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A comunidade brota e se alimenta do Ressuscitado

aureliano, 05.04.24

2º Domingo da Páscoa - B - 08 de abril.jpg

2º Domingo da Páscoa [07 de abril de 2024]

 [Jo 20,19-31]

O evangelho narra a aparição de Jesus aos Apóstolos no dia da Páscoa, primeiro dia da semana, e o episódio de Tomé oito dias depois. Por isso, ao primeiro dia da semana, chamamos Domingo: o dia do Senhor. É o dia da Ressurreição de Jesus, dia da Criação, dia do descanso do Homem/Mulher criados por Deus à sua imagem. Dia em que a comunidade cristã se reúne para dar graças ao Pai na celebração eucarística.

O relato mostra a identidade entre aquele que ressuscitou e o que foi crucificado. Por isso o Ressuscitado mostra a Tomé as marcas da paixão. Tomé representa a comunidade que duvida e que depois acredita. Aqueles que devem crer no testemunho dos apóstolos. Se no início a comunidade é acometida pelo medo, agora é tomada pelo novo vigor e alegria de crer no Cristo ressuscitado, presente em seu meio.

“Bem-aventurados os que crerem sem terem visto”. Em vez de provas palpáveis, nos é transmitido o testemunho escrito das testemunhas oculares de tudo quanto Jesus fez e ensinou. Vivemos num mundo em que se exigem provas para se acreditar. Muitos correm atrás de “milagres”. Se para acreditar precisamos de provas, de sinais do céu, restar-nos-ia acreditar em quê? Nossa fé não vem de provas palpáveis, mas das “testemunhas designadas por Deus” (At 10, 41). Nós acreditamos naquelas realidades que elas acreditaram e no-las anunciaram. Sabemos que seremos felizes se crermos sem ter visto.

Acreditamos na comunidade que os Apóstolos fundaram a partir da fé na ressurreição. É nesta comunidade que somos iniciados na fé, no discipulado. “A fé e o tesouro da mensagem evangélica são realidades que não se recebem pessoalmente, mas através da comunidade. A iniciação cristã pressupõe uma comunidade de fé” (Dom A. Possamai). Não é possível ser cristão sem estar inserido numa comunidade de fé. Nossa fé não é privada, mas apostólica e eclesial. “Para ser fiel a Cristo não basta orar e celebrar; é preciso fazer o que ele fez: repartir a vida com os irmãos. Crer não é somente aceitar verdades. É agir segundo a verdade do ser discípulo e seguidor de Cristo” (Pe. J. Konings).

Mais. Enquanto Tomé não fizera o encontro com o Senhor Ressuscitado tocando-lhe a chaga, não acreditara naquele a quem seguira por anos. O texto não diz que Tomé tocou a chaga do Mestre, mas permite perceber que ele a vira: “Estende tua mão e põe-na no meu lado... Porque viste, creste...” (Jo 20,27.29). Concluímos que, somente aquele que “tocar” a chaga do Ressuscitado poderá fazer uma profissão de fé que brota de dentro, isto é, verdadeira e comprometida. E que “chaga” é esta? Os pobres, preferidos do Senhor com quem ele se identifica: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Em outras palavras: quem diz crer em Jesus Ressuscitado e não o reconhece (“toca”) nos pobres e sofredores, mostra uma fé cristã imatura e inadequada. E se Tomé representa a comunidade cristã, o que foi dito vale para a comunidade que se diz cristã, mas não “toca” os pobres.

A propósito ainda de Tomé, esta figura controvertida do evangelho de João, podemos afirmar que suas dúvidas e objeções transformaram-se em bênçãos para nós. Quando na Ceia Jesus afirmou: “Para onde eu vou, vós já conheceis o caminho”, Tomé responde: “Senhor, não sabemos para onde vais; como podemos conhecer o caminho?” Esta objeção de Tomé arrancou de Jesus uma das mais sublimes palavras do evangelho: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,4-6). São Gregório Magno, a propósito de Tomé, escreveu em uma de suas homilias: “A incredulidade de Tomé foi para nós mais útil do que a fé dos discípulos que haviam acreditado”. Suas dúvidas beneficiaram a fé na ressurreição.

Mais um pouquinho de Tomé. O Mestre, naquele encontro com seu apóstolo “incrédulo”, faz com que eleve seu nível de fé. Restabelecido pela presença do Ressuscitado, Tomé pronuncia aquelas palavras que ainda nenhum apóstolo atrevera a dizer, ao menos que se tenha registrado nos Evangelhos, a respeito de Jesus: “Meu Senhor e meu Deus”.

Peçamos ao Senhor que nos ajude na nossa pouca fé para que as sombras da dúvida, as incertezas e mesmo a perseguição ou o fracasso não nos dominem impedindo de levar a alegria da boa nova àqueles que jazem no desencanto, na desesperança, no isolamento. A experiência do encontro com o Ressuscitado deu novo vigor à comunidade para que pudesse continuar a missão de Jesus. E, já que não podemos “tocar” ou “ver” as chagas do Ressuscitado, Ele, como fizera ao leproso que lhe suplicara: “Senhor, se queres podes curar-me”, ao que responde: “Quero; fica curado!” (cf. Mt 8,2-3), toque e cure nossas chagas, incontestavelmente diversas das suas, pois produzidas pelo pecado ou pela nossa própria condição humana. Que a Eucaristia que celebramos, encontro com o Ressuscitado, nos liberte do medo, nos encha de alegria e de ardor para partilharmos com os mais necessitados o pão, a palavra, o afeto, a acolhida, a solidariedade, o perdão.

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UM ENCONTRO QUE TRANSFORMA

O evangelho deste domingo nos convida a lançar um olhar sobre nossas assembleias dominicais: como celebramos e que sentido continua tendo o domingo para nós cristãos? As celebrações não precisam ser teatrais nem shows para “atrair” as pessoas. Nem se destinam a isso! Precisamos de celebrações que ajudem os fiéis a fazer uma verdadeira experiência de Deus. E o domingo, o dia do Senhor, dia do descanso, dia da Criação, dia da Ressurreição, precisa recuperar seu sentido na vida do cristão.

Vivemos um tempo de crise sem precedentes na história da Igreja. Também a trajetória política e econômica de nosso País nos desencanta e entristece. Se não nos voltarmos para Jesus Cristo, realizando um encontro profundo com ele, um encontro capaz de renovar nossas estruturas mentais, de romper as dobras de nosso coração, não se manterá viva na história a memória de Jesus Ressuscitado. Pois há motivos de sobra para nos desacorçoarmos e desistirmos de nossa missão profética na história. Assim a Igreja ficaria omissa na sua missão de continuadora e atualizadora, pela força do Espírito Santo, dos gestos e palavras de Jesus.

O encontro com Jesus ressuscitado transformou a vida dos discípulos. E Tomé foi movido por aquela alegria contagiante de seus companheiros que lhe disseram: “Vimos o Senhor!” Embora tenha, inicialmente, relutado a crer, a fé dos seus irmãos o motivou a continuar dentro da comunidade. E Jesus lhe confirma a fé.

Tomé duvidou. O relato tem duas intenções: primeiro, quer mostrar que fora da comunidade é muito difícil de se crer e se salvar; segundo, esse relato quer dizer que é preciso crer no testemunho dos discípulos. Não é preciso ver para crer. Confirma o que ocorreu ao discípulo que Jesus amava: viu o túmulo vazio e creu (cf. Jo 20,8). Sem ter visto o Senhor ressuscitado, acreditou. Quem ama, crê. Isso veio desfazer uma mentalidade crescente, na época, que todos os que quisessem aderir à fé cristã precisavam “ver” o Ressuscitado. De ora em diante se confirmou: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto”.

Ainda um elemento que não pode ser esquecido no relato de hoje é o dom da Paz que Jesus dá aos discípulos e o dom do Perdão, grande presente pascal. A alegria da comunidade é experimentar, em meio ao medo da perseguição das autoridades judaicas, a paz que brota do coração amoroso de Cristo. E Jesus, sabendo das fraquezas humanas e dos pecados que daí provinham, oferece a “segunda tábua de salvação”, o sacramento da Reconciliação: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados”.

Mais do que nunca é urgente reafirmar nossa fé no Ressuscitado e na sua presença em nosso meio. Não se trata de pregar, de falar, de tentar convencer com afirmações doutrinais apenas, num proselitismo fanático. Isso vale muito pouco para o mundo em que vivemos. É preciso fazer experiência de um encontro verdadeiro. É notável quando uma comunidade está verdadeiramente imbuída do espírito de Jesus Ressuscitado. Ela procura viver como Jesus viveu: sabe escutar, tem sensibilidade, está atenta ao mais sofrido e necessitado. Não se rege por normas e leis, mas pela misericórdia. Não tem medo de enfrentar dificuldades e perseguições por causa de Cristo e em defesa dos pequenos e sofredores. Essa comunidade não se deixa levar pelo medo nem pela mania de grandeza nem pela ganância do dinheiro, do poder e da competição. Ela manifesta, no seu agir, o agir de Cristo. A comunidade se torna um espaço em que se experimenta a presença viva do Ressuscitado.

Sem a força do Cristo ressuscitado continuaremos com medo e de portas fechadas. Se não buscamos nele a força e orientação de como lidar com os desafios atuais, não conseguiremos alimentar a esperança daqueles que ainda permanecem em nossas comunidades e, muito menos, atingiremos os ‘de fora’.

A paz, o perdão e a alegria são frutos da ressurreição. Quando participamos das celebrações e atividades de nossas comunidades precisamos voltar para casa mais animados, mais apaixonados por Jesus Cristo, mais confiantes, mais seguros de que estamos no caminho certo, mais vibrantes em nossa fé, mais dispostos a colaborar e em construir fraternidade. Se isso não estiver acontecendo, precisamos rever nossas celebrações, nossas comunidades e nossa vida.

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LUZ QUE DISSIPA AS TREVAS E AFASTA O MEDO

“Era noite e as portas estavam fechadas por medo”. Não nos pode passar despercebida essa realidade vivida pelos discípulos logo após a tragédia do Calvário. Para eles não havia luz: era noite. Não tinham horizonte. Não podiam vislumbrar novas possibilidades. Aquele em quem depositaram sua confiança “fracassara na cruz”.

As portas estavam fechadas. A missão lhes era impossível. Não tinham coragem de sair.  Portas fechadas para que ninguém entrasse. Também ninguém podia se beneficiar da ação deles, pois se prenderam dentro da casa. Quem está de portas fechadas não sai nem permite alguém entrar. Uma espécie de morte: sem presença, sem oxigenação, sem vida. No Apocalipse temos aquelas provocadoras palavras: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele” (Ap 3,20). Comunidade cristã, discípulo de Jesus não combina com porta fechada. Aliás, o Papa Francisco tem alertado para nossos templos católicos com portas fechadas: “A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais concretos dessa abertura é ter, por todo lado, igrejas com portas abertas” (EG, 47).

E o medo? Realidade terrível! Esse sentimento paralisa as pessoas. Impede que se façam boas ações. Muitas vezes reduz a pessoa dentro de seu eu, tornando-a ensimesmada. O medroso não arrisca. Mantém a porta fechada. Investe em sua própria segurança, por vezes em detrimento dos demais. O medo não permite amar. Impede de amar o mundo como Jesus amou. Não lhe confere o ‘sopro’ da vida e da esperança.

Eis que Jesus entra na casa. Para ele não há noite nem portas fechadas nem, muito menos, medo. Ele vem libertar os discípulos desses males que emperram a missão que lhes confiara. Não lhes impõe as mãos nem lhes dá a bênção, como sói fazer aos doentes. Jesus sopra sobre eles o sopro da força que vence o medo e lhes comunica a esperança. O sopro santo que tira o pecado e os envia em missão. As portas então se abrem, o medo se dissipa, pois a Luz venceu a escuridão que os envolvia.

É Jesus ressuscitado que salva a Igreja. É ele que vence o medo que nos envolve e paralisa. É ele que abre as portas do egoísmo e da indiferença. É ele que dá a esperança. Na força dele realizamos a missão. Cremos que ele continua vivo em nosso meio. Conhecedor de nossa fragilidade, ele continua a nos dizer: “Recebei o Espírito Santo”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Jesus é o novo Templo

aureliano, 01.03.24

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3º Domingo da Quaresma [03 de março de 2024]

(Jo 2,13-25)

Quaresma é tempo de preparação para a Páscoa. Consequentemente é tempo de se aprofundar o batismo que é o mergulho no Mistério Pascal. Por isso os textos são mais mistagógico-catequéticos, ou seja, tem a intenção de introduzir o cristão mais profundamente no mistério do amor de Deus revelado em Jesus Cristo.

O evangelho deste domingo tem como centro a automanifestação de Jesus como o novo Templo de Deus: “Destruí este Templo, e em três dias eu o levantarei”.

A Páscoa dos judeus era a celebração da libertação da escravidão do Egito. E o Templo de Jerusalém tornou-se o lugar em que os judeus e prosélitos se reuniam uma vez por ano para oferecer sacrifícios de expiação e ação de graças. Era uma forma de manifestar a Deus a gratidão. Com o gesto profético da expulsão dos vendilhões do Templo, Jesus introduz um novo modo de se relacionar com Deus: agora o Templo é o próprio Cristo. Nele se manifesta a glória de Deus: “Ele manifestou a sua glória e seus discípulos creram nele” (Jo 2, 11).

A libertação que o povo vinha celebrar em Jerusalém perdera o sentido, uma vez que novamente experimentavam a escravidão: os anciãos do povo e os sumos sacerdotes eram os grandes latifundiários que residiam em Jerusalém, engordavam os bois e carneiros para vender aos peregrinos por ocasião da festa da páscoa. Alugavam a preços exorbitantes os espaços das barracas de modo que se fazia uma exploração escravista aos peregrinos, mormente aos mais pobres. Por isso Jesus se dirigiu especificamente aos vendedores de pombas: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”. É que os pobres, pelo baixo poder aquisitivo, ofereciam pombas, como José e Maria. A ira de Jesus se coloca mais fortemente contra os exploradores dos pobres.

Esses dois elementos centrais do evangelho de hoje: Jesus como o novo Templo e a expulsão dos vendilhões do templo de Jerusalém, faz-nos pensar algumas coisas:

  1. É preciso que Jesus Cristo ocupe verdadeiramente o centro de nossa vida de fé. Os gestos e as palavras de Jesus devem ser determinantes em nossas decisões. Não basta um culto externo, uma celebração, uma oferta, uma vela acesa. Não bastam os “sacrifícios de touros e carneiros”. O que conta para Deus é uma atitude de fidelidade cotidiana à sua aliança. A coragem de enfrentar oposições e desafios por causa de Cristo e do seu evangelho. “Os judeus pedem sinais milagrosos, os gregos procuram sabedoria; nós, porém pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e insensatez para os pagãos” (1Cor 1, 22-23). Assumirmos com mais vigor a defesa dos mais fracos.
  2. Este relato do evangelho nos recorda o cuidado que devemos ter para não transformar nossas festas religiosas em campanhas comerciais. Fazer do templo, lugar de intimidade com Deus, de oração, um espaço de exploração e arrecadação de dinheiro. Ocorre por vezes que nossos pobres nem podem participar das festividades dos padroeiros porque tudo ali é vendido, e muitas vezes a preços muito distantes do poder aquisitivo da pessoa. Vejam, por exemplo, um pai de família que leva os seus cinco filhos para participar dos festejos do padroeiro. Depois da missa e procissão, as barraquinhas estão vendendo os quitutes. O pobre do pai ou da mãe, não tem dinheiro suficiente para comprar aquele tropeiro, cachorro quente, pratinho ou caldo para todos os filhos. Pronto! Precisam ir embora! Não podem ficar na festa! E isto sem falar naquelas “campanhas” financeiras que alguns costumam fazer, uma aberração ao evangelho: “Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”.
  3. E, por falar em barracas, pior ainda é quando ali se vende bebida alcoólica com a justificativa de que ‘se não houver cerveja, as pessoas não participam’. Que argumento fajuto! Se o indivíduo vai à festa religiosa por causa da cerveja, onde está seu comprometimento com a comunidade? Então é melhor que vá para o boteco. Lá ele terá mais conforto, certamente. Comunidade é lugar de celebração da ação de Deus em nossa vida. Lugar de espaço para todos. Lugar em que se experimenta o Reino de Deus na partilha, na acolhida, na fraternidade, onde todos se sintam em casa.
  4. Um elemento novo na sociedade e na religião são as mídias sociais. O evangelho de hoje nos ajuda também a nos posicionarmos e refletirmos sobre o uso da religiosidade nas mídias sociais. Há muita gente usando a religião para enganar, para explorar, para ganhar dinheiro, para se enriquecer às custas de doações e likes dos pobres e desprecavidos religiosos. Os saduceus engordavam bois e carneiros para vender a preços exorbitantes nas festas do Templo. Em tempos de avanços tecnológicos, muita gente se vale da influência nas mídias para subornar os pobres, vender "produtos religiosos", disseminar ideologias geradoras de ódio e divisão, enganar pessoas em situação de desespero e sem a devida clareza a respeito da fé e da religião. Voltemos ao Evangelho. Atentemos mais ao que nos diz a Igreja em seus documentos e pelo seu magistério, Papa e Bispos a ele unidos. Purifiquemos nossa espiritualidade e religiosidade no evangelho e no testemunho dos santos e santas que doaram sua vida pelo bem da humanidade.
  5. Quando o evangelho de hoje mostra Jesus recriminando a atitude dos políticos (saduceus) de Jerusalém que se valem da religião para se locupletarem ainda mais de bens, seria oportuno refletirmos a respeito da comunidade política em nossa sociedade. Ultimamente tem se tornado cada vez mais vergonhoso o desempenho daqueles que foram eleitos para promoverem o bem comum e integral dos cidadãos. Recebem a autoridade do povo para exercitar seu papel, mas a grande maioria tem se valido deste espaço para agir somente em próprio benefício. Quando falamos de presença e atuação da Igreja na sociedade, queremos dizer que, também aqueles que foram eleitos para os cargos públicos – e um bom número deles se diz religioso e membro de comunidade eclesial – devem agir ali como Igreja. Ou seja, devem se preocupar, à semelhança de Jesus, com o bem de todos. Devem se colocar a serviço da comunidade humana. Devem ser justos, honestos, coerentes, abnegados, verdadeiros.

Campanha da Fraternidade 2024: “Desde a superação das mazelas em nossas relações interpessoais até a resolução dos conflitos intraeclesiais – como as disputas de poder, o clericalismo e as dificuldades de diálogos entre grupos ideologicamente contrastantes – a amizade social parede ser o caminho que o Espírito tem indicado à Igreja. Esse não é um caminho novo, mas talvez a indicação do retorno ao modelo das primeiras comunidades, que viviam a comunhão desde os âmbitos da vida prática até à espiritualidade (cf. At 2,42-47;4,32-37). A opção pela cultura do encontro verdadeiro e pessoal com Jesus e com os irmãos na primazia da compaixão e no anúncio da esperança, são sinais que antecipam a salvação e subvertem as lógicas que o nosso tempo tem construído como normativas” (Texto Base, 122).

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Um encontro ao redor do poço [Jo 4,5-42]

A água é elemento indispensável à vida. Ela é tão importante que em breve pode se tornar o elemento mais precioso e caro do planeta. É o bem mais essencial para a vida humana. Infelizmente ainda não se tomou consciência suficiente no uso desse elemento. Em vez de varrer com a vassoura muita gente varre calçadas e ruas com água limpinha, tratada; desperdiça de várias outras maneiras. Quando me deparo com alguém (conhecido!) desperdiçando água, ou misturando lixo reciclável com lixo molhado ou orgânico, ou queimando capim ou folhas secas etc., costumo exclamar: “Olhe a Campanha da Fraternidade!”

A liturgia da Palavra deste domingo nos coloca diante da sede de um povo no deserto (Ex 19,3-7) e da sede da mulher à beira do poço. O que é a sede? Você já experimentou sede? Esse desejo e necessidade não sendo saciados com certa imediatez levam a desfalecimento. A gente pode passar dias sem alimento sólido, mas sem água, não. A sede (de água) é símbolo de uma sede maior, mais profunda. A experiência de habitar em terra estrangeira, longe do Templo, numa vida escravizada leva o israelita a dizer a Deus: “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada, sem água” (Sl 63,2). Muitas vezes a experiência de dor e sofrimento nos faz voltar para Deus como “terra seca e sedenta”.

Veja o que aconteceu com a mulher samaritana neste belíssimo relato de João que mostra Jesus como do Dom do Pai, a Água Viva que preenche o coração humano, representado nas buscas até então insatisfeitas da mulher samaritana: “Vai chamar teu marido”...  “Eu não tenho marido”... “Tiveste cinco maridos, e que tens agora não é teu marido” (Jo 4,16-18). Jesus é aquele que preenche o coração daquela mulher. Não tem preconceito, não julga, não condena. Apenas acolhe e mostra-lhe o dom da água viva que brota para a vida eterna. Jesus não lhe apresenta a doutrina e a censura, mas o Dom. E ela acolhe, reconhece, rende-se diante de uma realidade que responde às suas buscas mais profundas.

No caminho da Judéia para a Galiléia era preciso passar pela Samaria. Um território constituído por um povo que tinha alguns costumes diferentes e divergentes dos costumes dos judeus. Havia entre eles uma inimizade histórica e cultural mortal. Jesus estabelece uma nova relação com esse povo. A mulher samaritana aqui significa também a própria Samaria. Jesus veio também para eles. Não somente para os judeus.

Aqui temos o fruto de um encontro verdadeiro, honesto, na busca da verdade do ser humano. Encontro que desperta um desejo para além daqueles que se deram ao longo da história em redor do poço: Isaac e Rebeca; Jacó e Raquel; Moisés e Séfora. Não se dá ali uma “paquera” para casamento, mas um encontro que transforma a partir de dentro e envolve toda uma cidade: “Muitos samaritanos daquela cidade creram nele, por causa da palavra da mulher”.

O Desejo de Jesus se encontrou com o desejo da mulher, que a princípio estava marcada pelo sentimento de ódio, de decepção, de desencanto. O Desejo puro de Jesus contagia aquela mulher, purifica seu desejo e lhe dá uma nova perspectiva de vida. Aquele Desejo oculto de felicidade, ínsito por Deus em seu coração na criação, foi despertado.

Jesus é o dom do Pai, a água viva capaz de saciar o desejo humano que não se sacia com coisas e pessoas: “Já tiveste cinco maridos e o que agora tens não é teu marido”. Ele sacia de vez a sede profunda daqueles que o buscam: “Dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede”.

Nossos jovens, nossas famílias, nossas crianças estão buscando saciar a sede de servir a Deus “em espírito e verdade”. Mas o que lhes é oferecido pelas redes sociais, até mesmo em alguns cultos ditos cristãos é veneno. Algo parecido com água, mas que leva à morte, à secura, a uma busca frenética de bens de consumo, de festas desmedidas, de bebidas e drogas, de sítios e quintais, de gozo e de vazio. O resultado nós o temos visto: assassinatos, vinganças e mortes; cadeias e bandidagem; corrupção política e roubos de todo jeito; desesperança e “fossa”, preconceito e desejo de morte. Onde está o remédio? No encontro transformador com Jesus Cristo, a Água Viva que nos dá vida nova, que abre nossos horizontes, que dá sentido à vida, que nos faz discípulos missionários, como aconteceu com a samaritana. Bento XVI dizia que o “ser cristão não é fruto de uma decisão ética ou de uma grande ideia, mas de um encontro com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, um rumo decisivo”.

Esse relato do encontro de Jesus com a Samaritana nos questiona também em relação à falta de espaço de acolhida em nossas comunidades. Jesus sentou-se, esperou, acolheu, ouviu, foi rejeitado inicialmente. E ele se manteve ali, resiliente, esperançoso, confiante. Não se pode apresentar em primeiro lugar a lei, a doutrina, o “carão” à pessoa que procura a comunidade: “Você está no pecado!” “Você precisa mudar de vida!” “Você sumiu da igreja!” “Você não pode comungar!” “Você não pode receber os sacramentos!”. - A pessoa precisa de espaço de diálogo, de partilha, de alguém que a ouça sem julgamento, que a compreenda, que lhe apresente um Deus que ama incondicionalmente toda pessoa. Santo Agostinho dizia: “Se queres conhecer uma pessoa, não pergunte o que ela pensa, mas o que ela ama”. Se você quer conhecer a sua comunidade, as pessoas da comunidade, observe não o que elas dizem ou pensam, mas o que elas amam.

Teremos um mundo novo na medida em que cada cristão, assumindo seu batismo, fonte de vida nova em Deus, continuar fazendo seu encontro com Jesus Cristo na sua comunidade, na Palavra de Deus, na celebração, junto àqueles que sofrem. De uma mentalidade consumista e capitalista, egoísta e gananciosa, fratricida, feminicida, preconceituosa e maledicente, transformar-se em discípulo de Jesus como a samaritana do evangelho. Não basta pensar como Jesus pensou. O fundamental é amar como Jesus amou.

O encontro com Jesus “ao redor do poço” deve levar à missão. A participação na celebração deve levar o cristão a partilhar com os outros a experiência feita no encontro vivificador com Jesus Cristo. Há muita gente esperando um pouquinho de nossa “água” haurida nas fontes do Salvador.

Concluindo também com Santo Agostinho: “Ama e faze o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Quaresma: conversão para vencer o mal

aureliano, 16.02.24

1º domingo da quaresma - B.jpg

1º Domingo da Quaresma [18 de fevereiro de 2024]

[Mc 1,12-15]

Estamos iniciando a Quaresma. Como nosso processo catequético é bastante fraco, certamente muitas pessoas não sabem o que significa esse tempo litúrgico da Igreja. O termo quaresma nos remete ao número quarenta, pleno de significado na Sagrada Escritura. Encontramos Jesus que passa quarenta dias e quarenta noites no deserto preparando-se para a missão que o Pai lhe confiara. Assemelha-se a Moisés que jejuou durante quarenta dias e quarenta noites no monte Horeb (Ex 24, 18; 34, 28; Dt 9,11). Também Elias, alimentado pelo pão do céu caminhou quarenta dias e quarenta noites até o monte que o Senhor lhe indicara (1Rs 19,8). Outro elemento significativo foi a peregrinação do povo de Israel durante quarenta anos no deserto, rumo à terra prometida (Dt 2,7), alimentado e assistido pelo Senhor.

O evangelho de Marcos, mais resumido do que os outros, tem como propósito responder à pergunta: “Quem é Jesus?”. No início o Pai confirma: “Tu és o meu Filho bem amado” (Mc 1,11). No final, o centurião reconhece: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus” (Mc 15, 39). Portanto, os discípulos podem acreditar nele, segui-lo com confiança, pois ele é o Filho de Deus que veio salvar a humanidade.

Jesus deve enfrentar as forças do mal. Por isso é conduzido pelo Espírito Santo ao deserto a fim de se preparar para essa grande missão. À semelhança do povo de Israel no deserto que foi tentado muitas vezes, Jesus resume em sua pessoa essa caminhada e experiência, vencendo, pela sua fidelidade, as tentações do maligno, garantindo assim, aos que crêem na sua Palavra, a ressurreição e a vida, a Terra Prometida.

Nessa caminhada quaresmal acompanhemos Jesus na sua entrega por nós. É tempo de reafirmar a fé e o compromisso batismais. As primeiras palavras de Jesus no evangelho de Marcos nos devem acompanhar ao longo deste tempo de preparação para a Páscoa: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,15). Conversão e entrega confiante à Boa Nova é a meta do cristão.

Conversão, do grego metanoia: meta significa revolução, inversão de caminho; noia signfica mente, pensamento. Então conversão nos convida a tomar um caminho novo a partir de Jesus Cristo. Zaqueu assumiu caminho novo a partir do encontro com Jesus Cristo: devolveu o que havia roubado e distribuiu com os pobres parte de seus bens (cf. Lc 19,1-10). A pecadora que encontrara Jesus na casa de Simão deixou para trás sua vida de pecado a partir da experiência do amor de Deus que ela encontrara em Jesus Mestre (cf. Lc 7,36-50). Então, conversão é deixar aquelas realidades de pecado, de maldade, de fofoca, de mentira, de palavras agressivas, de gestos ofensivos, de ganância pelos bens e sucesso, de conluio para prejudicar a outros, de fuga das responsabilidades, de preguiça em servir, de busca de satisfação dos instintos egoístas, de bebedeiras e noitadas, de amizades perversas, de fechamento às propostas da Igreja. Precisamos rever nossa vida, nossa entrega, nossa disponibilidade para servir generosamente. É tempo de conversão. O sino que nos convida à conversão vai nos chamar a participar da despedida de alguém. Um dia inevitavelmente tocará para nossa partida! O tempo se cumpriu! É tempo de conversão!

São João diz que “a vitória que vence o mundo é a nossa fé” (1 Jo 5,4). Esta é dom recebido no batismo. Ninguém crê no evangelho a partir de suas próprias forças, mas pelo dom de Deus recebido no batismo. Ensina Bento XVI: “Ao início do ser cristão, não está uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, dessa forma, o rumo decisivo” (Deus é Amor, n. 01).

Nesse tempo quaresmal a Igreja nos convida a rever nossa caminhada de batizados, de comprometimento com a pessoa de Jesus e com a Igreja. Convida a olhar onde estamos na caminhada cristã. Em que precisamos nos converter para vivermos uma fé de verdade: reta, sincera, comprometida. Convida-nos a verificar quais são as tentações que mais nos acometem e nas quais mais caímos. Coloca em nossas mãos os recursos que nos fortalecem contra o espírito do mal.

A vida de Jesus foi marcada pelas tentações do maligno que queria fazê-lo desviar-se da vontade do Pai. Também nós somos acometidos por todo tipo de tentação que nos quer desviar do caminho de Jesus. Sozinhos não damos conta do mal. Mas com a força de Deus podemos vencê-lo. Então busquemos nesta fonte inesgotável as energias e o sustento que nos colocam em permanente estado de conversão a uma vida sempre mais parecida com a vida do Mestre Jesus.

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O DESERTO

“O Espírito levou Jesus para o deserto” (Mc 1,12). O deserto, na Sagrada Escritura, é um categoria teológica. É um lugar de oração, de encontro e escuta de Deus, mas também um lugar de provas e tentações: “Aí Jesus foi tentado por Satanás”.

É importante considerar que Jesus foi ‘levado’. Ele não foi por conta própria, por si mesmo. Também, nós cristãos, somos levados para o deserto da vida, para situações de incompreensão, de falta de fé, de desprezo da religião, ou mesmo de crises pessoais de fé e de sentido de vida. Quantas vezes somos questionados a respeito da religião e da fé! Qual é mesmo o sentido de participar de uma comunidade, de realizar essa ou aquela expressão de fé? Esses embates ajudam a amadurecer nossa fé: oportunidade de passar de uma fé infantil a uma fé adulta, responsável, comprometida.

No evangelho, Satanás é o mesmo que Adversário, Inimigo de Deus. Aquele que age sempre contra o bem e a justiça. Acompanhando o noticiário sobre a corrupção generalizada no nosso País, a disseminação do ódio (até mesmo dentro da Igreja, nas famílias e nas religiões), notamos a ação de Satanás, o Adversário, que leva o ser humano a agir egoisticamente, lesando o Estado, a comunidade, os pobres, por vezes a própria família, gerando divisão e discórdia. E sem peso de consciência! Sem nenhum escrúpulo.

A corrupção que não está somente nos altos escalões de governos e empresas, mas que se repete, guardadas as proporções, nos pequenos espaços e negócios de família, de vizinho, de trabalho, está instalada nas estruturas sociais. Vivemos uma espécie de cultura da corrupção e desonestidade. Para nossa tristeza, a afirmação “sem desonestidade não se pode sobreviver nesse País”, ganha força cada vez maior.

O deserto pode ser, pois, a escola, o ambiente de trabalho, a rua, a política, os espaços esportivos, o shopping, o roçado, até mesmo a comunidade eclesial. Enfim, aquelas realidades que podem nos aproximar de Deus bem como nos afastar dele. Espaços em que somos postos à prova.

O que importa é não perdermos de vista o Espírito Santo que nos leva ao deserto e que nos fortalece no combate contra o mal. Se no deserto havia os ‘animais selvagens’, ou seja, aquelas tentações que sempre ameaçam o projeto de Jesus, havia também os ‘anjos’ que o serviam, ou seja, o cuidado e carinho de Deus Criador para com aqueles que lhe são fiéis na prova. Importa crer que o Senhor não nos abandona jamais! Na força dele vencemos as forças do mal.

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Campanha da Fraternidade 2024

“O amor social se traduz em atos de caridade que criam instituições mais sadias e estruturas mais solidárias. Estruturar a sociedade, por exemplo, ‘de modo que o próximo não venha a se encontrar na miséria’ é um ato de caridade que, segundo o Papa, tem a conotação de ‘amor político’. A política é o mais alto grau da caridade, afinal dar de comer a um desempregado é expressão de amor, mas assegurar o direito de trabalho a muitos, pela ação política, é expressão intensa de amor, porque os emancipa e os dignifica. Embora a caridade política englobe a todos, ‘o núcleo do autêntico espírito da política’ é o ‘amor preferencial pelos últimos’. Por isso, o Papa Francisco propõe à humanidade, particularmente às lideranças religiosas e políticas, a construção da cultura do diálogo, da reconciliação e da paz, atuando juntos em favor do bem comum e a promoção dos mais pobres” (Texto-Base, 21).

“‘Todos os homens devem estar livres de coração, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência (...) O direito à liberdade religiosa se fundamenta na própria dignidade da pessoa humana, que a Palavra revelada de Deus e a própria razão dão a conhecer’ (Vaticano II, DH, 2).  Precisamos estar atentos: entre os cristãos, que deveriam ser conhecidos pelo amor mútuo (cf. Jo 13,35), têm sido difundidas palavras e atitudes de difamação, perseguição, calúnia e ódio, estabelecendo relações de inimizade a partir das quais uma pessoa se vê como maior e melhor que a outra. Entre nós não deve ser assim, ensina-nos Jesus (cf. Mt 20,26)” (Texto-Base, 36).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Um encontro, uma palavra, um olhar...

aureliano, 11.03.23

3º Domingo da Quaresma - A - 15 de março.jpg

3º Domingo da Quaresma [12 de março de 2023]

[Jo 4,5-42]

A liturgia da Palavra deste domingo nos coloca diante da sede de um povo no deserto (Ex 19,3-7) e da sede da mulher à beira do poço. O que é a sede? Você já experimentou sede? Esse desejo e necessidade não sendo saciados com certa imediatez levam a desfalecimento. A gente pode passar dias sem alimento sólido, mas sem água, não. A sede (de água) é símbolo de uma sede maior, mais profunda. A experiência de habitar em terra estrangeira, longe do Templo, numa vida escravizada leva o israelita a dizer a Deus: “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada, sem água” (Sl 63,2). Muitas vezes a experiência de dor e sofrimento nos faz voltar para Deus como “terra seca e sedenta”.

Veja o que aconteceu com a mulher samaritana neste belíssimo relato de João que mostra Jesus como do Dom do Pai, a Água Viva que preenche o coração humano, representado nas buscas até então insatisfeitas da mulher samaritana: “Vai chamar teu marido”...  “Eu não tenho marido”... “Tiveste cinco maridos, e que tens agora não é teu marido” (Jo 4,16-18). Jesus é aquele que preenche o coração daquela mulher. Não tem preconceito, não julga, não condena. Apenas acolhe e mostra-lhe o dom da água viva que brota para a vida eterna. Jesus não lhe apresenta a doutrina e a censura, mas o Dom. E ela acolhe, reconhece, rende-se diante de uma realidade que responde às suas buscas mais profundas.

No caminho da Judéia para a Galiléia era preciso passar pela Samaria. Um território constituído por um povo que tinha alguns costumes diferentes e divergentes dos costumes dos judeus. Havia entre eles uma inimizade histórica e cultural mortal. Jesus estabelece uma nova relação com esse povo. A mulher samaritana aqui significa também a própria Samaria. Jesus veio também para eles. Não somente para os judeus.

Aqui temos o fruto de um encontro verdadeiro, honesto, na busca da verdade do ser humano. Encontro que desperta um desejo para além daqueles que se deram ao longo da história em redor do poço: Isaac e Rebeca; Jacó e Raquel; Moisés e Séfora. Não se dá ali uma “paquera” para casamento, mas um encontro que transforma a partir de dentro e envolve toda uma cidade: “Muitos samaritanos daquela cidade creram nele, por causa da palavra da mulher”.

O Desejo de Jesus se encontrou com o desejo da mulher, que a princípio estava marcada pelo sentimento de ódio, de decepção, de desencanto. O Desejo puro de Jesus contagia aquela mulher, purifica seu desejo e lhe dá uma nova perspectiva de vida. Aquele Desejo oculto de felicidade, ínsito por Deus em seu coração na criação, foi despertado.

Jesus é o dom do Pai, a água viva capaz de saciar o desejo humano que não se sacia com coisas e pessoas: “Já tiveste cinco maridos e o que agora tens não é teu marido”. Ele sacia de vez a sede profunda daqueles que o buscam: “Dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede”.

Nossos jovens, nossas famílias, nossas crianças estão buscando saciar a sede servir a Deus “em espírito e verdade”. Mas o que lhes é oferecido pela televisão, pela internet, até mesmo em alguns cultos ditos cristãos é veneno. Algo parecido com água, mas que leva à morte, à secura, a uma busca frenética de bens de consumo, de festas desmedidas, de bebidas e drogas, de sítios e quintais, de gozo e de vazio. O resultado nós o temos visto: assassinatos, vinganças e mortes; cadeias e bandidagem; corrupção política e roubos de todo jeito; desesperança e “fossa”, preconceito e desejo de morte. Onde está o remédio? No encontro transformador com Jesus Cristo, a Água Viva que nos dá vida nova, que abre nossos horizontes, que dá sentido à vida, que nos faz discípulos missionários, como aconteceu com a samaritana. Bento XVI dizia que o “ser cristão não é fruto de uma decisão ética ou de uma grande ideia, mas de um encontro com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, um rumo decisivo”.

Esse relato do encontro de Jesus com a Samaritana nos questiona também em relação à falta de espaço de acolhida em nossas comunidades. Jesus sentou-se, esperou, acolheu, ouviu, foi rejeitado inicialmente. E ele se manteve ali, resiliente, esperançoso, confiante. Não se pode apresentar em primeiro lugar a lei, a doutrina, o “carão” à pessoa que procura a comunidade: “Você está no pecado!” “Você precisa mudar de vida!” “Você sumiu da igreja!” “Você não pode comungar!” “Você não pode receber os sacramentos!”. - A pessoa precisa de espaço de diálogo, de partilha, de alguém que a ouça sem julgamento, que a compreenda, que lhe apresente um Deus que ama incondicionalmente toda pessoa. Santo Agostinho dizia: “Se queres conhecer uma pessoa, não pergunte o que ela pensa, mas o que ela ama”. Se você quer conhecer a sua comunidade, as pessoas da comunidade, observe não o que elas dizem ou pensam, mas o que elas amam. Como demonstram o afeto, a acolhida, o respeito, a atenção e zelo, particularmente pelos pequenos e simples.

Teremos um mundo novo na medida em que cada cristão, assumindo seu batismo, fonte de vida nova em Deus, continuar fazendo seu encontro com Jesus Cristo na sua comunidade, na Palavra de Deus, na celebração, junto àqueles que sofrem. De uma mentalidade consumista e capitalista, egoísta e gananciosa, fratricida, feminicida, preconceituosa e maledicente, transformar-se em discípulo de Jesus como a samaritana do evangelho. Não basta pensar como Jesus pensou. O fundamental é amar como Jesus amou.

O encontro com Jesus “ao redor do poço” deve levar à missão. A participação na celebração deve encantar e entusiasmar o discípulo de Jesus a fim de levá-lo a partilhar com os outros a experiência feita no encontro vivificador com Jesus Cristo. Há muita gente esperando um pouquinho de nossa “água” haurida nas fontes do Salvador.

Concluindo também com Santo Agostinho: “Ama e faze o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos”.

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OS MARIDOS DA SAMARITANA

É importante relembrar de que o tempo litúrgico da quaresma tem um forte apelo batismal. Os textos da Sagrada Escritura querem nos ajudar a fazer o caminho do discipulado: as tentações por que passa o cristão e que são vencidas pela força da Palavra de Deus (1º domingo); o batismo que nos reconfigura/incorpora a Cristo e nos coloca como ouvintes do Filho Amado do Pai (2º domingo); a Água Viva que nos purifica e alimenta a partir do encontro transformador e libertador com Jesus (3º domingo); a Luz, o próprio Jesus, que cura nossa cegueira e nos faz enxergar o mundo com as lentes do Evangelho (4º domingo); o batismo nos faz criaturas novas, ressuscitados com Cristo, que é ressurreição e vida. As narrativas dos textos do evangelho desse período propõem-nos um itinerário novo, fascinante e interpelativo.

A menção que o evangelho faz à Samaria nos desperta para saber que lugar é esse. Com a morte de Salomão, no século X antes de Cristo, o Reino de Israel de dividiu: Reino do Sul (Judá), tendo como capital Jerusalém, e Reino do Norte (Israel), tendo como capital Samaria. No ano 721 a Assíria invadiu o Reino do Norte e trouxe cinco povos diferentes com suas divindades para Samaria, erigindo para cada uma delas um altar (cf. 2Rs 17,24-33). Essa miscigenação de religião, de cultura e de raça levou Israel e Samaria a viver uma espécie de sincretismo religioso. Mais tarde foi erigido por um israelita piedoso, um templo no monte Garizim para culto ao Senhor, em oposição ao Templo de Jerusalém. João Hircano em 129 a.C destruiu o templo do monte Garizim.

Está aí, em síntese, a história dos “seis maridos”. Quando Jesus diz à mulher: “tiveste cinco maridos, e o que tens agora não é teu marido”, quer dizer que os samaritanos ainda não conheciam o verdadeiro Deus que Jesus veio revelar. Diga-se de passagem que, na ocasião em que o evangelho de João foi escrito, já haviam se passado cerca de trinta anos da destruição do Templo de Jerusalém. Portanto, nem no monte Garizim nem em Jerusalém se adorava verdadeiramente a Deus, mas agora se deveria “adorá-lo em espírito e em verdade”. Quer dizer, Deus está para além de templos e lugares. Jesus é o verdadeiro templo, habitação de Deus. E nele, todo ser humano, imagem e semelhança de Deus, é templo do Espírito Santo.

A palavra “marido” era usada também para divindades pagãs. Baal pode ser traduzido por mestre, dono, senhor, marido. No tempo de Jesus os samaritanos eram considerados impuros, por causa de sua relação com os adoradores de Baal. Tanto que, apenas o fato de entrar na Samaria era considerado contaminador. Por isso era impensável que Jesus entrasse nessa terra ou falasse com uma mulher desta cidade.

Com isso compreendemos as razões que levaram os israelitas da Palestina, considerados fiéis ao Deus da Aliança a evitarem fazer contato com os samaritanos, considerados idólatras e infiéis ao Deus de Israel, portanto, impuros.

E agora Jesus propõe à Samaria, na pessoa da mulher samaritana, uma “fonte de água viva que jorra para a vida eterna”. Agora é o próprio Jesus que será seu “marido”, seu esposo fiel, remetendo a Os 2,7-25. “Vou seduzi-la, levando-a ao deserto e falando-lhe ao coração”. A salvação trazida por Jesus não pertence somente aos judeus, mas se estende a toda a humanidade.

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O QUE SIGNIFICA ADORAR (Frei Cantalamessa)

A propósito da palavra de Jesus: “os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (Jo 4,23), reproduzo aqui excertos de uma pregação do Frei Cantalamessa, que podem ajudar a compreender e a realizar esta adoração de que fala Jesus.

“Mas, mais do que o significado e o desenvolvimento do termo, estamos interessados em saber em que consiste e como podemos praticar a adoração. A adoração pode ser preparada por uma longa reflexão, mas termina com uma intuição e, como qualquer intuição, ela não dura muito tempo. É como um clarão de luz na noite. Mas de uma luz especial: não tanto a luz da verdade, mas a luz da realidade. É a percepção da grandeza, da majestade, da beleza e, ao mesmo tempo, da bondade de Deus e da sua presença que tira o fôlego. É uma espécie de naufrágio no oceano sem costas e sem fundo da majestade de Deus. Adorar, segundo a expressão de Santa Ângela de Foligno mencionada no início, significa “recolher-se em unidade e mergulhar no abismo infinito de Deus”.

Uma expressão de adoração, mais eficaz que qualquer palavra, é o silêncio. Na verdade, ele diz por si mesmo que a realidade está muito além de qualquer palavra. Na Bíblia, a insinuação ressoa alto: “Toda a terra está em silêncio diante dele! (Hab 2,20) e: “Silêncio na presença do Senhor Deus!” (Sof 1, 7). Quando “os sentidos estão envoltos em silêncio sem limites e as memórias envelhecem com a ajuda do silêncio”, disse um Padre do deserto, então tudo o que resta é adorar.

(...) Portanto, não é Deus que precisa ser adorado, mas o homem que precisa adorar. Um prefácio da Missa diz: “Tu não precisas do nosso louvor, mas por um dom do teu amor nos chamas a dar-te graças; os nossos hinos de bênção não aumentam a tua grandeza, mas obtêm para nós a graça que nos salva, por Cristo nosso Senhor”[5]. F. Nietzsche estava completamente fora do caminho quando definiu o Deus da Bíblia como “aquele oriental ganancioso por honras em seu assento celestial”[6].

(...) A adoração eucarística é também uma das formas mais eficazes de evangelização. Muitas paróquias e comunidades que a colocaram no seu horário diário ou semanal fazem uma experiência direta dela. A visão de pessoas que à tarde ou à noite estão em adoração silenciosa diante do Santíssimo Sacramento, numa Igreja iluminada, levou muitos transeuntes a entrar e depois de parar por um momento a exclamar: “Aqui está Deus! Assim como está escrito que acontecia nas primeiras assembleias dos cristãos (cf. 1 Cor 14, 25).

(...) A contemplação cristã nunca é de sentido único. Não consiste em olhar, como dizem, para o umbigo, em busca do próprio eu mais profundo. Consiste sempre em dois olhares cruzados. Aquele camponês da paróquia de Ars, que passava horas e horas imóvel na igreja, com os olhos voltados para o tabernáculo e que, quando perguntado pelo Santo Cura o que fazia o dia todo, respondeu: “Nada, eu olho para ele e ele olha para mim!” (https://franciscanos.org.br/noticias/frei-cantalamessa-adoraras-ao-senhor-teu-deus.html#gsc.tab=0)

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Um encontro que transforma

aureliano, 29.10.22

31º Domingo do TC - C - 30 de outubro.jpg

31º Domingo do Tempo Comum [30 de outubro de 2022]

[Lc 19,1-10]

No evangelho do domingo passado ouvimos o relato do publicano fazendo oração no Tempo. Hoje temos outro publicano. Aqui, porém vemo-lo encontrando-se com Jesus, o Templo vivo do Pai.

“Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva” (Ez 18,23). É por isso que vemos Jesus, caminhando para Jerusalém, realizando encontro com os pecadores, levando-os à conversão.

Note-se que esse relato de Lucas vem imediatamente depois da cura do cego na mesma cidade de Jericó que Jesus atravessa. O desejo do cego era poder ver, recuperar a vista (cf. Lc 18,41). E ao recuperá-la, “foi seguindo Jesus, dando glória a Deus” (Lc 18,43). O cego de Jericó quer ver. Zaqueu também “procurava ver quem era Jesus” (Lc 19,3). Portanto, o cego curado torna-se discípulo de Jesus. Zaqueu, convertido, também assume uma vida nova: “Pois bem, Senhor, eu reparto aos pobres a metade dos meus bens e, se prejudiquei alguém, restituo-lhe o quádruplo” (Lc 19,8).

Jesus caminha para Jerusalém, cidade que o rejeitará, o condenará, o matará. Jericó, ao contrário torna-se a cidade que o acolhe e lhe dá novos seguidores. Encontros transformadores de vida.

É muito interessante o relato de Lucas sobre o encontro de Jesus com Zaqueu. Este quer ver Jesus, mas esbarra em duas dificuldades: é baixinho e é publicano (chefe!): os vizinhos o detestavam. Por isso ele sobe numa árvore. Porém é um homem que busca: “procurava ver quem era Jesus”.

Jesus vale-se desta busca de Zaqueu e estabelece com ele um encontro. Não em cima da árvore, mas no “chão”. É preciso “descer”. Jesus não se relaciona conosco em situações distantes, nas nuvens, cheios de orgulho, arrogância e autossuficiência. Ele quer que desçamos para o chão de nossa história, de nosso cotidiano. É em nossa “casa” que ele quer entrar para nos transformar.

Jesus vai à casa de Zaqueu, homem rico, não para usufruir das benesses de sua riqueza, não para se aproveitar da oportunidade e ganhar alguma coisa. Não! Jesus não negocia sua hombridade. Ele vai à casa de Zaqueu para movê-lo à conversão. O convívio com os ricos pode nos levar a trair o evangelho de Jesus! O ambiente social marcado pelo luxo e pelo consumismo enfraquece da Palavra de Jesus: “Ai de vós, os ricos!” (Lc 6,24). Podemos desvirtuá-la, justificando nossas posturas incoerentes. Jesus veio para todos. Para os pobres, a fim de serem amparados; para os ricos a fim de que olhem para os pobres e repartam com eles os seus bens.

A verdadeira conversão, tanto do pobre como do rico, mexe com as estruturas do mal e torna o Reino mais próximo. A conversão da pessoa abala a estrutura da iniquidade. O episódio de Zaqueu, chefe dos publicanos, traz à baila a questão do poder: de modo geral, quando se chega ao poder, começa-se a se beneficiar dele, defraudando os outros. Por isso a necessidade da conversão verdadeira para se mudarem as estruturas de morte na sociedade a partir do encontro pessoal com Jesus de Nazaré. Ele é o modelo de homem acabado. Se nossos políticos entendessem isto, e fizessem mais encontros com Jesus de Nazaré, nosso mundo seria muito melhor. Vale o mesmo para as lideranças religiosas de nossas comunidades: a experiência do encontro verdadeiro e profundo com Jesus transforma nossa vida, nossas famílias e nossas comunidades. A isso se dá o nome de conversão.

A propósito, vem-me à memória um hino bastante cantado em alguns encontros por aí que pretende interpretar esse relato de Zaqueu. Mas esta música mutila e deturpa o evangelho que quer ressaltar o caminho da conversão. Ela é do jeitinho que os ricos gostam. Faz chorar de emoção os pobres e justifica a ganância dos ricos, pois não menciona o gesto concreto da conversão de Zaqueu: devolver o que roubou e partilhar com os pobres o que tem.

Sem um encontro verdadeiro com Jesus, num olhar que transforma por dentro, a salvação não entra na nossa casa. A iniciativa é de Deus, mas precisamos “procurar ver o Senhor”, como fizera Zaqueu. Oxalá pudéssemos dizer, depois da celebração eucarística, voltando para nossas casas: “Hoje a salvação entrou nesta casa!”. Deve ser uma experiência que nos encha de alegria: “Zaqueu desceu depressa e o acolheu com toda alegria” (Lc19,6).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Ungidos para evangelizar os pobres

aureliano, 21.01.22

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3º Domingo do Tempo Comum [23 de janeiro de 2022]

[Lc 1,1-4; 4,14-21]

A liturgia deste domingo convida a comunidade cristã à escuta atenta e fiel da Palavra de Deus. No evangelho, Lucas justifica a escrita que faz da narrativa dos ‘acontecimentos’ realizados por Jesus e transmitidos pelas ‘testemunhas oculares e ministros da palavra’. Em seguida, no capítulo 4º, Lucas narra que Jesus toma o texto de Isaías e encontra a passagem que lhe diz respeito. Ou seja, ungido com o Espírito do Senhor, deve anunciar a boa nova aos pobres.

Primeiramente é bom notarmos que Lucas fala de “acontecimentos”. É a narrativa dos atos e palavras de Jesus. Não u’a mera doutrina, mas um acontecimento. Como disse o Papa Bento XVI, a vida cristã é o ‘encontro com um acontecimento, com uma pessoa que dá um novo horizonte à vida’. Depois, esses “acontecimentos” tiveram “testemunhas”. Ou seja, algumas pessoas ouviram e viram e interpretaram, à luz da Ressurreição, aqueles acontecimentos. Ainda mais: aquelas ‘testemunhas oculares’ assumiram um novo horizonte de vida. Não viveram mais como dantes. Ficaram tão entusiasmadas por aquele homem que morreu na cruz e ressuscitou que começaram a viver de modo novo e a transmitir essa Boa Nova a todos que encontravam pelo caminho.

O encantamento despertado por Jesus nos seus seguidores é fruto de um programa de vida que veio realizar. Esse programa de vida está descrito no texto de hoje: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a boa nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e proclamar um ano da graça do Senhor”.

É preciso notar que Jesus lança um olhar de misericórdia sobre os pobres. Ele não vê primeiro o pecado, mas o sofrimento das pessoas. Talvez um dos equívocos de alguns setores da Igreja seja o de firmar-se sobre a doutrina moral fria e legalista sem levar em conta a pessoa nas suas circunstâncias. Em vista disso o teólogo Johann Metz dizia: “A doutrina cristã da salvação dramatizou demasiadamente o problema do pecado, enquanto relativizou o problema do sofrimento”. No programa de Jesus a dor humana sempre ocupou o primeiro lugar.

Alguém poderia argumentar: - “Mas Jesus, diante do paralítico, perdoou-lhe o pecado primeiro, depois o curou”. É certo, mas não deixou de aliviar seu sofrimento físico e moral dizendo-lhe: “Levanta-te, pega teu leito e vai para casa”. Em todas as circunstancias vemos Jesus lançando um olhar de misericórdia sobre o sofrimento humano. Essa atitude de Jesus nos ajuda a refletir sobre nosso modo de lidar na comunidade. Talvez nosso grande pecado seja o de condenar as atitudes dos outros enquanto nos fechamos em nosso bem-estar. Se o sofrimento humano não nos comove e desacomoda é sinal de que o programa de vida de Jesus não nos diz respeito. O mesmo se diga em relação à nossa presença nos espaços sociais, políticos, administrativos: seguindo o programa de vida de Jesus, não se pode ser conivente com falcatruas, com propineiros, com mentirosos e perversos, promotores da violência, da concentração de renda em prejuízo dos pobres da terra.

As tragédias múltiplas como pandemia, rompimento de barragens, fome e miséria pelas quais muitas comunidades e famílias têm passado devem servir de alerta a todos nós, particularmente aos governantes insensatos e insensíveis que protegem e defendem os poderosos e oprimem e destroem os pobres e humildes. Deus nos livre de gente perversa que visa ao seu próprio bolso e bem-estar mediante o sacrifício da vida dos pequenos, dos trabalhadores e dos pobres!

E note bem: ser cristão não é uma questão de escolha. Uma vez que conhecemos Jesus e seu ensinamento, não se pode mais escolher outro caminho. Ele é a única escolha que podemos fazer. Seu programa de vida deve ser nosso programa. Suas atitudes devem ser inspiração para as nossas. Ele é “o Caminho, a Verdade e a Vida”. E ainda: “Ninguém vai ao Pai a não ser por mim”. Não há outro caminho de salvação. – Ser cristão não é fruto de “decisão ética”. Também a “opção pelos pobres” não é fruto de uma ideologia, nem é descoberta da Teologia da Libertação. Ela é constitutiva do “conteúdo da fé cristológica” (Bento XVI). Ou seja, não é possível ser cristão e não viver a opção pelos pobres.

Quando lançamos um olhar para os santos da nossa Igreja, vemo-los totalmente dedicados aos mais pobres. Vejam o Servo de Deus Pe. Júlio Maria: sua primeira preocupação foi aliviar os sofrimentos dos pobres: abrigo, hospital, patronato, farmácia alternativa, educação, visita aos doentes. Gastou todas as suas forças, no Espírito de Jesus, para que os pobres fossem socorridos e aliviados. E assim temos Teresa de Calcutá, Dulce dos Pobres, Helder Câmara, Pedro Casaldáliga, Luciano Mendes, Dorothy Stang e outros milhares.

Qual está sendo a incidência da Palavra de Deus em nossa vida cristã? Nossa vida tem tido como ‘pano de fundo’ o programa de vida de Jesus de Nazaré? Que lugar ocupam os pobres em nossa vida? Como tratamos aqueles que batem à nossa porta? Nossos programas e planejamentos pastorais e comunitários levam em conta os mais pobres? Qual a porcentagem de nosso dízimo é destinada a projetos sociais e assistência aos pobres? Minha preocupação com o ser humano se concentra no seu pecado ou na sua dor? Que meios emprego para lutar contra os projetos causadores de dor e de sofrimento no povo? Que tipo de espiritualidade me anima e sustenta?

Fomos ungidos pelo Espírito Santo no batismo para anunciarmos a Boa Nova aos pobres. Que significado tem o batismo para mim, para nós?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Um encontro ao redor do poço

aureliano, 12.03.20

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3º Domingo da Quaresma [15 de março de 2020]

[Jo 4,5-42]

A água é elemento indispensável à vida. Ela é tão importante que em breve pode se tornar o elemento mais precioso e caro do planeta. É o bem mais essencial para a vida humana. Infelizmente ainda não se tomou consciência suficiente no uso desse elemento. Em vez de varrer com a vassoura muita gente varre calçadas e ruas com água limpinha, tratada; desperdiça de várias outras maneiras. Quando me deparo com alguém (conhecido!) desperdiçando água, ou misturando lixo reciclável com lixo molhado ou orgânico, ou queimando capim ou folhas secas etc., costumo exclamar: “Olhe a Campanha da Fraternidade!”

A liturgia da Palavra deste domingo nos coloca diante da sede de um povo no deserto (Ex 19,3-7) e da sede da mulher à beira do poço. O que é a sede? Você já experimentou sede? Esse desejo e necessidade não sendo saciados com certa imediatez levam a desfalecimento. A gente pode passar dias sem alimento sólido, mas sem água, não. A sede (de água) é símbolo de uma sede maior, mais profunda. A experiência de habitar em terra estrangeira, longe do Templo, numa vida escravizada leva o israelita a dizer a Deus: “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada, sem água” (Sl 63,2). Muitas vezes a experiência de dor e sofrimento nos faz voltar para Deus como “terra seca e sedenta”.

Veja o que aconteceu com a mulher samaritana neste belíssimo relato de João que mostra Jesus como do Dom do Pai, a Água Viva que preenche o coração humano, representado nas buscas até então insatisfeitas da mulher samaritana: “Vai chamar teu marido”...  “Eu não tenho marido”... “Tiveste cinco maridos, e que tens agora não é teu marido” (Jo 4,16-18). Jesus é aquele que preenche o coração daquela mulher. Não tem preconceito, não julga, não condena. Apenas acolhe e mostra-lhe o dom da água viva que brota para a vida eterna. Jesus não lhe apresenta a doutrina e a censura, mas o Dom. E ela acolhe, reconhece, rende-se diante de uma realidade que responde às suas buscas mais profundas.

No caminho da Judéia para a Galiléia era preciso passar pela Samaria. Um território constituído por um povo que tinha alguns costumes diferentes e divergentes dos costumes dos judeus. Havia entre eles uma inimizade histórica e cultural mortal. Jesus estabelece uma nova relação com esse povo. A mulher samaritana aqui significa também a própria Samaria. Jesus veio também para eles. Não somente para os judeus.

Aqui temos o fruto de um encontro verdadeiro, honesto, na busca da verdade do ser humano. Encontro que desperta um desejo para além daqueles que se deram ao longo da história em redor do poço: Isaac e Rebeca; Jacó e Raquel; Moisés e Séfora. Não se dá ali uma “paquera” para casamento, mas um encontro que transforma a partir de dentro e envolve toda uma cidade: “Muitos samaritanos daquela cidade creram nele, por causa da palavra da mulher”.

O Desejo de Jesus se encontrou com o desejo da mulher, que a princípio estava marcada pelo sentimento de ódio, de decepção, de desencanto. O Desejo puro de Jesus contagia aquela mulher, purifica seu desejo e lhe dá uma nova perspectiva de vida. Aquele Desejo oculto de felicidade, ínsito por Deus em seu coração na criação, foi despertado.

Jesus é o dom do Pai, a água viva capaz de saciar o desejo humano que não se sacia com coisas e pessoas: “Já tiveste cinco maridos e o que agora tens não é teu marido”. Ele sacia de vez a sede profunda daqueles que o buscam: “Dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede”.

Nossos jovens, nossas famílias, nossas crianças estão buscando saciar a sede servir a Deus “em espírito e verdade”. Mas o que lhes é oferecido pela televisão, pela internet, até mesmo em alguns cultos ditos cristãos é veneno. Algo parecido com água, mas que leva à morte, à secura, a uma busca frenética de bens de consumo, de festas desmedidas, de bebidas e drogas, de sítios e quintais, de gozo e de vazio. O resultado nós o temos visto: assassinatos, vinganças e mortes; cadeias e bandidagem; corrupção política e roubos de todo jeito; desesperança e “fossa”, preconceito e desejo de morte. Onde está o remédio? No encontro transformador com Jesus Cristo, a Água Viva que nos dá vida nova, que abre nossos horizontes, que dá sentido à vida, que nos faz discípulos missionários, como aconteceu com a samaritana. Bento XVI dizia que o “ser cristão não é fruto de uma decisão ética ou de uma grande ideia, mas de um encontro com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, um rumo decisivo”.

Esse relato do encontro de Jesus com a Samaritana nos questiona também em relação à falta de espaço de acolhida em nossas comunidades. Jesus sentou-se, esperou, acolheu, ouviu, foi rejeitado inicialmente. E ele se manteve ali, resiliente, esperançoso, confiante. Não se pode apresentar em primeiro lugar a lei, a doutrina, o “carão” à pessoa que procura a comunidade: “Você está no pecado!” “Você precisa mudar de vida!” “Você sumiu da igreja!” “Você não pode comungar!” “Você não pode receber os sacramentos!”. - A pessoa precisa de espaço de diálogo, de partilha, de alguém que a ouça sem julgamento, que a compreenda, que lhe apresente um Deus que ama incondicionalmente toda pessoa. Santo Agostinho dizia: “Se queres conhecer uma pessoa, não pergunte o que ela pensa, mas o que ela ama”. Se você quer conhecer a sua comunidade, as pessoas da comunidade, observe não o que elas dizem ou pensam, mas o que ela amam.

Teremos um mundo novo na medida em que cada cristão, assumindo seu batismo, fonte de vida nova em Deus, continuar fazendo seu encontro com Jesus Cristo na sua comunidade, na Palavra de Deus, na celebração, junto àqueles que sofrem. De uma mentalidade consumista e capitalista, egoísta e gananciosa, fratricida, feminicida, preconceituosa e maledicente, transformar-se em discípulo de Jesus como a samaritana do evangelho. Não basta pensar como Jesus pensou. O fundamental é amar como Jesus amou.

O encontro com Jesus “ao redor do poço” deve levar à missão. A participação na celebração deve levar o cristão a partilhar com os outros a experiência feita no encontro vivificador com Jesus Cristo. Há muita gente esperando um pouquinho de nossa “água” haurida nas fontes do Salvador.

Concluindo também com Santo Agostinho: “Ama e faze o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Um encontro que sacia o desejo

aureliano, 17.03.17

Samaritana.jpg

3º Domingo da Quaresma [19 de março de 2017]

[Jo 4,5-42]

A água é elemento indispensável à vida. Ela é tão importante que em breve pode se tornar o elemento mais precioso e caro do planeta. É o bem mais essencial para a vida humana. Infelizmente ainda não se tomou consciência suficiente no uso desse elemento. Em vez de varrer com a vassoura muita gente varre calçadas e ruas com água limpinha, tratada; desperdiça de várias outras maneiras. Quando me deparo com alguém (conhecido!) desperdiçando água, ou misturando lixo reciclável com lixo molhado ou orgânico, ou queimando capim ou folhas secas etc, costumo exclamar: “Olhe a Campanha da Fraternidade!”

A liturgia da Palavra deste domingo nos coloca diante da sede de um povo no deserto (Ex 19,3-7) e da sede da mulher à beira do poço. O que é a sede? Você já experimentou sede? Esse desejo e necessidade não sendo saciados com certa imediatez levam a desfalecimento. A gente pode passar dias sem alimento sólido, mas sem água, não. A sede (de água) é símbolo de uma sede maior, mais profunda. A experiência de habitar em terra estrangeira, longe do Templo, numa vida escravizada leva o israelita a dizer a Deus: “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada, sem água” (Sl 63,2). Muitas vezes a experiência de dor e sofrimento nos faz voltar para Deus como “terra seca e sedenta”.

Vejam o que aconteceu com a mulher samaritana neste belíssimo relato de João que mostra Jesus como do Dom do Pai, a Água Viva que preenche o coração humano, representado nas buscas até então insatisfeitas da mulher samaritana: “Vai chamar teu marido”...  “Eu não tenho marido”... “Tiveste cinco maridos, e o que tens agora não é teu marido” (Jo 4,16-18).

No caminho da Judéia para a Galiléia era preciso passar pela Samaria. Um território constituído por um povo que tinha alguns costumes diferentes e divergentes dos costumes dos judeus. Havia entre eles uma inimizade histórica e cultural mortal. Jesus estabelece uma nova relação com esse povo.

Aqui temos o fruto de um encontro verdadeiro, honesto, na busca da verdade do ser humano. Um encontro que desperta um desejo para além daqueles que se deram ao longo da história em redor do poço: Isaac e Rebeca; Jacó e Raquel; Moisés e Séfora. Não se dá ali uma “paquera” para casamento, mas um encontro que transforma a partir de dentro e envolve toda uma cidade: “Muitos samaritanos daquela cidade creram nele, por causa da palavra da mulher”.

O Desejo de Jesus se encontrou com o desejo da mulher, que a princípio estava marcada pelo sentimento de ódio, de decepção, de desencanto. O Desejo puro de Jesus contagia aquela mulher, purifica seu desejo e lhe dá uma nova perspectiva de vida. Aquele Desejo oculto de felicidade, ínsito por Deus em seu coração na criação, foi despertado.

Jesus é o dom do Pai, a água viva capaz de saciar o desejo humano que não se sacia com coisas e pessoas: “Já tiveste cinco maridos e o que agora tens não é teu marido”. Ele sacia de vez a sede profunda daqueles que o buscam: “Dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede”.

Nossos jovens, nossas famílias, nossas crianças estão buscando saciar a sede de servir a Deus “em espírito e verdade”. Mas o que lhes é oferecido pela televisão, pela internet, até mesmo em alguns cultos ditos cristãos é veneno. Algo parecido com água, mas que leva à morte, à secura, a uma busca frenética de bens de consumo, de festas e mais festas, de bebidas e drogas, de sítios e quintais, de gozo e mais gozo. O resultado nós o temos visto: assassinatos, vinganças e mortes; cadeias e bandidagem; corrupção política e roubos de todo jeito; desesperança e “fossa”. Onde está o remédio? No encontro transformador com Jesus Cristo, a Água Viva que nos dá vida nova, que abre nossos horizontes, que dá sentido à vida, que nos faz discípulos e missionários, como aconteceu com a samaritana. Bento XVI dizia que o “ser cristão não é fruto de uma decisão ética ou de uma grande ideia, mas de um encontro com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, um rumo decisivo”.

Teremos um mundo novo na medida em que cada cristão, assumindo seu batismo, fonte de vida nova em Deus, continuar fazendo seu encontro com Jesus Cristo na sua comunidade, na Palavra de Deus, na celebração, junto àqueles que sofrem. De uma mentalidade consumista e capitalista, egoísta e gananciosa, fratricida e maledicente, transformar-se em discípulo de Jesus como a samaritana do evangelho.

O encontro com Jesus “ao redor do poço” deve levar à missão. A participação na celebração deve levar o cristão a partilhar com os outros a experiência feita no encontro vivificador com Jesus Cristo. Há muita gente esperando um pouquinho de nossa “água” haurida nas fontes do Salvador.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN