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Relendo Juracy de Moura

aureliano, 28.02.25

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A grandeza do ser humano não está no sucesso, na posse de grandes fortunas, no reconhecimento social, em ocupar as “primeiras páginas dos jornais”, em ser elogiado e temido e admirado por todos. Não. A grandeza do ser humano está na sua capacidade de compadecer-se de quem sofre, de aproximar-se da dor do outro, de consolá-lo, de estar com ele na sua dor. Ainda que não possa eliminá-la, mas pode aliviá-la. Com essa paráfrase do Papa Bento XVI na Spe Salvi, n. 38, deixo aqui um memorial de Juracy de Moura, minha saudosa mãe.

Papai, nos últimos 10 anos de vida, escreveu três livrinhos. O primeiro foi um relato histórico da família e dos filhos, uma espécie de autobiografia: “Lutas e vitórias de uma vida”, 2013. O segundo foi uma homenagem à mamãe: “Juracy de Moura: uma vida de dores e alegrias”, 2015. O terceiro foi uma narrativa sobre pessoas e temas variados que cercaram sua vida: “Minhas memórias de vida e de fé”, 2020.

No segundo livrinho ele quis homenagear a mamãe, sua esposa amada, a quem se dirigia carinhosamente como “Tetéia”. Ele quis prestar-lhe essa homenagem por ocasião dos 60 anos de casamento: bodas diamantinas, como dirá o Felipe, em feldades.blogs.sapo.pt.

Mamãe fez sua Viagem definitiva no dia 29 de fevereiro de 2024, ano passado, quando contava 84 anos e nove meses de vida.

Sua vida foi de muitas dores. Muitas mesmo! Epiléptica desde a adolescência, sofria convulsões terríveis. Quantas vezes ela entrava numa espécie de crise epiléptica, dando convulsões seguidamente! Lembro-me de uma ocasião dessas. Era menino pequeno na “roça” de Vilas Boas. Em algum momento da noite, mamãe entrou nessa crise. Papai costumava trabalhar e dormir no serviço, pois às vezes era distante uns 10 a 15km. Vida difícil naqueles idos de 1970. Sem energia nem muito menos um veículo pra chamar o papai. Saíram os irmãos mais velhos: Maria Marta e o Felipe. O Anchieta acho que já tinha ido para  o Seminário, ser padre. Ambos, Marta e Felipe, com 10 ou 11 anos. Altas horas da noite. Vão chamar o papai. José Lopes era uma espécie de porto seguro de todos nós. Estando ele presente todos se sentiam seguros. A própria mamãe. E realmente ele era um soberano na fé e na confiança, na serenidade e na sabedoria. As coisas iam se ajeitando sem estresse. Era a bênção de Deus se derramando sobre todos nós, naquelas situações complicadas da vida. E, não sei como, mamãe ficava boa sem ir ao médico que, aliás, profissional raríssimo naqueles tempos difíceis de vida campesina e pobre.

Assim vivíamos nós. Uma vida simples, pobre, desprovida de quase tudo. Mas não nos faltou a graça de Deus. Nossos pais souberam transmitir-nos, à maneira deles, a essência da fé e o senso de humanidade. Papai era um baluarte por conta de sua vida em Deus. Indo para o serviço ou para outro local, estava rezando o terço ou cantarolando um hino religioso. Sua vida consistia em trabalhar, rezar e cuidar da família.

Mamãe sempre foi muito brava, muito nervosa. Nunca manifestou aqueles cuidados e carinho maternais que normalmente a mãe tem para com os filhos. Tinha, sim, carinho pelos filhos, mas seu jeito de manifestá-lo era bem próprio. Só quem conviveu com ela bem de perto foi capaz de captar seu jeito de manifestar seu sentimento de carinho pelos filhos. E mesmo assim eram gestos raros.

Mas mamãe nos deu o essencial: um legado de vida honesta, orante, fiel, perseverante, firmeza na fé cristã e católica, simples e despojada, dedicada. Tudo isso vivido dentro de seu horizonte de compreensão da vida e da fé.

Mamãe vivia um mundo próprio. Geralmente no quarto: ou rezando ou numa atitude de quem está pensando ou entre pedaços de pano, linhas, agulha e tesoura fazendo algum enfeite em suas próprias roupas. Ela sempre teve o desejo de ser costureira, mas não conseguiu, coitada!

Viveu vida longa! Deus foi muito generoso com ela. Recebeu cuidados prestimosos na sua debilidade senil e enfermiça. Particularmente do papai enquanto vivia e dos irmãos que moravam perto: Maria Marta, a decana, Maria Coraciana e João Vianei. Patrícia, neta, foi um anjo enviado do céu.

Papai sempre dizia que gostaria de morrer depois da mamãe. Ele achava que, pelo fato de a mamãe ser muito nervosa, daria muito trabalho para ser cuidada. Ledo engano, pois a graça de Deus estava presente. Ele partiu primeiro. Mamãe ficou ainda, por quase dois anos em nosso meio. E não deu trabalho nenhum. Somente mesmo os trabalhos provenientes da enfermidade. Quase sempre foi colaborativa nos cuidados recebidos.

Morreu serenamente ao lado do filho, Felipe. Tão serenamente que o acompanhante nem percebeu: enquanto merendava ao lado dela, inesperadamente percebeu que já tinha feito a viagem definitiva. Acompanhemos seu relato:

“Volto para a noite seguinte, que seria a última. Passava das nove da noite, tive fome e comecei a comer o lanche. O lusco-fusco não me permitia observar a minha mãe, mas eu espiava assim mesmo e via que ela dormia tranquilamente. Terminado o lanche, fiz a checagem de sempre: apalpei suas mãos, seu pescoço, tentei ver sua respiração, e me pareceu que algo não estava normal. Fui ao postinho e procurei uma enfermeira: olha, acho que mamãe parou de respirar. A enfermeira chegou, checou, me pediu para pegar o estetoscópio com a colega dela, auscultou e, meio assustada, já ia saindo quando a interpelei: o que acha? Ela respondeu: é melhor chamar a médica para dar certeza, mas acho que ela se foi.

Uma hora depois a médica veio, deu o veredito, me abraçou emocionada e saiu. Um minuto depois chegaram duas enfermeiras, que me abraçaram chorosas, me disseram palavras carinhosas sobre minha mãe e me pediram para sair. Elas iam trocar a mamãe e remover seu corpinho.

Eu saí dali meio sem ter para onde ir e resolvi me sentar no sofá numa área de descanso. Ali, fui rememorando a vida de minha mãe desde a sua juventude. A natureza indócil, difícil, sendo dobrada pouco a pouco com a idade; a vida de sofrimento com a epilepsia: muitas quedas, inúmeras quedas; a vida de oração: muitas rezas; a parcimônia alimentar: comia pouco, só pedia água e nunca pediu comida; seu rico patrimônio: as sacolinhas de meias, blusas, toucas, todas dentro das gavetas de uma cômoda; as inúmeras internações: algumas por queimadura; a gratidão: mamãe sempre agradecendo e abençoando” (Ela se foi vestida de branco, feldades.blgs.sapo.pt).

Deus seja louvado pela vida da mamãe. Sofreu bastante nesta vida. Sua vida foi socialmente apagada. Até mesmo relegada, discriminada devido à sua enfermidade e a compreensão que se tinha dela, a epilepsia. Mas a fé ardente, a convicção religiosa, seu amor a Deus e a Nossa Senhora a ajudaram a levar adiante sua vida até à morte serena e em paz.

Finalizo minha palavra com os dizeres do papai sobre sua noiva que viria a ser sua companheira por quase 67 longos anos e mãe de seus filhos. Assim escreveu o Bom Velhinho, José Lopes de Lima:

“Sendo noivo da Juracy desde que ela completara 15 anos, esperava que completasse 16 anos para nos casarmos. Sabendo que ela completaria essa idade no dia 23 de maio de 1955, e com o desejo de presenteá-la, pensei: ‘Vou registrá-la como Irmã Remida da Terra Santa’, e assim o fiz. Portanto, no dia em que ela completou 16 anos, entreguei a ela o diploma da Terra Santa, o terço, a medalha e um crucifixo, consagrando, assim, aquela que, dentro de poucos dias, receberia por esposa. Destarte, completo aqui o que não havia escrito no outro livro (Lutas e vitórias de uma vida, 2013). Deus seja louvado, pois d’Ele sou e a Ele pertence toda minha família” (Juracy de Moura: uma vida de dores e alegrias, 2015, p. 57-58).

Papai relata ainda sobre os caminhos de dores e alegrias da mamãe: “Juracy sofreu muito com a terrível epilepsia. Todas as vezes que caía e escoriava o tornozelo direito, começava novamente todo aquele sofrimento, que podia durar meses. Formava-se, com a queda, uma ferida que levava tempo para sarar e era acompanhada de muita dor e queimação. Com todo esse sofrimento, ainda quis ser mãe;  e mãe de treze filhos! Ter muitos filhos foi decisão dela. Eu já conhecia o método ‘Bilings’. Certamente Deus há de recompensá-la na eternidade. Pois sabemos que, quem muito planta, espera uma boa colheita. Deus seja louvado” (Ibidem, p. 18).

Descanse em paz, mamãe! Peça a Deus e a Nossa Senhora por nós que continuamos nossa peregrinação, animando nossa esperança, rumo Reino definitivo.

Teresina, 28 de fevereiro de 2025.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

José Lopes: portas sempre abertas aos pobres

aureliano, 13.04.24

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Neste dia 13 de abril de 2024 celebramos o 2º ano de Páscoa definitiva de meu pai, José Lopes de Lima. Ele viveu uma vida configurada a Cristo crucificado e ressuscitado. Como registra seu primeiro livrinho que, aliás, lhe trouxe grande alegria: “Lutas e vitórias de uma vida”.

Ainda esses dias estava escutando meus irmãos, mais novos e mais velhos, relatando histórias do papai: estava sempre de portas abertas acolhendo visitas, andarilhos, pessoas pobres e sofredoras. Sempre com as portas da casa e do coração abertas para recebê-los, sem nenhum receio, preconceito ou constrangimento.

Nós mesmos ficávamos com medo das pessoas que chegavam, pois eram um tanto estranhas para nós. Mas ele não tinha receio. Acolhia, oferecia o que tinha para matar a fome, deixava que dormissem lá em casa. Sem receio nenhum.

Papai sempre confiou na Providência divina. Poderia afirmar que papai não era ingênuo, era confiante em Deus. Ele entregava tudo, absolutamente tudo nas mãos de Deus. Suas últimas palavras registradas por um irmão (Gabriel) foram: “Estamos todos juntos nas mãos de Deus”.

Ele nunca se preocupou com os filhos que o visitavam e partiam em viagem de retorno. Não procurava saber onde estavam, se tinham chegado bem etc. Certa vez, perguntado sobre isso, respondeu: “Meus filhos estão nas mãos de Deus. Mesmo se acontecer algum acidente ou tragédia, não me preocupo: estão nas mãos de Deus”.

Mas voltando ao assunto das “portas abertas”, lá em casa, para quem quer que chegasse, veio-me à memória, nesses dias de celebração pascal, a consideração das “portas fechadas” onde se encontravam os discípulos de Jesus. Eles estavam com as portas fechadas por medo. Jesus entra, mesmo estando as portas fechadas, e tira-lhes o medo com o dom da paz, do perdão e do Espírito Santo. Jesus ressuscitado lhes dá novo vigor, encoraja-lhes o coração, enche sua vida de alegria em meio às dores e angústias que experimentavam pela morte trágica de Jesus, o mestre em quem sempre confiaram.

Usando, pois, a metáfora da porta, estava me recordando que o papai nunca manteve nada trancado, escondido, fechado. Quarto, pastas e cadernos, lugar de guardar o dinheiro (o pouco que tinha), gavetas, guarda-roupas (celular e computador nos últimos anos de vida). Tudo lá em casa era aberto. Não havia segredo. Ainda me lembro que, quando era criança, havia uma latinha empretecida pelo tempo, sem tampa, sobre uma tábua/prateleira, acima do banco da cozinha, onde ele guardava o dinheiro (quando tinha).

A casa de meu pai tinha as portas abertas. Ele não tinha medo de nada nem de ninguém. Não era valente. Era confiante. Seu refúgio e rocha firme era o Senhor: “O Senhor é minha rocha e minha fortaleza, quem me liberta é o meu Deus. Nele me abrigo, meu rochedo, meu escudo e minha força salvadora, minha torre forte e meu refúgio” (Sl 18,3).

E a Mãe, Maria, sua companheira inseparável. Quando era criança, quantas vezes o ouvia rezar o “Lembrai-vos, ó piíssima Virgem Maria”, de São Bernardo, enquanto fazia o café da manhã, no fogão a lenha. Quando não tinha pó de café, era água doce de rapadura. Não desesperava, não desanimava. Seguia seu caminho.

O pouco que possuía “não era seu”. Como nos lembra Atos dos Apóstolos: “Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum” (At 4,32). Ficava zangado quando alguém tomava uma ferramenta emprestada e não devolvia ou devolvia quebrada. Mas não deixava de emprestar. E nunca deixou de ajudar com alimento a quem precisava.

Agora, um detalhe curioso é que as pessoas que às vezes pediam hospedagem lá em casa eram bem pobres e por vezes, com alguma deficiência mental. E o papai recebia esse povo como a qualquer outro. Sem cerimônia nem enfeite. A pessoa partilhava de nossa vida: da pobreza, das pulgas (que não faltavam), da comida (simples: abóbora, feijão, arroz, angu, ovo frito - quando tinha, pois carne era coisa raríssima nos tempos idos), das roupas de cama. Não tinha nada de especial senão aquele jeito de receber as pessoas com a porta aberta, o coração aberto e a casa aberta.

Quando dizemos que o papai fez a Páscoa definitiva significa que ele viveu uma vida pascal, como ressuscitado, de pé, com as portas abertas, sem medo de testemunhar o amor de Deus, cuidando dos pequenos e sofredores como Jesus ensinou. Não pode fazer páscoa definitiva quem não vive a vida de Jesus.

E a mamãe? Tadinha. Estava por ali. Nunca se opôs que papai realizasse o gesto samaritano. Como ela nunca foi proativa devido aos limites que lhe impunham a enfermidade, dava o apoio que lhe era possível. Quando estava de bom humor e “seu anjo da guarda combinava com o da visita”, “cerrava um papo”. Senão, ficava no quarto, quietinha.

Viver como ressuscitado é viver de portas abertas, em espírito de acolhida a pessoas que nem sempre correspondem ao nosso afeto. Viver como ressuscitado é viver a amizade social alargando nossa tenda a fim de que outros possam aí se abrigar da chuva e do sol, das intempéries da vida. É abrir o coração para doar um pouco de afeto, de atenção, de cuidados para com os pequenos e sofredores.

Papai foi um homem que nos ensinou com sua vida o desprendimento, a partilha, a solidariedade, o espírito de oração, a não discriminação, a não fazer distinção de pessoas. Qualquer um que chegasse lá em casa tinha o mesmo tratamento, a mesma acolhida.

Pe. Anchieta, o irmão mais velho, que fora adolescente para o seminário, sempre levava visitas lá em casa. As coisas que tinham na casa eram sempre as mesmas para todos. E cada um chegava e se ajeitava. Ninguém tinha privilégio. Nem os filhos. Papai estabeleceu um regime igualitário para os filhos e visitantes.

Papai foi um homem honesto. Viveu pobremente, morreu sem ter nada de próprio. O pouco que herdara de seus pais, distribuíra com os filhos. Tomou prejuízo em serviço e negócios. Mas nunca prejudicou a ninguém. E um pequeno recurso que deixou na poupança, já dissera à Maria Marta, irmã mais velha que zelava por e pela mamãe: “É para os cuidados para com a Juracy”. E assim foi feito. Deu para cuidar muito bem da mamãe durante os quase dois anos que ela sobrevivera a ele. Todas as despesas foram pagas, inclusive os funerais, com aquele dinheirinho abençoado. Graças a Deus.

E essa atitude de estar com as portas abertas aos sofredores que pediam comida ou hospedagem marcou nosso coração. Na ocasião a gente não entendia, mas hoje fazemos a leitura de como ele vivia o evangelho: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Papai tinha um coração compadecido pelos pobres.

E assim o ele nos ensinava a viver. Seus exemplos ecoam em nossa vida, em nossos corações. Um adágio latino reza assim: “Verba volant. Exempla trahunt”. (As palavras voam. Os exemplos arrastam). Papai era de poucas palavras. Ia à nossa frente. E nós tentando ir atrás dele. E ele atrás de Jesus. Uma vida pascal na terra. Plenificada na eternidade.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN