Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

aurelius

aurelius

Batismo: vida nova em Cristo

aureliano, 10.01.25

batismo.jpg

Batismo do Senhor [12 de janeiro de 2025]

[Lc 3,15-16.21-22]

Com a festa do Batismo de Jesus, a Igreja encerra o tempo do Natal. O Batismo de Jesus é mais uma Epifania: manifestação de Jesus como o “filho amado” do Pai. Ele é quem levará a termo o projeto de Deus, por isso exige de João “cumprir toda a justiça”.

Se Jesus é o Filho de Deus, por que quer ser batizado? Que significa o batismo de Jesus?

O batismo de João é um batismo de conversão, um rito de purificação que prepara “os caminhos do Senhor”. Desde a concepção de Jesus, João Batista esteve a ele relacionado. Agora aparece nos inícios de sua vida pública, anunciando a conversão à prática da justiça como caminho para remover o pecado.

Quando Jesus, diante da recusa de João em batizá-lo, insiste em que se deve cumprir “toda a justiça”, ele está mostrando que veio para realizar o plano da salvação que o Pai preparou para a humanidade; veio cumprir a vontade do Pai num amor incondicional à humanidade, que culmina com a cruz. Também se expressa aqui o que o batismo simboliza para Jesus: mergulho na condição humana, menos o pecado. No entendimento dos Santos Padres da Igreja, esse gesto de Jesus santifica as águas do batismo. “Assim, quando o Salvador é lavado, todas as águas ficam puras para o nosso batismo; a fonte é purificada para que a graça batismal seja concedida aos povos que virão depois. Cristo nos precede no batismo para que os povos cristãos sigam confiantemente o seu exemplo” (São Máximo de Turim, século V). Assim Jesus santifica todas as atividades humanas, toda a criação com sua “descida” no batismo à nossa condição humana.

A festa do Batismo de Jesus deve nos levar a refletir sobre o nosso batismo. Este não significa meramente o perdão dos pecados, como o de João, nem uma bênção ou coisa semelhante. Batismo cristão é a participação no batismo de Cristo e na sua missão como Servo de Deus, no Espírito. Ser batizado é tornar-se servidor dos irmãos e irmãs dentro de uma comunidade cristã. É seguimento a Jesus que, “ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder, andou por toda parte fazendo o bem e curando a todos que estavam dominados pelo diabo” (At 10, 37-38).

Vamos rezar um pouco nosso batismo, rever nossos compromissos batismais, nossa vida em comunidade, nossa prática da justiça e da bondade. Seria bom que todo batizado soubesse o dia de seu batismo e o celebrasse. O Pe. Júlio Maria, fundador de nossa Congregação, Missionários Sacramentinos, dava mais ênfase ao dia do seu batismo do que ao do seu natalício. Penso que pode ser uma experiência a nos ajudar a revitalizar em nós o espírito missionário e comprometido próprio do batismo cristão.

---------xxxxx---------

BATISMO: VIVER SEGUNDO O ESPÍRITO

A festa do Batismo do Senhor quer nos ajudar a pensar e a rezar o nosso batismo, nossa consagração radical que o Senhor fez de cada um de nós. Ao consagrar-nos exclama como fizera ao seu próprio Filho: “Este é meu filho amado”.

O evangelho deixa entrever dois aspectos muito interessantes da vida de Jesus: sua relação com Deus e sua solidariedade com o povo. Havia uma expectativa geral em torno do Messias. A Palestina passava por uma opressão muito grande por parte do poder romano. Pipocavam movimentos messiânicos. Esta é a razão da confusão que povo fazia a respeito de João e de Jesus.

João, um homem cheio de Deus, não se deixou levar pela vaidade e declarou: “Virá aquele que é mais forte do que eu... Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo”. Reconhece em Jesus o enviado do Pai que realiza um batismo que comunica a vida nova na força do Espírito Santo. Pregava um “batismo de conversão”.

O primeiro aspecto a ser ressaltado no relato de hoje é a solidariedade de Jesus com o povo. Por que Jesus quis ser batizado? Ele já não é o Filho de Deus? – Jesus se faz solidário com a humanidade. Entra, humildemente, na fila dos pecadores e pede a João o batismo de conversão. Não que ele precisasse desse rito, mas quer cumprir em tudo a vontade do Pai e sua missão. É o “Servo do Senhor”. “Não quebra a cana rachada nem apaga um pavio que ainda fumega; mas promoverá o julgamento para obter a verdade” (Is 42,3).

O batismo cristão não é um rito para nos afastar do mundo, mas nos reenvia renovados para fazermos o novo acontecer. Nós cristãos precisamos lançar um olhar mais profundo e contemplativo sobre essa atitude de Jesus e criarmos coragem para nos lançarmos, de modo novo, a partir do batismo que nos consagra radicalmente ao Pai, para sermos uma presença de Igreja solidária no meio do povo. Ajudar o povo a fazer um caminho de conversão, de reencantamento por Jesus Cristo, de paixão pelo Reino, de coragem para enfrentar os promotores da violência e da morte, na construção de uma sociedade de paz e de mais vida.

Rezemos um pouco mais nosso batismo. Que diferença faz ser batizado ou não? Que diferença faz crer ou não crer? O batismo que você recebeu quando criança interfere em suas atitudes, em seu modo de viver, de se relacionar, de lidar com o poder e com dinheiro? Como você tem vivido sua vida de oração? Reserva algum tempo para a intimidade com o Pai? Procura ser solidário com os pequenos e pobres, com os doentes e pecadores? – João Batista ainda não descobrira a relação misericordiosa e afável com os debilitados e marginalizados. Ele encerra a Primeira Aliança. Jesus, numa atitude reveladora da bondade do Pai, acolhia os pecadores e os perdoava, aproximava-se dos doentes e os curava, abençoava as crianças, acolhia e valorizava as mulheres. Enfim, mostrou um Deus que se aproxima para salvar.

E você, que foi batizado/consagrado, iluminado pela Palavra, orientado e instruído acerca da bondade de Deus que deve ser expressa em sua vida, como tem se colocado diante daqueles que Deus colocou no seu caminho? Você se considera filho/a de Deus? Vive como filho/a amado? O que lhe falta para ser mais fiel ao seu batismo?

----------xxxxx-----------

A POMBA E O ESPÍRITO SANTO

“... e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corporal, como pomba” (Lc 3,22). O que esse relato quer dizer? Por que a iconografia cristã representa o Espírito Santo em forma de pomba? Vamos tentar compreender esse relato.

A gente precisa ir aprendendo a ler e rezar as Sagradas Escrituras relacionando os textos. Essa perícope de Mateus está relacionada com alguns textos do Antigo Testamento. Vejamos.

Bem no início da Sagrada Escritura lemos no relato da Criação que “o vento de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,2). O talmude babilônico – uma espécie de interpretação dos rabinos ao texto bíblico - diz mais: “O Espírito de Deus pairava sobre a face das águas, como uma pomba que paira sobre os seus filhotes sem tocá-los”. Esse relato de Gênesis faz antever, de algum modo, o que Cristo Salvador realizará com sua vida salvadora. Os acontecimentos que se deram ao redor de sua vida no Jordão prenunciam a nova Criação da humanidade. O batismo trazido por Jesus nos recria, nos faz nascer de novo (cf. Jo 3,5-7).

Outro relato que não pode ser omitido é o do dilúvio. Noé enviou uma pomba para certificar-se se as águas haviam baixado. A pomba trouxe no bico um ramo de oliveira (cf. Gn 8,11). Esse relato está diretamente relacionado ao batismo de Jesus, uma vez que o dilúvio, no entendimento dos Santos Padres, prefigurava a destruição do pecado e a salvação pelas águas do batismo. Aqui aparecem claramente essas duas realidades retratadas por Mateus no batismo de Jesus: as águas e a pomba.

Portanto, é preciso ficar claro que o Espírito Santo não é uma pomba. O fato de a arte cristã retratar o Espírito Santo em forma de pomba tem estreita relação com esses relatos bíblicos. Lucas diz que desceu em “forma corporal, como uma pomba”. Ou seja, como a pomba bate as asas e faz correr um vento suave ao pousar, aquele vento produzido pelas asas da pomba pousando assemelha-se ao Espírito que “paira” sobre a criação, sobre Jesus, sobre nós, sobre a Igreja, sobre as oferendas em santificação. É o Hálito santo de Deus. A Divina Ruah.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O Espírito Santo perdoa e perfuma

aureliano, 17.05.24

Pentecostes 2020 - 31 de maio.jpg

Solenidade de Pentecostes [19 de maio de 2024]

[Jo 20,19-23] 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Inicialmente celebrada pelos israelitas, Pentecostes era a comemoração da colheita dos primeiros frutos do trigo. Porque marcava o 50º dia depois do início da colheita, era, por esse motivo, chamada de Pentecostes. (Confira Ex 23, 14-17; 34, 22; Lv 23,15-21; Dt 16, 9-12). É a festa da colheita. Portanto, tempo de muita alegria e fartura.       

A narrativa de At 2, 1-11 mostra a importância que ganhou na Igreja esta festa. Fazendo uso de um recurso literário, Lucas faz o Pentecostes cristão coincidir com o Pentecostes judaico. O Espírito se manifesta confirmando a missão que os discípulos haviam recebido do Mestre. Pentecostes marca o nascimento da Igreja. É a celebração dos frutos do Ressuscitado: o perdão e a paz que brotam de seu Coração bondoso, superando o egoísmo e a maldade do coração humano.

A MENSAGEM DO EVANGELHO

No próprio dia da Páscoa Jesus vem entregar o Dom do Espírito Santo aos seus discípulos. Este Dom garante a continuação da missão de Jesus no mundo. A missão de dar a paz e de tirar o pecado do mundo: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19); “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23). É o próprio Jesus agindo por meio de sua Igreja.

“As portas estavam fechadas por medo dos judeus”: Esse relato nos faz pensar no medo que tomava conta dos discípulos antes de serem revestidos do Dom do Pai. Como o medo nos paralisa, nos fecha em nós mesmos, nos impede de servir! O medo é um sentimento que precisa ser assumido e trabalhado em nós. Quando agimos movidos pelo medo fazemos muito mal a nós e aos outros. Medo de assumir um trabalho na comunidade; medo de arriscar; medo de assumir a própria vida; medo de romper com relações que escravizam e destroem a própria vida e a vida dos outros; medo de falar e de viver a verdade; medo movido pela preocupação excessiva com a própria imagem: o que vão pensar ou dizer? Medo de chamar para conversar sobre dificuldades interrrelacionais. Medo da doença, medo da morte, medo de ser abandonado, desprezado, ridicularizado. É preciso vencer o medo! O medo fecha a porta para Deus e para os irmãos! “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33).

Mas há o outro lado da moeda: aqueles que querem impor-se aos outros, causar pânico, intimidar os outros, gritar, esbravejar, calar a boca. Quantas pessoas encontram prazer em provocar medo, em dominar! Querem se impor pela força física, pela pressão psicológica, pelo cargo que exercem, pelas ameaças que fazem, pelo poder financeiro. Há muitas pessoas que sofrem terrivelmente debaixo de gente perversa, dominadora, satânica. Há gente que domina os outros até mesmo servindo-se da religião ou da boa-fé da pessoa. Crianças, mulheres, idosos, pobres, pessoas vulneráveis e indefesas são as principais vítimas dos dominadores e controladores. Um pecado que brada aos céus e pede a Deus vingança! Jesus nunca se impôs aos outros, nunca ameaçou ninguém. Pelo contrário, sempre mostrou-se afável, acolhedor, doador do perdão e da paz.

“Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Palavra de Jesus aos discípulos antes de comunicar-lhes do Dom do Espírito Santo. É um elemento essencial na missão. O Pai enviou o Filho para comunicar seu amor ao mundo. Agora o Filho envia aqueles que ele escolheu e consagrou com essa mesma missão: o Pai nos ama e quer salvar a todos. Quer comunicar-nos o perdão e a paz. A Igreja é a mensageira e portadora dessa Boa Nova.

ABRIR O CORAÇÃO PARA A MISSÃO

Ao longo de seu ministério Jesus havia prometido o Espírito Santo aos seus discípulos para auxiliá-los na tarefa que lhes confiaria. Ele teria a missão de inspirá-los, fortalecê-los, lembrar-lhes o que lhes havia ensinado. Desde então lhes restava plantar, pois o Pai garantiria a colheita.

Compete a nós abrir o coração para a ação do Espírito Santo em nossa vida a fim de que nossa vida e nossas comunidades se renovem. Aquele vigor concedido aos primeiros discípulos continua sendo dado a quem se abre à sua ação libertadora. Deixemos o Espírito agir em nós, pois sem a sua força a Igreja fica estéril e confusa, sem ternura e sem missão.

-----------xxxxx-----------

A FORÇA DO ALTO PERDOA E ANIMA

A festa de Pentecostes tem sua história na comunidade israelita. Inicialmente era o agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Uma festa agrícola. Posteriormente foi associada à entrega da Lei no Sinai, tornado-se assim a festa da Aliança de Deus com seu povo.

No cristianismo, Pentecostes celebra a manifestação pública da Igreja. Embora, segundo João, o Espírito Santo seja dado no dia da Páscoa, na Ressurreição, a comunidade lucana a coloca cinquenta dias depois da Páscoa, para evocar e celebrar a manifestação pública da Igreja. Em forma de “línguas de fogo” para dizer do testemunho e da palavra dos discípulos de Jesus manifestando a ação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. No Sinai foi entregue a Lei a Moisés, escrita em tábuas de pedra. Aqui celebramos a Lei derramada nos nossos corações.

 O evangelho deste domingo mostra a comunidade dos discípulos acuada, medrosa. Os discípulos não tinham iniciativa nem coragem de anunciar a experiência que haviam feito de Jesus. Aquele em quem haviam depositado a esperança frustrou-lhes as expectativas: morrera na cruz como um malfeitor. Porém, a divina “Ruah” do alto, aquele Sopro vital os encheu de novo ânimo, de coragem. Começam então a anunciar, com todo ardor e entusiasmo, aquela realidade que haviam experimentado: a vida de Jesus e a vida em Jesus é o caminho para se viver de maneira justa, alegre e mais feliz.

Soprou sobre eles e disse...”. Esta passagem nos faz lembrar aquele sopro vital que o Criador fez penetrar no homem formado da argila: “Ele insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo” (Gn 2,7). Ou mesmo aquele Sopro de vida de que fala o profeta Ezequiel: “Porei meu sopro em vós para que vivais” (Ez 37,14). Somos cristãos leigos de barro, padres de barro, bispos de barro. É o Sopro Santo de Deus que nos comunica vida. Jesus comunica a nova vida que ele veio trazer do Pai: o Espírito Santificador que nos inspira, nos ilumina, nos fortalece para darmos testemunho da ressurreição do Senhor.

É interessante notar que o Espírito Santo não desceu somente sobre os “Onze”. Ele veio sobre todos que estavam no Cenáculo. Ali havia muitas outras pessoas além dos Apóstolos. O Espírito de Jesus penetra no coração daquelas pessoas e lhes dá novo vigor, novo sentido de vida. Sem o Espírito Santo a vida fica sem sentido, vazia, deslocada daquele centro vital para o qual o Pai nos criou. Desfocada, a vida começa a perder o sentido e o pecado encontra guarida dentro de nós. É a destruição de nossa vida. A alegria dá lugar à tristeza, a paz cede a brigas e intrigas, a partilha perde terreno para o egoísmo, o perdão é substituído pelo desejo de vingança, a fraternidade é suplantada pela dominação e coisificação das pessoas, a fé perde para a dúvida e o ceticismo.  Quando Jesus sopra sobre os discípulos e lhes dá o Espírito Santo com o poder de perdoar os pecados, ele quer mostrar que a missão da Igreja, pela força do Espírito Santo, deve ser a de tirar o pecado do mundo.

O pecado, segundo Pe. Antônio Pagola, é a “força de gravidade que nos impede de ir a Deus”. Muito mais do que culpa, é peso, escravidão. Mais do que falar de perdão, é preciso, pois, falar de libertação. Por isso chamamos a Jesus de Salvador. Nota-se, pois, uma vez mais, que o Evangelho não é um ligeiro verniz que se passa no ser humano, mas é tomá-lo a partir do seu ser mais profundo, assim como é, e tornar possível sua volta para Deus. Este é o primeiro fruto do Espírito de Jesus: a libertação. Este é o Espírito, o Espírito do Filho, o Espírito dos filhos, aquele que nos resgata da escravidão da terra e nos abre o horizonte luminoso de filhos.

Esse Espírito traz e atualiza a novidade de Cristo: “Sem o Espírito Santo, Deus está distante; o Cristo permanece no passado; o evangelho, uma letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um poder; a missão, uma propaganda; o culto, um arcaísmo; e a ação moral, uma ação de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é enobrecido pela geração do Reino, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho se faz força do Reino, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a ação humana se deifica” (Atenágoras I, Patriarca de Constantinopla).

Todos nós sentimos dificuldades. Todos sentimos a fraqueza na fé, a fragilidade da existência, a força do pecado em nós. Por vezes o mal parece prevalecer. O bem fica apagado. Fazemos o bem, nos empenhamos na construção de um mundo melhor, mas parece que nossa luta é em vão. Então peçamos ao Espírito Santo que, como aos discípulos e discípulas no Cenáculo, nos encha de seu amor, de sua luz, de sua força.

----------xxxxx-----------

Celebrar Pentecostes é fazer memória da vida de Jesus. No início de sua missão ele foi ungido pelo Espírito Santo para anunciar a Boa Nova aos pobres (cf. Lc 4, 16-21). Durante toda a vida foi conduzido pelo Espírito Santo. Suas ações e palavras eram iluminadas e orientadas pelo Espírito Santo.

Quando na cruz Jesus “entrega o espírito” (cf. Jo 19,30) significa, não que ele morre, mas que ele derrama sobre a humanidade o Espírito que sempre o animou. A morte de Jesus na cruz e seu Coração traspassado são como o vaso de alabastro quebrado pela mulher na unção de Betânia e que perfuma toda a casa (cf. Jo 12,3-8). “Jesus é o frasco que se quebrou e se espalhou pelo mundo inteiro. Quando dizemos ‘vinde Espírito Santo’ não olhamos para o céu ou para o nada, mas olhamos para a cruz de Cristo e pedimos: ‘vinde Espírito Santo, perfuma esse mundo que precisa tanto de ti’” (Ir. Aíla Pinheiro, comentando as Catequeses Mistagógicas dos Padres da Igreja).

Nossa vida cristã deve ser inundada por esse Espírito de Jesus que nos torna parecidos com ele, nos configura a ele. Nossas ações já não são mais das trevas, mas da luz. Movidos pelo Espírito Santo produzimos os frutos que dele procedem: “caridade, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, lealdade, mansidão, continência” (Gl 5,22-23).

Rezemos: Vem Espírito Santo e liberta-nos do pecado, fortalece nossa pequenez, dá-nos tua força contra o mal. Não nos deixes desanimar, desistir de caminhar na direção do bem. Mais do que fazer o bem, ajuda-nos a ser bons, justos, solidários, fraternos. Enche-nos de tua bondade, de tua sabedoria para reproduzirmos em nossa vida as ações de Jesus que “passou pelo mundo fazendo o bem”. Faze que nossa vida manifeste a todos o amor do Pai, prefigurado em Jesus de Nazaré. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Amados e envolvidos pelo Amor Trinitário

aureliano, 02.06.23

Santíssima Trindade - 07 de junho 2020.jpg

Solenidade da Santíssima Trindade [04 de junho de 2023]

[Jo 3,16-18]

O Mistério Trinitário

Celebramos neste domingo a solenidade da Santíssima Trindade, o mistério de um só Deus em três Pessoas. Não se trata de uma realidade matemática, pois então pediria uma solução, mas trata-se de um Mistério que nos é superior e nos envolve, uma realidade que não cabe dentro de nossa cabeça, mas que nos convida a colocar nossa cabeça dentro desse Mistério.

 O Pai ama o Filho e o gera desde toda a eternidade; e desse amor entre o Pai e o Filho procede o Espírito Santo. O Pai enviou seu Filho ao mundo pela ação do Espírito Santo. Cumprida sua missão nessa terra, o Filho volta ao Pai e nos envia, da parte do Pai, o Espírito Consolador para animar e santificar a Igreja, Sacramento de Cristo no mundo.

O que o texto nos diz

O evangelho deste domingo está no contexto do encontro de Jesus com Nicodemos. Jesus lhe mostra a necessidade de um novo nascimento para se entrar no Reino de Deus. Um caminho que se faz a partir da fé no Filho de Deus, aquele que desceu do céu para dar vida ao mundo (cf. Jo 3, 7.13.15).

Jo 3, 16-18 é o núcleo do evangelho de João, o anúncio fundamental que mostra o imenso amor do Pai que envia seu Filho para salvar o mundo.

"Mundo" no evangelho de João significa aquela realidade que se opõe ao projeto de Jesus, ao Reino de Deus. São todas as forças de morte, toda a maldade que destrói a vida, que afirma a ganância, a mentira, a violência, a sede desordenada do lucro e da dominação, a sedução do dinheiro, do poder e do prazer (cf. 1Jo 2,16).

Mas Deus vem, em seu amor manifestado em Jesus Cristo, salvar este mundo. O Pai não quer a morte das pessoas, mas quer que todos sejam salvos pela fé em Jesus, aquele que ele enviou "não para julgar, mas para salvar".

O gesto do Pai de "entregar" o Filho nos remete ao gesto de oferta de sua própria vida. É o gesto eucarístico de Jesus que celebramos todos os domingos: "Isto é o meu corpo entregue por vós". No encalço deste gesto eucarístico, queremos também nós colaborar na salvação do mundo. Quando participamos da Eucaristia nós estamos dizendo com Jesus também: "Ofereço minha vida, minhas energias, minhas possibilidades e dons para participar na salvação do mundo". O 'dom' do Pai na pessoa de Jesus deve conter também nosso 'dom', isto é, nossa pessoa, nossas atitudes 'conformadas' ao gesto de Jesus: "Tenham em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus" (Fl 2, 5).

Deus quer contar conosco

Deus não precisa de nós, nem de nossas coisas. “Ainda que nossos louvores não vos sejam necessários, vós nos concedeis o dom de vos louvar. Eles nada acrescentam ao que sois, mas nos aproximam de vós por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso” (Prefácio Comum IV). Deus quer que sejamos no mundo a sua imagem, que manifestemos a sua presença. Cada atitude de acolhida, de perdão, de denúncia da maldade, de renúncia a vantagens espúrias, de apoio a iniciativas que promovem a justiça  e a paz; cada esforço de fidelidade à família, de cuidado com os filhos, com os idosos, com os pais, com os doentes, com a Criação; cada palavra que fortalece, que acalenta, que conforta; tudo isso é “oferenda” unida à “entrega” de Jesus, é gesto eucarístico para a salvação e libertação do mundo.

Não crer em Jesus Cristo é recusar-se a se colocar em favor da vida. Por isso "Quem não crê já está julgado", pois se coloca numa atitude de morte, de trevas, de recusa a reconhecer a Luz que veio a este mundo: "Quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis" (Jo 3, 20).

Crer na Trindade Santa é orientar a vida pelo amor. Não bastam palavras bonitas, definições dogmáticas, afirmações fantásticas a respeito de Deus. O Mistério que celebramos hoje nos transcende, está para além de nossa capacidade de compreensão racional. A razão não dá conta do mistério senão quando se deixa banhar por ele. Por isso Santo Agostinho afirmava: Credo ut intelligam. Ou seja, para entender o mistério - que é razoável e não racional – eu, primeiro, creio. Uma vez conformadas nossa inteligência e vontade a essa realidade que nos transcende e nos envolve, começamos a compreender a beleza, a grandeza e profundidade dessa realidade de nossa fé cristã.

Pai, dai-nos a graça de realizarmos em nossa vida de família e de comunidade aquela comunhão que procede do Seio de vossa vida Trinitária. Comunidade Santíssima, na qual fomos mergulhados pelo batismo, inspirai e fortalecei nossa comunidade terrestre. Amém.

----------xxxxx----------

UM POUCO DE DOUTRINA

 “O credo elaborado nos concílios ecumênicos de Nicéia (325) e Constantinopla (381) encontrou fórmulas que se tornaram depois dogmas. O dogma básico acerca da Santíssima Trindade reza assim: Em Deus há uma única natureza divina que subsiste em três Pessoas realmente distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Essa formulação abstrata não quer exprimir outra coisa senão aquilo que Jesus experimentou: que estava sempre em comunhão com o Pai, sentia-se Filho amado e que agia e falava com uma Força que o tomava, o Espírito Santo.

O importante não é afirmar os divinos Três. Isso até pode nos levar a uma heresia, vale dizer, a um erro na compreensão da fé, a heresia do triteísmo, como se houvesse três deuses. A centralidade se encontra na relação entre eles. As próprias palavras já supõem relação. Assim não existe pai simplesmente. Alguém é pai porque tem filho. Ninguém é filho simplesmente. É filho porque tem pai. Espírito, no sentido originário, significa sopro. Não há sopro sem alguém que assopre. O Espírito é o sopro do Pai para o Filho e do Filho para o Pai. Como se depreende, os Três sempre vêm juntos e se encontram eternamente entrelaçados. Em outras palavras, dizer Trindade é dizer relação, como disse o Papa João Paulo II quando esteve pela primeira vez na América Latina em 1979, em Puebla, no México: ‘A natureza íntima de Deus não é solidão, mas comunhão, porque Deus é família, é Pai, Filho e Espírito Santo’. Esse entrelaçamento foi expresso pela tradição teológica pela palavra grega pericorese que significa ‘a interrelação entre as Pessoas divinas’. Elas são distintas para poderem se relacionar. E essa relação mútua é tão profunda e radical que elas se uni-ficam. Elas ficam um só Deus-comunhão, um só Deus-amor, um só Deus-relação.

Precisamos superar a terminologia tradicional com a qual se pretendia expressar a natureza íntima de Deus. Ela é, para nossos ouvidos contemporâneos, demasiadamente formal e abstrata. No nível da experiência de fé diríamos de forma mais simples e compreensível: Deus que está acima de nós e que é nossa origem chamamos de Pai-e-Mãe eternos; Deus que está  conosco e que se faz companheiro de caminhada se chama Filho; e Deus que habita nosso interior como entusiasmo e criatividade se chama Espírito Santo. Como se depreende, não são três deuses, mas o mesmo e único Deus-comunhão que atua em nós e nos insere em sua rede de relações. Dentro de nós se realiza a eterna relação de amor e de comunhão entre Pai, Filho e Espírito Santo. Deus-comunhão está sempre nascendo dentro de nós. Por isso somos seres de comunhão e um nó permanente de relações. No início de tudo está a comunhão dos divinos Três” (L. Boff, Experimentar Deus, p. 108-110).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O perdão e a paz vencem o medo

aureliano, 27.05.23

Pentecostes 2020 - 31 de maio.jpg

Solenidade de Pentecostes [28 de maio de 2023]

[Jo 20,19-23] 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Inicialmente celebrada pelos israelitas, Pentecostes era a comemoração da colheita dos primeiros frutos do trigo. Porque marcava o 50º dia depois do início da colheita, era, por esse motivo, chamada de Pentecostes. (Confira Ex 23, 14-17; 34, 22; Lv 23,15-21; Dt 16, 9-12). É a festa da colheita. Portanto, tempo de muita alegria e fartura.       

A narrativa de At 2, 1-11 mostra a importância que ganhou na Igreja esta festa. Fazendo uso de um recurso literário, Lucas faz o Pentecostes cristão coincidir com o Pentecostes judaico. O Espírito se manifesta confirmando a missão que os discípulos haviam recebido do Mestre. Pentecostes marca o nascimento da Igreja. É a celebração dos frutos do Ressuscitado: o perdão e a paz que brotam de seu Coração bondoso, superando o egoísmo e a maldade do coração humano.

A MENSAGEM DO EVANGELHO

No próprio dia da Páscoa Jesus vem entregar o Dom do Espírito Santo aos seus discípulos. Este Dom garante a continuação da missão de Jesus no mundo. A missão de dar a paz e de tirar o pecado do mundo: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19); “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23). É o próprio Jesus agindo por meio de sua Igreja.

“As portas estavam fechadas por medo dos judeus”: Esse relato nos faz pensar no medo que tomava conta dos discípulos antes de serem revestidos do Dom do Pai. Como o medo nos paralisa, nos fecha em nós mesmos, nos impede de servir! O medo é um sentimento que precisa ser assumido e trabalhado em nós. Quando agimos movidos pelo medo fazemos muito mal a nós e aos outros. Medo de assumir um trabalho na comunidade; medo de arriscar; medo de assumir a própria vida; medo de romper com relações que escravizam e destroem a própria vida e a vida dos outros; medo de falar e de viver a verdade; medo movido pela preocupação excessiva com a própria imagem: o que vão pensar ou dizer? Medo de chamar para conversar sobre dificuldades interrrelacionais. Medo da doença, medo da morte, medo de ser abandonado, desprezado, ridicularizado. É preciso vencer o medo! O medo fecha a porta para Deus e para os irmãos! “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33).

Mas há o outro lado da moeda: aqueles que querem amedrontar, causar pânico, intimidar os outros, gritar, esbravejar, calar a boca. Quantas pessoas se satisfazem provocando medo para dominar! Querem se impor pela força física, pela pressão psicológica, pelo cargo que exercem, pelas ameaças que fazem, pelo poder financeiro. Há muitas pessoas que sofrem terrivelmente debaixo de gente perversa, dominadora, satânica. Há gente que domina os outros até mesmo servindo-se da religião ou da boa-fé da pessoa. Crianças, mulheres, idosos, pobres, pessoas vulneráveis e indefesas são as principais vítimas dos dominadores. Um pecado que brada aos céus e pede a Deus vingança! Jesus nunca se impôs aos outros, nunca amedrontou ninguém. Pelo contrário, sempre mostrou-se afável, acolhedor, doador do perdão e da paz.

“Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Palavra de Jesus aos discípulos antes de comunicar-lhes do Dom do Espírito Santo. É um elemento essencial na missão. O Pai enviou o Filho para comunicar seu amor ao mundo. Agora o Filho envia aqueles que ele escolheu e consagrou com essa mesma missão: o Pai nos ama e quer salvar a todos. Quer comunicar-nos o perdão e a paz. A Igreja é a mensageira e portadora dessa Boa Nova.

ABRIR O CORAÇÃO PARA A MISSÃO

Ao longo de seu ministério Jesus havia prometido o Espírito Santo aos seus discípulos para auxiliá-los na tarefa que lhes confiaria. Ele teria a missão de inspirá-los, fortalecê-los, lembrar-lhes o que lhes havia ensinado. Desde então lhes restava plantar, pois o Pai garantiria a colheita.

Compete a nós abrir o coração para a ação do Espírito Santo em nossa vida a fim de que nossa vida e nossas comunidades se renovem. Aquele vigor concedido aos primeiros discípulos continua sendo dado a quem se abre à sua ação libertadora. Deixemos o Espírito agir em nós, pois sem a sua força a Igreja fica estéril e confusa, sem ternura e sem missão.

-----------xxxxx-----------

A FORÇA DO ALTO PERDOA E ANIMA

A festa de Pentecostes tem sua história na comunidade israelita. Inicialmente era o agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Uma festa agrícola. Posteriormente foi associada à entrega da Lei no Sinai, tornado-se assim a festa da Aliança de Deus com seu povo.

No cristianismo, Pentecostes celebra a manifestação pública da Igreja. Embora, segundo João, o Espírito Santo seja dado no dia da Páscoa, na Ressurreição, a comunidade lucana a coloca cinquenta dias depois da Páscoa, para evocar e celebrar a manifestação pública da Igreja. Em forma de “línguas de fogo” para dizer do testemunho e da palavra dos discípulos de Jesus manifestando a ação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. No Sinai foi entregue a Lei a Moisés, escrita em tábuas de pedra. Aqui celebramos a Lei derramada nos nossos corações.

 O evangelho deste domingo mostra a comunidade dos discípulos acuada, medrosa. Os discípulos não tinham iniciativa nem coragem de anunciar a experiência que haviam feito de Jesus. Aquele em quem haviam depositado a esperança frustrou-lhes as expectativas: morrera na cruz como um malfeitor. Porém, a divina “Ruah” do alto, aquele Sopro vital os encheu de novo ânimo, de coragem. Começam então a anunciar, com todo ardor e entusiasmo, aquela realidade que haviam experimentado: a vida de Jesus e a vida em Jesus é o caminho para se viver de maneira justa, alegre e mais feliz.

Soprou sobre eles e disse...”. Esta passagem nos faz lembrar aquele sopro vital que o Criador fez penetrar no homem formado da argila: “Ele insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo” (Gn 2,7). Ou mesmo aquele Sopro de vida de que fala o profeta Ezequiel: “Porei meu sopro em vós para que vivais” (Ez 37,14). Somos cristãos leigos de barro, padres de barro, bispos de barro. É o Sopro Santo de Deus que nos comunica vida. Jesus comunica a nova vida que ele veio trazer do Pai: o Espírito Santificador que nos inspira, nos ilumina, nos fortalece para darmos testemunho da ressurreição do Senhor.

É interessante notar que o Espírito Santo não desceu somente sobre os “Onze”. Ele veio sobre todos que estavam no Cenáculo. Ali havia muitas outras pessoas além dos Apóstolos. O Espírito de Jesus penetra no coração daquelas pessoas e lhes dá novo vigor, novo sentido de vida. Sem o Espírito Santo a vida fica sem sentido, vazia, deslocada daquele centro vital para o qual o Pai nos criou. Desfocada, a vida começa a perder o sentido e o pecado encontra guarida dentro de nós. É a destruição de nossa vida. A alegria dá lugar à tristeza, a paz cede a brigas e intrigas, a partilha perde terreno para o egoísmo, o perdão é substituído pelo desejo de vingança, a fraternidade é suplantada pela dominação e coisificação das pessoas, a fé perde para a dúvida e o ceticismo.  Quando Jesus sopra sobre os discípulos e lhes dá o Espírito Santo com o poder de perdoar os pecados, ele quer mostrar que a missão da Igreja, pela força do Espírito Santo, deve ser a de tirar o pecado do mundo.

O pecado, segundo Pe. Antônio Pagola, é a “força de gravidade que nos impede de ir a Deus”. Muito mais do que culpa, é peso, escravidão. Mais do que falar de perdão, é preciso, pois, falar de libertação. Por isso chamamos a Jesus de Salvador. Nota-se, pois, uma vez mais, que o Evangelho não é um ligeiro verniz que se passa no ser humano, mas é tomá-lo a partir do seu ser mais profundo, assim como é, e tornar possível sua volta para Deus. Este é o primeiro fruto do Espírito de Jesus: a libertação. Este é o Espírito, o Espírito do Filho, o Espírito dos filhos, aquele que nos resgata da escravidão da terra e nos abre o horizonte luminoso de filhos.

Esse Espírito traz e atualiza a novidade de Cristo: “Sem o Espírito Santo, Deus está distante; o Cristo permanece no passado; o evangelho, uma letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um poder; a missão, uma propaganda; o culto, um arcaísmo; e a ação moral, uma ação de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é enobrecido pela geração do Reino, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho se faz força do Reino, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a ação humana se deifica” (Atenágoras I, Patriarca de Constantinopla).

Todos nós sentimos dificuldades. Todos sentimos a fraqueza na fé, a fragilidade da existência, a força do pecado em nós. Por vezes o mal parece prevalecer. O bem fica apagado. Fazemos o bem, nos empenhamos na construção de um mundo melhor, mas parece que nossa luta é em vão. Então peçamos ao Espírito Santo que, como aos discípulos e discípulas no Cenáculo, nos encha de seu amor, de sua luz, de sua força:

Vem Espírito Santo e liberta-nos do pecado, fortalece nossa pequenez, dá-nos tua força contra o mal. Não nos deixes desanimar, desistir de caminhar na direção do bem. Mais do que fazer o bem, ajuda-nos a ser bons, justos, solidários, fraternos. Enche-nos de tua bondade, de tua sabedoria para reproduzirmos em nossa vida as ações de Jesus que passou pelo mundo “fazendo o bem”. Faze que nossa vida manifeste a todos o amor do Pai, manifestado em Jesus de Nazaré. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O Espírito Santo nos ajuda a amar

aureliano, 13.05.23

6º Domingo da Páscoa - A - 17 de maio.jpg

6º Domingo da Páscoa [14 de maio de 2023]

[Jo 14,15-21]

Estamos no chamado ‘discurso de despedida’ de Jesus segundo o quarto Evangelho: capítulos 13 a 17.  Aí estão os relatos da “Hora” de Jesus: “Sabendo Jesus que a sua hora tinha chegado, a hora de passar deste mundo para o Pai, ele que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até o extremo ” (Jo 13,1). Jesus então dá o seu testamento, aquilo que não poderão esquecer jamais, seu último desejo. E garante que não os abandonará. No evangelho deste domingo a Igreja nos apresenta o tema dos mandamentos de Jesus e o dom do Espírito.

Mandamentos de Jesus:

Nós ouvimos sempre falar sobre os “Mandamentos da Lei de Deus” (cf. Ex 20, 1-17). Mas hoje estamos tratando sobre os mandamentos de Jesus que são: crer no Pai, crer em Jesus, guardar a sua palavra, permanecer nele, amar uns aos outros como ele amou, realizar as obras dele, praticar a verdade, trabalhar pelo alimento que permanece para a vida eterna. Esses mandamentos, no entanto, se resumem naquelas palavras que dirige aos seus, antes da paixão: “Como eu vos amei, assim também deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 15, 35). A prova de que amamos a Jesus é vivência de seus mandamentos: “Se me amais, observeis meus mandamentos” (Jo 14,14).

Esse amor a Jesus não se dá de modo sensível. Ele não está mais no meio de nós como viveu em Nazaré. Ele continua conosco, mas ressuscitado. Não é amor de sentimento. É amor de atitude, que brota da vontade, da decisão. A pessoa decide acolher o amor de Deus em meu coração e reparti-lo com seu irmão. Independente de ele merecer ou não, de agradecer e reconhecer ou não. É a palavra de Jesus que nos abre para acolher esse amor e nos move a levá-lo aos outros. Esse amor se manifesta quando ‘guardamos sua palavra’. Ou seja, quando o vemos e o servimos na pessoa dos mais pobres e abandonados: “Tudo o que fizerdes a um desses mais pequeninos foi a mim que o fizestes” (Mt 25, 40).

O dom do Espírito Santo:

A ausência física de Jesus é substituída pelo Espírito Santo, o Paráclito. É pela força deste Consolador, Advogado (advoga nossa causa contra o mundo) que nós continuamos a missão de Jesus. Essa força nós a recebemos no Batismo e se completa, se ‘confirma’ na Crisma, com o dom do Espírito Santo que nos amadurece e encoraja para a missão (cf. At 8, 5-8.15-17, primeira leitura de hoje).

Para muitos a passagem de Jesus pela história não fez diferença. A vida de Jesus não deixou nenhum rastro em sua vida. Não “viram” nem “conheceram” a Jesus (cf. Jo 14,17). Nossa missão é mostrar, com nossa vida, que a vida em Deus como Jesus a viveu faz a diferença no mundo. Mas somos incapazes de realizar essa missão por nós mesmos. É a força do Espírito Santo, consolador, advogado, defensor que nos sustentará na defesa da verdade manifestada, não em doutrinas, mas na vida e atuação de Jesus de Nazaré.

Dessa forma nossa vida, pela ação do Espírito, será um contínuo louvor a Deus, conforme ensinava  Santo Agostinho: “Na verdade, louvamos a Deus agora que nos encontramos reunidos na igreja. Mas logo ao voltarmos para casa, parece que deixamos de louvar a Deus. Não dixes de viver santamente e louvarás sempre a Deus. Deixas de louvá-lo quando te afastas da justiça e do que lhe agrada. Mas, se nunca te desviares do bom caminho, ainda que tua língua se cale, tua vida clamará; e o ouvido de Deus estará perto do teu coração. Porque assim como nossos ouvidos escutam nossas palavras, assim os ouvidos de Deus escutam nossos pensamentos” (Ofício das Leituras, sábado da 5ª semana da páscoa).

-----------xxxxx------------

O ESPÍRITO DA VERDADE NÃO NOS DEIXARÁ ÓRFÃOS

Elemento fundante de nossa fé cristã é a consciência de não sermos abandonados por Deus, jamais: “Ele (o Pai) vos dará outro Defensor que ficará para sempre convosco” (Jo 14,16). É importante notar que essa verdade tem consequências para nossa vida cotidiana: essa presença de Jesus em nós e em nosso meio precisa ser percebida, captada, vista por aqueles que nos rodeiam: “Vós sois uma carta de Cristo confiada a nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo; não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos vossos corações” (2Cor 3,3). Em outras palavras, nossa vida deve manifestar nossa fé e a presença de Jesus pelo seu Espírito em nós.

Este Espírito que nos é dado é cognominado “Espírito da verdade”. Essa verdade de que fala Jesus não é uma verdade filosófica, científica, racional, mas teológica. Uma verdade que pode ser traduzida por ‘fidelidade’. Na relação com Deus, podemos afirmar que uma pessoa verdadeira é uma pessoa fiel. E essa fidelidade não tem consistência apenas na opção de vida ética da pessoa, mas no Dom do Pai. É o “Espírito da Verdade que o mundo não pode acolher” que garante a fidelidade do discípulo de Jesus.

A gente tem medo da verdade. Dizer a verdade, ouvir a verdade não é tarefa fácil. Por vezes preferimos levar uma vida falsa, de aparência, enganando-nos a nós mesmos a vida inteira por medo de enfrentar a realidade da verdade. A verdade tira a capa, desmascara. Dizer a verdade não é desrespeitar, ofender, gritar com os outros, machucar. Dizer e viver a verdade é sair do casulo, é buscar uma vida coerente, é reconhecer a própria pequenez, é dizer e expressar com sinceridade o que se sente e o que se pensa na busca de comunhão, de paz, de harmonia verdadeira. “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).

Viver no ‘Espírito da Verdade’ não é tornar-se dono da verdade nem atacar e derrubar adversários, mas viver como testemunha de Jesus. É manifestar o amor a Jesus ‘observando’ seus mandamentos.

O ‘Espírito da Verdade’ nos convida a viver a verdade no meio de uma sociedade mentirosa, enganadora, marcada por uma vida de aparência. Não nos deixemos levar pela mediocridade, pelo ‘todo mundo faz’, pela preguiça e comodismo que não nos deixam trabalhar nem ajudar a ninguém; por uma gatunagem descarada que leva alguns a valerem-se até mesmo da boa fé dos ‘pequenos’ para sugar-lhes as forças e o pouco que têm para sobreviver.

Abramos nosso coração ao Defensor, Auxiliador enviado pelo Pai por meio de seu Filho, para que nele possamos nos fortalecer sempre mais contra as forças da mentira, da desilusão, da ganância, do mal.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Espírito Santo, Senhor que dá a vida

aureliano, 03.06.22

Pentecostes - 05 de junho 2022.jpg

Solenidade de Pentecostes [05 de junho de 2022]

[Jo 20,19-23 ou Jo 14,15-16.23-26] 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Inicialmente celebrada pelos israelitas, Pentecostes era a comemoração da colheita dos primeiros frutos do trigo. Porque marcava o 50º dia depois do início da colheita, era, por esse motivo, chamada de Pentecostes. (Confira Ex 23, 14-17; 34, 22; Lv 23,15-21; Dt 16, 9-12). É a festa da colheita. Portanto, tempo de muita alegria e fartura.       

A narrativa de At 2, 1-11 mostra a importância que ganhou na Igreja esta festa. Fazendo uso de um recurso literário, Lucas faz o Pentecostes cristão coincidir com o Pentecostes judaico. O Espírito se manifesta confirmando a missão que os discípulos haviam recebido do Mestre. Pentecostes marca o nascimento da Igreja. É a celebração dos frutos do Ressuscitado: o perdão e a paz que brotam de seu Coração bondoso, superando o egoísmo e a maldade do coração humano.

A MENSAGEM DO EVANGELHO

No próprio dia da Páscoa Jesus vem entregar o Dom do Espírito Santo aos seus discípulos. Este Dom garante a continuação da missão de Jesus no mundo. A missão de dar a paz e de tirar o pecado do mundo: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19); “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23). É o próprio Jesus agindo por meio de sua Igreja.

“As portas estavam fechadas por medo dos judeus”: Esse relato nos faz pensar no medo que tomava conta dos discípulos antes de serem revestidos do Dom do Pai. Como o medo nos paralisa, nos fecha em nós mesmos, nos impede de servir! O medo é um sentimento que precisa ser assumido e trabalhado em nós. Quando agimos movidos pelo medo fazemos muito mal a nós e aos outros. Medo de assumir um trabalho na comunidade; medo de arriscar; medo de assumir a própria vida; medo de romper com relações que escravizam e destroem a própria vida e a vida dos outros; medo de falar e de viver a verdade; medo movido pela preocupação excessiva com a própria imagem: o que vão pensar ou dizer? Medo de chamar para conversar sobre dificuldades interrrelacionais. Medo da doença, medo da morte, medo de ser abandonado, desprezado, ridicularizado. É preciso vencer o medo! O medo fecha a porta para Deus e para os irmãos! “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33).

Mas há o outro lado da moeda: aqueles que querem amedrontar, causar pânico, intimidar os outros, gritar, esbravejar, fazer calar a boca. Quantas pessoas se satisfazem provocando medo para dominar. Querem se impor pela força física, pela pressão psicológica, pelo cargo que exercem, pelas ameaças que fazem, pelo poder econômico ou político. Há muitas pessoas que sofrem terrivelmente debaixo de gente perversa, dominadora, satânica. Há gente que domina os outros até mesmo servindo-se da religião ou da boa-fé da pessoa. Crianças, mulheres, idosos, pobres, pessoas vulneráveis e indefesas são as principais vítimas dos dominadores. Um pecado que brada aos céus e pede a Deus vingança! Jesus nunca se impôs aos outros, nunca amedrontou ninguém. Pelo contrário, sempre mostrou-se afável, acolhedor, doador do perdão e da paz.

“Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Palavra de Jesus aos discípulos antes de comunicar-lhes do Dom do Espírito Santo. É um elemento essencial na missão. O Pai enviou o Filho para comunicar seu amor ao mundo. Agora o Filho envia aqueles que ele escolheu e consagrou com essa mesma missão: o Pai nos ama e quer salvar a todos. Quer comunicar-nos o perdão e a paz. A Igreja é a mensageira e portadora dessa Boa Nova.

ABRIR O CORAÇÃO PARA A MISSÃO

Ao longo de seu ministério Jesus havia prometido o Espírito Santo aos seus discípulos para auxiliá-los na tarefa que lhes confiaria. Ele teria a missão de inspirá-los, fortalecê-los, lembrar-lhes o que lhes havia ensinado. Desde então lhes restava plantar, pois o Pai garantiria a colheita.

Compete a nós abrir o coração para a ação do Espírito Santo em nossa vida a fim de que nossa vida e nossas comunidades se renovem. Aquele vigor concedido aos primeiros discípulos continua sendo dado a quem se abre à sua ação libertadora. Deixemos o Espírito agir em nós, pois sem a sua força a Igreja fica estéril e confusa, sem ternura e sem missão.

-----------xxxxx-----------

A FORÇA DO ALTO PERDOA E ANIMA

A festa de Pentecostes tem sua história na comunidade israelita. Inicialmente era o agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Uma festa agrícola. Posteriormente foi associada à entrega da Lei no Sinai, tornado-se assim a festa da Aliança de Deus com seu povo.

No cristianismo, Pentecostes celebra a manifestação pública da Igreja. Embora, segundo João, o Espírito Santo seja dado no dia da Páscoa, na Ressurreição, a comunidade lucana a coloca cinquenta dias depois da Páscoa, para evocar e celebrar a manifestação pública da Igreja. Em forma de “línguas de fogo” para dizer do testemunho e da palavra dos discípulos de Jesus manifestando a ação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. No Sinai foi entregue a Lei a Moisés, escrita em tábuas de pedra. Aqui celebramos a Lei derramada nos nossos corações.

 O evangelho deste domingo mostra a comunidade dos discípulos acuada, medrosa. Os discípulos não tinham iniciativa nem coragem de anunciar a experiência que haviam feito de Jesus. Aquele em quem haviam depositado a esperança frustrou-lhes as expectativas: morrera na cruz como um malfeitor. Porém, a divina “Ruah” do alto, aquele Sopro vital os encheu de novo ânimo, de coragem. Começam então a anunciar, com todo ardor e entusiasmo, aquela realidade que haviam experimentado: a vida de Jesus e a vida em Jesus é o caminho para se viver de maneira justa, alegre e mais feliz.

Soprou sobre eles e disse...”. Esta passagem nos faz lembrar aquele sopro vital que o Criador fez penetrar no homem formado da argila: “Ele insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo” (Gn 2,7). Ou mesmo aquele Sopro de vida de que fala o profeta Ezequiel: “Porei meu sopro em vós para que vivais” (Ez 37,14). Somos cristãos leigos de barro, padres de barro, bispos de barro. É o Sopro Santo de Deus que nos comunica vida. Jesus comunica a nova vida que ele veio trazer do Pai: o Espírito Santificador que nos inspira, nos ilumina, nos fortalece para darmos testemunho da ressurreição do Senhor.

É interessante notar que o Espírito Santo não desceu somente sobre os “Onze”. Ele veio sobre todos que estavam no Cenáculo. Ali havia muitas outras pessoas além dos Apóstolos. O Espírito de Jesus penetra no coração daquelas pessoas e lhes dá novo vigor, novo sentido de vida. Sem o Espírito Santo a vida fica sem sentido, vazia, deslocada daquele centro vital para o qual o Pai nos criou. Desfocada, a vida começa a perder o sentido e o pecado encontra guarida dentro de nós. É a destruição da vida da pessoa. A alegria dá lugar à tristeza, a paz cede a brigas e intrigas, a partilha perde terreno para o egoísmo, o perdão é substituído pelo desejo de vingança, a fraternidade é suplantada pela dominação e coisificação das pessoas, a fé perde para a dúvida e o ceticismo.  Quando Jesus sopra sobre os discípulos e lhes dá o Espírito Santo com o poder de perdoar os pecados, ele quer mostrar que a missão da Igreja, pela força do Espírito Santo, deve ser a de tirar o pecado do mundo.

O pecado, segundo Pe. Antônio Pagola, é a “força de gravidade que nos impede de ir a Deus”. Muito mais do que culpa, é peso, escravidão. Mais do que falar de perdão, é preciso, pois, falar de libertação. Por isso chamamos a Jesus de Salvador. Nota-se, pois, uma vez mais, que o Evangelho não é um ligeiro verniz que se passa no ser humano, mas é tomá-lo a partir do seu ser mais profundo, assim como é, e tornar possível sua volta para Deus. Este é o primeiro fruto do Espírito de Jesus: a libertação. Este é o Espírito, o Espírito do Filho, o Espírito dos filhos, aquele que nos resgata da escravidão da terra e nos abre o horizonte luminoso de filhos.

Esse Espírito traz e atualiza a novidade de Cristo: “Sem o Espírito Santo, Deus está distante; o Cristo permanece no passado; o evangelho, uma letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um poder; a missão, uma propaganda; o culto, um arcaísmo; e a ação moral, uma ação de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é enobrecido pela geração do Reino, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho se faz força do Reino, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a ação humana se deifica” (Atenágoras I, Patriarca de Constantinopla).

Todos nós sentimos dificuldades. Todos sentimos a fraqueza na fé, a fragilidade da existência, a força do pecado em nós. Por vezes o mal parece prevalecer. O bem fica apagado. Fazemos o bem, nos empenhamos na construção de um mundo melhor, mas parece que nossa luta é em vão. Então peçamos ao Espírito Santo que, como aos discípulos e discípulas no Cenáculo, nos encha de seu amor, de sua luz, de sua força:

Vem Espírito Santo e liberta-nos do pecado, sustenta nossa pequenez, dá-nos tua força contra o mal. Não nos deixes desanimar, desistir de caminhar na direção do bem. Mais do que fazer o bem, ajuda-nos a ser bons, justos, solidários, fraternos, promotores da paz. Enche-nos de tua bondade, de tua sabedoria para reproduzirmos em nossa vida as ações de Jesus que “passou pelo mundo fazendo o bem”. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O perdão e a paz: dons do Espírito Santo

aureliano, 22.05.21

Pentecostes 2018.jpg

Solenidade de Pentecostes [23 de maio de 2021]

[Jo 20,19-23] 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Inicialmente celebrada pelos israelitas, Pentecostes era a comemoração da colheita dos primeiros frutos do trigo. Celebrada no 50º dia depois do início da colheita, era, por esse motivo, chamada de Pentecostes. (Confira Ex 23, 14-17; 34, 22; Lv 23,15-21; Dt 16, 9-12). É a festa da colheita, portanto, tempo de muita alegria e fartura.

A narrativa de At 2, 1-11 mostra a importância que ganhou na Igreja esta festa. Fazendo uso de um recurso literário, Lucas faz o Pentecostes cristão coincidir com o Pentecostes judaico. O Espírito se manifesta confirmando a missão que os discípulos haviam recebido do Mestre. Pentecostes marca o nascimento da Igreja. É a celebração dos frutos do Ressuscitado: o perdão e a paz que brotam de seu Coração bondoso, superando o egoísmo e a maldade do coração humano.

A MENSAGEM DO EVANGELHO

No próprio dia da Páscoa Jesus vem entregar o Dom do Espírito Santo aos seus discípulos. Este Dom garante a continuação da missão de Jesus no mundo. A missão de dar a paz e de tirar o pecado do mundo: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19); “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23). É o próprio Jesus agindo por meio de sua Igreja.

“As portas estavam fechadas por medo dos judeus”: Esse relato nos faz pensar no medo que tomava conta dos discípulos antes de serem revestidos do Dom do Pai. Como o medo nos paralisa, nos fecha em nós mesmos, nos impede de servir! O medo é um sentimento que precisa ser assumido e trabalhado em nós. Quando agimos movidos pelo medo fazemos muito mal a nós e aos outros. Medo de assumir um trabalho na comunidade; medo de arriscar; medo de assumir a própria vida; medo de romper com relações que escravizam e destroem a própria vida e a vida dos outros; medo de falar e de viver a verdade; medo movido pela preocupação excessiva com a própria imagem: o que vão pensar ou dizer? Medo de chamar a outra pessoa para conversar sobre dificuldades interrrelacionais. É preciso vencer o medo! O medo fecha a porta para Deus e para os irmãos!

“Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Palavra de Jesus aos discípulos antes de comunicar-lhes do Dom do Espírito Santo. É um elemento essencial na missão. O Pai enviou o Filho para comunicar seu amor ao mundo. Agora o Filho envia aqueles que ele escolheu e consagrou com essa mesma missão: o Pai nos ama e quer salvar a todos. Quer comunicar-nos o perdão e a paz. A Igreja é a mensageira e portadora dessa Boa Nova.

ABRIR O CORAÇÃO PARA A MISSÃO

Ao longo de seu ministério Jesus havia prometido o Espírito Santo aos seus discípulos para auxiliá-los na tarefa que lhes confiaria. Ele teria a missão de inspirá-los, fortalecê-los, lembrar-lhes o que lhes havia ensinado. Desde então lhes restava plantar, pois o Pai garantiria a colheita.

Compete a nós abrir o coração para a ação do Espírito Santo em nós a fim de que nossa vida e nossas comunidades se renovem. Aquele vigor concedido aos primeiros discípulos continua sendo dado a quem se abre à sua ação libertadora. Deixemos o Espírito agir em nós, pois sem a sua força a Igreja fica estéril e confusa, sem ternura e sem missão.

-----------xxxxx-----------

A FORÇA DO ALTO PERDOA E ANIMA

A festa de Pentecostes tem sua história na comunidade israelita. Inicialmente era o agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Uma festa agrícola. Posteriormente foi associada à entrega da Lei no Sinai, tornado-se assim a festa da Aliança de Deus com seu povo.

No cristianismo, Pentecostes celebra a manifestação pública da Igreja. Embora, segundo João, o Espírito Santo seja dado no dia da Páscoa, na Ressurreição, a comunidade lucana a coloca cinquenta dias depois da Páscoa, para evocar e celebrar a manifestação pública da Igreja. Em forma de “línguas de fogo” para dizer do testemunho e da palavra dos discípulos de Jesus manifestando a ação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. No Sinai foi entregue a Lei a Moisés, escrita em tábuas de pedra. Aqui celebramos a Lei derramada nos nossos corações.

 O evangelho deste domingo mostra a comunidade dos discípulos acuada, medrosa. Os discípulos não tinham iniciativa nem coragem de anunciar a experiência que haviam feito de Jesus. Aquele em quem haviam depositado a esperança frustrou-lhes as expectativas: morrera na cruz como um malfeitor. Porém, a “Ruah” do alto, aquele Sopro vital os encheu de novo ânimo, de coragem. Começam então a anunciar, com todo ardor e entusiasmo, aquela realidade que haviam experimentado: a vida de Jesus e a vida em Jesus é o caminho para se viver de maneira justa, alegre e mais feliz.

“Soprou sobre eles e disse...”. Esta passagem nos faz lembrar aquele sopro vital que o Criador fez penetrar no homem formado da argila: “Ele insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo” (Gn 2,7). Ou mesmo aquele Sopro de vida de que fala o profeta Ezequiel: “Porei meu sopro em vós para que vivais” (Ez 37,14). Somos cristãos leigos de barro, padres de barro, bispos de barro. É o Sopro Santo de Deus que nos comunica vida. Jesus comunica a nova vida que ele veio trazer do Pai: o Espírito Santificador que nos inspira, nos ilumina, nos fortalece para darmos testemunho da ressurreição do Senhor.

É interessante notar que o Espírito Santo não desceu somente sobre os “Onze”. Ele veio sobre todos que estavam no Cenáculo. Ali havia muitas outras pessoas além dos Apóstolos. O Espírito de Jesus penetra no coração daquelas pessoas e lhes dá novo vigor, novo sentido de vida. Sem o Espírito Santo a vida fica sem sentido, vazia, deslocada daquele centro vital para o qual o Pai nos criou. Desfocada, a vida começa a perder o sentido e o pecado encontra guarida dentro de nós. É a destruição da vida da pessoa. A alegria dá lugar à tristeza, a paz cede a brigas e intrigas, a partilha perde terreno para o egoísmo, o perdão é substituído pelo desejo de vingança, a fraternidade é suplantada pela dominação e coisificação das pessoas, a fé perde para a dúvida e o ceticismo.  Quando Jesus sopra sobre os discípulos e lhes dá o Espírito Santo com o poder de perdoar os pecados, ele quer mostrar que a missão da Igreja, pela força do Espírito Santo, deve ser a de tirar o pecado do mundo.

O pecado, segundo Pe. Antônio Pagola, é a “força de gravidade” que nos impede de ir a Deus. Muito mais do que culpa, é peso, escravidão. Mais do que falar de perdão, é preciso, pois, falar de libertação. Por isso chamamos a Jesus de Salvador. Nota-se, pois, uma vez mais, que o Evangelho não é um ligeiro verniz que se passa no ser humano, mas é tomá-lo a partir do seu ser mais profundo, assim como é, e tornar possível sua volta para Deus. Este é o primeiro fruto do Espírito de Jesus: a libertação. Este é o Espírito, o Espírito do Filho, o Espírito dos filhos, aquele que nos resgata da escravidão da terra e nos abre o horizonte luminoso de filhos.

Esse Espírito traz e atualiza a novidade de Cristo: “Sem o Espírito Santo, Deus está distante; o Cristo permanece no passado; o evangelho, uma letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um poder; a missão, uma propaganda; o culto, um arcaísmo; e a ação moral, uma ação de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é enobrecido pela geração do Reino, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho se faz força do Reino, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a ação humana se deifica” (Atenágoras I, Patriarca de Constantinopla).

Todos nós sentimos dificuldades. Todos sentimos a fraqueza na fé, a fragilidade da existência, a força do pecado em nós. Por vezes o mal parece prevalecer. O bem fica apagado. Fazemos o bem, nos empenhamos na construção de um mundo melhor, mas parece que nossa luta é em vão. Então peçamos ao Espírito Santo que, como aos discípulos e discípulas no Cenáculo, nos encha de seu amor, de sua luz, de sua força:

Vem Espírito Santo e perdoa nosso pecado, fortalece nossa pequenez, dá-nos tua força contra o mal. Não nos deixes desanimar, desistir de caminhar na direção do bem. Mais do que fazer o bem, ajuda-nos a ser bons, justos, solidários, fraternos. Enche-nos de tua bondade, de tua sabedoria para reproduzirmos em nossa vida as ações de Jesus que passou pelo mundo “fazendo o bem”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Amados e envolvidos pelo Amor Trinitário

aureliano, 05.06.20

Santíssima Trindade - 07 de junho 2020.jpg

Solenidade da Santíssima Trindade [07 de junho de 2020]

[Jo 3,16-18]

Celebramos neste domingo a solenidade da Santíssima Trindade, o mistério de um só Deus em três Pessoas. Não se trata de uma realidade matemática, pois então pediria uma solução, mas trata-se de um Mistério que nos é superior e nos envolve, uma realidade que não cabe dentro de nossa cabeça, mas que nos convida a colocar nossa cabeça dentro desse Mistério.

 O Pai ama o Filho e o gera desde toda a eternidade; e desse amor entre o Pai e o Filho procede o Espírito Santo. O Pai enviou seu Filho ao mundo pela ação do Espírito Santo. Cumprida sua missão nessa terra, o Filho volta ao Pai e nos envia, da parte do Pai, o Espírito Consolador para animar e santificar a Igreja, Sacramento de Cristo no mundo.

O evangelho deste domingo está no contexto do encontro de Jesus com Nicodemos. Jesus lhe mostra a necessidade de um novo nascimento para se entrar no Reino de Deus. Um caminho que se faz a partir da fé no Filho de Deus, aquele que desceu do céu para dar vida ao mundo (cf. Jo 3, 7.13.15).

Jo 3, 16-18 é o núcleo do evangelho de João, o anúncio fundamental que mostra o imenso amor do Pai que envia seu Filho para salvar o mundo.

"Mundo" no evangelho de João significa aquela realidade que se opõe ao projeto de Jesus, ao Reino de Deus. São todas as forças de morte, toda a maldade que destrói a vida, que afirma a ganância, a mentira, a violência, a sede desordenada do lucro e da dominação, a sedução do dinheiro, do poder e do prazer (cf. 1Jo 2,16).

Mas Deus vem, em seu amor manifestado em Jesus Cristo, salvar este mundo. O Pai não quer a morte das pessoas, mas quer que todos sejam salvos pela fé em Jesus, aquele que ele enviou "não para julgar, mas para salvar".

O gesto do Pai de "entregar" o Filho nos remete ao gesto de oferta de sua própria vida. É o gesto eucarístico de Jesus que celebramos todos os domingos: "Isto é o meu corpo entregue por vós". No encalço deste gesto eucarístico, queremos também nós colaborar na salvação do mundo. Quando participamos da Eucaristia nós estamos dizendo com Jesus também: "Ofereço minha vida, minhas energias, minhas possibilidades e dons para participar na salvação do mundo". O 'dom' do Pai na pessoa de Jesus deve conter também nosso 'dom', isto é, nossa pessoa, nossas atitudes 'conformadas' ao gesto de Jesus: "Tenham em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus" (Fl 2, 5).

Deus não precisa de nós, nem de nossas coisas. “Ainda que nossos louvores não vos sejam necessários, vós nos concedeis o dom de vos louvar. Eles nada acrescentam ao que sois, mas nos aproximam de vós por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso” (Prefácio Comum IV). Deus quer que sejamos no mundo a sua imagem, que manifestemos a sua presença. Cada atitude de acolhida, de perdão, de denúncia da maldade, de renúncia a vantagens espúrias, de apoio a iniciativas que promovem a justiça  e a paz; cada esforço de fidelidade à família, de cuidado com os filhos, com os idosos, com os pais, com os doentes, com a Criação; cada palavra que fortalece, que acalenta, que conforta; tudo isso é “oferenda” unida à “entrega” de Jesus, é gesto eucarístico para a salvação e libertação do mundo.

Não crer em Jesus Cristo é recusar-se a se colocar em favor da vida. Por isso "Quem não crê já está julgado", pois se coloca numa atitude de morte, de trevas, de recusa a reconhecer a Luz que veio a este mundo: "Quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis" (Jo 3, 20).

Crer na Trindade Santa é orientar a vida pelo amor. Não bastam palavras bonitas, definições dogmáticas, afirmações fantásticas a respeito de Deus. O Mistério que celebramos hoje nos transcende, está para além de nossa capacidade de compreensão racional. A razão não dá conta do mistério senão quando se deixa banhar por ele. Por isso Santo Agostinho afirmava: Credo ut intelligam. Ou seja, para entender o mistério - que é razoável e não racional – eu, primeiro, creio. Uma vez conformadas nossa inteligência e vontade a essa realidade que nos transcende e nos envolve, começamos a compreender a beleza, a grandeza e profundidade dessa realidade de nossa fé cristã.

Pai, dai-nos a graça de realizarmos em nossa vida de família e de comunidade aquela comunhão que procede do Seio de vossa vida Trinitária. Comunidade Santíssima, na qual fomos mergulhados pelo batismo, inspirai e fortalecei nossa comunidade terrestre. Amém.

----------xxxxx----------

UM POUCO DE DOUTRINA

 “O credo elaborado nos concílios ecumênicos de Nicéia (325) e Constantinopla (381) encontrou fórmulas que se tornaram depois dogmas. O dogma básico acerca da Santíssima Trindade reza assim: Em Deus há uma única natureza divina que subsiste em três Pessoas realmente distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Essa formulação abstrata não quer exprimir outra coisa senão aquilo que Jesus experimentou: que estava sempre em comunhão com o Pai, sentia-se Filho amado e que agia e falava com uma Força que o tomava, o Espírito Santo.

O importante não é afirmar os divinos Três. Isso até pode nos levar a uma heresia, vale dizer, a um erro na compreensão da fé, a heresia do triteísmo, como se houvesse três deuses. A centralidade se encontra na relação entre eles. As próprias palavras já supõem relação. Assim não existe pai simplesmente. Alguém é pai porque tem filho. Ninguém é filho simplesmente. É filho porque tem pai. Espírito, no sentido originário, significa sopro. Não há sopro sem alguém que assopre. O Espírito é o sopro do Pai para o Filho e do Filho para o Pai. Como se depreende, os Três sempre vêm juntos e se encontram eternamente entrelaçados. Em outras palavras, dizer Trindade é dizer relação, como disse o Papa João Paulo II quando esteve pela primeira vez na América Latina em 1979, em Puebla, no México: ‘A natureza íntima de Deus não é solidão, mas comunhão, porque Deus é família, é Pai, Filho e Espírito Santo’. Esse entrelaçamento foi expresso pela tradição teológica pela palavra grega pericorese que significa ‘a interrelação entre as Pessoas divinas’. Elas são distintas para poderem se relacionar. E essa relação mútua é tão profunda e radical que elas se uni-ficam. Elas ficam um só Deus-comunhão, um só Deus-amor, um só Deus-relação.

Precisamos superar a terminologia tradicional com a qual se pretendia expressar a natureza íntima de Deus. Ela é, para nossos ouvidos contemporâneos, demasiadamente formal e abstrata. No nível da experiência de fé diríamos de forma mais simples e compreensível: Deus que está acima de nós e que é nossa origem chamamos de Pai-e-Mãe eternos; Deus que está  conosco e que se faz companheiro de caminhada se chama Filho; e Deus que habita nosso interior como entusiasmo e criatividade se chama Espírito Santo. Como se depreende, não são três deuses, mas o mesmo e único Deus-comunhão que atua em nós e nos insere em sua rede de relações. Dentro de nós se realiza a eterna relação de amor e de comunhão entre Pai, Filho e Espírito Santo. Deus-comunhão está sempre nascendo dentro de nós. Por isso somos seres de comunhão e um nó permanente de relações. No início de tudo está a comunhão dos divinos Três” (L. Boff, Experimentar Deus, p. 108-110).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O perdão e a paz para vencer o medo

aureliano, 29.05.20

Pentecostes 2020 - 31 de maio.jpg

Solenidade de Pentecostes [31 de maio de 2020]

[Jo 20,19-23] 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Inicialmente celebrada pelos israelitas, Pentecostes era a comemoração da colheita dos primeiros frutos do trigo. Porque marcava o 50º dia depois do início da colheita, era, por esse motivo, chamada de Pentecostes. (Confira Ex 23, 14-17; 34, 22; Lv 23,15-21; Dt 16, 9-12). É a festa da colheita. Portanto, tempo de muita alegria e fartura.       

A narrativa de At 2, 1-11 mostra a importância que ganhou na Igreja esta festa. Fazendo uso de um recurso literário, Lucas faz o Pentecostes cristão coincidir com o Pentecostes judaico. O Espírito se manifesta confirmando a missão que os discípulos haviam recebido do Mestre. Pentecostes marca o nascimento da Igreja. É a celebração dos frutos do Ressuscitado: o perdão e a paz que brotam de seu Coração bondoso, superando o egoísmo e a maldade do coração humano.

A MENSAGEM DO EVANGELHO

No próprio dia da Páscoa Jesus vem entregar o Dom do Espírito Santo aos seus discípulos. Este Dom garante a continuação da missão de Jesus no mundo. A missão de dar a paz e de tirar o pecado do mundo: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19); “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23). É o próprio Jesus agindo por meio de sua Igreja.

“As portas estavam fechadas por medo dos judeus”: Esse relato nos faz pensar no medo que tomava conta dos discípulos antes de serem revestidos do Dom do Pai. Como o medo nos paralisa, nos fecha em nós mesmos, nos impede de servir! O medo é um sentimento que precisa ser assumido e trabalhado em nós. Quando agimos movidos pelo medo fazemos muito mal a nós e aos outros. Medo de assumir um trabalho na comunidade; medo de arriscar; medo de assumir a própria vida; medo de romper com relações que escravizam e destroem a própria vida e a vida dos outros; medo de falar e de viver a verdade; medo movido pela preocupação excessiva com a própria imagem: o que vão pensar ou dizer? Medo de chamar para conversar sobre dificuldades interrrelacionais. Medo da doença, medo da morte, medo de ser abandonado, desprezado, ridicularizado. É preciso vencer o medo! O medo fecha a porta para Deus e para os irmãos! “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33).

Mas há o outro lado da moeda: aqueles que querem amedrontar, causar pânico, intimidar os outros, gritar, esbravejar, calar a boca. Quantas pessoas se satisfazem provocando medo para dominar. Querem se impor pela força física, pela pressão psicológica, pelo cargo que exercem, pelas ameaças que fazem, pelo poder financeiro. Há muitas pessoas que sofrem terrivelmente debaixo de gente perversa, dominadora, satânica. Há gente que domina os outros até mesmo servindo-se da religião ou da boa-fé da pessoa. Crianças, mulheres, idosos, pobres, pessoas vulneráveis e indefesas são as principais vítimas dos dominadores. Um pecado que brada aos céus e pede a Deus vingança! Jesus nunca se impôs aos outros, nunca amedrontou ninguém. Pelo contrário, sempre mostrou-se afável, acolhedor, doador do perdão e da paz.

“Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Palavra de Jesus aos discípulos antes de comunicar-lhes do Dom do Espírito Santo. É um elemento essencial na missão. O Pai enviou o Filho para comunicar seu amor ao mundo. Agora o Filho envia aqueles que ele escolheu e consagrou com essa mesma missão: o Pai nos ama e quer salvar a todos. Quer comunicar-nos o perdão e a paz. A Igreja é a mensageira e portadora dessa Boa Nova.

ABRIR O CORAÇÃO PARA A MISSÃO

Ao longo de seu ministério Jesus havia prometido o Espírito Santo aos seus discípulos para auxiliá-los na tarefa que lhes confiaria. Ele teria a missão de inspirá-los, fortalecê-los, lembrar-lhes o que lhes havia ensinado. Desde então lhes restava plantar, pois o Pai garantiria a colheita.

Compete a nós abrir o coração para a ação do Espírito Santo em nossa vida a fim de que nossa vida e nossas comunidades se renovem. Aquele vigor concedido aos primeiros discípulos continua sendo dado a quem se abre à sua ação libertadora. Deixemos o Espírito agir em nós, pois sem a sua força a Igreja fica estéril e confusa, sem ternura e sem missão.

-----------xxxxx-----------

A FORÇA DO ALTO PERDOA E ANIMA

A festa de Pentecostes tem sua história na comunidade israelita. Inicialmente era o agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Uma festa agrícola. Posteriormente foi associada à entrega da Lei no Sinai, tornado-se assim a festa da Aliança de Deus com seu povo.

No cristianismo, Pentecostes celebra a manifestação pública da Igreja. Embora, segundo João, o Espírito Santo seja dado no dia da Páscoa, na Ressurreição, a comunidade lucana a coloca cinquenta dias depois da Páscoa, para evocar e celebrar a manifestação pública da Igreja. Em forma de “línguas de fogo” para dizer do testemunho e da palavra dos discípulos de Jesus manifestando a ação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. No Sinai foi entregue a Lei a Moisés, escrita em tábuas de pedra. Aqui celebramos a Lei derramada nos nossos corações.

 O evangelho deste domingo mostra a comunidade dos discípulos acuada, medrosa. Os discípulos não tinham iniciativa nem coragem de anunciar a experiência que haviam feito de Jesus. Aquele em quem haviam depositado a esperança frustrou-lhes as expectativas: morrera na cruz como um malfeitor. Porém, a divina “Ruah” do alto, aquele Sopro vital os encheu de novo ânimo, de coragem. Começam então a anunciar, com todo ardor e entusiasmo, aquela realidade que haviam experimentado: a vida de Jesus e a vida em Jesus é o caminho para se viver de maneira justa, alegre e mais feliz.

Soprou sobre eles e disse...”. Esta passagem nos faz lembrar aquele sopro vital que o Criador fez penetrar no homem formado da argila: “Ele insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo” (Gn 2,7). Ou mesmo aquele Sopro de vida de que fala o profeta Ezequiel: “Porei meu sopro em vós para que vivais” (Ez 37,14). Somos cristãos leigos de barro, padres de barro, bispos de barro. É o Sopro Santo de Deus que nos comunica vida. Jesus comunica a nova vida que ele veio trazer do Pai: o Espírito Santificador que nos inspira, nos ilumina, nos fortalece para darmos testemunho da ressurreição do Senhor.

É interessante notar que o Espírito Santo não desceu somente sobre os “Onze”. Ele veio sobre todos que estavam no Cenáculo. Ali havia muitas outras pessoas além dos Apóstolos. O Espírito de Jesus penetra no coração daquelas pessoas e lhes dá novo vigor, novo sentido de vida. Sem o Espírito Santo a vida fica sem sentido, vazia, deslocada daquele centro vital para o qual o Pai nos criou. Desfocada, a vida começa a perder o sentido e o pecado encontra guarida dentro de nós. É a destruição da vida da pessoa. A alegria dá lugar à tristeza, a paz cede a brigas e intrigas, a partilha perde terreno para o egoísmo, o perdão é substituído pelo desejo de vingança, a fraternidade é suplantada pela dominação e coisificação das pessoas, a fé perde para a dúvida e o ceticismo.  Quando Jesus sopra sobre os discípulos e lhes dá o Espírito Santo com o poder de perdoar os pecados, ele quer mostrar que a missão da Igreja, pela força do Espírito Santo, deve ser a de tirar o pecado do mundo.

O pecado, segundo Pe. Antônio Pagola, é a “força de gravidade que nos impede de ir a Deus”. Muito mais do que culpa, é peso, escravidão. Mais do que falar de perdão, é preciso, pois, falar de libertação. Por isso chamamos a Jesus de Salvador. Nota-se, pois, uma vez mais, que o Evangelho não é um ligeiro verniz que se passa no ser humano, mas é tomá-lo a partir do seu ser mais profundo, assim como é, e tornar possível sua volta para Deus. Este é o primeiro fruto do Espírito de Jesus: a libertação. Este é o Espírito, o Espírito do Filho, o Espírito dos filhos, aquele que nos resgata da escravidão da terra e nos abre o horizonte luminoso de filhos.

Esse Espírito traz e atualiza a novidade de Cristo: “Sem o Espírito Santo, Deus está distante; o Cristo permanece no passado; o evangelho, uma letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um poder; a missão, uma propaganda; o culto, um arcaísmo; e a ação moral, uma ação de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é enobrecido pela geração do Reino, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho se faz força do Reino, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a ação humana se deifica” (Atenágoras I, Patriarca de Constantinopla).

Todos nós sentimos dificuldades. Todos sentimos a fraqueza na fé, a fragilidade da existência, a força do pecado em nós. Por vezes o mal parece prevalecer. O bem fica apagado. Fazemos o bem, nos empenhamos na construção de um mundo melhor, mas parece que nossa luta é em vão. Então peçamos ao Espírito Santo que, como aos discípulos e discípulas no Cenáculo, nos encha de seu amor, de sua luz, de sua força:

Vem Espírito Santo e liberta-nos do pecado, fortalece nossa pequenez, dá-nos tua força contra o mal. Não nos deixes desanimar, desistir de caminhar na direção do bem. Mais do que fazer o bem, ajuda-nos a ser bons, justos, solidários, fraternos. Enche-nos de tua bondade, de tua sabedoria para reproduzirmos em nossa vida as ações de Jesus que passou pelo mundo “fazendo o bem”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Na força do Espírito Santo

aureliano, 15.05.20

6º Domingo da Páscoa - A - 17 de maio.jpg

6º Domingo da Páscoa [17 de maio de 2020]

[Jo 14,15-21]

Estamos no chamado ‘discurso de despedida’ de Jesus segundo o quarto Evangelho: capítulos 13 a 17.  Aí estão os relatos da “Hora” de Jesus: “Sabendo Jesus que a sua hora tinha chegado, a hora de passar deste mundo para o Pai, ele que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até o extremo ” (Jo 13,1). Jesus então dá o seu testamento, aquilo que não poderão esquecer jamais, seu último desejo. E garante que não os abandonará. No evangelho deste domingo a Igreja nos apresenta o tema dos mandamentos de Jesus e o dom do Espírito.

Mandamentos de Jesus

Nós ouvimos sempre falar sobre os “Mandamentos da Lei de Deus” (cf. Ex 20, 1-17). Mas hoje estamos tratando sobre os mandamentos de Jesus que são: crer no Pai, crer em Jesus, guardar a sua palavra, permanecer nele, amar uns aos outros como ele amou, realizar as obras dele, praticar a verdade, trabalhar pelo alimento que permanece para a vida eterna. Esses mandamentos, no entanto, se resumem naquelas palavras que dirige aos seus, antes da paixão: “Como eu vos amei, assim também deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 15, 35). A prova de que amamos a Jesus é vivência de seus mandamentos: “Se me amais, observeis meus mandamentos” (Jo 14,14).

Esse amor a Jesus não se dá de modo sensível. Ele não está mais no meio de nós como viveu em Nazaré. Ele continua conosco, mas ressuscitado. Esse amor se manifesta quando ‘guardamos sua palavra’. Ou seja, quando o vemos e o servimos na pessoa dos mais pobres e abandonados: “Tudo o que fizerdes a um desses mais pequeninos foi a mim que o fizestes” (Mt 25, 40).

O dom do Espírito Santo

A ausência física de Jesus é substituída pelo Espírito Santo, o Paráclito. É pela força deste Consolador, Advogado (advoga nossa causa contra o mundo) que nós continuamos a missão de Jesus. Essa força nós a recebemos no Batismo e se completa, se ‘confirma’ na Crisma, com o dom do Espírito Santo que nos amadurece e encoraja para a missão (cf. At 8, 5-8.15-17, primeira leitura de hoje).

Para muitos a passagem de Jesus pela história não fez diferença. A vida de Jesus não deixou nenhum rastro em sua vida. Não “viram” nem “conheceram” a Jesus (cf. Jo 14,17). Nossa missão é mostrar, com nossa vida, que a vida em Deus como Jesus a viveu faz a diferença no mundo. Mas somos incapazes de realizar essa missão por nós mesmos. É a força do Espírito Santo, consolador, advogado, defensor que nos sustentará na defesa da verdade manifestada, não em doutrinas, mas na vida e atuação de Jesus de Nazaré.

Dessa forma nossa vida, pela ação do Espírito, será um contínuo louvor a Deus, conforme ensinava  Santo Agostinho: “Na verdade, louvamos a Deus agora que nos encontramos reunidos na igreja. Mas logo ao voltarmos para casa, parece que deixamos de louvar a Deus. Não dixes de viver santamente e louvarás sempre a Deus. Deixas de louvá-lo quando te afastas da justiça e do que lhe agrada. Mas, se nunca te desviares do bom caminho, ainda que tua língua se cale, tua vida clamará; e o ouvido de Deus estará perto do teu coração. Porque assim como nossos ouvidos escutam nossas palavras, assim os ouvidos de Deus escutam nossos pensamentos” (Ofício das Leituras, sábado da 5ª semana da páscoa).

------------xxxxx-------------

O ESPÍRITO DA VERDADE NÃO NOS DEIXARÁ ÓRFÃOS

Elemento fundante de nossa fé cristã é a consciência de não sermos abandonados por Deus, jamais: “Ele (o Pai) vos dará outro Defensor que ficará para sempre convosco” (Jo 14,16). É importante notar que essa verdade tem consequências para nossa vida cotidiana: essa presença de Jesus em nós e em nosso meio precisa ser percebida, captada, vista por aqueles que nos rodeiam: “Vós sois uma carta de Cristo confiada a nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo; não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos vossos corações” (2Cor 3,3). Em outras palavras, nossa vida deve manifestar nossa fé e a presença de Jesus pelo seu Espírito em nós.

Este Espírito que nos é dado é cognominado “Espírito da verdade”. Essa verdade de que fala Jesus não é uma verdade filosófica, científica, racional, mas teológica. Uma verdade que pode ser traduzida por ‘fidelidade’. Na relação com Deus, podemos afirmar que uma pessoa verdadeira é uma pessoa fiel. E essa fidelidade não tem consistência apenas na opção de vida ética da pessoa, mas no Dom do Pai. É o “Espírito da Verdade que o mundo não pode acolher” que garante a fidelidade do discípulo de Jesus.

A gente tem medo da verdade. Dizer a verdade, ouvir a verdade não é tarefa fácil. Por vezes preferimos levar uma vida falsa, de aparência, enganando-nos a nós mesmos a vida inteira por medo de enfrentar a realidade da verdade. A verdade tira a capa, desmascara. Dizer a verdade não é desrespeitar, ofender, gritar com os outros, agredir, machucar. Dizer e viver a verdade é sair do casulo, é buscar uma vida coerente, é reconhecer a própria pequenez, é dizer e expressar com sinceridade o que se sente e o que se pensa na busca de comunhão, de paz, de harmonia verdadeira. “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).

Viver no ‘Espírito da Verdade’ não é tornar-se dono da verdade nem atacar e derrubar adversários nem alegrar-se pela queda do outro, mas viver como testemunha de Jesus. É manifestar o amor a Jesus ‘observando’ seus mandamentos.

O ‘Espírito da Verdade’ nos convida a viver a verdade no meio de uma sociedade mentirosa, enganadora, marcada por uma vida de aparência, em que a “fake news”, as notícias falsas prevalecem. Não nos deixemos levar pela mediocridade, pelo ‘todo mundo faz’, pela preguiça e comodismo que não nos deixam trabalhar nem ajudar a ninguém; por uma gatunagem descarada que leva alguns a valerem-se até mesmo da boa fé dos ‘pequenos’ para sugar-lhes as forças e o pouco que têm para sobreviver, ou mesmo da pandemia – covid-19 – que ceifa tantas vidas, para tirar vantagem política e financeira. Deus nos livre de uma mentalidade dessas!

Abramos nosso coração ao Defensor, Auxiliador enviado pelo Pai por meio de seu Filho, para que nele possamos nos fortalecer sempre mais contra as forças da mentira, da desilusão, da ganância, do mal que quer nos seduzir e arrancar de nosso coração os valores do Evangelho, os princípios morais e éticos, a coerência de vida que gera mais vida. Quem ama tem Deus no coração (cf Jo 14,21).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN