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Três anos sem o Papai. Antes de partir, ele repartiu!

aureliano, 13.04.25

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A rádio Aparecida tinha um programa ao meio-dia que se intitulava:  “Os ponteiros apontam para o infinito”. Lembrei-me da doença e morte do papai. Nesse dia 13 de abril de 2025, três anos de sua páscoa definitiva.

Mamãe já vinha bastante fragilizada com internações aqui e acolá. No final de março de 2022 ela foi hospitalizada. Depois de alguns dias, papai, sofrendo falta de ar e fadiga, foi ao médico. Resultado: internação para tratamento do pulmão. Ele foi ao leito onde a mamãe estava e lhe disse: “Pois é, Juracy, agora vamos ficar nós dois aqui no hospital. Você aqui e eu lá”. E assim se fez. Era dia 31 de março de 2022.

Daquele dia em diante o Bom Velhinho foi se fragilizando a cada dia. E a mamãe melhorou. Recebeu alta hospitalar. Um dos meus irmãos foi comunicar o feito ao papai que, a essas alturas não conseguia falar mais, pois estava sob aparelho de oxigênio. Seu gesto, o último talvez em relação à mamãe, revela sua alma: elevou as mãos postas aos céus e balançou a cabeça positivamente, como quem dissesse: “Deus seja louvado”. Sua vida apontava para o infinito de Deus.

A relação do papai com a mamãe foi sui generis: Juracy não era somente sua esposa; era meio filha. Como dizia um dos meus irmãos: como filha mais velha. Tinha para com ela cuidados paternais. E ela via no José Lopes um pai, um refúgio, uma âncora. Quando papai passava uns dias fora, mamãe lastimava, chorava de saudades. Papai chegava e a mulher se alegrava, abraçava-lhe as ancas e beijando-lhe o peito (pois era bem baixinha) dando risadas de alegria pelo retorno do amado que lhe dava segurança: “Ai, meu Deus! Que coisa boa! Ele voltou!” sussurrava.

Bem. Papai continuou hospitalizado. E a comunicação com ele foi sempre mais limitada, mesmo porque fora para o CTI. As visitas eram comedidas e sua saúde não lhe dava mais condições de reagir. Mesmo assim, Pe. Anchieta, o filho mais velho, lhe deu a Unção dos Enfermos alguns dias antes de sua morte. E ele já não abria mais os olhos. Somente acenava levemente com a cabeça.

Era meio-dia do dia 13 de abril de 2022. Uma quarta-feira santa! Os ponteiros apontavam para o infinito. Papai partiu. Mas antes de ir ele repartiu. Repartiu sua vida, seus dons, suas dores e alegrias, suas lutas e vitórias. Transmitiu a fé que recebera da Igreja e de seus pais. Deixou-nos a vida marcada pela sua história, pelas suas palavras, pelas suas atitudes de amor e carinho pela mamãe, por nós, seus filhos, pelos pobres. Repartiu com os filhos, ainda em vida e em plena consciência, o terreninho que recebera como herança de seus pais. Morreu sem ter nada de próprio. Tinha consciência de que tudo o que temos não nos pertence: tudo é de Deus.

Um homem marcado por uma fé madura. Nunca me lembro do papai fazendo ou cumprindo promessas religiosas. Não tinha superstições. Buscava fazer a vontade de Deus. E pronto. Se a tribulação ou a dor o visitava, rezava e se entregava nas mãos do Pai. Arriscava o latim: “Ad majorem Dei Gloriam”. Tudo para a maior glória de Deus.

Nunca ouvi meu pai murmurando contra a sorte, contra a vida. Tudo aceitava como vindo das mãos de Deus, como vontade de Deus, como graça de Deus.

Certa feita, por ocasião da ordenação presbiteral do terceiro filho padre, alguém lhe perguntou: “O senhor deve ser um homem muito feliz, não é, Seu Zé? Três filhos padres!” Ao que respondeu: “Pra mim tudo é graça de Deus. Mas minha alegria mesmo é ver meus filhos unidos uns com os outros”. E emendou: “Tá tolo sô! Deve ser doloroso demais para um pai ver um filho entrando pela porta da sala e outro saindo pela porta da cozinha para não se encontrarem, porque são inimigos!”

Dinheiro? Apego nenhum. O pouco que tinha ficava, antigamente numa latinha preta sobre uma tábua-prateleira, na pobre cozinha da casa. Depois, quando pode comprar uma mesa, guardava o dinheiro na gaveta. Ultimamente ficada na gaveta da cômoda. Qualquer um podia acessar. Colaborava com várias entidades religiosas e pessoas necessitadas com seu parco recurso que se multiplicava qual farinha na lata da viúva de Sarepta (cf. 1Rs 17,16). Deixou ainda um pequeno recurso no banco para cuidar da mamãe, conforme segredara à filha mais velha, sua fiel escudeira.

Papai buscou em Deus a razão de seu existir. Viveu feliz e morreu em paz. E pode dizer com o velho Simeão, como, aliás, gostava de repetir: “Agora, Senhor, podeis deixar vosso servo partir em paz” (Lc 2,29). Sua experiência de fé, sua mística preencheram o vazio de seu coração. Aí encontrou o sentido de sua vida: “Estamos todos juntos nas mãos de Deus”, exclamou antes de morrer.

Descanse em paz, papai! Peça a Deus por nós! Precisamos firmar nossa esperança em meio às tempestades e escuridões desta vida! Peça à Mãe de Jesus, de quem o senhor fora servo fiel e devotado, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

José Lopes: portas sempre abertas aos pobres

aureliano, 13.04.24

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Neste dia 13 de abril de 2024 celebramos o 2º ano de Páscoa definitiva de meu pai, José Lopes de Lima. Ele viveu uma vida configurada a Cristo crucificado e ressuscitado. Como registra seu primeiro livrinho que, aliás, lhe trouxe grande alegria: “Lutas e vitórias de uma vida”.

Ainda esses dias estava escutando meus irmãos, mais novos e mais velhos, relatando histórias do papai: estava sempre de portas abertas acolhendo visitas, andarilhos, pessoas pobres e sofredoras. Sempre com as portas da casa e do coração abertas para recebê-los, sem nenhum receio, preconceito ou constrangimento.

Nós mesmos ficávamos com medo das pessoas que chegavam, pois eram um tanto estranhas para nós. Mas ele não tinha receio. Acolhia, oferecia o que tinha para matar a fome, deixava que dormissem lá em casa. Sem receio nenhum.

Papai sempre confiou na Providência divina. Poderia afirmar que papai não era ingênuo, era confiante em Deus. Ele entregava tudo, absolutamente tudo nas mãos de Deus. Suas últimas palavras registradas por um irmão (Gabriel) foram: “Estamos todos juntos nas mãos de Deus”.

Ele nunca se preocupou com os filhos que o visitavam e partiam em viagem de retorno. Não procurava saber onde estavam, se tinham chegado bem etc. Certa vez, perguntado sobre isso, respondeu: “Meus filhos estão nas mãos de Deus. Mesmo se acontecer algum acidente ou tragédia, não me preocupo: estão nas mãos de Deus”.

Mas voltando ao assunto das “portas abertas”, lá em casa, para quem quer que chegasse, veio-me à memória, nesses dias de celebração pascal, a consideração das “portas fechadas” onde se encontravam os discípulos de Jesus. Eles estavam com as portas fechadas por medo. Jesus entra, mesmo estando as portas fechadas, e tira-lhes o medo com o dom da paz, do perdão e do Espírito Santo. Jesus ressuscitado lhes dá novo vigor, encoraja-lhes o coração, enche sua vida de alegria em meio às dores e angústias que experimentavam pela morte trágica de Jesus, o mestre em quem sempre confiaram.

Usando, pois, a metáfora da porta, estava me recordando que o papai nunca manteve nada trancado, escondido, fechado. Quarto, pastas e cadernos, lugar de guardar o dinheiro (o pouco que tinha), gavetas, guarda-roupas (celular e computador nos últimos anos de vida). Tudo lá em casa era aberto. Não havia segredo. Ainda me lembro que, quando era criança, havia uma latinha empretecida pelo tempo, sem tampa, sobre uma tábua/prateleira, acima do banco da cozinha, onde ele guardava o dinheiro (quando tinha).

A casa de meu pai tinha as portas abertas. Ele não tinha medo de nada nem de ninguém. Não era valente. Era confiante. Seu refúgio e rocha firme era o Senhor: “O Senhor é minha rocha e minha fortaleza, quem me liberta é o meu Deus. Nele me abrigo, meu rochedo, meu escudo e minha força salvadora, minha torre forte e meu refúgio” (Sl 18,3).

E a Mãe, Maria, sua companheira inseparável. Quando era criança, quantas vezes o ouvia rezar o “Lembrai-vos, ó piíssima Virgem Maria”, de São Bernardo, enquanto fazia o café da manhã, no fogão a lenha. Quando não tinha pó de café, era água doce de rapadura. Não desesperava, não desanimava. Seguia seu caminho.

O pouco que possuía “não era seu”. Como nos lembra Atos dos Apóstolos: “Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum” (At 4,32). Ficava zangado quando alguém tomava uma ferramenta emprestada e não devolvia ou devolvia quebrada. Mas não deixava de emprestar. E nunca deixou de ajudar com alimento a quem precisava.

Agora, um detalhe curioso é que as pessoas que às vezes pediam hospedagem lá em casa eram bem pobres e por vezes, com alguma deficiência mental. E o papai recebia esse povo como a qualquer outro. Sem cerimônia nem enfeite. A pessoa partilhava de nossa vida: da pobreza, das pulgas (que não faltavam), da comida (simples: abóbora, feijão, arroz, angu, ovo frito - quando tinha, pois carne era coisa raríssima nos tempos idos), das roupas de cama. Não tinha nada de especial senão aquele jeito de receber as pessoas com a porta aberta, o coração aberto e a casa aberta.

Quando dizemos que o papai fez a Páscoa definitiva significa que ele viveu uma vida pascal, como ressuscitado, de pé, com as portas abertas, sem medo de testemunhar o amor de Deus, cuidando dos pequenos e sofredores como Jesus ensinou. Não pode fazer páscoa definitiva quem não vive a vida de Jesus.

E a mamãe? Tadinha. Estava por ali. Nunca se opôs que papai realizasse o gesto samaritano. Como ela nunca foi proativa devido aos limites que lhe impunham a enfermidade, dava o apoio que lhe era possível. Quando estava de bom humor e “seu anjo da guarda combinava com o da visita”, “cerrava um papo”. Senão, ficava no quarto, quietinha.

Viver como ressuscitado é viver de portas abertas, em espírito de acolhida a pessoas que nem sempre correspondem ao nosso afeto. Viver como ressuscitado é viver a amizade social alargando nossa tenda a fim de que outros possam aí se abrigar da chuva e do sol, das intempéries da vida. É abrir o coração para doar um pouco de afeto, de atenção, de cuidados para com os pequenos e sofredores.

Papai foi um homem que nos ensinou com sua vida o desprendimento, a partilha, a solidariedade, o espírito de oração, a não discriminação, a não fazer distinção de pessoas. Qualquer um que chegasse lá em casa tinha o mesmo tratamento, a mesma acolhida.

Pe. Anchieta, o irmão mais velho, que fora adolescente para o seminário, sempre levava visitas lá em casa. As coisas que tinham na casa eram sempre as mesmas para todos. E cada um chegava e se ajeitava. Ninguém tinha privilégio. Nem os filhos. Papai estabeleceu um regime igualitário para os filhos e visitantes.

Papai foi um homem honesto. Viveu pobremente, morreu sem ter nada de próprio. O pouco que herdara de seus pais, distribuíra com os filhos. Tomou prejuízo em serviço e negócios. Mas nunca prejudicou a ninguém. E um pequeno recurso que deixou na poupança, já dissera à Maria Marta, irmã mais velha que zelava por e pela mamãe: “É para os cuidados para com a Juracy”. E assim foi feito. Deu para cuidar muito bem da mamãe durante os quase dois anos que ela sobrevivera a ele. Todas as despesas foram pagas, inclusive os funerais, com aquele dinheirinho abençoado. Graças a Deus.

E essa atitude de estar com as portas abertas aos sofredores que pediam comida ou hospedagem marcou nosso coração. Na ocasião a gente não entendia, mas hoje fazemos a leitura de como ele vivia o evangelho: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Papai tinha um coração compadecido pelos pobres.

E assim o ele nos ensinava a viver. Seus exemplos ecoam em nossa vida, em nossos corações. Um adágio latino reza assim: “Verba volant. Exempla trahunt”. (As palavras voam. Os exemplos arrastam). Papai era de poucas palavras. Ia à nossa frente. E nós tentando ir atrás dele. E ele atrás de Jesus. Uma vida pascal na terra. Plenificada na eternidade.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Juracy de Moura: uma interpretação

aureliano, 29.03.24

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Juracy: 30º dia de páscoa definitiva: 29/03/24 - Sexta-feira Santa

Mamãe foi uma figura excêntrica. Muitas vezes falava e agia por códigos. Precisava ser interpretada por alguém que a conhecia melhor. Acho que agora podemos compreender um pouco mais dessa mulher que passou pelo mundo de uma forma bem diferente do comum dos mortais.

Jovem como as outras, aprendeu as primeiras letras com aquele que seria seu esposo prestimoso mais tarde. Numa escola municipal rural do município de Guiricema, ela e alguns irmãos frequentavam a escolinha rural que tinha como mestre José Lopes de Lima. Juracy, provavelmente do grupo de alunos mais velhos, com 14 anos, foi aprendendo com o rigoroso José, não as primeiras letras, pois estas já aprendera em casa, mas a ler e a escrever e também  a imprescindível  aritmética.

Com o passar dos tempos, a aluna foi se apaixonando pelo professor. E começou a amá-lo. E mandava bilhetes. E insistia. Até que o professor, homem reservado e discreto, resolveu ver de perto o que acontecia no coração da Juracy. Procurou o Sr. Aurélio de Moura, piedoso pai da Juracy, e lha pediu em casamento.

Sabia o José Lopes muito bem que se casaria com uma moça epiléptica. Estava consciente de que deveria ser para ela uma espécie de pai. E o foi realmente.

Mamãe tinha certa dependência do papai. Ele é quem resolvia as coisas. Ele é quem tinha a palavra final, que trabalhava fora, que comprava, que vendia, que educava os filhos, que fazia o chá para curar as enfermidades, que levava o filho ou a esposa ao farmacêutico ou ao médico. Ele é quem quase sempre cozinhava e lavava as roupas. Era a pedra angular da casa. Sem ele era tudo muito difícil.

Mamãe estava por ali. Às vezes limpava a casa. Às vezes fazia comida e café. Às vezes dava um corretivo em algum filho travesso ou que “mexia com seus nervos”.

Mas a mamãe sempre rezava. Sua companhia era a oração. Alegrava-lhe o coração quando era convidada para ir à igreja, para a oração, sobretudo a oração do terço. Rezava pelas famílias, rezava pela Igreja, rezava pelos filhos, pelas “almas do purgatório”, pelos doentes, pela paz do mundo e conversão dos pecadores.

Mas o apelo principal destas minhas considerações é uma cartinha, talvez a única de que temos registro, que mamãe escrevera a um de seus filhos, o Eduardo. Nesta carta se esconde e se desvela o coração da mamãe. Alguns filhos estão surpresos, até duvidando se foi deveras ela mesma a autora. Uma das irmãs, a Coraciana, interveio ao descrente: “Você não conhece a letra dela? Até pelos dizeres dá pra saber”.

A seguir podemos ler a cartinha original. Em seguida faço algumas interpretações numa tentativa de ler a alma da mamãe.

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Alguns elementos que, a meu juízo, desvelam o coração da mamãe:

  1. Sentimentos: Com as palavras ‘querido filho’, ‘amor’ e ‘saudades’, mamãe manifesta seu afeto, raramente expresso no cotidiano para com os filhos. Revela um coração marcado pela dor de ver o filho distante e o desejo de que ele volte. Sente falta de sua presença. Sentimento maternal dificilmente manifestado no cotidiano da vida, mas guardado no coração: não o esquece e o ama.
  2. Espiritualidade: Como a vida espiritual e religiosa ocupava seu coração! Atribui a Deus e a Nossa Senhora sua saúde, a "cada dia melhor". Lembra-se do filho principalmente nos momentos orantes. Deseja um futuro bom ao filho, não somente para esta vida, mas também para a eternidade. Salvação do corpo e da alma. Desejo que o filho viva em Deus. Sentimento de pertença a Deus.
  3. Ideias conexas: Religa seu desejo de escrever motivado pela correspondência que já havia recebido. Conecta a cartinha com a anterior que lhe moveu na alma o desejo de escrever. Parece mostrar que suas ideias não são desconexas como sempre acreditamos. Ela tinha um modo próprio de fazer as ligações dos fatos. Certamente seu sofrimento aumentava quando não conseguia nos fazer entender sua lógica de compreensão e expressão das ideias e sentimentos. Muitas vezes se refugiava sozinha no quarto, possivelmente numa solidão sofrida.
  4. Sentido de família: Expresso do início ao fim da cartinha. Quando manifesta seu amor de mãe, a invocação de filho, a referência ao marido: “ajudante com seu pai”. Anseio para que o filho esteja por perto. Zezé, ‘o pedreiro’, como ela sempre dizia, manifestando um certo orgulho pela profissão do marido, provedor da família.
  5. Trabalho: Mamãe não pede dinheiro. Aliás nunca pediu a ninguém nem administrou. Papai era seu provedor. Qualquer necessidade era com o ‘Zé Lopes’. Ela menciona o trabalho e as ocupações do marido. Papai tem muito serviço e o filho poderia trabalhar com ele. E, com isso, ficaria perto dela também.

Até aqui uma breve e rasa consideração sobre a mamãe a partir dessa cartinha que concentra muito do que vivemos com ela ao longo de seus quase 85 anos.

Coraciana e Izabel, filhas mais jovens, testemunharam muitas vezes mamãe debruçada na janela da casa - aquelas janelas e portais antigos de madeira - olhando para o horizonte que lhe era bem pequeno, mas imenso no coração, derramando lágrimas nos olhos. Perguntada sobre o porquê das lágrimas, sussurrava: “saudade dos filhos que moram longe, uai!”

Mamãe era de poucas palavras. Gostava de alguns ditados: “Em boca fechada, não entra mosquito”.  “Poucas palavras e bem acertadas”. “Bater na cangalha para o burro entender”. E ela nos ia ensinando de um modo diferente. Seu método educativo era diferente, não porém contraditório ao método do papai. Era complementar. Ela nos ensinava muito pelos gestos e atitudes.

Maria Marta, filha mais velha, que a acompanhou a vida inteira, particularmente nos seus últimos anos e dias de vida, dizia: “Mamãe sempre nos educava e ensinava. Pedia pra fazer os serviços de casa e vistoriava. Se não estivesse de acordo, pedia pra refazer. Ensinou-nos a rezar e a ser devotos de Nossa Senhora. Ela repreendia e corrigia os filhos que às vezes xingavam e falavam palavrões”.

Ensinava o respeito ao papai. “Vou contar ao seu pai quando ele chegar”. E relatava as estripulias dos pequenos e grandes.

Um ensinamento que não sai mesmo do nosso coração era seu espírito de oração. Mamãe foi uma mulher orante. Essa marca ela deixou em nosso coração. Sobretudo a devoção a Nossa Senhora. Na véspera de sua partida pegou a mão da Maria Marta, beijou, olhou para ela com um olhar morteiro e disse: “Nossa Senhora das Graças, rogai por nós”. Depois rezou duas Ave Marias. Não prosseguiu porque a filha lhe disse que já era suficiente, devido à sua dificuldade em rezar com respiração curta.

Sua vida foi transfigurante. De uma mulher brava, por vezes quase violenta, intempestiva, a uma mulher doce, serena, suave, que se deixou cuidar sem resistência. Deus transforma a pessoa. A graça de Deus não falta a quem nEle confia. Papai sempre nos ensinou esse tipo de fé confiante.

Uma mulher acometida por uma enfermidade (epilepsia) que a deixava angustiada, depressiva, com o sentimento de abandono e descaso. Sua vida relida à luz da força da Graça de Deus que atuou no seu coração mostra uma mulher que pronunciava palavras de bênção para todas as pessoas: “Deus abençoe!”. “Vai com Deus e Nossa Senhora!”. “Muito agradecida pela sua caridade!”. “Deus lhe pague!”. E por aí se vão as palavras da Juracy de Moura, sobretudo nos anos finais de sua vida.

Mamãe deixou-nos esse legado belíssimo de driblar os infortúnios e desconfortos da vida enferma com uma confiança inquebrantável no Coração de Jesus e em Nossa Senhora. A oração constituiu seu porto seguro nas horas de dor, de angústia e de incerteza.

Nos instantes finais de sua partida para a eternidade, João Vianei, um dos filhos, rezou: “Vai, mamãe, vai em paz, encontrar o ‘Cabeça Branca’ (assim costumava se referir ao papai) na eternidade. Vamos ficar órfãos de pai e mãe, mas agradeço infinitamente ao Bom Deus ter concedido ser concebido no seio dessa santa mulher, nem sempre compreendida. Que Nossa Senhora interceda junto a seu Filho pela nossa mãe neste momento difícil que se encontra e dê forças para todos nós neste momento de dor e separação. Em nome do Pai e do Filho e Espírito Santo. Amém”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Teresina, 29 de março de 2024

*Foto: Maria Marta, filha mais velha, confeccionando o vestido branco que mamãe havia pedido em forma de código e que minha irmã interpretou ser o vestido com que ela gostaria de ser sepultada. Na noite em que mamãe agonizava no hospital, Maria Marta correu pra máquina e pedia: "Mãe, espere eu terminar o vestido branco que a senhora pediu". Vestido pronto e vida encerrada para este mundo: mamãe foi transfigurada pelo Pai e transportada nos ombros do Bom Pastor para a felicidade que não conhece ocaso. (Ao lado: eu e a mamãe em 21/09/2022).

JURACY DE MOURA: uma vida de dores e alegrias

aureliano, 01.03.24

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“Hoje, 25 de setembro de 2013, começo mais uma etapa da minha história de vida. Quero, com a graça de Deus, escrever algo sobre a rainha do meu doce lar. Quero contar a bonita e longa história de uma humilde princesa que se encantou por um jovem bem mais velho do que ela e, acima de tudo, nem boa aparência tinha. E tomada por esse encantamento, ela sempre dizia às suas amigas: ‘Se o Zezé for estudar para padre, eu também vou!’”

Com essa introdução do livrinho que o papai escreveu em homenagem à mamãe, por ocasião das Bodas de Diamante (60 anos) de vida matrimonial, deixo a seguir algumas impressões sobre essa mulher, minha mãe, que acaba de terminar sua peregrinação terrestre: voltou para o Pai, neste dia 29 de fevereiro de 2024, às 21h40.

Quando eu era adolescente/jovem sempre tinha no pensamento que a mamãe não fosse chegar aos 50 anos. Isso tinha um motivo: a enfermidade da epilepsia que lhe provocava constantes e terríveis convulsões. Caía na estrada, caía na chapa quente do fogão a lenha, escorregava a mão dentro da frigideira de gordura quente, caía escada abaixo, sobre a mesa, sobre banco, cadeira, pelas estradas empoeiradas ou empedradas etc. O fato é que, muitas e muitas vezes, a mamãe estava se recuperando de algum hematoma ou ferida provocados pelas contínuas e terríveis quedas provocadas pelas convulsões epilépticas. Além de outras reações dolorosas por ocasião de gravidezes. E não foram poucas: 13 filhos.

Marca terrível foi a queimadura no corpo. Foi ao banheiro. Passou mal, lamparina na mão. Fogo pelo corpo. Papai se acorda assustado com aquele clarão. Corre, e com o cobertor, abafa o fogo. Um milagre: apagou o fogo que queimava a mamãe, com outro material inflamável. Mas deu certo. Hospital. Queimadura de terceiro grau. 40 dias hospitalizada. Enxerto na região da barriga para restaurar a epiderme. Mas as cicatrizes da queimadura no pescoço levou-as consigo para o túmulo!

Mamãe era uma mulher brava, nervosa; às vezes alegre, às vezes triste. Seu humor dependia não sei de quê. Quando estava alegrinha, bem humorada era uma beleza. Fazia até quitutes pra gente. Mas quando estava nervosa, só o papai acalmava seu ânimo exaltado. E dava um sorriso maroto no quarto, meio estirada na cama. Quarto e cama, seus companheiros inseparáveis por quase toda a vida. Gostava de ficar no quarto. Sempre. Quando estava brava, fechava a porta com violência. Afora seus arroubos de ira, a porta, ou ficava fechada ou entreaberta.

Mamãe viveu certa angústia e tristeza causadas pela epilepsia. Às vezes manifestava o desejo de morrer. Sabedora da morte de alguém, costumava dizer, referindo-se a si mesma: “Não sei por que essa mulher não morre! Não sei o que está fazendo nesse mundo. Mulher boba. Não serve pra nada”. Eram suas expressões em alguns momentos de dor da alma que só Deus sabe.

Afora essas questões provenientes de sua enfermidade que o papai soube acolher com divina sabedoria, serenidade e paciência, mamãe foi uma mulher cheia de Deus. Nunca deixou de rezar o terço. Quase sempre, mais de um. E não rezava distraída, não. Colocava-se no quarto, em pé junto à cômoda ou à mesa, olhar fixo no quadro ou imagem de Nossa Senhora, rezava com fervor. Enquanto dependeu dela, não perdia a missa. Nunca vi a mamãe batendo papo dentro da igreja. Sempre em oração. Igreja é lugar de oração.

Nestes últimos tempos de sua enfermidade, não se cansava de abençoar os filhos. O filho acompanhante pedia: “abençoa seus filhos!” E ela sempre abençoava com gosto. Quando alguém se despedia, ela abençoava e sempre dizia: “Vai com Deus e Nossa Senhora”.

Mamãe deixa para nós, seus filhos e filhas, um legado de resistência na dor e no sofrimento, de fidelidade ao Senhor e à família, de espírito de oração, de firmeza na fé cristã e católica, de cuidados para conosco dentro dos seus limites.

Agradecemos ao Pai do céu pela vida da mamãe. Iria celebrar 85 anos no próximo dia 23 de maio. Não nos reconhecia mais há anos. Fazia um esforço enorme para tentar adivinhar o nome, quem era etc. Mas, na maioria das vezes não conseguia.

Um belo dia eu comecei a perguntar a ela quem era eu, qual o meu nome etc. Papai estava por perto e me deu a reprimenda: “Não faça isso com sua mãe, não, coitada! Ela sofre por não conseguir se lembrar”. Nunca mais me esqueci do corretivo. E não me havia dado conta de que isso lhe causava sofrimento.

Vá em paz, mamãe! A senhora cumpriu sua missão. Enquanto continuamos nossa peregrinação, vamos nos esforçar para reproduzir em nossa vida um pouco das suas inúmeras virtudes. A senhora sofreu muito. Não se queixava. Não se maldizia. Encontrava força na oração, na comunhão com Deus e Nossa Senhora. "Vá com Deus e Nossa Senhora", como a senhora sempre dizia para nós.

Reproduzo a seguir as lindas palavras do Dom Pedro Cipollini, à época bispo de Amparo/SP, quando teve a oportunidade de ler o livrinho que o papai escreveu em homenagem à mamãe. Foi o Felipe, meu irmão, que o presenteou, e ele o apreciou assim:

Prezado Professor Felipe,

Recebi o livro sobre sua mãe

Da. Juracy de Moura. História comovente e bonita.

A foto de sua mãe na capa do livro diz tudo:

ela olha o tempo com o olhar da eternidade como

a dizer que Deus escolhe o que é fraco neste mundo

para confundir os fortes...grande Juracy, grande aos

olhos de Deus. Ela nem sabe e nem quer saber de

todas estas coisas que se dizem dela...como uma fonte

de água ela está ali, jorrando e saciando a sede sem saber

que o faz.

Obrigado

Meu abraço fraterno

D. Pedro

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Teresina, 29 de fevereiro de 2024.

Um ano depois: ressignificando memórias do papai

aureliano, 13.04.23

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Há exatamente um ano papai partia para a eternidade: 13/04/2022. Estava relativamente bem, sofrendo falta de ar com certa frequência. Internado, foi definhando progressivamente. Embora consciente, foi perdendo a capacidade de respirar sem auxílio de aparelho. Foram apenas 13 dias de hospital. Ficaram apenas as memórias inesquecíveis. Algumas histórias e fatos vão sendo relembrados, ressignificados.

Sou o sétimo filho, dividindo exatamente o meio da prole: seis acima de mim, dos quais dois morreram ainda criancinhas; e seis abaixo. Portanto não tenho tantas lembranças, mas trago algumas no coração. Como cada pessoa é única e experimenta a vida de modo peculiar, registro aqui alguns episódios que, para quem está fora do contexto, podem parecer pitorescos, para mim, porém, são altamente significativos.

Nos tempos passados papai era um homem sisudo. De pouco sorriso. Sobretudo com os filhos mantinha um ar de bravo, fechado, sério. Hoje releio essa postura a partir das dificuldades que ele vivia. Esposa doente, filhos aos montes, situação financeira difícil, precaríssima. Certamente acordava todos os dias pensando como iria garantir o alimento para a filharada. Nunca o ouvi se lamentar, comentar sobre as dificuldades econômicas. Sempre trabalhador. Sem desespero. Sem aflição. Notava que sempre confiou no Pai do céu. Sua devoção a Nossa Senhora parecia ser sua grande âncora da vida. Depois da aposentadoria, quando a vida lhe sorriu com leveza, seu ar de sisudez diminuiu. Tornou-se mais aberto, afável. Sobretudo com os netos: gostava de brincar, de jogar baralho, de se comunicar nas redes sociais, de contar histórias. Escreveu três livrinhos autobiográficos. Ficou tão feliz com a publicação! Então papai não era um homem infeliz, mas as intempéries da vida o faziam sisudo.

Naqueles tempos difíceis, a roupa era surrada, rasgada, às vezes remendada, escassa. Pés no chão. Parece que ele se sentia bem assim. Livre. Ia pra roça e pra cidade assim, pés descalço. Quando o serviço era mais longe de casa, costumava dormir por lá. Não tinha nenhum meio de transporte. Sempre a pé ou de carona. Quando era mais perto saía bem cedo, sem café, ou tendo tomado uma água doce de rapadura, e partia para o duro trabalho diário para salvar o pão das crianças. Voltava, às vezes, à noite, desfiando o rosário, seu fiel companheiro. Chegava, sentava no banco de tábua da cozinha: os menores disputavam seu colo. Nunca espaventou os pequenos! Mostrava-se afetuoso. Terço na mão, cansaço, sono nos olho; terço caía, e ele pegava de volta e retomava. Lamparina acesa, fogão a lenha normalmente apagado ou na cinza quente. Janta? Quando tinha, um feijão cozido...

E quando as crises da mamãe apertavam? Mal epilético repetitivo, um atrás do outro; ou a braveza quase enlouquecida; ou quando estava para dar à luz a mais um filho? Papai longe de casa... Os mais velhos, que ainda eram novos, por vezes saíam, altas horas da noite, para chamar o papai. Era o único “médico”, o recurso possível. Lamparina na mão ou mesmo na escuridão ou à luz da lua, lá iam, normalmente dois, um fazendo companhia ao outro, encorajando contra o medo de assombração. Meu Deus! Sem energia elétrica, sem água encanada, sem transporte, e o pior, comida pouca, pouquíssima! No máximo um almoço e uma jantinha mais ou menos. O resto era por conta de Deus e da natureza. Vida difícil! Mas o papai estava por ali, um baluarte, um esteio, uma segurança pra todos nós!

Gente, não tem outra explicação senão sua vida de oração, de comunhão com Deus, de fé inabalável, de confiança inquebrantável. Ele tinha uma experiência de Deus tão profunda que os “mistérios dolorosos” não suplantavam os “mistérios da glória” em sua vida. Pelo contrário, fortaleciam sua esperança: “Seja feita a vontade de Deus”, não se cansava de repetir. Sua vida foi cuidar da família, ajudar a quem precisava, trabalhar e participar das coisas da Igreja, na sua consciência possível de experiência de fé.

Não tinha vaidade de seus conhecimentos profissionais. Não se exibia. Não escolhia serviço. Plantava milho, feijão arroz. Roçava o pasto. Trabalhava de pedreiro, bombeiro, eletricista, carpinteiro, carapina. Administrava turmas de serviço em construção civil na condição de mestre de obras. Era craque também na gambiarra: recurso do pobre.

As memórias da vida do papai me revigoram nas lides da vida. A presença dele era discreta, porém marcante. Sobretudo para a mamãe, que tem reclamado solidão depois da morte dele. Embora não tenhamos dito a ela que o papai se foi, ela sempre reclama, não obstante sua demência: “Estou sozinha!”. “Não sei como é que vou arrumar!”. Mas parece que Deus tem confortado a ela de alguma forma, quando ela diz, vez por outra: “Ele (marido) estava aqui”. “Zé Lopes acabou de sair” etc. Papai foi o guardião da mamãe. Sempre zelou por ela. Quando a mamãe estava internada e ele também, exatamente há um ano atrás, perguntava por ela. Quando ela recebeu alta e foi pra casa, ficando ele internado em quadro mais agravado, perguntou por ela etc. E dizia em outros tempos: “Gostaria de morrer depois da Juracy, para ela não sofrer muito, pois eu compreendo ela”.

Sempre atento em ajudar os filhos. Nas minhas visitas à família, quando ia pedir a bênção para viajar, ele perguntava: “Está precisando de dinheiro? Não tenho muito, não, mas posso ajudar”. Normalmente pegava um valor e me dava. Ainda depois de padre, sempre ele oferecia alguma coisa. Eu dizia que não precisava, mas ele fazia questão de entregar e dizia que era para ajudar nas despesas do Seminário, da Congregação. Tinha sempre a consciência de colaboração, de partilha, de serviço.

Por falar em dinheiro, meus irmãos todos sabem disso: papai nunca escondeu dinheiro. Antigamente ele guardava os trocados numa latinha sobre a mesa do quarto ou numa prateleira etc. depois que teve condições de comprar uma cômoda, ele sempre guardava na gaveta da cômoda. Nunca, mas nunca, debaixo de chave. Que eu saiba, também nunca brigou por conta dinheiro nem por conta de herança. Por ocasião da divisão da herança da vovó Luzia, sua mãe, ele, primogênito, deixou os irmãos escolherem para anexarem o terreno que já tinham. O dele ficou totalmente fora de mão. Foi opção dele para o bem e a paz entre os irmãos. Homem desapegado. Prova disso é que, ainda em vida, doou aos filhos o cantinho de terra que herdara dos pais, fazendo ele mesmo a demarcação e todos os registros em cartório. Morreu sem ter nada. Um dinheirinho guardado para cuidar da mamãe, como ele mesmo havia asseverado à Maria Marta, filha mais velha, que esteve sempre ao lado dele e da mamãe.

São algumas memórias que faço esses dias ao celebrar o primeiro aniversário de sua Páscoa definitiva. Sei que ele está no Coração do Pai. Sei que ele pede a Deus e a Nossa Senhora por nós, particularmente pela mamãe. Sei que ele está ao lado dela, como sempre esteve. Ele vive envolvido pelo Amor Eterno. E nesse Amor, que é o próprio Deus, somos envolvidos e guardados até o dia em que também formos chamados. E a cada dia que passa, essa hora se aproxima.

Obrigado, papai, pela sua vida dedicada a nós, seus filhos! Obrigado por cada esforço, luta, renúncia, trabalho pelo nosso bem! Sua vida de entrega a Deus e de empenho para incutir em nós os princípios do Evangelho, tais como a concórdia, o perdão, a honestidade, a caridade, a justiça, a verdade, o respeito, a partilha, a serenidade, a busca da vontade de Deus, o espírito de fé e de confiança, a humildade, o desprendimento, é recompensada por Deus e guardada por nós!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Pajuçara/Maracanaú, 13 de abril de 2023