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aurelius

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Isabel gerou; Zacarias falou; a vizinhança se alegrou

aureliano, 24.06.24

Natividade de João Batista.jpg

Nascimento de São João Batista [24 de junho de 2024]

[Lc 1,57-66.80]

Estamos celebrando as festas juninas. Muita manifestação de alegria por todo lado. Arraiá, dança, quadrilha, comidas típicas, canjica (mugunzá), caldo de feijão, etc. Muita coisa boa, sem dúvida. Não se pode admitir, porém, em nossas comunidades eclesiais, as malditas cerveja e cachaça, pois, no contexto de celebração religiosa cristã, fazem muito mal. É maldito o dinheiro ganho às custas da venda de bebida alcoólica em nossas comunidades eclesiais. Há famílias inteiras destruídas e em sofrimento por causa de bebida alcoólica. Pedimos aos dependentes frequentar o AA, construímos e/ou ajudamos a manter Casas de Recuperação, mas os incitamos ao vício da bebida alcoólica. Não é uma incoerência absurda? Graças a Deus nossos Bispos estão tendo a coragem de decretar a proibição da comercialização e consumo de bebida alcoólica nas quermesses e celebrações de nossas comunidades.

Embora se festejem, por vezes não se sabe a origem das festividades neste mês. Foram introduzidas no Brasil pelos portugueses desde o início da colonização. E pegou com facilidade, pois eram parecidas com as festas das culturas indígenas e africanas das quais muitos elementos foram incorporados. Neste mês a Igreja católica celebra três santos muito populares: Santo Antônio (dia 13), São João Batista (dia24) e São Pedro (dia 29). É provável que a alegria e a festa estejam mais ligadas a São João pelo mesmo fato de que, por ocasião de seu nascimento, os parentes e vizinhos ficarem muito felizes e alegres. Mas qual foi o motivo de tanta alegria?

Poderíamos elencar três razões: duas explícitas, claras, evidentes: o desatar da língua de Zacarias e a fecundidade do seio estéril de Isabel. E uma, implícita, oculta, presente apenas na interrogação: “o que virá a ser este menino?”. Aquele que veio dar “testemunho da luz”, pois “a mão do Senhor estava com ele”.

A esterilidade de Isabel e a mudez de Zacarias eram sinais do que ocorria na comunidade de Israel: ausência de fervor, de entusiasmo, de vibração por Deus, de fidelidade à Aliança.

Esterilidade de Isabel: A dominação implantada pelos romanos, aliada à cooperação da liderança religiosa e política do povo, matava a esperança da comunidade. Diversos grupos brigavam entre si disputando o poder ou tentando se livrar de um poder opressor. Além disso, o serviço e o culto verdadeiro a Deus estavam cada vez mais distantes da vida da comunidade. A capacidade generativa da comunidade estava obstruída.

Mudez de Zacarias: Esse fato evoca a voz emudecida dos profetas de então: voz calada, embargada. Não havia mais quem se levantasse, em nome de Deus, para apontar caminhos. A mudez pode significar também que a oração e o culto estavam sem expressão, sem sentido, esvaziados pela incoerência dos dirigentes do culto e da nação. Não ressoava nem aos ouvidos de Deus nem aos ouvidos da assembleia celebrante.

Santo Agostinho vai dizer que “o fato de Zacarias recuperar a voz no nascimento de João tem o mesmo significado que o rasgar-se o véu do templo, quando Cristo morreu na cruz. Se João se anunciasse a si mesmo, Zacarias não abriria a boca. Solta-se a língua, porque nasce aquele que é o voz. Com efeito, quando João já anunciava o Senhor, perguntaram-lhe: Quem és tu? (Jo 1,19). E ele respondeu:  Eu sou a voz que clama no deserto (Jo 1,21). João é a voz; o Senhor, porém, no princípio era a Palavra (Jo 1,1). João é a voz no tempo. Cristo é, desde o princípio, a Palavra eterna” (Ofício das Leituras).

Lição para nós: Não parece que essa realidade se repete em nosso meio? A palavra de Deus, as celebrações, as orações parecem estar estéreis, sem fruto, sem sentido. Não se vêem os frutos, a alegria de ser cristão. Uma vida cristã apagada, desencantada, desencarnada. E a profecia está sumida de nosso meio. Estamos vivendo um marasmo espiritual. O desencanto e a decepção tomaram conta de nós. Há uma espécie de conivência com o mal: “todo mundo faz”; “não tem mais jeito”... Esse é o grande perigo da humanidade: indiferença, desânimo, desencanto. Paralelo a isso toma corpo uma onda espiritualista, uma religiosidade baseada na emoção e na sensação. Realidade sem base, sem consistência, pobre de convicção que brota da confiança no Pai e da lucidez da razão. O Papa Francisco chama isso de “Mundanismo espiritual”.

O nascimento de João Batista irrompe o novo na história: uma mulher cheia de Deus vence a esterilidade. É a possibilidade de vida nova de onde não se esperava mais nada. Um homem que desata a língua e proclama o nome do filho: “João é o seu nome”, e prorrompe em louvor a Deus: “Bendito o Deus de Israel que visitou e libertou o seu povo”. Ou seja, Zacarias proclama que Deus é misericórdia (significado do nome João) e olhou para nós. Por isso canta: “Deus visitou e libertou o seu povo. Sobre nós fará brilhar um Sol nascente, para iluminar a todos que se acham nas trevas e nas sombras da morte”. A luz voltou a brilhar. O Sol nasceu. Agora somos aquecidos, iluminados, fecundos. João Batista aponta esse Sol que ilumina e dá novo sentido à vida. Eis o motivo da grande alegria que contagiou todos os moradores das montanhas da Judéia.

A Solenidade do Nascimento de João Batista nos ajuda a pensar na nossa missão. O que nos torna mudos diante da história? Como romper nossa mudez e celebrar, proclamar e denunciar profeticamente? Será que estamos comprometidos com o poder escuso, com o dinheiro, com a politicagem, propinas, ameaças que nos calam diante das maldades e injustiças?

Refletindo acerca da esterilidade rompida de Isabel, poderíamos perguntar: como está nossa capacidade de gerar? Geramos alegria, mais vida, fraternidade, harmonia, alegria? Ou ainda a fofoca, o preconceito, a competição, o ciúme continuam matando a vida em nós e fora de nós? A capacidade generativa do seio materno está intimamente relacionada à generosidade, à gratuidade. Como está nossa a capacidade de sermos gratuitos, generosos?

João significa “Deus é misericórdia”. Ele vem e aponta a luz que é Jesus, aquele que salva (Cf. Jo 1, 7-12). Trabalhamos em nós o sentimento de misericórdia? Podemos dizer que nossa vida aponta a luz que é Jesus? Nossas atitudes correspondem a nossas palavras, às realidades que celebramos? “É preciso que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3, 30).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

A alegria que brota de uma fé operante

aureliano, 17.12.21

4º Domingo do Advento [19 de dezembro de 2021]

[Lc 1,39-45]

Depois de celebrarmos o Domingo da Alegria, a proximidade da celebração do grande Dom de Deus para humanidade, a Igreja nos chama a dar mais uma olhadinha para dentro de nós. Se no domingo passado (Lc 3,10-18), João Batista nos chamava a uma mudança de atitude diante da vida, uma postura ética responsável: “que devemos fazer?”, hoje se nos é apresentada a figura de Maria, Mãe de Jesus, como modelo de mulher de fé consequente.

O evangelho relata o episódio do encontro de duas mulheres: Maria e Isabel. Os varões não aparecem - nem José! Duas mulheres de fé profunda, convicta. Uma, a Mãe do Senhor; outra, a mãe do Precursor. Em inteira disponibilidade nas mãos do Pai. Disseram com o Filho: “Eu vim, ó Deus, para fazer vossa vontade” (Hb 10,9). Não buscam a si mesmas. Colocam toda sua vida, na juventude ou na senectude, a serviço do Senhor. – Felizes dos filhos cujas mães são cheias de fé, plenas de Deus, cheias de alegria, tomadas pelo espírito de serviço!

O relato evangélico nos faz notar que a fé acolhida e vivida traz profunda alegria. Maria, ao aproximar-se e saudar Isabel grávida, faz a criança saltar de alegria no ventre da mãe. Não o faz pela própria força, mas pela ação do Redentor que ora traz em seu seio. Aquela Força do Alto trazida por Maria em seu ventre, provoca a alegria em João e enche Isabel do Espírito Santo. Então, quando Maria diz sim ao Pai e assume participar do projeto de salvação da humanidade, leva a alegria ao coração das pessoas, pois ela mesma já recebera a Alegria de Deus: “Alegra-te, cheia de graça”.

E Isabel exclama: “Feliz és tu que creste”. É o reconhecimento de que Maria era uma mulher plena da felicidade que brota de uma fé acolhida e vivida com intensidade. E vê em Maria aquela escolhida para trazer a Bênção de que a humanidade precisava para ser feliz: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre”.

Ouçamos ainda o que diz Santo Ambrósio:

Repara como cada palavra está escolhida com perfeita precisão e propriedade: Isabel foi a primeira a escutar a voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça. Aquela escutou segundo a ordem da natureza; este exultou em virtude do mistério. Ela apreendeu a chegada de Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz da mulher; o menino sentiu a presença do Filho. Aquelas proclamam a graça de Deus, estes realizam-na interiormente, iniciando no seio de suas mães o mistério de piedade. E por um duplo milagre, as mães profetizam sob a inspiração de seus filhos.

   O filho exultou de alegria; a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe não se antecipou ao filho; foi este que, uma vez cheio do Espírito Santo, o comunicou a sua mãe. João exultou; igualmente exultou o espírito de Maria. A alegria de João comunica-se a Isabel; de Maria, porém, não se nos diz que recebesse então o Espírito, mas que o seu espírito exultou de alegria. – Aquele que é incompreensível atuava já em sua Mãe de maneira incompreensível –. Enfim, Isabel recebe o Espírito Santo depois de conceber, Maria recebera o Espírito Santo antes de conceber. Por isso, Isabel diz a Maria: “Feliz de ti, que acreditaste” (Ofício das Leituras do dia 21 de dezembro).

Outro elemento que brota de uma fé amadurecida é a capacidade de aproximação. Vejamos: logo que recebera o anúncio do anjo, “Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judéia”. O encontro com o Senhor, a acolhida generosa da missão que lhe fora confiada, a notícia de que sua parenta estava grávida em idade avançada despertaram na Jovem de Nazaré o sentimento de solidariedade, de presença, de aproximação.

Ao “por-se a caminho”, Maria nos ensina a necessidade da saída. Uma fé que não nos coloca a caminho, que não provoca em nós movimento de proximidade dos mais necessitados, é uma fé morta, no dizer da Carta de Tiago (Tg 2,14). Nossa sociedade está a caminho daquilo que Jürgen Moltmann chamava de “segregarismo social”. Ou seja, tendemos a criar espaços de ajuntamento das pessoas de acordo com sua classe e necessidades: ajuntar as crianças em situação de risco ou em outras necessidades, na creche; amontoar os idosos nos asilos; confinar os delinquentes na prisão; colocar dependentes de drogas em Casas de Recuperação. 

É claro que, em certa medida, estes espaços são necessários e extremamente úteis. Percorrendo a biografia dos Santos, sobretudo dos fundadores de ordens e congregações religiosas, vemo-los preocupados com essa situação e buscando meios de reunir essas categorias de pessoas em espaços apropriados para que tivessem qualidade de vida. O problema que coloco é a terceirização dos cuidados para se “livrar”’ da pessoa. Por exemplo: ao colocar no asilo o idoso da minha casa, me livro de um “peso” que me impedia de “gozar a vida”. Segrega enquanto se constitui em busca de acercar-se de pessoas saudáveis, sem problemas. É uma forma de eugenismo, de purificação social: é preciso “limpar” a área! Realidade triste! O mesmo se pode dizer em relação aos migrantes. Negar-lhes acolhida, deixá-los morrer à míngua ou submetê-los a trabalho escravo porque eles “incham” nosso País. Não nos esqueçamos de que somos todos caminheiros, peregrinos. Peregrinamos para o fim da vida e para o “outro lado” da História.

Bem. Se se compreende a vida a partir do imediatismo, do presentismo, do gozo em detrimento dos pobres, o batismo, que nos comunica a fé, ficará desprovido de sentido. Os gestos de Jesus e de Maria, indicativos de uma fé autêntica, não encontrarão eco em nossa vida. Por conseguinte, experimentaremos, ao invés da alegria, um vazio infernal.

E não há necessidade de se fazerem coisas extraordinárias. Basta aproximar-se do vizinho entristecido; visitar e ouvir um velhinho marcado pela solidão; dar uma palavra de conforto à mãe cujo filho está na prisão; alegrar o rosto de uma criança entristecida pela separação dos pais; fazer uma visitinha a alguém que perdeu um ente querido. Emprestar o ouvido a pessoas que não têm com quem falar de suas dores e angústias. Juntar-se às pessoas que pensam e planejam organizar a rua, o bairro, o córrego em prol das políticas públicas para toda a comunidade. Enfim, são pequenos gestos, mas que dão sentido à nossa vida porque nos colocam em sintonia com o evangelho. São expressões de fé autêntica, coerente. Foi isto que Maria fez. Por isto mereceu as palavras: “És feliz porque creste”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN