu conteúdo? O que estou fazendo de minha vida?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN