Hesed: bondade misericordiosa de Deus
24º Domingo do Tempo Comum [11 de setembro de 2022]
[Lc 15, 1-32]
Lucas é o evangelista que destaca o rosto misericordioso do Pai, revelado em Jesus. Um Deus amoroso e misericordioso. A Sagrada Escritura conservou um termo hebraico que quer revelar isso: Hesed, a bondade misericordiosa de Deus. Um amor que excede toda medida. Ainda que sejamos infiéis, Ele continua nos amando. Seu amor não depende de nossos méritos: amor totalmente gratuito e generoso. Uma Hesed, um amor que precisa ecoar dentro de nós e expandir ao mundo. Sobretudo nesses tempos de propagação de relações odiosas, de projeto que defende armar a população, de defesa institucional da dominação do grande sobre o pequeno, do rico sobre o pobre, de progresso e crescimento econômico às custas da eliminação dos pobres e da destruição do meio ambiente. É tempo de Hesed: bondade misericordiosa.
O capítulo 15 de Lucas mostra, através de três parábolas, aquele Pai que não quer perder ninguém. É a concretização de Is 49, 15: “Por acaso uma mulher se esquecerá de sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem, eu não me esqueceria de ti”. Quem deseja ser cristão de verdade tem nesse evangelho o ensinamento para sua vida. Este capítulo é considerado o coração do Evangelho de Lucas.
A ovelha perdida, a moeda perdida e o filho perdido lembram o grande amor do Pai que sempre está em busca, procura até encontrar. E encontrando, faz festa!
A OVELHA PERDIDA
O pensamento capitalista da sociedade contemporânea jamais concordará com a atitude do pastor: deixar as noventa e nove para buscar uma única que estava perdida. Diria o capitalista: “Ocupa-te com os ‘bons’, com os que ‘rendem’, pois com os outros perdes teu tempo. Enfraquece-os e deixa-os morrer”. Essa mentalidade se faz presente naquela ideia de que o padre ou o agente de pastoral não tem que ficar visitando as vilas e favelas, os empobrecidos que não frequentam a igreja. Devem-se ocupar do grande grupo. Não seria melhor que uma ovelha se perdesse do que o rebanho todo? É a lógica do mercado. Bem lembrada a comparação: o motorista não se preocupa com o que funciona bem no carro, mas com o que está com defeito.
Ainda existem em nós atitudes farisaicas. Gostamos de resolver os ‘casos difíceis’ pela expulsão ou repressão ou mesmo pela eliminação. Já Deus opta pela reconciliação.
A propósito deste tema, em 17 de junho de 2013 o Papa Francisco ensinava: "Quero dizer-lhes algo: No Evangelho é belo o texto que fala do pastor que, quando volta para o redil, se dá conta de que lhe falta uma ovelha; deixa as noventa e nove e vai procurá-la. Vai procurar uma. Mas nós temos uma e nos faltam as noventa e nove! Temos que sair, temos que buscá-las. Nesta cultura, digamos a verdade, temos somente uma, somos minoria. E não sentimos o fervor, o zelo apostólico de sair e procurar as outras noventa e nove?"
A MOEDA PERDIDA
“Uma mulher tinha dez moedas”. Seria bom que a gente conseguisse enumerar as moedas que temos: dons, qualidades, pessoas, virtudes...
“Perde uma moeda”. Identificadas as ‘moedas’, talvez fosse bom ver qual moeda que a gente não poderia ter perdido de jeito nenhum. Não estamos buscando mais as coisas do que as pessoas?
“Acende uma lâmpada...”. Que lâmpada precisamos acender para iluminar os espaços escuros de nossa vida onde perdemos a ‘moeda’? Nas dificuldades e contradições da vida acendemos a luz ou continuamos caminhando na escuridão? Esta lamparina pode ser uma pessoa amiga, a Palavra de Deus, a Oração, a Confissão, a Eucaristia, o exercício das Obras de Misericórdia etc.
“Varre a casa”. Que espaços de nossa vida precisamos varrer? Relações de ódio e vingança, preguiça, comodismo, apegos a coisas e pessoas, fofoca e intriga, vida afetiva desordenada, mentira e desonestidade, corrupção etc.
“Procura cuidadosamente”. Como temos procurado a ‘moeda’ perdida? Há perseverança, concentração, desejo de encontrar o que se perdeu? É uma busca amorosa? Ou sou movido por medo e escrúpulo? O que me move, mesmo, mais profundamente?
“Até encontrar a moeda”. O que é que nos faz desanimar em nossas buscas pelo essencial? Seria bom identificar aquelas coisas ou pessoas que não nos deixam crescer, que nos desestimulam, que desviam nossa atenção do foco principal e fundamental de nossa vida. Pode ser uma relação afetiva desordenada, busca gananciosa pelo dinheiro, fanatismo político-partidário, desvio do evangelho, moralismo doutrinal, o gosto perverso de mentir e de divulgar mentiras (fake news) etc.
“Quando a encontra”. Já encontramos alguma ‘moeda’ significativa em nossa vida? Qual? Quais?
“Reúne as amigas e vizinhas e diz...”. Nossos convidados, as pessoas que frenquentamos, os amigos com os quais nos reunimos, festejamos, que rosto têm? Quem são? O que eles sonham, conversam? Quais são seus principais assuntos? “A boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc 6,45).
“Alegrai-vos comigo!”. O Papa Francisco tem insistindo muito na necessidade de vivermos uma vida cristã marcada pela alegria. “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus” (EG, 1). Não existe alegria experimentada somente pelo indivíduo. A alegria tende necessariamente a ser partilhada. Experimentamos alegria verdadeira? Com quem partilhamos nossa alegria mais profunda?
“Encontrei a moeda que tinha perdido!”. Que é que estamos procurando e encontrando para deixar como legado, como herança? A alegria da mulher foi a de ter encontrado a moeda que havia perdido. Nosso encontro com o Senhor na oração/celebração tem nos dado verdadeira alegria? Tem nos ajudado na conversão do coração?
O FILHO PERDIDO
O filho mais velho representa aqui o fariseu que contabiliza suas práticas religiosas, mas mantém um coração longe de Deus. Sabe cumprir os mandamentos, mas não sabe amar. Não consegue entender o amor de seu pai para com o filho perdido e encontrado. Não acolhe nem perdoa. Não quer saber de seu irmão. Aliás, nem o reconhece como irmão: “Este teu filho”, diz ao pai. Como se dissesse: “Não é meu irmão”. E o pai se dirige a ele com toda ternura: “Meu filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu”.
O filho mais velho nos interpela, a nós que acreditamos viver juntos do Pai. O que estamos fazendo que não abandonamos a Igreja? Será que não estamos apenas cumprindo ritos e tarefas, talvez com medo de ir para inferno, ou para conseguirmos uma graça, ou apenas por formalidade social e para manter a tradição? “Meu pai era católico... e me batizou na Igreja católica!” E a vida continua como se a fé cristã não fizesse nenhuma diferença no cotidiano.
Precisamos reconhecer a alegria de estarmos sempre na presença de Deus, de podermos experimentar o seu amor. Sejamos como o pai que se alegra com a volta do filho que se afastou. Ajudemos as pessoas a encontrar o caminho de volta para a casa paterna.
Aliás, um elemento significativo das três parábolas deste domingo é a alegria do reencontro. E uma alegria compartilhada com amigos e vizinhos. O único que se aborreceu foi o filho mais velho. Aquele que se julgava dentro de casa, que estava com o Pai. Mas não estava, visto que visava recompensa, e não vivia na gratuidade. Vivia pela lei e não pelo amor.
A alegria da volta à casa do Pai deve ser um distintivo de nossa vida cristã celebrada em comunidade. As ofensas que por vezes ocorrem precisam ser perdoadas para que nossa vida de comunidade possa ser celebrada com mais alegria. Dá o que pensar a observação de Leonardo Boff: “As pessoas de hoje não aceitam mais uma Igreja autoritária e triste, como se fosse ao próprio enterro. Mas estão abertas à saga de Jesus, ao seu sonho e aos valores evangélicos”.
Como lidamos com os afastados da comunidade? Qual tem sido nossa ação missionária junto dos mais pobres e abandonados? Com quem temos sido mais parecidos: com o Pai? Com o filho mais velho? Com o filho mais novo?
Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN