Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

aurelius

aurelius

E a família, como vai?

aureliano, 27.12.24

Sagrada Família - A - 29 de dezembro.jpg

Sagrada Família de Nazaré [29 de dezembro de 2024]

[Lc 2,22-40]; [2,40-52]

PALAVRA DE DEUS: FONTE INSPIRADORA DAS FAMÍLIAS

A família não teve, desde sempre, a constituição pai, mãe e filhos, como conhecemos hoje. Os antropólogos dizem que a família se formou devido à necessidade de sobrevivência diante da escassez de alimentos e das ameaças vindas de fora.

Dessa constituição do grupo familiar para autodefesa surgiram as tribos ou clãs: grupos familiares constituídos de pai, mãe, avós, filhos, primos, tios etc. Assim viviam os israelitas. O que os diferenciava de outros clãs era a vida centrada na Palavra de Deus. Seus costumes e posturas eram orientados pelo ensinamento de Deus. Assim se entende Jesus: ele viveu dentro de um clã, e não somente com José e Maria, como pode ocorrer de imaginarmos a partir de nossa compreensão atual.

Fundante na vida de Jesus é que ele ampliou a compreensão de família. “’Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?’ E repassando com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: ‘Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe’” (Mc 3,33-35). Família, portanto, não está mais no vínculo do sangue ou de religião. Família se constitui sobre o cumprimento da vontade de Deus que é empenho para que haja “vida em abundância para todos” (Jo 10,10). A base para a construção e constituição da vida familiar é a própria vida de Jesus de Nazaré.

Daqui brota uma nova compreensão de família. Sabemos que as famílias, hoje, vivem outra realidade. Pais e filhos têm pouco contato. O trabalho absorve grande parte do tempo das pessoas. A mulher-mãe não fica mais em casa para cuidar dos filhos (nem o pai). De um modo geral, pela força das circunstâncias, esse ofício foi terceirizado para a babá ou a avó. Os filhos ficam quase o tempo todo na escola ou na rua ou no celular. Além de outros aspectos como a droga, a violência, a internet ou a televisão que tomam o tempo e desvirtuam as relações porque transmitem outros valores, quase sempre à revelia daqueles que os pais ensinam.

E os idosos? Muitos deles ou ficam sozinhos ou são deixados nos asilos. Antigamente eles ficavam em casa sob os cuidados de todos que, normalmente, estavam por ali. Além disso, de modo geral, os filhos e netos não querem o trabalho de cuidar dos idosos e doentes. Interessam a muitos a aposentadoria e a herança. Mas a gratuidade do trabalho permanece bem distante da maioria dos casos. É bom lembrar a palavra do Eclesiástico 3,12-14: “Filho, cuida de teu pai na velhice, não o desgostes em vida. Mesmo se a sua inteligência faltar, sê indulgente com ele, não o menosprezes, tu que estás em pleno vigor. Pois uma caridade feita a um pai não será esquecida, e no lugar dos teus pecados ela valerá como reparação”.

Celebrando a Sagrada Família de Nazaré, Jesus, Maria e José, vamos deixar de lado aquela ideia de “família perfeita”. O importante é termos aquele Espírito que animou a Sagrada Família, no cuidado uns para com os outros, no respeito, na doação para que nossas famílias sejam espaço em que todos possam se sentir seguros, acolhidos, respeitados, amados, educados, em condições de desenvolver suas potencialidades. Quanto mais assumirmos a Palavra de Deus como fonte inspiradora de nossas ações, e a Eucaristia como alimento cotidiano, mais compreenderemos o modo de constituir família segundo os critérios do Reino de Deus.

-----------xxxxx------------

E A FAMÍLIA, COMO VAI?

É muito comum ainda ouvirmos, nos rotineiros cumprimentos, essa pergunta: “E a família: vai bem?” A resposta normalmente é positiva: “Sim. Está tudo bem, com saúde, graças a Deus”. Mesmo que a situação não esteja lá essas coisas, não faz parte do protocolo contar os problemas e dificuldades que ocorrem entre “quatro paredes” para todo aquele que pergunta. Até porque essa pergunta já supõe uma resposta positiva. E alguns fazem essa pergunta para “puxar” assunto.

Mas todos sabemos da profundidade e complexidade que envolve falar sobre família. Hoje sabe-se que família não se resume àquela constituição familiar de 30 ou 40 ou 50 anos atrás: papai, mamãe, filhinhos. Todos ali, bonitinhos, arranjadinhos, obedientes... Uma estrutura patriarcal em que o macho-varão determinava, por vezes só com o olhar, o que ele queria ou o que deveria ser feito. E mesmo que a família não tivesse esse tipo de comportamento em seu interior, havia uma harmonia interna que não era ameaçada nem influenciada por fatores externos. Havia mesmo uma prevalência “religiosa” sobre os comportamentos de pais e filhos.

Hoje o mundo mudou muito. A sociedade dita as normas econômicas, sociais, relacionais, educacionais, religiosas. Há uma espécie de ditadura de interesses econômicos que impõe aos grupos e pessoas o que eles devem fazer, o que comprar, o que usar, o que comer, como conviver, até mesmo que religião seguir ou como orar etc. E se a gente ousa entrar nos comportamentos afetivo-sexuais vigentes então, a discussão não tem fim.  Hoje precisamos entender um pouco mais a “questão de gênero”. Não adianta fugir ou evitar o assunto, pois ele está na pauta do dia: redes sociais, filmes, músicas, novelas e séries, escola e rua. Isso incide diretamente nas famílias, núcleo constituinte da sociedade. E esta quer sempre impor seus ‘valores’. Isso tudo sem falar nas constituições e organizações familiares que giram em torno de pelo menos nove modalidades, segundo alguns estudiosos desse assunto. Há autores que já falam em doze modelos de família!

Então, o que fazer? É preciso voltar à família de Nazaré. Parece não haver outro caminho. Lucas, nesse belíssimo relato de hoje, desvela uma faceta da família de Nazaré que precisa ser contemplada por todos nós. Um episódio que mostra a centralidade do Pai celeste na vida da família de Nazaré. A religião vivida, praticada por José, Maria e Jesus, ajuda a compreender e a aprofundar o projeto salvífico do Pai.

Uma família que observava ‘religiosamente’ a Lei do Senhor: “Iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa” (Lc 2, 41). Não é a mera observância religiosa que salva. O ritualismo é uma realidade que mata a pessoa e a comunidade. Jesus condenou inúmeras vezes uma prática religiosa desligada da vida. Mas, quando a religião é séria, ética, próxima da Verdade, do Bem e do Belo, ajuda a pessoa e a comunidade a realizar um encontro transformador e realizador com o Criador e Pai. Os pais de Jesus procuravam fazer o que ordenava a Lei. Aliás, Mateus diz que José “era um homem justo” (Mt 1,19). Isto significa que era fiel cumpridor dos Ensinamentos de Deus, a Torah. Maria, a “cheia de graça”, a “serva do Senhor”, a “bendita entre as mulheres”, ouvinte atenta da Palavra. Essas indicações dos evangelhos nos revelam o caminho que esses pais percorriam para deixar sua marca no coração do filho Jesus. Por isso ele os segue: tendo entrado na idade adulta, doze anos para a cultura judaica, também ele sobe ao Templo.

Na viagem de volta, notam algo estranho: Cadê o Menino? Ficara em Jerusalém. É interessante notar o cuidado prestimoso dos pais para com o Menino. Aquele cuidado humano. Aquela responsabilidade paterno-maternal em não desamparar o filho, não perdê-lo de vista. E a lição veio: “Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai” (Lc 2,49). Jesus quis lhes mostrar que o seu “Pai” é do céu. Seu pai terreno, legal não podia determinar sua vida. Ele veio para fazer a vontade do Pai do céu. Aqui aparece claramente que a missão dos pais é a de ser expressão do Pai celeste na vida dos filhos. Os pais não são donos dos filhos. Nem podem gerar filhos a seu bel-prazer. Filho é dom de Deus. Não pode ser fruto do querer egoísta dos pais. Não estou dizendo que se deva ter filho a torto e a direito. É preciso planejar a família. Mas o filho deve ser sempre acolhido como dom. Como tal, não pode brotar de mero bel-prazer dos pais. Por isso deve-se acolher com todo carinho o filho que não foi planejado, o filho que nasce doentinho ou com alguma deficiência. É sempre um dom do Pai. Nós somos todos do Pai!

Nem tudo na vida é compreendido perfeitamente por nós. A fé nos coloca dentro do Mistério de Deus. Muitos acontecimentos da vida não têm explicação. Têm significado, ou seja, Deus pode nos revelar algo a partir daqueles acontecimentos. Para isso precisamos acolhê-los no coração: “Eles não compreenderam as palavras que lhes dissera... Sua mãe, porém, conservava no coração todas estas coisas” (Lc 2,50-51). A meditação e contemplação do Mistério de Deus revelado em Jesus, Palavra do Pai, é que nos possibilita compreender o que o Pai quer de nós.

Escrevendo sobre os relatos da Infância de Jesus, exatamente no episódio do evangelho de hoje, o Papa Bento XVI faz um comentário interessante sobre a importância da vida de fé: “As palavras de Jesus não cessam jamais de serem maiores que a nossa razão; superam, sempre de novo, a nossa inteligência. A tentação de reduzir e manipular as palavras de Jesus, para fazê-las entrar na nossa medida, é compreensível; faz parte de uma reta exegese precisamente a humildade de respeitar essa grandeza, que muitas vezes nos supera com as suas exigências, e não reduzir as palavras de Jesus com a pergunta sobre aquilo de que podemos ‘crê-Lo capaz’. Ele considera-nos capazes de grandes coisas. Crer significa submeter-se a essa grandeza e pouco a pouco crescer rumo a ela. Nisso, Maria é apresentada por Lucas deliberadamente como aquela que crê de modo exemplar: “Feliz aquela que acreditou” (Lc 1,45) [A Infância de Jesus, Planeta, p. 105].

Podemos concluir que, para a família caminhar bem, (note que caminhar aqui remete às idas e vindas da Sagrada Família nas estradas da Judéia e da Galiléia) precisa alimentar-se de uma profunda experiência de Deus, de intimidade com o Pai, de busca da Sua vontade. Então poder-se-á tratar de qualquer modelo de organização familiar. O que importa, acima de tudo, é se essa família está buscando fazer a vontade do Pai; se está colocando em sua vida o Pai e seu projeto de vida como prioridade, como absoluto. Então muita coisa na sociedade também poderá melhorar. É um processo lento, de conversão cotidiana, de esperar contra toda esperança. É uma questão de fé.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Cremos na feliz ressurreição

aureliano, 16.08.24

Assunção de Nossa Senhora - 16 de agosto de 2020

Assunção de Nossa Senhora [18 de agosto de 2024]

 [Lc 1,39-56]

UM POUCO DE HISTÓRIA

A solenidade da Assunção de Maria, Mãe de Jesus, foi celebrada pela Igreja desde eras antigas. O nome da festa era Dormição de Maria. Isto é, Maria, depois de sua peregrinação neste mundo, ‘repousou no Senhor’. A celebração deste acontecimento está intimamente associada à ressurreição de Jesus. A Páscoa da Virgem traz no centro, não a Mãe, mas o Filho, para quem o olhar do fiel se deve voltar. Aquela que colaborou para a Encarnação do Filho de Deus deve participar da sua Ressurreição. Na festa da Assunção de Maria se revela aquilo que todo homem e mulher anseiam: ser acolhidos inteiramente no céu.

O dogma da Assunção da Bem Aventurada Virgem Maria, festejado a 15 de agosto, tem nomes diferentes, como Nossa Senhora da Boa Viagem, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora dos Prazeres etc. Foi proclamado por Pio XII, em 1950, com a Bula ‘Munificentissimus Deus’, com o seguinte texto: Definimos ser dogma divinamente revelado: que a imaculada mãe de Deus, sempre virgem Maria, cumprindo o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória eterna”.

A bíblia não fala nada a respeito do final da vida de Maria. São João mostra que ela, aos pés da cruz, foi adotada pela comunidade como mãe (Jo 19, 27). Lucas nos diz que ela estava junto ao grupo que se preparava para a vinda do Espírito Santo, em Pentecostes (At 1,13s e 2,1). Então a bíblia não conta detalhes sobre o final da vida de Maria.

Nos primeiros séculos, os cristãos tinham o costume de guardar os restos mortais dos santos, especialmente dos apóstolos e mártires. Não há, porém, nenhuma notícia sobre o corpo de Maria. Alguns evangelhos chamados apócrifos, isto é, aqueles relatos sobre a vida de Jesus e dos atos apostólicos que não entraram na ‘lista’ (cânon) dos livros que a Igreja considerou inspirados por Deus, contam histórias da chamada Dormição de Maria. E assim, no século VIII, a devoção popular criou uma história para contar como se deu a morte e a ressurreição de Maria.

ASSUNÇÃO DE MARIA E RESSURREIÇÃO DE JESUS

O dogma da Assunção só pode ser compreendido em relação à Ressurreição de Jesus. Maria, diferente de nós, não precisou esperar o fim dos tempos para receber um corpo glorificado. Depois de sua vida terrena ela já está junto de Deus com o corpo transformado, cheio de graça e luz.

Ainda mais. Não podemos entender a Assunção como se Maria subisse ao céu com o corpo que ela possuía aqui na terra, com ossos, pele, carne, sangue. Não é assim que a Igreja interpreta a ressurreição dos mortos. O corpo de Jesus ressuscitado e o de Maria assunta foram transformados e assumidos por Deus. Paulo deixa bem claro: “... O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,42-44a).  Por isso cremos que Maria já está glorificada junto de Deus, toda inteira. Ela antecipa o que está prometido para cada um de nós: participar do banquete da Vida que o Senhor preparou para “aqueles que o amam” (cf. 1Cor 2,9).

O cântico de Maria no evangelho de hoje diz que o Senhor “olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor... Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs os poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou”. Aí está a ação de Deus na vida de Maria, a humilde serva do Senhor, que decidiu responder sim ao chamado de Deus para participar na obra da salvação da humanidade. Sua humildade e fidelidade ao projeto do Reino de Deus lhe valeram a participação na glória de Deus, ao lado de seu Filho. Maria é aqui figura da Igreja, que deve levar adiante, não obstante as perseguições e sua pequenez, a missão de Jesus.

REFLETINDO SOBRE O EVANGELHO DE HOJE

O evangelho da liturgia de hoje traz dois relatos: a Visita de Maria a Isabel e o chamado ‘Cântico de Maria’. O primeiro mostra Maria como aquela que assumiu inteiramente o projeto do Pai na sua vida. Não mede esforços para prestar um serviço à sua parenta em necessidade. E no seu encontro com Isabel manifesta-se a sua fé profunda: “Feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido”. Todo aquele que deposita sua confiança em Deus, colaborando na realização do sonho de Deus para a humanidade, é feliz. O relato manifesta também o reconhecimento por parte de Isabel de que aquele que Maria trazia no seio é o Senhor: “Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?”. Maria é Mãe de Deus e bem-aventurada: “Bendita és tu entre as mulheres”.

O segundo relato é um hino inspirado no cântico de Ana (1Sm 2, 1-10) que canta a ação de Deus em favor da humanidade. É um hino jubiloso que proclama a derrubada dos poderosos e a elevação dos humildes pela ação de Deus em Jesus. É a oração dos pobres que confiam em Deus e no seu poder sobre o mal. Um hino que empenha o fiel nessa luta como Maria.

CONSEQUÊNCIAS PARA A VIDA CRISTÃ

Quando lemos o evangelho e vemos Maria assumindo como primeira atitude, depois de ter acolhido em seu seio o Filho de Deus, a de levar seus préstimos para a prima Isabel, somos levados a pensar em nossas atitudes. Nossa sociedade se deixa levar cada vez mais por uma atitude egoísta que leva a terceirizar a caridade e os cuidados para com aqueles que, por vezes, de dentro da nossa casa, são considerados peso e empecilho para passeios, curtição, jogos, prazeres, baladas...

Mas é preciso ressaltar, porém, que ainda nos deparamos com famílias que cuidam dos seus familiares com afeto, carinho, respeito e dedicação. Pessoas com necessidades especiais cuidadas com um zelo divinal, marial. Uma presença muito parecida com a de Maria: escuta da pessoa idosa que quer contar um caso, visita a um casal em dificuldade de relacionamento entre si ou com os filhos, presença nos abrigos, asilos, orfanatos e hospitais onde se encontram pessoas passando por sofrimento e dificuldades.

Para além dos gestos personalizados de caridade, faz-se necessário empenho na luta por políticas públicas que atendam às necessidades dos menos favorecidos. Refletir seriamente, iluminados pela Palavra de Deus e da Igreja, sobre em quem votar para o exercício de cargos públicos. Participação em conselhos comunitários e associações que se empenham pelos direitos do cidadão e da comunidade, sobretudo nestes últimos tempos em que houve grandes perdas de direitos adquiridos. São gestos simples que nos colocam em sintonia com o ensinamento de Jesus e com as atitudes de fidelidade de Maria, sua Mãe. A recomendação permanente do Papa Francisco é que a Igreja se coloque “em saída”, como “hospital de campanha” que não pergunta pelos motivos das feridas, mas que se preocupa em cuidar, aliviar o sofrimento.

A glorificação de Maria foi o resultado do seu peregrinar à luz de Deus nesse mundo. Cada vez que ela dava novos passos para seguir a Jesus, para buscar a vontade de Deus, o Senhor assumia e transformava sua pessoa. Até que chegou o momento final. É o que está reservado para nós! Na vida de fé, cada passo novo que damos é uma resposta ao amor da parte de Deus a nos acolher, tomar pela mão, assumir e transformar. A nós resta-nos deixar que Deus nos tome pela mão e nos faça discípulos fiéis, dedicados, humildes e perseverantes como Maria, enquanto aguardamos a bendita esperança da ressurreição.

-----------xxxxx------------

*“Família e amizade”. É o tema escolhido para ajudar as famílias a rezar suas realidades à luz de Deus. Sobretudo no desejo de ajudar as famílias construírem relações de amizade num mundo marcado pela incitação ao ódio e à divisão. “Acreditamos que é na família que construímos os melhores amigos e também onde aprendemos os valores básicos da vivência social. Desejo que todas as famílias possam fazer uma experiência profunda de amizade, especialmente com aqueles que estão mais próximos, para poder viver também uma profunda e intensa amizade com Deus” (Dom Bruno Elizeu Versari). O lema ajuda a mostrar a importância do tema: “Amizade: uma forma de vida com sabor do evangelho”. Ou seja, a família que busca viver relações amistosas gratuitas experimenta o sabor do evangelho e o transmite aos circunvizinhos.

Envolvidos pela onda capitalista, relativista e neoliberal, por vezes, os pais se preocupam somente em proporcionar uma profissão rendosa, um futuro brilhante para os filhos. Isso é um golpe na proposta de Jesus que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Dinheiro, carreira profissional, poder, sucesso não preenchem o coração humano, não plenificam o sentido de vida. É só olhar a vida dos santos: São Francisco, Santo Inácio, Santa Dulce dos Pobres, Servo de Deus Pe. Júlio Maria etc. Deixaram um futuro cheio de sucesso e de brilho para assumir na vida os valores do evangelho que recomenda: “Não acumuleis para vós tesouros na terra, onde as traças e os vermes arruínam tudo, onde os ladrões arrombam as paredes para roubar” (Mt 6,19).

**Nosso abraço carinhoso às pessoas consagradas nesse seu dia: deixaram tudo para viver mais radicalmente o evangelho, numa vida semelhante à do Filho de Deus: pobre, casto e obediente. Um serviço generoso ao Reino “para que todos tenham vida”. Uma vida pobre na solidariedade com os empobrecidos, ‘sobrantes’, ‘invisíveis’, ‘descartáveis’ e na busca da partilha dos bens e dos dons: mesa comum. Uma vida obediente na solidariedade com os que não são ouvidos nem levados em conta: ouvidos atentos ao Pai e aos sinais dos tempos. Anúncio do Reino de Deus e denúncia dos males perpetrados contra a humanidade. Uma vida celibatária consagrada em solidariedade com aqueles que sofrem por falta de amor, de afeto; com aqueles e aquelas que não podem experimentar a beleza e a alegria da acolhida afetuosa e gratuita: abandonados, deserdados, abusados, explorados afetiva e sexualmente; uma contestação de uma sociedade baseada na busca do prazer ao preço da dignidade da pessoa humana. Que Maria, nossa boa Mãe, nos ajude a viver com alegria nossa consagração para que seja um “sacrifício de louvor”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“O Senhor fez em mim maravilhas”

aureliano, 13.08.21

assunção de nossa senhora.jpg

Assunção de Nossa Senhora [15 de agosto de 2021]

[Lc 1,39-56]

UM POUCO DE HISTÓRIA

A solenidade da Assunção de Maria foi celebrada pela Igreja desde eras antigas. O nome da festa era Dormição de Maria. Isto é, Maria, depois de sua peregrinação neste mundo, ‘repousou no Senhor’. A celebração deste acontecimento está intimamente associada à ressurreição de Jesus. A Páscoa da Virgem traz no centro, não a Mãe, mas o Filho, para quem o olhar do fiel se deve voltar. Aquela que colaborou para a Encarnação do Filho de Deus deve participar da sua Ressurreição. Na festa da Assunção de Maria se revela aquilo que todo homem e mulher anseiam: ser acolhidos inteiramente no céu.

O dogma da Assunção de Maria, festejado a 15 de agosto, tem nomes diferentes, como Nossa Senhora da Boa Viagem, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora dos Prazeres etc. Foi proclamado por Pio XII, em 1950, com a Bula ‘Munificentissimus Deus’, com o seguinte texto: Definimos ser dogma divinamente revelado: que a imaculada mãe de Deus, sempre virgem Maria, cumprindo o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória eterna”.

A bíblia não fala nada a respeito do final da vida de Maria. São João mostra que ela, aos pés da cruz, foi adotada pela comunidade como mãe (Jo 19, 27). Lucas nos diz que ela estava junto ao grupo que se preparava para a vinda do Espírito Santo, em Pentecostes (At 1,13s e 2,1). Então a bíblia não conta detalhes sobre o final da vida de Maria.

Nos primeiros séculos, os cristãos tinham o costume de guardar os restos mortais dos santos, especialmente dos apóstolos e mártires. Não há, porém, nenhuma notícia sobre o corpo de Maria. Os evangelhos chamados apócrifos, isto é, aqueles relatos sobre a vida de Jesus e dos atos apostólicos que não entraram na ‘lista’ (cânon) dos livros que a Igreja considerou inspirados por Deus, contam histórias da chamada Dormição de Maria. E assim, no século VIII, a devoção popular criou uma história para contar como se deu a morte e a ressurreição de Maria.

ASSUNÇÃO DE MARIA E RESSURREIÇÃO DE JESUS

O dogma da Assunção só pode ser compreendido em relação à Ressurreição de Jesus. Maria, diferente de nós, não precisou esperar o fim dos tempos para receber um corpo glorificado. Depois de sua vida terrena ela já está junto de Deus com o corpo transformado, cheio de graça e luz.

Ainda mais. Não podemos entender a Assunção como se Maria subisse ao céu com o corpo que ela possuía aqui na terra, com ossos, pele, carne, sangue. Não é assim que a Igreja interpreta a ressurreição dos mortos. O corpo de Jesus ressuscitado e o de Maria assunta foram transformados e assumidos por Deus. Paulo deixa bem claro: “... O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,42-44a).  Por isso cremos que Maria já está glorificada junto de Deus, toda inteira. Ela antecipa o que está prometido para cada um de nós: participar do banquete da Vida que o Senhor preparou para “aqueles que o amam” (cf. 1Cor 2,9).

O cântico de Maria no evangelho de hoje diz que o Senhor “olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor... Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs os poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou”. Aí está a ação de Deus na vida de Maria, a humilde serva do Senhor, que decidiu responder sim ao chamado de Deus para participar na obra da salvação da humanidade. Sua humildade e fidelidade ao projeto do Reino de Deus lhe valeram a participação na glória de Deus, ao lado de seu Filho. Maria é aqui figura da Igreja, que deve levar adiante, não obstante as perseguições e sua pequenez, a missão de Jesus.

REFLETINDO SOBRE O EVANGELHO DE HOJE

O evangelho da liturgia de hoje traz dois relatos: a Visita de Maria a Isabel e o chamado ‘Cântico de Maria’. O primeiro mostra Maria como aquela que assumiu inteiramente o projeto do Pai na sua vida. Não mede esforços para prestar um serviço à sua parenta em necessidade. E no seu encontro com Isabel manifesta-se a sua fé profunda: “Feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido”. Todo aquele que deposita sua confiança em Deus, colaborando na realização do sonho de Deus para a humanidade, é feliz. O relato manifesta também o reconhecimento por parte de Isabel de que aquele que Maria trazia no seio é o Senhor: “Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?”. Maria é Mãe de Deus e bem-aventurada: “Bendita és tu entre as mulheres”.

O segundo relato é um hino inspirado no cântico de Ana (1Sm 2, 1-10) que canta a ação de Deus em favor da humanidade. É um hino jubiloso que proclama a derrubada dos poderosos e a elevação dos humildes pela ação de Deus em Jesus. É a oração dos pobres que confiam em Deus e no seu poder sobre o mal. Um hino que empenha o fiel nessa luta como Maria.

CONSEQUÊNCIAS PARA A VIDA CRISTÃ

Quando lemos o evangelho e vemos Maria assumindo como primeira atitude, depois de ter acolhido em seu seio o Filho de Deus, a de levar seus préstimos para a prima Isabel, somos levados a pensar em nossas atitudes. Nossa sociedade se deixa levar cada vez mais por uma atitude egoísta que leva a terceirizar a caridade e os cuidados para com aqueles que, por vezes, de dentro da nossa casa, são considerados peso e empecilho para passeios, curtição, jogos, prazeres, baladas...

Mas é preciso ressaltar, porém, que ainda nos deparamos com famílias que cuidam dos seus com afeto, carinho, respeito. Pessoas com necessidades especiais cuidadas com um zelo divinal, marial. Uma presença muito parecida com a de Maria: escuta do ancião que quer contar um caso, visita a um casal em dificuldade de relacionamento, presença nos abrigos, asilos, orfanatos e hospitais onde se encontram pessoas passando por sofrimento e dificuldades. Tudo, é claro, com os devidos cuidados sanitários e preventivos contra a covid-19.

Para além dos gestos personalizados, faz-se necessário empenho na luta por políticas públicas que atendam às necessidades dos menos favorecidos. Participação em conselhos comunitários e associações que se empenham pelos direitos do cidadão e da comunidade, sobretudo nestes últimos tempos em que houve grandes perdas de direitos adquiridos. São gestos simples que nos colocam em sintonia com o ensinamento de Jesus e com as atitudes de fidelidade de Maria, sua Mãe. A recomendação permanente do Papa Francisco é que a Igreja se coloque “em saída”, como “hospital de campanha” que não pergunta pelos motivos das feridas, mas que se preocupa em cuidar, aliviar o sofrimento.

A assunção de Maria foi o resultado do seu peregrinar à luz de Deus nesse mundo. Cada vez que ela dava novos passos para seguir a Jesus, para buscar a vontade de Deus, o Senhor assumia e transformava sua pessoa. Até que chegou o momento final. É o que está reservado para nós! Na vida de fé, cada passo novo que damos corresponde da parte de Deus a nos acolher, tomar pela mão, assumir e transformar. A nós resta-nos deixar que Deus nos tome pela mão e nos faça discípulos fiéis, dedicados, humildes e perseverantes como Maria, enquanto aguardamos a bendita esperança da ressurreição.

-----------xxxxx------------

*Encerramos, hoje, a Semana Nacional da Família. Dom Walmor, Presidente da CNBB, assim se pronuncia sobre o tema: “A família é prioridade no caminho missionário e na vida da Igreja. Lá aprendemos que é bom servir e experimentamos a alegria de poder fazer o bem ao próximo. Esses aprendizados, que são permanentes quando bem vividos no ambiente familiar, repercutem na vida em sociedade. A família tem uma nobre missão: ser o lugar onde primeiro se experimenta essa verdade cristã. A vida ganha sentido quando se torna oferta”. Uma família animada pela espiritualidade cristã traz vida, alegria e esperança para a sociedade e para o mundo.

**Nosso abraço carinhoso às pessoas consagradas nesse seu dia: deixaram tudo para viver mais radicalmente o evangelho, numa vida semelhante à do Filho de Deus: pobre, casto e obediente. Um serviço generoso ao Reino “para que todos tenham vida”. Uma vida pobre na solidariedade com os empobrecidos e ‘sobrantes’ e na busca da partilha dos bens e dos dons: mesa comum. Uma vida obediente na solidariedade com os que não são ouvidos nem levados em conta: ouvidos atentos ao Pai e aos sinais dos tempos. Uma vida celibatária consagrada em solidariedade com aqueles que sofrem por falta de amor, de afeto; com aqueles e aquelas que não podem experimentar a beleza e a alegria da colhida afetuosa e gratuita: abandonados, deserdados, abusados, explorados afetiva e sexualmente; uma contestação de uma sociedade baseada na busca do prazer ao preço da dignidade da pessoa humana. Que Maria, nossa boa Mãe, nos ajude a viver com alegria nossa consagração para que seja um “sacrifício de louvor”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

E a família, como vai?

aureliano, 26.12.20

Sagrada Família - B - 27 de dezembro 2020.jpg

Sagrada Família de Nazaré [27 de dezembro de 2020]

[Lc 2,22-40]; [2,40-52]

 PALAVRA DE DEUS: FONTE INSPIRADORA DAS FAMÍLIAS

A família não teve, desde sempre, a constituição pai, mãe e filhos, como conhecemos hoje. Os antropólogos dizem que a família se formou devido à necessidade de sobrevivência diante da escassez de alimentos e das ameaças vindas de fora.

Dessa constituição do grupo familiar para autodefesa surgiram as tribos ou clãs: grupos familiares constituídos de pai, mãe, avós, filhos, primos, tios etc. Assim viviam os israelitas. O que os diferenciava de outros clãs era a vida centrada na Palavra de Deus. Seus costumes e posturas eram orientados pelo ensinamento de Deus. Assim se entende Jesus: ele viveu dentro de um clã, e não somente com José e Maria, como pode ocorrer de imaginarmos a partir de nossa compreensão atual.

Fundante na vida de Jesus é que ele ampliou a compreensão de família. “’Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?’ E repassando com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: ‘Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe’” (Mc 3,33-35). Família, portanto, não está mais no vínculo do sangue ou de religião. Família se constitui sobre o cumprimento da vontade de Deus que é empenho para que haja “vida em abundância para todos” (Jo 10,10).

Daqui brota uma nova compreensão de família. Sabemos que as famílias, hoje, vivem outra realidade. Pais e filhos têm pouco contato. O trabalho absorve grande parte do tempo das pessoas. A mulher-mãe não fica mais em casa para cuidar dos filhos (nem o pai). De um modo geral, pela força das circunstâncias, esse ofício foi terceirizado para a babá ou a avó. Os filhos ficam quase o tempo todo na escola ou na rua. Além de outros aspectos como a droga, a violência, a internet ou a televisão que tomam o tempo e desvirtuam as relações porque transmitem outros valores, quase sempre à revelia daqueles que os pais ensinam.

E os idosos? Ou ficam sozinhos ou são deixados nos asilos. Antigamente eles ficavam em casa sob os cuidados de todos que, normalmente, estavam por ali. Além disso, de modo geral, os filhos e netos não querem o trabalho de cuidar dos idosos e doentes. Interessam a muitos a aposentadoria e a herança. Mas a gratuidade do trabalho permanece bem distante da maioria dos casos. É bom lembrar a palavra do Eclesiástico 3,12-14: “Filho, cuida de teu pai na velhice, não o desgostes em vida. Mesmo se a sua inteligência faltar, sê indulgente com ele, não o menosprezes, tu que estás em pleno vigor. Pois uma caridade feita a um pai não será esquecida, e no lugar dos teus pecados ela valerá como reparação”.

Celebrando a Sagrada Família de Nazaré, Jesus, Maria e José, vamos deixar de lado aquela ideia de “família perfeita”. O importante é termos aquele Espírito que animou a Sagrada Família, no cuidado uns para com os outros, no respeito, na doação para que nossas famílias sejam espaço em que todos possam se sentir seguros, acolhidos, respeitados, amados, educados, em condições de desenvolver suas potencialidades. Quanto mais assumirmos a Palavra de Deus como fonte inspiradora de nossas ações e a Eucaristia como alimento cotidiano, mais compreenderemos o modo de constituir família segundo os critérios do Reino de Deus.

-----------xxxxx------------

E A FAMÍLIA, COMO VAI?

É muito comum ainda ouvirmos, nos rotineiros cumprimentos, essa pergunta: “E a família, vai bem?” A resposta normalmente é positiva: “Sim. Está tudo bem, com saúde, graças a Deus”. Mesmo que a situação não esteja lá essas coisas, não faz parte do protocolo contar os problemas e dificuldades que ocorrem entre “quatro paredes” para todo aquele que pergunta. Até porque essa pergunta já supõe uma resposta positiva. E alguns fazem essa pergunta para “puxar” assunto.

Mas todos sabemos da profundidade e complexidade que envolve falar sobre família. Hoje sabe-se que família não se resume àquela constituição familiar de 30 ou 40 anos atrás: papai, mamãe, filhinhos. Todos ali, bonitinhos, arranjadinhos, obedientes... Uma estrutura patriarcal em que o macho determinava, por vezes só com o olhar, o que ele queria ou o que deveria ser feito. E mesmo que a família não tivesse esse tipo de comportamento em seu interior, havia uma harmonia interna que não era ameaçada nem influenciada por fatores externos. Havia mesmo uma prevalência “religiosa” sobre os comportamentos de pais e filhos.

Hoje o mundo mudou muito. A sociedade dita as normas econômicas, sociais, relacionais, educacionais, religiosas. Há uma espécie de ditadura de interesses econômicos que impõe aos grupos e pessoas o que eles devem fazer, o que comprar, o que usar, o que comer, como conviver, até mesmo que religião seguir ou como orar etc. E se a gente ousa entrar nos comportamentos afetivo-sexuais vigentes então, a discussão não tem fim.  Hoje precisamos entender um pouco mais a “questão de gênero”. Não adianta fugir ou evitar o assunto, pois ele está na pauta do dia: redes sociais, filmes, músicas, novelas e séries, escola e rua. Isso incide diretamente nas famílias, núcleo constituinte da sociedade. E esta quer sempre impor seus ‘valores’. Isso tudo sem falar nas constituições e organizações familiares que giram em torno de pelo menos nove modalidades, segundo alguns estudiosos desse assunto. Há autores que já falam em doze modelos de família!

Então, o que fazer? É preciso voltar à família de Nazaré. Não vejo outro caminho. Lucas, nesse belíssimo relato de hoje, desvela uma faceta da família de Nazaré que precisa ser contemplada por todos nós. Um episódio que mostra a centralidade do Pai celeste na vida da família de Nazaré. A religião vivida, praticada por José, Maria e Jesus, ajuda a compreender e a aprofundar o projeto salvífico do Pai.

Uma família que observava ‘religiosamente’ a Lei do Senhor: “Iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa” (Lc 2, 41). Não é a mera observância religiosa que salva. O ritualismo é uma realidade que mata a pessoa e a comunidade. Jesus condenou inúmeras vezes uma prática religiosa desligada da vida. Mas, quando a religião é séria, ética, próxima da Verdade, do Bem e do Belo, ajuda a pessoa e a comunidade a realizar um encontro transformador e realizador com o Criador e Pai. Os pais de Jesus procuravam fazer o que ordenava a Lei. Aliás, Mateus diz que José “era um homem justo” (Mt 1,19). Isto significa que era fiel cumpridor dos Ensinamentos de Deus, a Torah. Maria, a “cheia de graça”, a “serva do Senhor”, a “bendita entre as mulheres”, ouvinte atenta da Palavra. Essas indicações dos evangelhos nos revelam o caminho que esses pais percorriam para deixar sua marca no coração do filho Jesus. Por isso ele os segue: tendo entrado na idade adulta, doze anos para a cultura judaica, também ele sobe ao Templo.

Na viagem de volta, notam algo estranho: cadê o Menino? Ficara em Jerusalém. É interessante notar o cuidado prestimoso dos pais para com o Menino. Aquele cuidado humano. Aquela responsabilidade paterno-maternal em não desamparar o filho, não perdê-lo de vista. E a lição veio: “Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai” (Lc 2,49). Jesus quis lhes mostrar que o seu “Pai” é do céu. Seu pai terreno, jurídico não podia determinar sua vida. Ele veio para fazer a vontade do Pai do céu. Aqui aparece claramente que a missão dos pais é a de ser expressão do Pai celeste na vida dos filhos. Os pais não são donos dos filhos. Nem podem gerar filhos a seu bel-prazer. Filho é dom de Deus. Não pode ser fruto do querer egoísta dos pais. Não estou dizendo que se deva ter filho a torto e a direito. É preciso planejar a família. Mas o filho deve ser sempre acolhido como dom. Como tal, não pode brotar de mero bel-prazer dos pais. Por isso deve-se acolher com todo carinho o filho que não foi planejado, o filho que nasce doentinho ou com alguma deficiência. É sempre um dom do Pai. Nós somos todos do Pai!

Nem tudo na vida é compreendido perfeitamente por nós. A fé nos coloca dentro do Mistério de Deus. Muitos acontecimentos da vida não têm explicação. Têm significado, ou seja, Deus pode nos revelar algo a partir daqueles acontecimentos. Para isso precisamos acolhê-los no coração: “Eles não compreenderam as palavras que lhes dissera... Sua mãe, porém, conservava no coração todas estas coisas” (Lc 2,50-51). A meditação e contemplação do Mistério de Deus revelado em Jesus, Palavra do Pai, é que nos possibilita compreender o que o Pai quer de nós.

Escrevendo sobre os relatos da Infância de Jesus, exatamente no episódio do evangelho de hoje, o Papa Bento XVI faz um comentário interessante sobre a importância da vida de fé: “As palavras de Jesus não cessam jamais de serem maiores que a nossa razão; superam, sempre de novo, a nossa inteligência. A tentação de reduzir e manipular as palavras de Jesus, para fazê-las entrar na nossa medida, é compreensível; faz parte de uma reta exegese precisamente a humildade de respeitar essa grandeza, que muitas vezes nos supera com as suas exigências, e não reduzir as palavras de Jesus com a pergunta sobre aquilo de que podemos ‘crê-Lo capaz’. Ele considera-nos capazes de grandes coisas. Crer significa submeter-se a essa grandeza e pouco a pouco crescer rumo a ela. Nisso, Maria é apresentada por Lucas deliberadamente como aquela que crê de modo exemplar: “Feliz aquela que acreditou” (Lc 1,45) [A Infância de Jesus, Planeta, p. 105].

Podemos concluir que, para a família caminhar bem, (note que caminhar aqui remete às idas e vindas da Sagrada Família nas estradas da Judéia e da Galiléia) precisa alimentar-se de uma profunda experiência de Deus, de intimidade com o Pai, de busca da Sua vontade. Então poder-se-á tratar de qualquer modelo de organização familiar. O que importa, acima de tudo, é se essa família está buscando fazer a vontade do Pai; se está colocando em sua vida o Pai e seu projeto de vida como prioridade, como absoluto. Então muita coisa na sociedade também poderá melhorar. É um processo lento, de conversão cotidiana, de esperar contra toda esperança. É uma questão de fé.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“O Senhor fez em mim maravilhas”

aureliano, 14.08.20

Assunção de Nossa Senhora - 16 de agosto de 2020

Assunção de Nossa Senhora [16 de agosto de 2020]

[Lc 1,39-56]

A solenidade da Assunção de Maria foi celebrada pela Igreja desde eras antigas. O nome da festa era Dormição de Maria. Isto é, Maria, depois de sua peregrinação neste mundo, ‘repousou no Senhor’. A celebração deste acontecimento está intimamente associada à ressurreição de Jesus. A Páscoa da Virgem traz no centro, não a Mãe, mas o Filho, para quem o olhar do fiel se deve voltar. Aquela que colaborou para a Encarnação do Filho de Deus deve participar da sua Ressurreição. Na festa da Assunção de Maria se revela aquilo que todo homem e mulher anseiam: ser acolhidos inteiramente no céu.

O dogma da Assunção de Maria, festejado a 15 de agosto, tem nomes diferentes, como Nossa Senhora da Boa Viagem, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora dos Prazeres etc. Foi proclamado por Pio XII, em 1950, com a Bula ‘Munificentissimus Deus’, com o seguinte texto: Definimos ser dogma divinamente revelado: que a imaculada mãe de Deus, sempre virgem Maria, cumprindo o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória eterna”.

A bíblia não fala nada a respeito do final da vida de Maria. São João mostra que ela, aos pés da cruz, foi dada, pelo Filho que entregava a sua vida, à comunidade como mãe (Jo 19, 27). Lucas nos diz que ela estava junto ao grupo que se preparava para a vinda do Espírito Santo, em Pentecostes (At 1,13s e 2,1). Então a bíblia não conta detalhes sobre o final da vida de Maria.

Nos primeiros séculos, os cristãos tinham o costume de guardar os restos mortais dos santos, especialmente dos apóstolos e mártires. Não há, porém, nenhuma notícia sobre o corpo de Maria. Os evangelhos chamados apócrifos, isto é, aqueles relatos sobre a vida de Jesus e dos atos apostólicos que não entraram na ‘lista’ (cânon) dos livros que a Igreja considerou inspirados por Deus, contam histórias da chamada Dormição de Maria. E assim, no século VIII, a devoção popular criou uma história para contar como se deu a morte e a ressurreição de Maria.

O dogma da Assunção só pode ser compreendido em relação à Ressurreição de Jesus. Maria, diferente de nós, não precisou esperar o fim dos tempos para receber um corpo glorificado. Depois de sua vida terrena ela já está junto de Deus com o corpo transformado, cheio de graça e luz.

Ainda mais. Não podemos entender a Assunção como se Maria subisse ao céu com o corpo que ela possuía aqui na terra, com ossos, pele, carne, sangue. Não é assim que a Igreja interpreta a ressurreição dos mortos. O corpo de Jesus ressuscitado e o de Maria assunta foram transformados e assumidos por Deus. Paulo deixa bem claro: “... O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,42-44a).  Por isso cremos que Maria já está glorificada junto de Deus, toda inteira. Ela antecipa o que está prometido para cada um de nós: participar do banquete da Vida que o Senhor preparou para “aqueles que o amam” (cf. 1Cor 2,9).

O cântico de Maria no evangelho de hoje diz que o Senhor “olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor... Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs os poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou”. Aí está a ação de Deus na vida de Maria, a humilde serva do Senhor, que decidiu responder sim ao chamado de Deus para participar na obra da salvação da humanidade. Sua humildade e fidelidade ao projeto do Reino de Deus lhe valeram a participação na glória de Deus, ao lado de seu Filho. Maria é aqui figura da Igreja, que deve levar adiante, não obstante as perseguições e sua pequenez, a missão de Jesus.

O evangelho da liturgia de hoje traz dois relatos: a Visita de Maria a Isabel e o chamado ‘Cântico de Maria’. O primeiro mostra Maria como aquela que assumiu inteiramente o projeto do Pai na sua vida. Não mede esforços para prestar um serviço à sua parenta em necessidade. E no seu encontro com Isabel manifesta-se a sua fé profunda: “Feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido”. Todo aquele que deposita sua confiança em Deus, colaborando na realização do sonho de Deus para a humanidade, é feliz. O relato manifesta também o reconhecimento por parte de Isabel de que aquele que Maria trazia no seio é o Senhor: “Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?”. Maria é Mãe de Deus e bem-aventurada: “Bendita és tu entre as mulheres”.

O segundo relato é um hino inspirado no cântico de Ana (1Sm 2, 1-10) que canta a ação de Deus em favor da humanidade. É um hino jubiloso que proclama a derrubada dos poderosos e a elevação dos humildes pela ação de Deus em Jesus. É a oração dos pobres que confiam em Deus e no seu poder sobre o mal. Um hino que empenha o fiel nessa luta como Maria.

Quando lemos o evangelho e vemos Maria assumindo como primeira atitude, depois de ter acolhido em seu seio o Filho de Deus, a de levar seus préstimos para a prima Isabel, somos levados a pensar em nossas atitudes. Nossa sociedade se deixa levar cada vez mais por uma atitude egoísta que leva a terceirizar a caridade e os cuidados para com aqueles que, por vezes, de dentro da nossa casa, são considerados peso e empecilho para passeios, curtição, jogos, prazeres, baladas...

Mas é preciso ressaltar, porém, que ainda nos deparamos com famílias que cuidam dos seus com afeto, carinho, respeito e espírito cristão. Pessoas com necessidades especiais cuidadas com um zelo divinal, marial. Uma presença muito parecida com a de Maria: escuta do ancião que quer contar um caso; visita a um casal em dificuldade de relacionamento; uma palavra de conforto e uma oração com a família que vive a dor da perda de um ente querido; presença nos abrigos, asilos, orfanatos e hospitais onde se encontram pessoas passando por sofrimento, dores e dificuldades.

Para além dos gestos personalizados, faz-se necessário empenho na luta por políticas públicas que atendam às necessidades dos menos favorecidos. Participação em conselhos comunitários e associações que se empenham pelos direitos do cidadão e da comunidade, sobretudo nestes últimos tempos em que houve grandes perdas de direitos adquiridos. São gestos simples que nos colocam em sintonia com o ensinamento de Jesus e com as atitudes de fidelidade de Maria, sua Mãe. A recomendação permanente do Papa Francisco é que a Igreja se coloque “em saída”, como “hospital de campanha” que não pergunta pelo que conteceu, mas que se preocupa em cuidar, aliviar o sofrimento e curar as feridas.

A assunção de Maria foi o resultado do seu peregrinar à luz de Deus nesse mundo. Cada vez que ela dava novos passos para seguir a Jesus, para buscar a vontade de Deus, o Senhor assumia e transformava sua pessoa. Até que chegou o momento final. É o que está reservado para nós! Na vida de fé, cada passo novo que damos corresponde da parte de Deus a nos acolher, tomar pela mão, assumir e transformar. A nós resta-nos deixar que Deus nos tome pela mão e nos faça discípulos fiéis, dedicados, humildes e perseverantes como Maria, enquanto aguardamos a bendita esperança da ressurreição.

*Encerramos, hoje, a Semana Nacional da Família. Com o tema “Eu e minha família serviremos ao Senhor” a Igreja propôs uma reflexão para se fazer em casa sobre o sentido da família cristã: “Na alegria do Evangelho queremos viver plenamente a vontade do Senhor em nossas vidas, em nossas famílias, em nossas casas. Neste ano, o subsídio Hora da Família convoca todos os grupos de reflexão para vivenciarem a dimensão do serviço. O ‘Hora da Família’ se coloca a serviço da Igreja e da construção do Reino de Deus começando em nossas casas” (Dom Ricardo Hoepers). Vamos agradecer a Deus pela família que temos e pedir a Ele a graça de nos solidarizarmos e trabalharmos pelas famílias em dificuldade, particularmente nesses tempos sombrios e angustiantes da pandemia do coranavírus. Uma família animada pela espiritualidade cristã traz vida, alegria e esperança para a sociedade e para o mundo.

**Nosso abraço carinhoso às pessoas consagradas nesse seu dia: deixaram tudo para viver mais radicalmente o evangelho, numa vida semelhante à do Filho de Deus: pobre, casto e obediente. Um serviço generoso ao Reino “para que todos tenham vida”. Uma vida pobre na solidariedade com os empobrecidos e ‘sobrantes’ e na busca da partilha dos bens e dos dons: mesa comum. Uma vida obediente na solidariedade com os que não são ouvidos nem levados em conta: ouvidos atentos ao Pai e aos sinais dos tempos. Uma vida celibatária consagrada em solidariedade com aqueles e aquelas que sofrem por falta de amor, de afeto; com aqueles e aquelas que não podem experimentar a beleza e a alegria da colhida afetuosa e gratuita: abandonados, deserdados, abusados, explorados afetiva e sexualmente; uma contestação de uma sociedade baseada na busca do prazer e do lucro ao preço da dignidade da pessoa humana. Que Maria, nossa boa Mãe, nos ajude a viver com alegria nossa consagração para que seja um “sacrifício de louvor”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Os ensinamentos da Família de Nazaré

aureliano, 27.12.19

Sagrada Família - A - 29 de dezembro.jpg

Sagrada Família de Nazaré [29 de dezembro de 2019]

[Mt 2, 13-15.19-23]

É muito comum ainda, ouvirmos nos rotineiros cumprimentos, essa pergunta: “E a família, vai bem?” A resposta normalmente é positiva: “Sim. Está tudo bem, com saúde, graças a Deus”. Mesmo que a situação não esteja lá essas coisas, não faz parte do protocolo contar os problemas e dificuldades que ocorrem entre “quatro paredes” para todo aquele que pergunta. Até porque essa pergunta já supõe uma resposta afirmativa. Ou mesmo, alguns fazem essa pergunta para “puxar” assunto.

Mas todos sabemos da profundidade e mesmo da complexidade que envolve falar sobre família. Hoje sabe-se que família não se resume àquela constituição familiar de 40 ou 50 anos atrás: papai, mamãe, filhinhos. Todos ali, bonitinhos, arranjadinhos, obedientes... Uma estrutura patriarcal em que o varão determinava, por vezes só com o olhar, o que ele queria ou o que deveria ser feito. E mesmo que a família não tivesse esse tipo de comportamento em seu interior, havia uma harmonia interna que não era ameaçada nem influenciada por fatores externos. Havia mesmo uma prevalência “religiosa” sobre os comportamentos de pais e filhos.

Hoje o mundo mudou muito. A sociedade dita as normas econômicas, sociais, relacionais, educacionais, religiosas. Há uma espécie de ditadura de interesses econômicos que impõem aos grupos e pessoas o que eles devem fazer, o que comprar, o que usar, o que comer, como conviver, até mesmo que religião seguir ou como orar etc. E se a gente ousa entrar nos comportamentos afetivo-sexuais vigentes então, a discussão não tem fim.  Isso incide diretamente nas famílias, núcleo constituinte da sociedade, essa mesma que impõe seus ‘valores’. Isso tudo sem falar nas constituições e organizações familiares que andam em torno de pelo menos nove modalidades, segundo alguns estudiosos desse assunto. Há autores que já falam de doze!

----------xxxxx----------

No evangelho de hoje Mateus nos mostra um pouquinho das agruras da Família de Nazaré. São os chamados Relatos da Infância de Jesus. Enquanto Lucas descreve Jesus e suas relações em Nazaré e cidades vizinhas, Mateus faz outro percurso: a fuga para o Egito e a volta a Nazaré. Escreve para outro público.

O evangelho de Mateus foi escrito para os cristãos provenientes do judaísmo. Por isso ele relata os acontecimentos e palavras de Jesus relacionando-os com o cumprimento das Sagradas Escrituras. Pretende mostrar para a comunidade que Jesus é realmente aquele que o Senhor prometera enviar como Salvador. Ele é o cumprimento das Escrituras. Por isso, o cerne do relato de hoje, no pensamento de Mateus, é o cumprimento da palavra de Os 1,11: “Do Egito chamei o meu filho”. A perseguição de Herodes e a fuga da Sagrada Família para o Egito colocam Jesus em relação com o Povo de Deus libertado do poder do Faraó. Jesus fugiu da perseguição de Herodes; Israel escapou das mãos do Faraó. Jesus foi salvo pelos seus pais; Moisés foi criado pela sua própria mãe (cf. Êx 2,7-9). Jesus atravessou o deserto fugindo da espada de Herodes; o povo de Israel atravessou o deserto rumo à Terra Prometida. Para Mateus, Jesus é o novo Moisés que veio ensinar e libertar o seu povo.

Essa narrativa mostra Jesus entrando e assumindo plenamente o drama da história humana: a perseguição e a fuga, a disputa pelo poder, a fome e o frio, a vida de refugiado, a luta pela sobrevivência, as contradições humanas. Ele veio resgatar essa história, dar-lhe um rumo novo, mostrar um jeito novo de se viver e se relacionar.

O relato evangélico mostra também as atitudes de José e Maria. Os cuidados e as responsabilidades familiares. Não deixam o menino abandonado à própria sorte. Expõem suas vidas por ele. Inteiramente dedicados.

Não pode passar despercebida também a maldade de Herodes: não se constrange em tirar a vida brutalmente de todas as crianças da região de Belém desde que não haja ninguém que ameace seu trono (cf. Mt 2,16). Herodes representa aqui o poder político e econômico que quer se manter a todo custo. As pessoas podem ser assassinadas, podem morrer de fome, podem morrer envenenadas pelos agrotóxicos, podem morrer nas filas dos postos de saúde e hospitais, podem morrer vítimas da violência, pelo tráfico e uso de drogas, por balas perdidas, podem morrer analfabetas e sem a merenda escolar. Tudo isso não importa. O que importa é o crescimento econômico. O jogo do mercado precisa dar certo. Quem é rico não pode perder nem deixar de ganhar mais. Os pobres podem morrer. Morra o ser humano, mas viva o mercado e acumule-se dinheiro. A pessoa só vale pelo que tem. Essa é a lógica dos “Herodes”.

E a situação dos migrantes? Jesus e sua família foram migrantes. Perseguidos, tiveram que buscar refúgio em terra estrangeira. Como os migrantes têm sido tratados entre nós? Que políticas públicas e que preocupações sociais têm sido desenvolvidas para acolher aqueles que chegam ao nosso País, à nossa cidade, ao nosso bairro, à nossa comunidade? É Jesus que está aí, fugindo de “Herodes” e tentando sobreviver.

O evangelho e a festa de hoje nos ajudam a olhar mais de perto nossa vida cristã e familiar. Que sentido cristão tem tido nossa vida de família? Como tenho cuidado dos membros de minha família?  Sou capaz de me sacrificar, de me doar, de me empenhar para ver a pessoa feliz, bem cuidada, amparada?  E como lido com os “de fora”, os migrantes? Eu, ou alguém de minha família, certamente vive experiência de migrante: tentando a vida fora, em outro lugar.

---------xxxxx----------

Podemos concluir que para a família caminhar bem (note-se que caminhar aqui remete às idas e vindas da Sagrada Família nas estradas da Judéia e da Galiléia) precisa alimentar-se de uma profunda experiência de Deus, de intimidade com o Pai, de busca da Sua vontade. Então poder-se-á tratar de qualquer modelo de organização familiar. O que importa, acima de tudo, é se essa família está buscando fazer a vontade do Pai manifestada na vida de Jesus de Nazaré; se está colocando em sua vida o Pai e seu projeto de vida como prioridade, como absoluto. Então muita coisa na sociedade também poderá melhorar. É um processo lento, de conversão cotidiana, de esperar contra toda esperança. É uma questão de fé. "Nós mudamos, a Igreja muda, a história muda, quando começamos a querer mudar — não os outros, mas a nós mesmos, fazendo da nossa vida um dom" (Papa Francisco, na missa de Natal de 2019).

--------xxxxx--------

"A família é a primeira escola dos valores humanos, na qual se aprende o bom uso da liberdade. Há inclinações maturadas na infância, que impregnam o íntimo de uma pessoa e permanecem toda a vida como uma inclinação favorável a um valor ou como uma rejeição espontânea de certos comportamentos. Muitas pessoas atuam a vida inteira de uma determinada forma, porque consideram válida tal forma de agir, que assimilaram desde a infância, como que por osmose: "Fui ensinado assim"; "isto é o que me inculcaram". No âmbito familiar, pode-se aprender também a discernir, criticamente, as mensagens dos vários meios de comunicação. Muitas vezes, infelizmente, alguns programas televisivos ou algumas formas de publicidade incidem negativamente e enfraquecem valores recebidos na vida familiar" (Amoris Laetitia, 274).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“O Senhor fez em mim maravilhas”

aureliano, 16.08.19

assunção de nossa senhora.jpg

Assunção de Nossa Senhora [18 de agosto de 2019]

[Lc 1,39-56]

A solenidade da Assunção de Maria foi celebrada pela Igreja desde eras antigas. O nome da festa era Dormição de Maria. Isto é, Maria, depois de sua peregrinação neste mundo, ‘repousou no Senhor’. A celebração deste acontecimento está intimamente associada à ressurreição de Jesus. A Páscoa da Virgem traz no centro, não a Mãe, mas o Filho, para quem o olhar do fiel se deve voltar. Aquela que colaborou para a Encarnação do Filho de Deus deve participar da sua Ressurreição. Na festa da Assunção de Maria se revela aquilo que todo homem e mulher anseiam: ser acolhidos inteiramente no céu.

O dogma da Assunção de Maria, festejado a 15 de agosto, tem nomes diferentes, como Nossa Senhora da Boa Viagem, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora dos Prazeres etc. Foi proclamado por Pio XII, em 1950, com a Bula ‘Munificentissimus Deus’, com o seguinte texto: Definimos ser dogma divinamente revelado: que a imaculada mãe de Deus, sempre virgem Maria, cumprindo o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória eterna”.

A bíblia não fala nada a respeito do final da vida de Maria. São João mostra que ela, aos pés da cruz, foi adotada pela comunidade como mãe (Jo 19, 27). Lucas nos diz que ela estava junto ao grupo que se preparava para a vinda do Espírito Santo, em Pentecostes (At 1,13s e 2,1). Então a bíblia não conta detalhes sobre o final da vida de Maria.

Nos primeiros séculos, os cristãos tinham o costume de guardar os restos mortais dos santos, especialmente dos apóstolos e mártires. Não há, porém, nenhuma notícia sobre o corpo de Maria. Os evangelhos chamados apócrifos, isto é, aqueles relatos sobre a vida de Jesus e dos atos apostólicos que não entraram na ‘lista’ (cânon) dos livros que a Igreja considerou inspirados por Deus, contam histórias da chamada Dormição de Maria. E assim, no século VIII, a devoção popular criou uma história para contar como se deu a morte e a ressurreição de Maria.

O dogma da Assunção só pode ser compreendido em relação à Ressurreição de Jesus. Maria, diferente de nós, não precisou esperar o fim dos tempos para receber um corpo glorificado. Depois de sua vida terrena ela já está junto de Deus com o corpo transformado, cheio de graça e luz.

Ainda mais. Não podemos entender a Assunção como se Maria subisse ao céu com o corpo que ela possuía aqui na terra, com ossos, pele, carne, sangue. Não é assim que a Igreja interpreta a ressurreição dos mortos. O corpo de Jesus ressuscitado e o de Maria assunta foram transformados e assumidos por Deus. Paulo deixa bem claro: “... O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,42-44a).  Por isso cremos que Maria já está glorificada junto de Deus, toda inteira. Ela antecipa o que está prometido para cada um de nós: participar do banquete da Vida que o Senhor preparou para “aqueles que o amam” (cf. 1Cor 2,9).

O cântico de Maria no evangelho de hoje diz que o Senhor “olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor... Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs os poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou”. Aí está a ação de Deus na vida de Maria, a humilde serva do Senhor, que decidiu responder sim ao chamado de Deus para participar na obra da salvação da humanidade. Sua humildade e fidelidade ao projeto do Reino de Deus lhe valeram a participação na glória de Deus, ao lado de seu Filho. Maria é aqui figura da Igreja, que deve levar adiante, não obstante as perseguições e sua pequenez, a missão de Jesus.

O evangelho da liturgia de hoje traz dois relatos: a Visita de Maria a Isabel e o chamado ‘Cântico de Maria’. O primeiro mostra Maria como aquela que assumiu inteiramente o projeto do Pai na sua vida. Não mede esforços para prestar um serviço à sua parenta em necessidade. E no seu encontro com Isabel manifesta-se a sua fé profunda: “Feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido”. Todo aquele que deposita sua confiança em Deus, colaborando na realização do sonho de Deus para a humanidade, é feliz. O relato manifesta também o reconhecimento por parte de Isabel de que aquele que Maria trazia no seio é o Senhor: “Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?”. Maria é Mãe de Deus e bem-aventurada: “Bendita és tu entre as mulheres”.

O segundo relato é um hino inspirado no cântico de Ana (1Sm 2, 1-10) que canta a ação de Deus em favor da humanidade. É um hino jubiloso que proclama a derrubada dos poderosos e a elevação dos humildes pela ação de Deus em Jesus. É a oração dos pobres que confiam em Deus e no seu poder sobre o mal. Um hino que empenha o fiel nessa luta como Maria.

Quando lemos o evangelho e vemos Maria assumindo como primeira atitude, depois de ter acolhido em seu seio o Filho de Deus, a de levar seus préstimos para a prima Isabel, somos levados a pensar em nossas atitudes. Nossa sociedade se deixa levar cada vez mais por uma atitude egoísta que leva a terceirizar a caridade e os cuidados para com aqueles que, por vezes, de dentro da nossa casa, são considerados peso e empecilho para passeios, curtição, jogos, prazeres, baladas...

Mas é preciso ressaltar, porém, que ainda nos deparamos com famílias que cuidam dos seus com afeto, carinho, respeito e espírito cristão. Pessoas com necessidades especiais cuidadas com um zelo divinal, marial. Uma presença muito parecida com a de Maria: escuta do ancião que quer contar um caso; visita a um casal em dificuldade de relacionamento; presença nos abrigos, asilos, orfanatos e hospitais onde se encontram pessoas passando por sofrimento e dificuldades.

Para além dos gestos personalizados, faz-se necessário empenho na luta por políticas públicas que atendam às necessidades dos menos favorecidos. Participação em conselhos comunitários e associações que se empenham pelos direitos do cidadão e da comunidade, sobretudo nestes últimos tempos em que houve grandes perdas de direitos adquiridos. São gestos simples que nos colocam em sintonia com o ensinamento de Jesus e com as atitudes de fidelidade de Maria, sua Mãe. A recomendação permanente do Papa Francisco é que a Igreja se coloque “em saída”, como “hospital de campanha” que não pergunta pelo que provocou as feridas, mas que se preocupa em cuidar, aliviar o sofrimento.

A assunção de Maria foi o resultado do seu peregrinar à luz de Deus nesse mundo. Cada vez que ela dava novos passos para seguir a Jesus, para buscar a vontade de Deus, o Senhor assumia e transformava sua pessoa. Até que chegou o momento final. É o que está reservado para nós! Na vida de fé, cada passo novo que damos corresponde da parte de Deus a nos acolher, tomar pela mão, assumir e transformar. A nós resta-nos deixar que Deus nos tome pela mão e nos faça discípulos fiéis, dedicados, humildes e perseverantes como Maria, enquanto aguardamos a bendita esperança da ressurreição.

*Encerramos, hoje, a Semana Nacional da Família. Com o tema “A família como vai?”, busca relembrar o tema da Campanha da fraternidade de 1994. A Igreja acredita que a família é a escola em que se forma a pessoa. Decorre daí a necessidade de se cuidar dessa instituição tão necessária à sociedade e tão bombardeada nos últimos tempos. “Quando somos desafiados por ideologias que colocam em xeque a nossa compreensão de instituição familiar, nós somos convidados a dar testemunho do que representa para nós, constituir e promover uma família. Família é a base da sociedade e nós nos vemos confrontados por situações das mais diversas hoje, por exemplo, no ambiente escolar, mas não só, também no ambiente universitário e nas diversas instâncias da sociedade quando assistimos e temos ciência de um número expressivo de adolescentes que, nas nossas escolas hoje, aparecem mutilados, que se ferem, que se machucam, a automutilação; vemos um número expressivo de jovens que se suicidam; e uma multidão de órfãos, filhos de pais vivos” (Dom Jaime Spengler). Vamos agradecer a Deus pela família que temos e pedir a Ele a graça de nos solidarizarmos e trabalharmos pelas famílias em dificuldade. Uma família animada pela espiritualidade cristã traz vida, alegria e esperança para a sociedade e para o mundo.

**Nosso abraço carinhoso às pessoas consagradas nesse seu dia: deixaram tudo para viver mais radicalmente o evangelho, numa vida semelhante à do Filho de Deus: pobre, casto e obediente. Um serviço generoso ao Reino “para que todos tenham vida”. Uma vida pobre na solidariedade com os empobrecidos e ‘sobrantes’ e na busca da partilha dos bens e dos dons: mesa comum. Uma vida obediente na solidariedade com os que não são ouvidos nem levados em conta: ouvidos atentos ao Pai e aos sinais dos tempos. Uma vida celibatária consagrada em solidariedade com aqueles que sofrem por falta de amor, de afeto; com aqueles e aquelas que não podem experimentar a beleza e a alegria da colhida afetuosa e gratuita: abandonados, deserdados, abusados, explorados afetiva e sexualmente; uma contestação de uma sociedade baseada na busca do prazer e do lucro ao preço da dignidade da pessoa humana. Que Maria, nossa boa Mãe, nos ajude a viver com alegria nossa consagração para que seja um “sacrifício de louvor”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

"O Senhor fez em mim maravilhas"

aureliano, 15.08.18

Assunção de Nossa Senhora 2018.jpg

Assunção de Nossa Senhora [19 de agosto de 2018]

[Lc 1,39-56]

A solenidade da Assunção de Maria foi celebrada pela Igreja desde eras antigas. O nome da festa era Dormição de Maria. Isto é, Maria, depois de sua peregrinação neste mundo, ‘repousou no Senhor’. A celebração deste acontecimento está intimamente associada à ressurreição de Jesus. A Páscoa da Virgem traz no centro, não a Mãe, mas o Filho, para quem o olhar do fiel se deve voltar. Aquela que colaborou para a Encarnação do Filho de Deus deve participar da sua Ressurreição. Na festa da Assunção de Maria se revela aquilo que todo homem e mulher anseiam: ser acolhidos inteiramente no céu.

O dogma da Assunção de Maria, festejado a 15 de agosto, tem nomes diferentes, como Nossa Senhora da Boa Viagem, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora dos Prazeres etc. Foi proclamado por Pio XII, em 1950, com a Bula ‘Munificentissimus Deus’, com o seguinte texto: Definimos ser dogma divinamente revelado: que a imaculada mãe de Deus, sempre virgem Maria, cumprindo o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória eterna”.

A bíblia não fala nada a respeito do final da vida de Maria. São João mostra que ela, aos pés da cruz, foi adotada pela comunidade como mãe (Jo 19, 27). Lucas nos diz que ela estava junto ao grupo que se preparava para a vinda do Espírito Santo, em Pentecostes (At 1,13s e 2,1). Então a bíblia não conta detalhes sobre o final da vida de Maria.

Nos primeiros séculos, os cristãos tinham o costume de guardar os restos mortais dos santos, especialmente dos apóstolos e mártires. Não há, porém, nenhuma notícia sobre o corpo de Maria. Os evangelhos chamados apócrifos, isto é, aqueles relatos sobre a vida de Jesus e dos atos apostólicos que não entraram na ‘lista’ (cânon) dos livros que a Igreja considerou inspirados por Deus, contam histórias da chamada Dormição de Maria. E assim, no século VIII, a devoção popular criou uma história para contar como se deu a morte e a ressurreição de Maria.

O dogma da Assunção só pode ser compreendido em relação à Ressurreição de Jesus. Maria, diferente de nós, não precisou esperar o fim dos tempos para receber um corpo glorificado. Depois de sua vida terrena ela já está junto de Deus com o corpo transformado, cheio de graça e luz.

Ainda mais. Não podemos entender a Assunção como se Maria subisse ao céu com o corpo que ela possuía aqui na terra, com ossos, pele, carne, sangue. Não é assim que a Igreja interpreta a ressurreição dos mortos. O corpo de Jesus ressuscitado e o de Maria assunta foram transformados e assumidos por Deus. Paulo deixa bem claro: “... O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,42-44a).  Por isso cremos que Maria já está glorificada junto de Deus, toda inteira. Ela antecipa o que está prometido para cada um de nós: participar do banquete da Vida que o Senhor preparou para “aqueles que o amam” (cf. 1Cor 2,9).

O cântico de Maria no evangelho de hoje diz que o Senhor “olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor... Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs os poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou”. Aí está a ação de Deus na vida de Maria, a humilde serva do Senhor, que decidiu responder sim ao chamado de Deus para participar na obra da salvação da humanidade. Sua humildade e fidelidade ao projeto do Reino de Deus lhe valeram a participação na glória de Deus, ao lado de seu Filho. Maria é aqui figura da Igreja, que deve levar adiante, não obstante as perseguições e sua pequenez, a missão de Jesus.

O evangelho da liturgia de hoje traz dois relatos: a Visita de Maria a Isabel e o chamado ‘Cântico de Maria’. O primeiro mostra Maria como aquela que assumiu inteiramente o projeto do Pai na sua vida. Não mede esforços para prestar um serviço à sua parenta em necessidade. E no seu encontro com Isabel manifesta-se a sua fé profunda: “Feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido”. Todo aquele que deposita sua confiança em Deus, colaborando na realização do sonho de Deus para a humanidade, é feliz. O relato manifesta também o reconhecimento por parte de Isabel de que aquele que Maria trazia no seio é o Senhor: “Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?”. Maria é Mãe de Deus e bem-aventurada: “Bendita és tu entre as mulheres”.

O segundo relato é um hino inspirado no cântico de Ana (1Sm 2, 1-10) que canta a ação de Deus em favor da humanidade. É um hino jubiloso que proclama a derrubada dos poderosos e a elevação dos humildes pela ação de Deus em Jesus. É a oração dos pobres que confiam em Deus e no seu poder sobre o mal. Um hino que empenha o fiel nessa luta como Maria.

Quando lemos o evangelho e vemos Maria assumindo como primeira atitude, depois de ter acolhido em seu seio o Filho de Deus, a de levar seus préstimos para a prima Isabel, somos levados a pensar em nossas atitudes. Nossa sociedade se deixa levar cada vez mais por uma atitude egoísta que leva a terceirizar a caridade e os cuidados para com aqueles que, por vezes, de dentro da nossa casa, são considerados peso e empecilho para passeios, curtição, jogos, prazeres, baladas...

Mas é preciso ressaltar, porém, que ainda nos deparamos com famílias que cuidam dos seus com afeto, carinho, respeito. Pessoas com necessidades especiais cuidadas com um zelo divinal, marial. Uma presença muito parecida com a de Maria: escuta do ancião que quer contar um caso, visita a um casal em dificuldade de relacionamento, presença nos abrigos, asilos, orfanatos e hospitais onde se encontram pessoas passando por sofrimento e dificuldades.

Para além dos gestos personalizados, faz-se necessário empenho na luta por políticas públicas que atendam às necessidades dos menos favorecidos. Participação em conselhos comunitários e associações que se empenham pelos direitos do cidadão e da comunidade, sobretudo nestes últimos tempos em que houve grandes perdas de direitos adquiridos. São gestos simples que nos colocam em sintonia com o ensinamento de Jesus e com as atitudes de fidelidade de Maria, sua Mãe. A recomendação permanente do Papa Francisco é que a Igreja se coloque “em saída”, como “hospital de campanha” que não pergunta pelo que provocou as feridas, mas que se preocupa em cuidar, aliviar o sofrimento.

A assunção de Maria foi o resultado do seu peregrinar à luz de Deus nesse mundo. Cada vez que ela dava novos passos para seguir a Jesus, para buscar a vontade de Deus, o Senhor assumia e transformava sua pessoa. Até que chegou o momento final. É o que está reservado para nós! Na vida de fé, cada passo novo que damos corresponde da parte de Deus a nos acolher, tomar pela mão, assumir e transformar. A nós resta-nos deixar que Deus nos tome pela mão e nos faça discípulos fiéis, dedicados, humildes e perseverantes como Maria, enquanto aguardamos a bendita esperança da ressurreição.

*Encerramos, hoje, a Semana Nacional da Família. “O ‘Evangelho da Família’ ressalta o lado positivo da Família, a família como boa notícia, como um bem, um dom de Deus. ‘Alegria para o mundo’ acentua o fato de que ser família não é um aspecto da doutrina, um valor apenas para os cristãos ou para as pessoas religiosas. É uma riqueza para o mundo, para a humanidade toda” (Dom João Bosco Barbosa de Sousa). Seria bom agradecermos a Deus pela família que temos e pedir a Ele a graça de nos solidarizarmos e trabalharmos pelas famílias em dificuldade. Uma família animada pela espiritualidade cristã traz vida, alegria e esperança para a sociedade e para o mundo.

**Nosso abraço carinhoso às pessoas consagradas nesse seu dia: deixaram tudo para viver mais radicalmente o evangelho, numa vida semelhante à do Filho de Deus: pobre, casto e obediente. Um serviço generoso ao Reino “para que todos tenham vida”. Uma vida pobre na solidariedade com os empobrecidos e ‘sobrantes’ e na busca da partilha dos bens e dos dons: mesa comum. Uma vida obediente na solidariedade com os que não são ouvidos nem levados em conta: ouvidos atentos ao Pai e aos sinais dos tempos. Uma vida celibatária consagrada em solidariedade com aqueles que sofrem por falta de amor, de afeto; com aqueles e aquelas que não podem experimentar a beleza e a alegria da colhida afetuosa e gratuita: abandonados, deserdados, abusados, explorados afetiva e sexualmente; uma contestação de uma sociedade baseada na busca do prazer ao preço da dignidade da pessoa humana. Que Maria, nossa boa Mãe, nos ajude a viver com alegria nossa consagração para que seja um “sacrifício de louvor”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

E a família, como vai?

aureliano, 28.12.17

sagrada família.jpg

Sagrada Família de Nazaré [31 de dezembro de 2017]

[Lc 2,40-52]

 PALAVRA DE DEUS: FONTE INSPIRADORA DAS FAMÍLIAS

A família não teve, desde sempre, a constituição pai, mãe e filhos, como conhecemos hoje. Os antropólogos dizem que a família se formou devido à necessidade de sobrevivência diante da escassez de alimentos e das ameaças vindas de fora.

Dessa constituição do grupo familiar para autodefesa surgiram as tribos ou clãs: grupos familiares constituídos de pai, mãe, avós, filhos, primos, tios etc. Assim viviam os israelitas. O que os diferenciava de outros clãs era a vida centrada na Palavra de Deus. Seus costumes e posturas eram orientados pelo ensinamento de Deus. Assim se entende Jesus: ele viveu dentro de um clã, e não somente com José e Maria, como pode ocorrer de imaginarmos a partir de nossa compreensão atual.

Fundante na vida de Jesus é que ele ampliou a compreensão de família. “’Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?’ E repassando com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: ‘Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe’” (Mc 3,33-35). Família, portanto, não está mais no vínculo do sangue ou de religião. Família se constitui sobre o cumprimento da vontade de Deus que é empenho para que haja “vida em abundância para todos” (Jo 10,10).

Daqui brota uma nova compreensão de família, hoje. Sabemos que as famílias, hoje, vivem outra realidade. Pais e filhos têm pouco contato. O trabalho absorve grande parte do tempo das pessoas. A mulher-mãe não fica mais em casa para cuidar dos filhos (nem o pai). De um modo geral, pela força das circunstâncias, esse ofício foi terceirizado para a babá ou a avó. Os filhos ficam quase o tempo todo na escola ou na rua. Além de outros aspectos como a droga, a violência, a internet ou a televisão que tomam o tempo e desvirtuam as relações porque transmitem outros valores, quase sempre à revelia daqueles que os pais ensinam.

E os idosos? Ou ficam sozinhos ou são deixados nos asilos. Antigamente eles ficavam em casa sob os cuidados de todos que, normalmente, estavam por ali. Além disso, de modo geral, os filhos e netos não querem o trabalho de cuidar dos idosos e doentes. Interessam a muitos a aposentadoria e a herança. Mas a gratuidade do trabalho permanece bem distante da maioria dos casos. É bom lembrar a palavra do Eclesiástico 3,12-14: “Filho, cuida de teu pai na velhice, não o desgostes em vida. Mesmo se a sua inteligência faltar, sê indulgente com ele, não o menosprezes, tu que estás em pleno vigor. Pois uma caridade feita a um pai não será esquecida, e no lugar dos teus pecados ela valerá como reparação”.

Celebrando a Sagrada Família de Nazaré, Jesus, Maria e José, vamos deixar de lado aquela ideia de “família perfeita”. O importante é termos aquele Espírito que animou a Sagrada Família, no cuidado uns para com os outros, no respeito, na doação para que nossas famílias sejam espaço em que todos possam se sentir seguros, acolhidos, respeitados, amados, educados, em condições de desenvolver suas potencialidades. Quanto mais assumirmos a Palavra de Deus como fonte inspiradora de nossas ações e a Eucaristia como alimento cotidiano, mais compreenderemos o modo de constituir família segundo os critérios do Reino de Deus.

-------------xxxxxxxx--------------

E A FAMÍLIA, COMO VAI?

É muito comum ainda, ouvirmos nos rotineiros cumprimentos, essa pergunta: “E a família, vai bem?” A resposta normalmente é positiva: “Sim. Está tudo bem, com saúde, graças a Deus”. Mesmo que a situação não esteja lá essas coisas, não faz parte do protocolo contar os problemas e dificuldades que ocorrem entre “quatro paredes” para todo aquele que pergunta. Até porque essa pergunta já supõe uma resposta afirmativa. Ou mesmo, alguns fazem essa pergunta para “puxar” assunto.

Mas todos sabemos da profundidade e complexidade que envolve falar sobre família. Hoje sabe-se que família não se resume àquela constituição familiar de 30 ou 40 anos atrás: papai, mamãe, filhinhos. Todos ali, bonitinhos, arranjadinhos, obedientes... Uma estrutura patriarcal em que o macho determinava, por vezes só com o olhar, o que ele queria ou o que deveria ser feito. E mesmo que a família não tivesse esse tipo de comportamento em seu interior, havia uma harmonia interna que não era ameaçada nem influenciada por fatores externos. Havia mesmo uma prevalência “religiosa” sobre os comportamentos de pais e filhos.

Hoje o mundo mudou muito. A sociedade dita as normas econômicas, sociais, relacionais, educacionais, religiosas. Há uma espécie de ditadura de interesses econômicos que impõe aos grupos e pessoas o que eles devem fazer, o que comprar, o que usar, o que comer, como conviver, até mesmo que religião seguir ou como orar etc. E se a gente ousa entrar nos comportamentos afetivo-sexuais vigentes então, a discussão não tem fim.  Hoje precisamos entender um pouco mais a “questão de gênero”. Não adianta fugir ou evitar o assunto, pois ele está na pauta do dia: redes sociais, filmes, músicas e novelas, escola e rua. Isso incide diretamente nas famílias, núcleo constituinte da sociedade. E esta quer sempre impor seus ‘valores’. Isso tudo sem falar nas constituições e organizações familiares que giram em torno de pelo menos nove modalidades, segundo alguns entendidos desse assunto. Há autores que já falam de doze!

Então, o que fazer? É preciso voltar à família de Nazaré. Não vejo outro caminho. Lucas, nesse belíssimo relato de hoje, desvela uma faceta da família de Nazaré que precisa ser contemplada por todos nós. Um episódio que mostra a centralidade do Pai celeste na vida da família de Nazaré. A religião vivida, praticada por José, Maria e Jesus, ajuda a compreender e a aprofundar o projeto salvífico do Pai.

Uma família que observava ‘religiosamente’ a Lei do Senhor: “Iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa” (Lc 2, 41). Não é a mera observância religiosa que salva. O ritualismo é uma realidade que mata a pessoa e a comunidade. Jesus condenou inúmeras vezes uma prática religiosa desligada da vida. Mas, quando a religião é séria, ética, próxima da Verdade, do Bem e do Belo, ajuda a pessoa e a comunidade a realizar um encontro transformador e realizador com o Criador e Pai. Os pais de Jesus procuravam fazer o que ordenava a Lei. Aliás, Mateus diz que José “era um homem justo” (Mt 1,19). Isto significa que era fiel cumpridor dos Ensinamentos de Deus. Maria, a “cheia de graça”, a “serva do Senhor”, a “bendita entre as mulheres”, ouvinte atenta da Palavra. Essas indicações dos evangelhos nos revelam o caminho que esses pais percorriam para deixar sua marca no coração do filho Jesus. Por isso ele os segue: tendo entrado na idade adulta, doze anos para a cultura judaica, também ele sobe ao Templo.

Na viagem de volta, notam algo estranho: cadê o Menino? Ficara em Jerusalém. É interessante notar o cuidado prestimoso dos pais para com o Menino. Aquele cuidado humano. Aquela responsabilidade paterno-maternal em não desamparar o filho, não perdê-lo de vista. E a lição veio: “Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai” (Lc 2,49). Jesus quis lhes mostrar que o seu “Pai” é do céu. Seu pai terreno, jurídico não podia determinar sua vida. Ele veio para fazer a vontade do Pai do céu. Aqui aparece claramente que a missão dos pais é a de ser expressão do Pai celeste na vida dos filhos. Os pais não são donos dos filhos. Nem podem gerar filhos a seu bel-prazer. Filho é dom de Deus. Não pode ser fruto do querer egoísta dos pais. Não estou dizendo que se deva ter filho a torto e a direito. É preciso planejar a família. Mas o filho deve ser sempre acolhido como dom. Como tal, não pode brotar de mero bel-prazer dos pais. Por isso deve-se acolher com todo carinho o filho que não foi planejado, o filho que nasce doentinho ou com alguma deficiência. É sempre um dom do Pai. Nós somos todos do Pai!

Nem tudo na vida é compreendido perfeitamente por nós. A fé nos coloca dentro do Mistério de Deus. Muitos acontecimentos da vida não têm explicação. Têm significado, ou seja, Deus pode nos revelar algo a partir daqueles acontecimentos. Para isso precisamos acolhê-los no coração: “Eles não compreenderam as palavras que lhes dissera... Sua mãe, porém, conservava no coração todas estas coisas” (Lc 2,50-51). A meditação e contemplação do Mistério de Deus revelado em Jesus, Palavra do Pai, é que nos possibilita compreender o que o Pai quer de nós.

Escrevendo sobre os relatos da Infância de Jesus, exatamente no episódio do evangelho de hoje, o Papa Bento XVI faz um comentário interessante sobre a importância da vida de fé: “As palavras de Jesus não cessam jamais de serem maiores que a nossa razão; superam, sempre de novo, a nossa inteligência. A tentação de reduzir e manipular as palavras de Jesus, para fazê-las entrar na nossa medida, é compreensível; faz parte de uma reta exegese precisamente a humildade de respeitar essa grandeza, que muitas vezes nos supera com as suas exigências, e não reduzir as palavras de Jesus com a pergunta sobre aquilo de que podemos ‘crê-Lo capaz’. Ele considera-nos capazes de grandes coisas. Crer significa submeter-se a essa grandeza e pouco a pouco crescer rumo a ela. Nisso, Maria é apresentada por Lucas deliberadamente como aquela que crê de modo exemplar: “Feliz aquela que acreditou” (Lc 1,45) [A Infância de Jesus, Planeta, p. 105].

Podemos concluir que, para a família caminhar bem, (note que caminhar aqui remete às idas e vindas da Sagrada Família nas estradas da Judéia e da Galiléia) precisa alimentar-se de uma profunda experiência de Deus, de intimidade com o Pai, de busca da Sua vontade. Então poder-se-á tratar de qualquer modelo de organização familiar. O que importa, acima de tudo, é se essa família está buscando fazer a vontade do Pai; se está colocando em sua vida o Pai e seu projeto de vida como prioridade, como absoluto. Então muita coisa na sociedade também poderá melhorar. É um processo lento, de conversão cotidiana, de esperar contra toda esperança. É uma questão de fé.

"Sagrada Família de Nazaré, que nunca mais haja nas famílias episódios de violência, de fechamento e divisão; e quem tiver sido ferido ou escandalizado seja rapidamente consolado e curado" (Amoris Laetitia, 325).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“O Senhor fez em mim maravilhas”

aureliano, 18.08.17

assunção de nossa senhora.jpg

Assunção de Nossa Senhora [20 de agosto de 2017]

[Lc 1,39-56]

A solenidade da Assunção de Maria foi celebrada pela Igreja desde eras antigas. O nome da festa era Dormição de Maria. Isto é, Maria, depois de sua peregrinação neste mundo, ‘repousou no Senhor’. A celebração deste acontecimento está intimamente associada à ressurreição de Jesus. A Páscoa da Virgem traz no centro, não a Mãe, mas o Filho, para quem o olhar do fiel se deve voltar. Aquela que colaborou para a Encarnação do Filho de Deus deve participar da sua Ressurreição. Na festa da Assunção de Maria se revela aquilo que todo homem e mulher anseiam: ser acolhidos inteiramente no céu.

O dogma da Assunção de Maria, festejado a 15 de agosto, tem nomes diferentes, como Nossa Senhora da Boa Viagem, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora dos Prazeres etc. Foi proclamado por Pio XII, em 1950, com a Bula ‘Munificentissimus Deus’, com o seguinte texto: Definimos ser dogma divinamente revelado: que a imaculada mãe de Deus, sempre virgem Maria, cumprindo o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória eterna”.

A bíblia não fala nada a respeito do final da vida de Maria. São João mostra que ela, aos pés da cruz, foi adotada pela comunidade como mãe (Jo 19, 27). Lucas nos diz que ela estava junto ao grupo que se preparava para a vinda do Espírito Santo, em Pentecostes (At 1,13s e 2,1). Então a bíblia não conta detalhes sobre o final da vida de Maria.

Nos primeiros séculos, os cristãos tinham o costume de guardar os restos mortais dos santos, especialmente dos apóstolos e mártires. Não há, porém, nenhuma notícia sobre o corpo de Maria. Os evangelhos chamados apócrifos, isto é, aqueles relatos sobre a vida de Jesus e dos atos apostólicos que não entraram na ‘lista’ (cânon) dos livros que a Igreja considerou inspirados por Deus, contam histórias da chamada Dormição de Maria. E assim, no século VIII, a devoção popular criou uma história para contar como se deu a morte e a ressurreição de Maria.

O dogma da Assunção só pode ser compreendido em relação à Ressurreição de Jesus. Maria, diferente de nós, não precisou esperar o fim dos tempos para receber um corpo glorificado. Depois de sua vida terrena ela já está junto de Deus com o corpo transformado, cheio de graça e luz.

Ainda mais. Não podemos entender a Assunção como se Maria subisse ao céu com o corpo que ela possuía aqui na terra, com ossos, pele, carne, sangue. Não é assim que a Igreja interpreta a ressurreição dos mortos. O corpo de Jesus ressuscitado e o de Maria assunta foram transformados e assumidos por Deus. Paulo deixa bem claro: “... O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,42-44a).  Por isso cremos que Maria já está glorificada junto de Deus, toda inteira. Ela antecipa o que está prometido para cada um de nós: participar do banquete da Vida que o Senhor preparou para “aqueles que o amam” (cf. 1Cor 2,9).

O cântico de Maria no evangelho de hoje diz que o Senhor “olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor... Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs os poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou”. Aí está a ação de Deus na vida de Maria, a humilde serva do Senhor, que decidiu responder sim ao chamado de Deus para participar na obra da salvação da humanidade. Sua humildade e fidelidade ao projeto do Reino de Deus lhe valeram a participação na glória de Deus, ao lado de seu Filho. Maria é aqui figura da Igreja, que deve levar adiante, não obstante as perseguições e sua pequenez, a missão de Jesus.

O evangelho da liturgia de hoje traz dois relatos: a Visita de Maria a Isabel e o chamado ‘Cântico de Maria’. O primeiro mostra Maria como aquela que assumiu inteiramente o projeto do Pai na sua vida. Não mede esforços para prestar um serviço à sua parenta em necessidade. E no seu encontro com Isabel manifesta-se a sua fé profunda: “Feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido”. Todo aquele que deposita sua confiança em Deus, colaborando na realização do sonho de Deus para a humanidade, é feliz. O relato manifesta também o reconhecimento por parte de Isabel de que aquele que Maria trazia no seio é o Senhor: “Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?”. Maria é Mãe de Deus e bem-aventurada: “Bendita és tu entre as mulheres”.

O segundo relato é um hino inspirado no cântico de Ana (1Sm 2, 1-10) que canta a ação de Deus em favor da humanidade. É um hino jubiloso que proclama a derrubada dos poderosos e a elevação dos humildes pela ação Deus em Jesus. É a oração dos pobres que confiam em Deus e no seu poder sobre o mal. Um hino que empenha o fiel nessa luta como Maria.

Quando lemos o evangelho e vemos Maria assumindo como primeira atitude, depois de ter acolhido em seu seio o Filho de Deus, a de levar seus préstimos para a prima Isabel, somos levados a pensar em nossas atitudes. Nossa sociedade se deixa levar cada vez mais por uma atitude egoísta que leva a terceirizar a caridade e os cuidados para com aqueles que, por vezes, de dentro da nossa casa, são considerados peso e empecilho para passeios, curtição, jogos, prazeres, baladas...

Mas é preciso ressaltar, porém, que ainda nos deparamos com famílias que cuidam dos seus com afeto, carinho, respeito. Pessoas com necessidades especiais cuidadas com um zelo divinal, marial. Uma presença muito parecida com a de Maria: escuta do ancião que quer contar um caso, visita a um casal em dificuldade de relacionamento, presença nos abrigos, asilos e hospitais onde se encontram pessoas passando por sofrimento e dificuldades.

Para além dos gestos personalizados, faz-se necessário empenho na luta por políticas públicas que atendam às necessidades dos menos favorecidos. Participação em conselhos comunitários e associações que se empenham pelos direitos do cidadão e da comunidade. São gestos simples que nos colocam em sintonia com o ensinamento de Jesus e com as atitudes de fidelidade de Maria, sua Mãe. A recomendação permanente do Papa Francisco é que a Igreja se coloque “em saída”, como “hospital de campanha” que não pergunta pelo que provocou as feridas, mas que se preocupa em cuidar, aliviar o sofrimento.

A assunção de Maria foi o resultado do seu peregrinar à luz de Deus nesse mundo. Cada vez que ela dava novos passos para seguir a Jesus, para buscar a vontade de Deus, o Senhor assumia e transformava sua pessoa. Até que chegou o momento final. É o que está reservado para nós! Na vida de fé, cada passo novo que damos corresponde da parte de Deus a nos acolher, tomar pela mão, assumir e transformar. A nós resta-nos deixar que Deus nos tome pela mão e nos faça discípulos fiéis, dedicados, humildes e perseverantes como Maria, enquanto aguardamos a bendita esperança da ressurreição.

*Encerramos, hoje, a Semana Nacional da Família. Seria bom agradecermos a Deus pela família que temos e pedir a Ele a graça de nos solidarizarmos e trabalharmos pelas famílias em dificuldade. Uma família animada pela espiritualidade cristã traz vida, luz e esperança para a sociedade e para o mundo.

**Nosso abraço carinhoso às pessoas consagradas nesse seu dia: deixaram tudo para viver mais radicalmente o evangelho, numa vida semelhante à do Filho de Deus: pobre, casto e obediente. Um serviço generoso ao Reino “para que todos tenham vida”. Uma vida pobre na solidariedade com os empobrecidos e ‘sobrantes’ e na busca da partilha dos bens e dos dons: mesa comum. Uma vida obediente na solidariedade com os que não são ouvidos nem levados em conta: ouvidos atentos ao Pai e aos sinais dos tempos. Uma vida celibatária casta em solidariedade com aqueles que sofrem por falta de amor, de afeto; com aqueles e aquelas que não podem experimentar a beleza e a alegria da colhida afetuosa e gratuita: abandonados, deserdados, abusados, explorados afetiva e sexualmente; uma contestação de uma sociedade baseada na busca do prazer ao preço da dignidade da pessoa humana. Que Maria, nossa boa Mãe, nos ajude a viver com alegria nossa consagração para que seja um “sacrifício de louvor”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN