Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

aurelius

aurelius

“Escutai o que Ele diz”

aureliano, 03.03.23

2º Domingo da Quaresma B.jpg

2º Domingo da Quaresma [05 de março de 2023]

[Mt 17,1-9]

O relato da transfiguração é apresentado logo após o anúncio da paixão, seguido da repreensão de Pedro que esperava um messias poderoso para libertá-los das mãos dos romanos. Por isso dizemos que nesse relato estão entrelaçados dois aspectos paradoxais: sofrimento e glória. Lucas o confirma ao relatar que a conversa entre Moisés, Elias e Jesus versava sobre “sua partida que iria se consumar em Jerusalém” (Lc 9, 31).

O que esse relato nos quer transmitir? É um apelo aos discípulos a reconhecerem a verdadeira identidade de Jesus, o Filho amado do Pai, ao mesmo tempo que evidencia o crime hediondo daqueles que tramam sua morte.

Moisés e Elias: este ultimo, representante dos profetas e aquele, da Lei. Ambos encontraram-se com Deus na montanha. Aqui, porém, eles nem têm o rosto transfigurado nem ensinam os discípulos, mas conversam com Jesus.  O episódio da transfiguração mostra Jesus, o Filho amado do Pai, que realiza e sintetiza em sua própria vida a Lei e os Profetas. Agora é Ele que deve ser ouvido.

Quando vemos, nesse relato, sofrimento e glória articulados, não devemos interpretar que o sofrimento é o preço da glória; como se Deus barganhasse conosco. Não. A cruz ou sofrimento é consequência da fidelidade ao projeto do Pai. Faz parte da vida do discípulo de Jesus que busca viver um estilo de vida que se opõe à proposta mundana de morte. “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16, 24). Como o Pai glorificou e confirmou seu Filho, ele fará o mesmo com aqueles que buscarem conformar sua vida com a vida de Jesus. No ser humano de Jesus toda a humanidade foi glorificada.

A voz do Pai deve continuar ressoando em nossa vida: “Este é o meu Filho amado em quem me comprazo, ouvi-o”. Essas palavras nos remetem ao relato do batismo de Jesus: “Este é meu Filho amado em quem me comprazo” (Mt 3, 17). Consequentemente nos levam ao nosso batismo, realidade que nos incorpora a Cristo, nos dá vida nova, novo nascimento. E a quaresma sempre foi, na Igreja, desde os primórdios, tempo de preparação para o batismo (para os catecúmenos), e de retomada dos compromissos batismais para fiéis cristãos.

Escutar a voz do Filho, revelador do amor do Pai, deve ser a meta de todo cristão. Abraão ouviu, acreditou e “partiu” (cf. Gn 12, 1-4). Por isso se tornou a grande bênção para a sua posteridade. O cristão batizado, ouvindo a voz do Filho, confirmado pelo pedido de sua mãe: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2, 5), será sempre uma bênção para sua família e comunidade. Não se esqueça, porém, que é uma realidade que demanda a cruz. O que conforta é a perspectiva da ressurreição, da vida nova, da serenidade, da alegria verdadeira que “ninguém poderá tirar” (Jo 16,22).

------------xxxxx------------

O MEDO DE ESCUTAR JESUS

“Ao ouvirem isso, os discípulos caíram de rosto em terra tomados de grande medo” (Mt 17,6). Os discípulos não suportaram ouvir aquela voz que confirmava a vida de Jesus. E não suportaram também a ordem: “Escutai o que ele diz”. Parece que os discípulos ainda não queriam ouvir a Jesus. Preferiam continuar ouvindo outras vozes.

Quão frequente é a tentação da recusa de ouvir a voz do Senhor tanto em nós e em nossas comunidades! Por isso a Igreja reza com o salmista: “Hoje, não fecheis o vosso coração, mas ouvi a voz do Senhor” (Sl 95). Preferimos, muitas vezes, permanecer na ignorância, na mesmice. Preferimos, muitas vezes, a recusa em ouvir os clamores dos pobres, uma opinião de quem pensa diferente, o chamado à conversão.

Então é preciso deixar-se tocar pelo Senhor: “Jesus aproximou-se, tocou neles e disse: ‘Levantai-vos! Não tenhais medo’” (Mt 17,7). É o toque do Senhor que nos acorda, que nos faz perceber e ver a história com outros olhos. Deixar-se tocar pelo Senhor é desenvolver a capacidade de ouvir as pessoas, de olhar o mundo com um olhar de Deus; de debruçar-se todos os dias sobre a Palavra de Deus e orientar a própria vida por ela. É deixar que o projeto do Pai ilumine os próprios projetos. É lançar-se com mais confiança nas mãos do Pai, sabendo que Ele cuida de todos nós.

O Servo de Deus, Pe. Júlio Maria De Lombaerde, comentando este evangelho, falava da importância de se retirar para ouvir o Senhor. Jesus – observava ele – conduziu os discípulos à parte sobre uma alta montanha. Significa que é preciso deixar de lado as distrações e preocupações mundanas para estar com o Senhor e ouvi-lo. “Enquanto uma alma está entregue às preocupações das noticias, aos devaneios, ao tumulto dos vãos pensamentos, fica escravizada pela imaginação e pelas distrações, e Deus não é para ela senão o Deus desconhecido de Atenas (At 17,23)”. E continua: “O homem distraído não se conhece a si mesmo, não vê o que deve reformar em si, não descobre razões de melhorar, de praticar a virtude. Toda a sua vida decorre no esquecimento de Deus e na ignorância dos próprios defeitos. (...) O homem espiritual, porém quer elevar-se da terra, aproximar-se de Jesus transfigurado, transfigurar-se com Ele pela prática da virtude” (Comentário Litúrgico, p. 164-165).

Sobe, pois, a montanha! Escuta o Mestre! Deixa-te tocar por ele! Põe-te de pé e segue a Jesus! Não tenhas medo de ouvi-lo e de segui-lo! O movimento é sempre este: subida e descida: subir a Montanha para estar com ele. Descer a Montanha para estar com os outros de modo novo, iluminado, transfigurado, encantado, fortalecido.

*Campanha da Fraternidade 2023: Encontramos resistência por parte de alguns grupos em trabalhar o tema da fome, julgando ser coisa de política, de esquerda, de comunista etc. Vale a pena relembrar aquela famosa palavra do Servo de Deus, Dom Helder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”. A Campanha da Fraternidade este ano, à luz do Evangelho, quer nos sensibilizar sobre o flagelo da fome que afeta e ceifa a vida de milhões de brasileiros. E nos ajuda a olhar mais de perto as causas estruturais da fome. “As raízes da fome estão, especialmente, na distribuição iníqua da renda e das riquezas, que se concentram nas mãos de poucos, deixando, na pobreza, enormes contingentes populacionais nas periferias urbanas e nas áreas rurais. Esta concentração de renda e riqueza vem de longa data e segue uma lógica na qual o crescimento econômico do Brasil sempre aumenta a riqueza dos ricos, sem estender seus benefícios a quem não tem poder no mercado. A desregulamentação e a flexibilização dos mercados vêm retirando do Estado sua função social e política, em prejuízo do seu dever de justa intervenção na economia e na redistribuição da renda. Entregue à lógica do jogo de concorrência que lhe é própria, o mercado premia os fortes e pune os fracos, aumenta o desemprego e oferece remuneração tão baixa aos trabalhadores e à maioria dos aposentados que não lhes permite adquirir alimento para uma subsistência saudável” (Texto-base, 54).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O único necessário

aureliano, 16.07.22

16º Domingo TC - C - 16 de julho 2022.jpg

16º Domingo do Tempo Comum [17 de julho de 2022]

[Lc 10,38-42]

Jesus caminha para Jerusalém. Na Samaria tem dificuldade de acolhimento, pois judeus e samaritanos são inimigos figadais. O episódio do relato deste domingo mostra o modelo de acolhida orientado por Jesus. Ele não quer contrapor Marta e Maria, vida ativa e vida contemplativa. Nem quer condenar a atitude de Marta. Afinal alguém tinha que preparar a casa e a refeição!

Jesus quer mostrar que Marta está fora dos limites. Corre demais, se agita, se preocupa demais com os afazeres. Seu modo de trabalhar não corresponde ao modo humano de lidar com os trabalhos e atividades. É preciso trabalhar, mas sem perder a calma, a serenidade. É preciso cuidar para que o trabalho não seja nem fuga de si mesmo nem ídolo a quem sacrificamos nossa vida. O trabalho precisa ter um sentido divino.

Também em nossas comunidades corremos o risco de trabalharmos muito, de corrermos muito, de colocarmos as pessoas sob pressão, nervosismo e afobação desviando-as daquilo que é essencial na vida: fazer a experiência do amor de Deus aos pés do Mestre. Maria é o exemplo de quem busca o essencial, o “único necessário”. Sem esse encontro de intimidade com o Senhor, nossa missão se transforma em ação dispersiva e vazia. Cansa e não contagia ninguém. “Podemos deparar-nos com comunidades animadas por funcionários afobados, mas não por testemunhas que irradiam seu vigor” (Pe. Antônio Pagola).

Ademais, é bom pensarmos, por outro lado, naquelas propostas muito em voga em nossos dias, de uma mistificação vazia com o nome de espiritualidade. Há muita gente correndo atrás de “energias positivas”, entrando debaixo de pirâmides, fazendo exercícios “místicos” em busca de equilíbrio e harmonia interna. Isso pode ajudar muito, psicologicamente. Mas dar a isso o nome de espiritualidade é falsear o que esse termo significa, pelo menos do ponto de vista cristão. Espiritualidade é deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus. É uma forma de vida segundo o Espírito. É movimento na direção dos irmãos, pois o Espírito é Sopro.

Então é preciso ter cuidado com práticas mistificadas que podem fazer a pessoa voltar-se para si mesma, colocando-se como centro do mundo, esquecendo-se dos irmãos a seu redor. Só tem sentido o exercício espiritual que nos faz sair de nosso egoísmo e nos colocarmos a serviço dos irmãos mais necessitados. Foi esse Espírito que animou Jesus e seus seguidores na história. Marta e Maria representam duas realidades complementares que precisam ser bem integradas dentro de nós.

-----------xxxxx------------

HOSPITALIDADE: ACOLHER O OUTRO COMO DOM

De um modo geral, o brasileiro é muito acolhedor. A experiência nos mostra que, ao bater à porta de alguém, esperamos sempre ser acolhidos, ouvidos. Normalmente as pessoas nos convidam para entrar, para tomar um cafezinho etc. Perguntamos: O que significa mesmo ser acolhedor, receber visitas?

Neste domingo temos, na liturgia, dois exemplos de hospitalidade: Abraão e Marta. Abraão nos ajuda a perceber o mistério escondido na hospitalidade: a promessa que se realiza no dom do filho (Isaac). Marta e Maria nos ensinam que, antes de fazer muitas coisas para o hóspede, é preciso saber acolher, ouvir o ensinamento (de Jesus).

O ativismo não deixa sobrar tempo para os outros, nem mesmo para a família. Há muitas mães e filhos que reclamam a ausência do marido e pai por sair demais de casa, por trabalhar demais. Quando a ‘casa’ desmorona fica-se perguntando o porquê. Pode ser tarde demais! Muita gente diz que não tem tempo para servir à comunidade. Está gastando o tempo em quê? Um dia terá que parar pela doença, pela idade ou pela morte. E pode ser tarde demais!

Observamos que Abraão escolheu o melhor de sua cozinha para seus hóspedes. Maria deu o melhor de si, seu tempo todo para escutar o Mestre. Marta foi censurada por se ocupar com muitas coisas, desprezando o “único necessário”. Um bom anfitrião pode servir o melhor possível, mas se não escuta o que o visitante tem para dizer, fará uma montão de coisas, e a finalidade real da visita não se realizará. Nossa preocupação não pode se centrar nos nossos afazeres: almoço, churrasco, granfinagem, mas na pessoa, no seu rosto e nas suas palavras que nos interpelam. Senão nossa hospitalidade vai se transformar em exibicionismo, auto-afirmação, vaidade. Jesus lembra a Marta que ela precisa se preocupar com o “único necessário”.

Vivemos num tempo de muita agitação. “Tempo é dinheiro”, dita o Mercado. Não se pode perder tempo. Esse ritmo faz a vida perder o sentido. Vivemos num ritmo desesperado, estressante, provocado por essa busca frenética do ter que relativiza o ser, oferta gratuita de si para a vida dos outros.

Então perguntamos: o que é mesmo essencial em nossa vida? O que é mais importante: fazer muitas coisas, trabalhar muito, falar muito, correr o dia inteiro, engordar a conta-poupança? Será que não estamos precisando de parar um pouco e ouvir a Palavra, escutar o que Deus nos quer falar? A liturgia da Palavra de hoje nos convida a parar, gastar tempo com o outro, oferecer o melhor de nós, estar mais com a família, desligar o computador, a TV e o celular de vez em quando. - Você consegue passar um dia sem acessar internet ou sem ‘zapear’? A Palavra de Deus nos provoca e nos desinstala, convidando-nos a parar e ouvir as pessoas, a fazer algumas visitas, a estarmos gratuitamente um pouco mais com aquelas pessoas abandonadas, sozinhas, isoladas, sofridas. A acolher em nossa casa aqueles que nos buscam ou precisam de nós; não tanto de nossas ‘coisas’, mas de nós, de nosso tempo, de nosso ouvido, de nossa compreensão, de nossa participação em sua vida.

O fundamento da hospitalidade e do acolhimento cristãos é saber compreender que o centro de nossas preocupações não deve ser nossa incansável atividade cotidiana, mas a pessoa humana que nos é dada e que nós recebemos, tantas e tantas vezes, como um dom da parte de Deus. 

Nosso encontro com o Senhor na Celebração Eucarística quer renovar em nós o vigor para nos colocarmos na atitude de Abraão e de Maria que param e escutam o que Deus lhes quer falar. “Uma só coisa é necessária”.

Pe. Aureliano de Moura  Lima, SDN

Tentação: desviar-nos do Caminho

aureliano, 04.03.22

1º Domingo da quaresma - C.jpg

1º Domingo da Quaresma [06 de março de 2022]

[Lc 4,1-13]

Estamos vivendo esse tempo rico de bênçãos e graças na Igreja. Tempo de revisão de vida, de exame de consciência, de retomada dos compromissos batismais. Quaresma lembra os quarenta anos de caminhada do Povo de Deus no deserto rumo à Terra Prometida. Lembra também os quarenta dias de jejum e oração vividos por Jesus no deserto.

O evangelho de hoje nos remete à situação de tentação vivida por Jesus. No final de um tempo profundamente marcado por Deus ele é tentado pelo diabo. No início parece até contraditório. Como é que a tentação pode ocorrer logo após um tempo forte de oração e jejum? O diabo não deveria estar bem longe? Pois é! A vida de Jesus vem nos mostrar que nunca estamos livres das tentações do maligno. Quanto mais próximos de Deus, mais tentados pelo diabo. A vida de oração não nos garante a isenção de tentações. Garante, sim, a força de Deus para enfrentarmos e vencermos o mal, como aconteceu com Jesus.

O relato das tentações de Jesus não é um relato jornalístico, como se alguém estivesse filmando ou descrevendo tudo o que estava acontecendo a Jesus. Não! É relato de um episódio que visa à catequese da comunidade. A experiência de Jesus é a experiência do discípulo que se compromete a seguir Jesus, mas enfrenta muitas tentações. Partindo deste princípio, podemos afirmar que, na verdade, Jesus não foi tentado somente em um dado momento, mas durante toda a sua vida o diabo buscou desviá-lo do cumprimento da vontade do Pai. O que importa é que ele sempre foi vencedor: nunca se deixou levar pelo diabo.

Primeira tentação: Quando Jesus sente fome o diabo se apresenta para que Jesus mude a pedra em pão: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão” (Lc 4,3). O diabo nos quer pegar em nosso ponto fraco. E também nas coisas mais cotidianas: sorrateiramente. Jesus recorre sempre à Palavra de Deus. Esta é o remédio eficaz contra as tentações: “Não só de pão vive o homem”. O pão é a necessidade primeira, básica. Mas comida não preenche o mais profundo do ser humano (cf. Rm 14,17). A vida em Deus é alimento imprescindível.

Ainda mais: o pão cotidiano precisa ser investido pelo Espírito. Dom José Tolentino, pregador do retiro para a Cúria Romana em 2018, dizia que se o “nosso pão for mais que pão, se ele se deixar atravessar pela Palavra que sai da boca de Deus, ele alcançará uma potência que o simples pão não tem, e poderá tornar-se alimento para muitas fomes” (Elogia da sede, p. 103).

Ademais, Jesus não veio para atender a ordens do diabo nem a interesses próprios, mas para fazer a vontade do Pai. Mais tarde multiplicará os pães para saciar a fome de uma multidão. - Como temos alimentado nosso espírito? Que temos lido? A que programas de televisão assistimos? Que sites acessamos? Como anda a ganância dentro de nós? Que ambientes temos frequentado em nosso lazer? Qual o nível de nosso comprometimento com as Políticas Públicas: participação nos Conselhos de Saúde, de Segurança, de Assistência Social, de Educação, Audiências Públicas, Câmara Municipal, Organizações que trabalham em favor dos mais pobres? A tentação é sempre fugir, deixar pra lá: “Isso não é problema meu!”. Mas se implica o bem, a saúde, a educação do meu irmão, implica também a mim. Por vezes somos afetados pelo sentimento invejoso e insensível que invadiu o coração de Caim. Questionado pelo Senhor a respeito do destino de seu irmão Abel, responde: “Acaso sou eu o guarda do meu irmão?” (Gn 4,9).

A segunda tentação é a do “poder e glória”: “Eu te darei todo este poder com a glória destes reinos, porque ela me foi entregue e eu a dou a quem eu quiser. Por isso, se te prostrares diante de mim, toda ela será tua” (Lc 4,6-7). Essa tentação é terrível. Há muita gente ‘ajoelhada’ diante do diabo, como se estivesse diante de Deus, para conseguir “poder e glória”. Tem gente que ‘vende a alma para o diabo’ para conseguir sucesso, poder e dinheiro. Perde todas as referências éticas em troca do poder e do dinheiro. É uma das grandes tentações de nossos tempos. É a manipulação da religião para dominar, para enriquecer-se, para se ter sucesso. É servir-se da religião para conquistar bem-estar, prestígio, fama, eleição e cargos políticos.

Nestes tempos em que a Igreja tem perdido prestígio e influência social, sofre fortemente a tentação de se aproximar do poder podre e corrupto dos grandes deste mundo. Jesus responde que somente a Deus devemos servir e adorar. E diante dos poderosos a Igreja precisa ser sempre profética.

Essa tentação se vence com a busca de um olhar compassivo e misericordioso sobre os irmãos mais necessitados. O serviço a Deus dá-se nos ‘pequeninos’ do Reino. Todo cuidado é pouco, pois o diabo se traveste de ‘deus’ para enganar os dominados pela cobiça. Ou melhor, os cobiçosos colocam no diabo uma capa ‘divina’ para ‘subirem na vida’.

Há uma reflexão interessante também de Dom José Tolentino sobre essa tentação: “É como se Deus tivesse de se submeter às condições que consideramos necessárias para podermos acreditar nele. Se ele não cumpre essa proteção prometida, do modo que nós desejamos ver cumprida, as certezas da nossa fé vacilam. Se ele não satisfaz imediatamente as nossas múltiplas sedes, ficamos logo atordoados sem saber se ele está no meio de nós ou não (Cf. Êx 17,1-17). Nós queremos a nossa sede satisfeita para podermos acreditar. Jesus nos ensina a entregar o silêncio, o abandono e a sede como oração. Nós queremos amar a Deus por aquilo que ele nos dá. Aprendemos progressivamente, porém, como essa forma de ver se torna um lugar de tentação. Madre Teresa de Calcutá dizia: ‘Quero amar a Deus por aquilo que ele tira’” (Elogio da sede, p. 104-105).

A terceira tentação se dá no pináculo do templo de Jerusalém: “Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: ‘Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito para que te guardem’” (Lc 4,9-10). É a tentação da vanglória, da ostentação, do desejo de aparecer, de jogar nossas responsabilidades nas mãos de Deus, do uso da religião para manipular as pessoas. Nessa tentação, a última cartada, o diabo busca desviar Jesus de sua missão com uma capa de cumprimento das Escrituras. Deus o ampararia e todo mundo iria acreditar nele. Jesus, porém, não se deixa levar por essa proposta. Mostra que a Deus não se deve tentar. Ou seja, não se pode jogar para Deus aquilo que é responsabilidade do ser humano. Essa tentação mostra explicitamente o uso da religião para busca de sucesso. Quanta gente anda atrás de promessa, de milagres, de adivinhações, de revelações etc. Na verdade, cada um deveria assumir seu papel na sociedade. Nesta tentação Jesus mostra que nunca colocará o Pai a serviço de si, mas se colocará sempre a serviço dos pequenos, lavando-lhes os pés, como realização do desejo do Pai.

 Como cristãos o Senhor nos chama a lançar sobre o mundo um olhar de misericórdia. Ele nos convida a deixarmos de buscar a nós mesmos, nosso bem-estar, nossos desejos realizados, nosso sucesso e voltarmos nosso olhar para fora, para o outro. O rosto do outro precisa me interpelar, me incomodar e me desacomodar. Essa foi a atitude que Jesus assumiu diante do Pai. É diabólico organizar uma religião como um sistema de crenças e práticas para se conseguir segurança. Não se constrói um mundo mais humano refugiando-se cada um em sua religião. É preciso arriscar-se confiando em Deus, como Jesus.

“O culto do poder faz do poder um ídolo, qualquer que ele seja. Torna o domínio e a posse a suposta fonte de felicidade e de sentido. - ‘O que faço do poder?’ ‘O que o poder faz de mim?’ - Há um risco enorme quando o poder nos afasta da Cruz. Quando ele deixa de ser um serviço aos irmãos e se torna delírio da autoafirmação e da  autorreferencialidade. Jesus se recusou determinantemente a ajoelhar-se diante de Satanás, mas ajoelhou-se voluntariamente diante dos discípulos para lavar-lhes os pés (cf. Jo 13,1-5). ( Tolentino em Elogio da sede, p. 106-107).

As tentações pelas quais passou Jesus são também nossas. É a tessitura do dia-a-dia da vida cristã. O empenho pelo bem tem como desafio a luta contra o mal. É a tentativa do diabo em arrancar de nós a Palavra. Quando não consegue esmorecer a pessoa, tenta sufocar a Palavra em seu coração, alimentando preocupações com prazeres e riquezas (cf. Lc 8,4-15). Quer nos desviar do Caminho.

Alimentemos em nós o espírito que animava Jesus. Ele teve a coragem de “perder” a sua vida por causa de nós. “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9,23-24). A Palavra de Deus guardada no coração e colocada em prática é a grande arma que o Pai nos deu para não nos deixarmos vencer pelas tentações do inimigo.

Você consegue identificar quais são as tentações que, na sua vida, buscam desviá-lo do seguimento de Jesus, do cumprimento da vontade do Pai?

*Campanha da Fraternidade:

“O ato de escutar é fundamental. Escutar é mais que ouvir. Escutar está na linha da comunicação, ouvir na linha da informação. Escutar supõe proximidade, sem a qual não é possível um verdadeiro encontro. A escuta permite encontrar o gesto e a palavra oportuna que nos desinstala da sempre e mais tranquila condição de espectador” (Texto-Base, 26).

“O que escutamos e como escutamos orienta o nosso fazer cotidiano e a própria sociedade: escutar é sempre uma condição para nossas relações, para a compreensão do que se passa, para o diagnóstico dos caminhos que devemos tomar e, especialmente, escutar é uma condição para falar com sabedoria e ensinar com amor. Escutar o outro, como Jesus nos demonstrou em toda a sua pedagogia, é o ponto de partida para acolher, compreender, problematizar e transformar a realidade” (Texto-Base, 27).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Abrir-se a Deus e aos irmãos

aureliano, 04.09.21

23º Domingo do TC - B - 05 de setembro.jpg

23º Domingo do Tempo Comum [05 de setembro 2021]

[Mc 7,31-37]

No relato de hoje Jesus ainda está em território pagão, retornando para a Galiléia. Nesse texto Marcos prepara o leitor para acompanhar a profissão de fé de Pedro: “Tu és o Messias”. Por isso a multidão já fica impressionada: “Ele tem feito bem todas as coisas!”.

Ao trazerem aquele homem para que Jesus lhe impusesse a mão, aquelas pessoas demonstravam uma confiança que Jesus poderia fazer alguma coisa. Na verdade, notamos no relato de hoje, ligado à mulher siro-fenícia que “arrancou” de Jesus um milagre em favor de sua filha, e prestes já a entrar no relato da multiplicação dos pães, a ação misericordiosa de Deus manifestada em Jesus. Deus é bom e cuida de todos, particularmente dos mais abandonados e desprezados.

Jesus realiza um ritual com aquele homem: leva-o para fora da multidão, ou seja, mostra que quer se comunicar com ele. Jesus toca nos ouvidos e língua do surdo-mudo! Os doentes eram considerados amaldiçoados por Deus! E Jesus toca neles! Esse fato nos remete à Criação, no livro do Gênesis. É a recriação que Deus faz de nós em Jesus, seu Filho amado. Ele nos recria, nos faz ouvir e falar de modo novo. Ele abre nossos ouvidos e nossa boca. Quer que o escutemos com atenção. Quer que proclamemos sua bondade. Essa correlação com a Criação aparece claramente quando a multidão proclama: “Ele faz bem todas as coisas”. No relato da criação em Gênesis, lemos: “Viu que era muito bom” (Gn 1,31).

Jesus percebeu que apenas os gestos eram insuficientes para a recuperação daquele homem, volta-se para o Pai, como a nos indicar o que fazer nas situações em que nos deparamos com nossos limites ou com dificuldades que ultrapassam nossas forças. Olha para o alto e diz confiante: “Effathá!”. É a única palavra de Jesus no relato. Mas uma palavra recriadora, libertadora, expressiva de toda sua missão. Veio para “abrir” os ouvidos e o coração do ser humano. Se o pecado nos fecha a Deus e aos irmãos, a graça salvadora de Jesus nos abre a uma vida nova, à partilha dos dons e dos bens. Impele-nos a ver as necessidades dos outros e a ouvir o clamor dos pobres.

“Abre-te!”. Essa proclamação de Jesus continua ressoando dentro de nós, em nossa Igreja. Marcos quer lembrar aos cristãos das primeiras comunidades que precisam aprender a escutar. Escutar a Jesus. Escutar a Palavra de Deus. Escutar as necessidades dos irmãos. Mas não é possível escutar os irmãos se primeiro não escutamos a Jesus. Não podemos dizer uma palavra de conforto, de sabedoria, de estímulo ao sofredor, se antes não escutamos essa palavra de Jesus. Quantas pessoas desoladas, sofridas, desanimadas, tristes por falta de quem as escute com atenção e generosidade! Quem não se abre a Deus, não pode se abrir aos outros. Aquele “abre-te” foi pronunciado por Jesus ao coração daquele homem e não aos seus ouvidos, pois não escutava. E ele passou a ouvir com o coração. Como as pessoas necessitam de quem as ouça com o coração! A tecnologia da comunicação veio ajudar em muita coisa, mas perturbou terrivelmente as relações de proximidade, de afetividade, de sensibilidade, de solidariedade. 

Por vezes a Igreja diz grandes verdades, mas que não tocam o coração de ninguém. Por quê? Falta falar ao coração, com afeto, com interesse e sensibilidade pela situação de cada um. Tocar e curar as feridas, os ouvidos, os olhos, o coração, as dores das vítimas de uma sociedade que levanta muros e derruba as poucas pontes! Uma Igreja de mais proximidade aos que estão distantes, enxotados por um sistema que visa aos que produzem e exclui com perversidade aqueles que não dão lucro econômico.

A propósito do mês da bíblia, seria bom pensarmos na necessidade de abrirmos nosso coração e nossa vida à Palavra de Deus. Ler nossa vida no espelho do texto sagrado. Ali percebemos onde estamos, aonde precisamos ir e por onde caminhar. Ela nos possibilita um encontro com Jesus que nos transforma, que nos abre, que nos dá possibilidades novas, que abre diante de nós novos horizontes. Ajuda-nos a “falar sem dificuldade”, pois falamos daquilo que experimentamos em nosso coração.

Quando lemos o relato da criação em Gênesis, observamos que o autor sagrado repete várias vezes: “Deus viu que isso era bom”. No relato do evangelho de hoje a multidão exclama: “Ele tem feito bem todas as coisas”. Uma confirmação da ação recriadora de Jesus.

A Igreja, continuadora da missão de Jesus e com Jesus, deve colocar-se como ouvinte atenta, discípula fiel para aprender de Jesus a acolher, sem discriminação nem preconceito. Tiago, na segunda leitura de hoje, nos ensina “A fé que tendes em nosso Senhor Jesus Cristo glorificado não deve admitir acepção de pessoas” (Tg 2,1). Nós, Igreja, precisamos aprender a ouvir o clamor dos pobres. Ensinava Dom Casaldáliga: “Se a Igreja esquece a opção pelos pobres, esqueceu o evangelho”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“Escutai o que Ele diz”

aureliano, 06.03.20

2º Domingo do Quaresma - A - 08 de março.jpg

2º Domingo da Quaresma [08 de março de 2020]

[Mt 17,1-9]

O relato da transfiguração é apresentado logo após o anúncio da paixão, seguido da repreensão de Pedro que esperava um messias poderoso para libertá-los das mãos dos romanos. Por isso dizemos que nesse relato estão entrelaçados dois aspectos paradoxais: sofrimento e glória. Lucas o confirma ao relatar que a conversa entre Moisés, Elias e Jesus versava sobre “sua partida que iria se consumar em Jerusalém” (Lc 9, 31).

O que esse relato nos quer transmitir? É um apelo aos discípulos a reconhecerem a verdadeira identidade de Jesus, o Filho amado do Pai, ao mesmo tempo que evidencia o crime hediondo daqueles que tramam sua morte.

Moisés e Elias: este ultimo, representante dos profetas e aquele, da Lei. Ambos encontraram-se com Deus na montanha. Aqui, porém, eles nem têm o rosto transfigurado nem ensinam os discípulos, mas conversam com Jesus.  O episódio da transfiguração mostra Jesus, o Filho amado do Pai, que realiza e sintetiza em sua própria vida a Lei e os Profetas. Agora é Ele que deve ser ouvido.

Quando vemos, nesse relato, sofrimento e glória articulados, não devemos interpretar que o sofrimento é o preço da glória; como se Deus barganhasse conosco. Não. A cruz ou sofrimento é consequência da fidelidade ao projeto do Pai. Faz parte da vida do discípulo de Jesus que busca viver um estilo de vida que se opõe à proposta mundana de morte. “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16, 24). Como o Pai glorificou e confirmou seu Filho, ele fará o mesmo com aqueles que buscarem conformar sua vida com a vida de Jesus. No ser humano de Jesus toda a humanidade foi glorificada.

A voz do Pai deve continuar ressoando em nossa vida: “Este é o meu Filho amado em quem me comprazo, ouvi-o”. Essas palavras nos remetem ao relato do batismo de Jesus: “Este é meu Filho amado em quem me comprazo” (Mt 3, 17). Consequentemente nos levam ao nosso batismo, realidade que nos incorpora a Cristo, nos dá vida nova, novo nascimento. E a quaresma sempre foi, na Igreja, desde os primórdios, tempo de preparação para o batismo (para os catecúmenos), e de retomada dos compromissos batismais para fiéis cristãos.

Escutar a voz do Filho, revelador do amor do Pai, deve ser a meta de todo cristão. Abraão ouviu, acreditou e “partiu” (cf. Gn 12, 1-4). Por isso se tornou a grande bênção para a sua posteridade. O cristão batizado, ouvindo a voz do Filho, confirmado pelo pedido de sua mãe: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2, 5), será sempre uma bênção para sua família e comunidade. Não se esqueça, porém, que é uma realidade que demanda a cruz. O que conforta é a perspectiva da ressurreição, da vida nova, da serenidade, da alegria verdadeira que “ninguém poderá tirar” (Jo 16,22).

------------xxxxx------------

O MEDO DE ESCUTAR JESUS

“Ao ouvirem isso, os discípulos caíram de rosto em terra tomados de grande medo” (Mt 17,6). Os discípulos não suportaram ouvir aquela voz que confirmava a vida de Jesus. E não suportaram também a ordem: “Escutai o que ele diz”. Parece que os discípulos ainda não queriam ouvir a Jesus. Preferiam continuar ouvindo outras vozes.

Quão frequente é a tentação da recusa de ouvir a voz do Senhor tanto em nós e em nossas comunidades! Por isso a Igreja reza com o salmista: “Hoje, não fecheis o vosso coração, mas ouvi a voz do Senhor” (Sl 95). Preferimos, muitas vezes, permanecer na ignorância, na mesmice. Preferimos, muitas vezes, a recusa em ouvir os clamores dos pobres, uma opinião de quem pensa diferente, o chamado à conversão.

Então é preciso deixar-se tocar pelo Senhor: “Jesus aproximou-se, tocou neles e disse: ‘Levantai-vos! Não tenhais medo’” (Mt 17,7). É o toque do Senhor que nos acorda, que nos faz perceber e ver a história com outros olhos. Deixar-se tocar pelo Senhor é desenvolver a capacidade de ouvir as pessoas, de olhar o mundo com um olhar de Deus; de debruçar-se todos os dias sobre a Palavra de Deus e orientar a própria vida por ela. É deixar que o projeto do Pai ilumine os próprios projetos. É lançar-se com mais confiança nas mãos do Pai, sabendo que Ele cuida de todos nós.

O Servo de Deus, Pe. Júlio Maria De Lombaerde, comentando este evangelho, falava da importância de se retirar para ouvir o Senhor. Jesus – observava ele – conduziu os discípulos à parte sobre uma alta montanha. Significa que é preciso deixar de lado as distrações e preocupações mundanas para estar com o Senhor e ouvi-lo. “Enquanto uma alma está entregue às preocupações das noticias, aos devaneios, ao tumulto dos vãos pensamentos, fica escravizada pela imaginação e pelas distrações, e Deus não é para ela senão o Deus desconhecido de Atenas (At 17,23)”. E continua: “O homem distraído não se conhece a si mesmo, não vê o que deve reformar em si, não descobre razões de melhorar, de praticar a virtude. Toda a sua vida decorre no esquecimento de Deus e na ignorância dos próprios defeitos. (...) O homem espiritual, porém quer elevar-se da terra, aproximar-se de Jesus transfigurado, transfigurar-se com Ele pela prática da virtude” (Comentário Litúrgico, p. 164-165).

Sobe, pois, a montanha! Escuta o Mestre! Deixa-te tocar por ele! Põe-te de pé e segue a Jesus! Não tenhas medo de ouvi-lo e de segui-lo! O movimento é sempre este: subida e descida: subir a Montanha para estar com ele. Descer a Montanha para estar com os outros de modo novo, iluminado, transfigurado, encantado, fortalecido.

*Campanha da Fraternidade 2020: Um dos granes desafios para o nosso tempo é definir o que se entende por justiça. Trata-se, sem dúvida, de uma palavra muito usada, porém, com muitas compreensões diferentes. O ponto em comum reside no fato de que se deva dar a alguém aquilo que ele merece. Diferem, entretanto, as compreensões ao especificar o que é merecido. Na maioria das vezes, trata-se daquilo que pode ser retribuído, com o dinheiro, com o trabalho, com o bom comportamento, atendendo às expectativas do grupo ou da sociedade em que se está inserido. Esse não é um conceito errado de justiça, mas ele é incompleto, porque deixa de fora os seres humanos que, de algum modo, não podem retribuir: os pobres, os pecadores e os inimigos (Texto-base, 103).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Vida cristã: ser configurado a Cristo

aureliano, 04.08.17

transfiguração 06 de agosto.jpg

Transfiguração do Senhor [06 de agosto de 2017]

[Mt 17,1-9]

A festa da Transfiguração do Senhor já era celebrada no Oriente no século IX. Foi estendida ao Ocidente no século XV pelo Papa Calisto II, em memória da vitória dos cristãos contra as forças otomanas, no cerco de Belgrado, em 1456.

O relato da transfiguração é apresentado logo após o anúncio da paixão, seguido da ‘repreensão’ que Pedro fizera a Jesus (cf. Mt 16,22-23), pois ele esperava um Messias poderoso para libertá-los das mãos dos romanos. Por isso entendemos que nesse relato estão entrelaçados dois aspectos paradoxais: sofrimento e glória. Lucas o confirma ao relatar que a conversa entre Moisés, Elias e Jesus versava sobre “sua partida que iria se consumar em Jerusalém” (Lc 9, 31). A glória ilumina a cruz. A perspectiva da Glória nos ajuda a dar sentido às dificuldades e cruzes da vida. É um apelo aos discípulos a reconhecerem a verdadeira identidade de Jesus, o Filho amado do Pai, ao mesmo tempo que evidencia o crime hediondo daqueles que tramam sua morte.

Quando vemos, nesse relato, sofrimento e glória articulados, não devemos interpretar como sendo o sofrimento o preço da glória; como se Deus barganhasse conosco. Não. A cruz ou sofrimento é consequência da fidelidade ao projeto do Pai. Faz parte da vida do discípulo de Jesus que busca viver um estilo de vida que se opõe à proposta mundana que conduz e gera a morte. “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16, 24). Como o Pai glorificou e confirmou seu Filho, ele fará o mesmo com aqueles que buscarem configurar sua vida com a vida de Jesus. No ser humano de Jesus toda a humanidade foi transfigurada, glorificada.

Moisés e Elias: este, representante dos profetas e aquele, representante da Lei. Ambos se encontraram com Deus na montanha. O episódio da transfiguração mostra Jesus, o Filho amado do Pai, que realiza e sintetiza em sua própria vida a Lei e os Profetas. Agora é Ele que deve ser ouvido.

A voz do Pai deve continuar ressoando em nossa vida: “Este é o meu Filho bem-amado, aquele que me aprouve escolher. Ouvi-o”. Essas palavras nos remetem ao relato do batismo de Jesus: “Este é meu Filho bem-amado, aquele que me aprouve escolher” (Mt 3, 17). Consequentemente, nos levam ao nosso batismo pelo qual nos foi dada a vida nova em Jesus Cristo.

Escutar a voz do Filho, revelador do amor do Pai, deve ser a meta de todo cristão. Abraão ouviu, acreditou e “partiu” (cf. Gn 12, 1-4). Por isso se tornou a grande bênção para a sua posteridade. O cristão batizado, ouvindo a voz do Filho, confirmado pelo pedido de sua mãe: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2, 5), será sempre uma bênção para sua família e comunidade. Não se esqueça, porém, que é uma realidade que demanda a cruz. O que conforta e anima é a perspectiva da ressurreição, da vida nova, da serenidade, da alegria verdadeira que “ninguém poderá tirar” (Jo 16,22).

-------------------xxxxxxxx--------------------

O MEDO DE ESCUTAR JESUS

“Ao ouvirem isso, os discípulos caíram de rosto em terra tomados de grande medo” (Mt 17,6). Os discípulos não suportaram ouvir aquela voz que confirmava a vida de Jesus. E não suportaram também a ordem: “Escutai o que ele diz”. Parece que os discípulos ainda não queriam ouvir a Jesus. Preferiam continuar ouvindo outras vozes.

Quão frequente é a tentação da recusa em ouvir a voz do Senhor que clama dentro de nós, em nossa consciência, e nos fala pelas nossas comunidades e sinais dos tempos! Por isso a Igreja reza com o salmista: “Hoje, não fecheis o vosso coração, mas ouvi a voz do Senhor” (Sl 95). Preferimos, muitas vezes, permanecer na ignorância, na mesmice, no “deixa pra lá”. Não é tarefa fácil prestar ouvido ao apelo à conversão, à mudança de vida, pois pede desacomodo.

É preciso deixar-se tocar pelo Senhor: “Jesus aproximou-se, tocou neles e disse: ‘Levantai-vos! Não tenhais medo’” (Mt 17,7). É o toque do Senhor que nos acorda, que nos faz perceber e ver a história com outros olhos. Deixar-se tocar pelo Senhor é desenvolver a capacidade de ouvir as pessoas, de olhar o mundo com um olhar de Deus; de debruçar-se todos os dias sobre a Palavra de Deus e orientar a própria vida por ela. É deixar que o projeto do Pai ilumine nossos próprios projetos. É lançar-se com mais confiança nas mãos do Pai, sabendo que Ele cuida de todos nós.

O Servo de Deus, Pe. Júlio Maria De Lombaerde, fundador de nossa Congregação, comentando este evangelho, falava da importância de se retirar para ouvir o Senhor. Jesus – observava ele – conduziu os discípulos à parte sobre uma alta montanha. Significa que é preciso deixar de lado as distrações e preocupações mundanas para estar com o Senhor e ouvi-lo. “Enquanto uma alma está entregue às preocupações das noticias, aos devaneios, ao tumulto dos vãos pensamentos, fica escravizada pela imaginação e pelas distrações, e Deus não é para ela senão o Deus desconhecido de Atenas (At 17,23)”. E continua: “O homem distraído não se conhece a si mesmo, não vê o que deve reformar em si, não descobre razões de melhorar, de praticar a virtude. Toda a sua vida decorre no esquecimento de Deus e na ignorância dos próprios defeitos. (...) O homem espiritual, porém quer elevar-se da terra, aproximar-se de Jesus transfigurado, transfigurar-se com Ele pela prática da virtude” (Comentário Litúrgico, p. 164-165).

Sobe, pois, a montanha! Escuta o Mestre! Deixa-te tocar por ele! Põe-te de pé e segue a Jesus! Não tenhas medo de ouvi-lo e de segui-lo! O movimento é sempre este: subida e descida: subir a Montanha para estar com ele. Descer a Montanha para estar com os outros de modo novo, iluminado, transfigurado, encantado, fortalecido.

*Lembramos hoje a vocação ao ministério ordenado: diácono, padre e bispo. Seria bom fazermos, hoje, uma prece pelo nosso pároco, pelos padres que conhecemos, por aqueles que nos marcaram na fé, por aqueles padres que passam por dificuldades, tribulações, desencanto e enfermidades, por aqueles que vivem em situação de risco, de violência, de miséria. E vamos pedir ao Pai que envie padres profetas e santos para sua Igreja. Sacerdotes configurados a Cristo-Servo.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Entre Pastores e Mercenários: muitas vozes

aureliano, 16.04.16

4º Domingo da Páscoa [17 de abril de 2016]

[Jo 10,27-30]

O contexto do evangelho de hoje é o de Jesus passeando dentro do Templo, por ocasião da festa da Dedicação, quando um grupo de judeus se aproxima, ameaçando-o. Jesus lhes recrimina a falta de fé: “Vós não credes porque não sois das minhas ovelhas” (Jo 10,26). Ouvindo estas palavras os judeus queriam apedrejá-lo (Jo 10,31).

E Jesus lhes diz que, para ser ovelhas do seu rebanho, precisam escutar a sua voz: “As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem”. Aqui está o que é essencial na fé cristã: ouvir a voz de Jesus e segui-lo. Não é cristão quem se recusa a escutar a Jesus e não se dispõe a segui-lo.

A primeira coisa que precisamos trabalhar em nós é a capacidade de escutar. Em meio a tantas vozes que ressoam aos nossos ouvidos, precisamos desenvolver a capacidade de distinguir a voz do Bom Pastor. Sua voz não se mistura com os gritos do consumismo, da teologia da prosperidade, do desespero, das ameaças, dos moralismos, do preconceito. Sua voz se confunde com sua própria vida. Ele dá a vida por suas ovelhas. Quem não tem coragem de dar a vida, de se colocar a serviço não pode ser ouvido nem seguido. É a voz do lobo que quer devorar: pensa somente em si mesmo.

A palavra viva, concreta e inconfundível de Jesus deve ocupar o centro de nossa vida, de nossas famílias e de nossas comunidades. Por isso precisaríamos adotar o piedoso costume de, todas as manhãs, rezar um trechinho da Sagrada Escritura. Assim vamos nos aproximando daquele ideal de discípulo que sabe ouvir e sabe dizer uma palavra de conforto ao que sofre: “O Senhor Deus me deu língua de discípulo para que eu saiba acudir o enfraquecido, ele faz surgir uma palavra. Manhã após manhã ele me desperta o ouvido, para que eu escute como os discípulos. O Senhor Deus abriu-me o ouvido. E eu não me revoltei, não me virei para trás” (Is 50,4-5).

Juntamente com a escuta da voz do Pastor vem a segunda parte determinante no discipulado: seguimento. Prega-se por aí uma religião aburguesada. Como se o culto fosse um lugar de ‘sedar’ as consciências, de busca de ‘conforto’ espiritual, de uma espécie de ‘negócio’ com Deus. Ao ouvir a Palavra, precisamos nos posicionar. A fé cristã incide diretamente no modo de viver do cristão. A oração (escuta de Deus) nos coloca na dinâmica da realização da vontade do Pai. É o seguimento de Jesus: crer no que ele creu, dar importância ao que ele deu, defender a causa que ele defendeu, aproximar-se dos pequenos e indefesos como ele se aproximou, confiar no Pai como ele confiou, enfrentar a cruz com a esperança que ele enfrentou.

Escutar a voz do Bom Pastor pode ser até fácil. Mas segui-lo demanda tomada de decisão, atitude cotidiana de conversão. Pe. Antônio Pagola diz que “É fácil instalar-nos na prática religiosa, sem deixar-nos questionar pelo chamado que Jesus nos faz no evangelho deste domingo. Jesus está dentro da religião, mas não nos arrasta para seguirmos seus passos. Sem dar-nos conta nos acostumamos a viver de maneira rotineira e repetitiva. Falta-nos a criatividade, a renovação e a alegria de quem vive esforçando-se por seguir a Jesus” (musicaliturgica.com).

Considerações necessárias:

  1. Hoje é o dia das Pastorais da Igreja. Estas são um modo de Jesus pastorear seu rebanho. Um modo de servir às várias necessidades das comunidades. Pastoral do batismo, da liturgia, da catequese, da criança, da mulher marginalizada, do menor, dos encarcerados etc. Não se trata de uma mera organização. Trata-se de um modo de serviço, a partir de Jesus, dentro da Igreja, às várias necessidades das pessoas. É importante assumir esse serviço como um ‘lavar os pés’. Jamais como meio de autopromoção, de desfile dentro do templo nos corredores e presbitérios a cata de aplausos e reconhecimento. Há pessoas na liderança da comunidade (padres e leigos) que vivem buscando vantagens, lucros, em constante competição, atrás de benesses sociais e financeiras, transformando o espaço litúrgico num palco. É preciso lançar um olhar para o Bom Pastor.
  2. É urgente lembrar que hoje é dia, também, de oração pelas vocações sacerdotais, religiosas e ministeriais na Igreja. Você reza pelas vocações? O que você faz para que mais pessoas tenham a coragem de dar seu sim generoso ao chamado do Pai para um serviço específico na Igreja, como padre, religioso, religiosa? Precisamos pedir ao Pai que “envie trabalhadores para a messe”. E, junto à oração, incentivar e apoiar aqueles que se dispõem a entrar esse caminho.
  3. Há muitas formas de ser pastor: pastores devem ser os pais, os professores, os chefes de órgãos públicos. Como estão exercendo seu serviço? São pastores ou mercenários? Qual é o nível de seu interesse pela pessoa humana? – Infelizmente, o que temos presenciado, ultimamente, nos homens públicos de nosso país enche-nos de vergonha: uma busca desenfreada pelo poder, pelo dinheiro, por benefícios pessoais, sem o mínimo de ética e de respeito pelo pobres de nossa nação!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

“Escutai o que ele diz”

aureliano, 18.02.16

2º Domingo da Quaresma [21 de fevereiro de 2016]

[Lc 9,28b-36]

 

O segundo domingo da quaresma apresenta-nos o relato da Transfiguração do Senhor. Antes de tudo é preciso notar que Jesus “subiu a montanha para rezar”. Lucas é o evangelista que mostra a particularidade da oração na vida de Jesus. E não vai rezar sozinho desta vez. Leva consigo alguns dos discípulos. Na oração, seu rosto se transfigura e sua roupa torna-se brilhante. Parece que este relato quer-nos dizer que nossa oração precisa nos transfigurar, nos encher de luz. Fomos iluminados no batismo. Essa luz precisa ganhar cada vez mais força. É a luz de Deus. O pecado quer sempre obscurecê-la. Por isso a necessidade da luta permanente contra o pecado, pois obscurece a mente e o coração.

A sonolência de Pedro e demais companheiros simbolizam nossa indolência diante da graça e da vida em Deus. Paulo, que compreendeu bem a oposição entre pecado e graça, trevas e luz, exorta: “Eis a hora de sairdes  do vosso sono; hoje, com efeito, a salvação está mais próxima de nós do que no momento em que abraçamos a fé. A noite vai adiantada, o dia está bem próximo. Rejeitemos as obras das trevas e revistamos as armas da luz. Comportemo-nos, honestamente, como em pleno dia, sem comezainas nem bebedeiras, sem licenciosidades nem devassidões, sem brigas nem invejas. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,11-13).

Diante da beleza contemplada, Pedro manifesta o desejo de ficar por ali: “Mestre, é bom estarmos aqui”. Mas ele “não sabia o que estava dizendo”. Pensava que era suficiente estar na montanha em oração. Não queria “descer para Nazaré”. As “Nazarés” da vida são o lugar de confronto com aquilo que rezamos no “monte”. Uma oração que não se encarna na realidade, no cotidiano da vida, não faz sentido. É oca, vazia, alienante como os ídolos que são um “nada” (1Cor 8,4; Sl 96,5). Buscamos a Deus para enfrentar os embates da vida e estes nos fazem buscar a Deus.

O rosto transfigurado de Jesus nos leva a pensar nos rostos desfigurados de tantos sofredores, oprimidos, esquecidos, “invisíveis”, marginalizados. Sobretudo de rostos de jovens violentados, assassinados, desencaminhados, desesperançados, usados, desiludidos. Os rostos dos idosos abandonados, maltratados, incompreendidos. O rosto da Mãe Terra, envenenada, maltratada, sucateada. Tanto a Casa Comum como as pessoas esperam por uma reconfiguração à imagem de Jesus. Essa missão é nossa. Como dar uma figura renovada a esses rostos? O que estamos fazendo?

A voz que brota da nuvem confirma Aquele que foi transfigurado: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz”. Jesus, transfigurado na montanha, mostrou aos discípulos a beleza de sua interioridade. Habitado pelo Pai e pelo Espírito Santo. Portanto, eles podiam ouvi-lo e segui-lo sem medo, pois é o Filho querido do Pai. Não vão se decepcionar nem se frustrar. É habitado pela divindade e quer transmiti-la àqueles que nele acreditam e o seguem. Quem se compromete com Jesus é tomado por essa Luz e será também transfigurado na ressurreição dos justos.

Ali estavam Moisés e Elias, figuras representativas da Antiga Aliança: a Lei e o Profetismo. A voz do Pai, porém, não pede para ouvi-los, e sim, o Filho. Escutar o que Jesus diz é o que dá identidade à fé cristã. Não basta olhar para Jesus. Não basta admirar-se da vida que ele levou nem do que ele fez. É preciso se comprometer com ele, ouvindo e colocando em prática seus ensinamentos. Assumindo em nossa vida a forma de vida de Jesus (cf. Fl 2,5)

A escuta deve ser a primeira atitude do discípulo. Ouvir é interiorizar, colocar dentro do coração aquela realidade que cremos, em que esperamos. No meio da nuvem os discípulos ficaram com medo. E escutaram a “voz” que lhes trouxe conforto e esperança. Assim também ocorre conosco: em tempos nebulosos, e acometidos pelo medo, o Senhor sempre suscitará uma “voz” e pronunciará uma palavra que desperta a esperança e afugenta o medo. Em tempos de proclamação de muitas vozes, há que se retirar ao “monte” para ouvir e discernir a voz do Pai.  Jesus é a voz, a palavra do Pai. Escutemo-lo. Confiemos nele. Ele não nos decepciona!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN