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O Espírito Santo perdoa e perfuma

aureliano, 17.05.24

Pentecostes 2020 - 31 de maio.jpg

Solenidade de Pentecostes [19 de maio de 2024]

[Jo 20,19-23] 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Inicialmente celebrada pelos israelitas, Pentecostes era a comemoração da colheita dos primeiros frutos do trigo. Porque marcava o 50º dia depois do início da colheita, era, por esse motivo, chamada de Pentecostes. (Confira Ex 23, 14-17; 34, 22; Lv 23,15-21; Dt 16, 9-12). É a festa da colheita. Portanto, tempo de muita alegria e fartura.       

A narrativa de At 2, 1-11 mostra a importância que ganhou na Igreja esta festa. Fazendo uso de um recurso literário, Lucas faz o Pentecostes cristão coincidir com o Pentecostes judaico. O Espírito se manifesta confirmando a missão que os discípulos haviam recebido do Mestre. Pentecostes marca o nascimento da Igreja. É a celebração dos frutos do Ressuscitado: o perdão e a paz que brotam de seu Coração bondoso, superando o egoísmo e a maldade do coração humano.

A MENSAGEM DO EVANGELHO

No próprio dia da Páscoa Jesus vem entregar o Dom do Espírito Santo aos seus discípulos. Este Dom garante a continuação da missão de Jesus no mundo. A missão de dar a paz e de tirar o pecado do mundo: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19); “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23). É o próprio Jesus agindo por meio de sua Igreja.

“As portas estavam fechadas por medo dos judeus”: Esse relato nos faz pensar no medo que tomava conta dos discípulos antes de serem revestidos do Dom do Pai. Como o medo nos paralisa, nos fecha em nós mesmos, nos impede de servir! O medo é um sentimento que precisa ser assumido e trabalhado em nós. Quando agimos movidos pelo medo fazemos muito mal a nós e aos outros. Medo de assumir um trabalho na comunidade; medo de arriscar; medo de assumir a própria vida; medo de romper com relações que escravizam e destroem a própria vida e a vida dos outros; medo de falar e de viver a verdade; medo movido pela preocupação excessiva com a própria imagem: o que vão pensar ou dizer? Medo de chamar para conversar sobre dificuldades interrrelacionais. Medo da doença, medo da morte, medo de ser abandonado, desprezado, ridicularizado. É preciso vencer o medo! O medo fecha a porta para Deus e para os irmãos! “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33).

Mas há o outro lado da moeda: aqueles que querem impor-se aos outros, causar pânico, intimidar os outros, gritar, esbravejar, calar a boca. Quantas pessoas encontram prazer em provocar medo, em dominar! Querem se impor pela força física, pela pressão psicológica, pelo cargo que exercem, pelas ameaças que fazem, pelo poder financeiro. Há muitas pessoas que sofrem terrivelmente debaixo de gente perversa, dominadora, satânica. Há gente que domina os outros até mesmo servindo-se da religião ou da boa-fé da pessoa. Crianças, mulheres, idosos, pobres, pessoas vulneráveis e indefesas são as principais vítimas dos dominadores e controladores. Um pecado que brada aos céus e pede a Deus vingança! Jesus nunca se impôs aos outros, nunca ameaçou ninguém. Pelo contrário, sempre mostrou-se afável, acolhedor, doador do perdão e da paz.

“Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Palavra de Jesus aos discípulos antes de comunicar-lhes do Dom do Espírito Santo. É um elemento essencial na missão. O Pai enviou o Filho para comunicar seu amor ao mundo. Agora o Filho envia aqueles que ele escolheu e consagrou com essa mesma missão: o Pai nos ama e quer salvar a todos. Quer comunicar-nos o perdão e a paz. A Igreja é a mensageira e portadora dessa Boa Nova.

ABRIR O CORAÇÃO PARA A MISSÃO

Ao longo de seu ministério Jesus havia prometido o Espírito Santo aos seus discípulos para auxiliá-los na tarefa que lhes confiaria. Ele teria a missão de inspirá-los, fortalecê-los, lembrar-lhes o que lhes havia ensinado. Desde então lhes restava plantar, pois o Pai garantiria a colheita.

Compete a nós abrir o coração para a ação do Espírito Santo em nossa vida a fim de que nossa vida e nossas comunidades se renovem. Aquele vigor concedido aos primeiros discípulos continua sendo dado a quem se abre à sua ação libertadora. Deixemos o Espírito agir em nós, pois sem a sua força a Igreja fica estéril e confusa, sem ternura e sem missão.

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A FORÇA DO ALTO PERDOA E ANIMA

A festa de Pentecostes tem sua história na comunidade israelita. Inicialmente era o agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Uma festa agrícola. Posteriormente foi associada à entrega da Lei no Sinai, tornado-se assim a festa da Aliança de Deus com seu povo.

No cristianismo, Pentecostes celebra a manifestação pública da Igreja. Embora, segundo João, o Espírito Santo seja dado no dia da Páscoa, na Ressurreição, a comunidade lucana a coloca cinquenta dias depois da Páscoa, para evocar e celebrar a manifestação pública da Igreja. Em forma de “línguas de fogo” para dizer do testemunho e da palavra dos discípulos de Jesus manifestando a ação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. No Sinai foi entregue a Lei a Moisés, escrita em tábuas de pedra. Aqui celebramos a Lei derramada nos nossos corações.

 O evangelho deste domingo mostra a comunidade dos discípulos acuada, medrosa. Os discípulos não tinham iniciativa nem coragem de anunciar a experiência que haviam feito de Jesus. Aquele em quem haviam depositado a esperança frustrou-lhes as expectativas: morrera na cruz como um malfeitor. Porém, a divina “Ruah” do alto, aquele Sopro vital os encheu de novo ânimo, de coragem. Começam então a anunciar, com todo ardor e entusiasmo, aquela realidade que haviam experimentado: a vida de Jesus e a vida em Jesus é o caminho para se viver de maneira justa, alegre e mais feliz.

Soprou sobre eles e disse...”. Esta passagem nos faz lembrar aquele sopro vital que o Criador fez penetrar no homem formado da argila: “Ele insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo” (Gn 2,7). Ou mesmo aquele Sopro de vida de que fala o profeta Ezequiel: “Porei meu sopro em vós para que vivais” (Ez 37,14). Somos cristãos leigos de barro, padres de barro, bispos de barro. É o Sopro Santo de Deus que nos comunica vida. Jesus comunica a nova vida que ele veio trazer do Pai: o Espírito Santificador que nos inspira, nos ilumina, nos fortalece para darmos testemunho da ressurreição do Senhor.

É interessante notar que o Espírito Santo não desceu somente sobre os “Onze”. Ele veio sobre todos que estavam no Cenáculo. Ali havia muitas outras pessoas além dos Apóstolos. O Espírito de Jesus penetra no coração daquelas pessoas e lhes dá novo vigor, novo sentido de vida. Sem o Espírito Santo a vida fica sem sentido, vazia, deslocada daquele centro vital para o qual o Pai nos criou. Desfocada, a vida começa a perder o sentido e o pecado encontra guarida dentro de nós. É a destruição de nossa vida. A alegria dá lugar à tristeza, a paz cede a brigas e intrigas, a partilha perde terreno para o egoísmo, o perdão é substituído pelo desejo de vingança, a fraternidade é suplantada pela dominação e coisificação das pessoas, a fé perde para a dúvida e o ceticismo.  Quando Jesus sopra sobre os discípulos e lhes dá o Espírito Santo com o poder de perdoar os pecados, ele quer mostrar que a missão da Igreja, pela força do Espírito Santo, deve ser a de tirar o pecado do mundo.

O pecado, segundo Pe. Antônio Pagola, é a “força de gravidade que nos impede de ir a Deus”. Muito mais do que culpa, é peso, escravidão. Mais do que falar de perdão, é preciso, pois, falar de libertação. Por isso chamamos a Jesus de Salvador. Nota-se, pois, uma vez mais, que o Evangelho não é um ligeiro verniz que se passa no ser humano, mas é tomá-lo a partir do seu ser mais profundo, assim como é, e tornar possível sua volta para Deus. Este é o primeiro fruto do Espírito de Jesus: a libertação. Este é o Espírito, o Espírito do Filho, o Espírito dos filhos, aquele que nos resgata da escravidão da terra e nos abre o horizonte luminoso de filhos.

Esse Espírito traz e atualiza a novidade de Cristo: “Sem o Espírito Santo, Deus está distante; o Cristo permanece no passado; o evangelho, uma letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um poder; a missão, uma propaganda; o culto, um arcaísmo; e a ação moral, uma ação de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é enobrecido pela geração do Reino, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho se faz força do Reino, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a ação humana se deifica” (Atenágoras I, Patriarca de Constantinopla).

Todos nós sentimos dificuldades. Todos sentimos a fraqueza na fé, a fragilidade da existência, a força do pecado em nós. Por vezes o mal parece prevalecer. O bem fica apagado. Fazemos o bem, nos empenhamos na construção de um mundo melhor, mas parece que nossa luta é em vão. Então peçamos ao Espírito Santo que, como aos discípulos e discípulas no Cenáculo, nos encha de seu amor, de sua luz, de sua força.

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Celebrar Pentecostes é fazer memória da vida de Jesus. No início de sua missão ele foi ungido pelo Espírito Santo para anunciar a Boa Nova aos pobres (cf. Lc 4, 16-21). Durante toda a vida foi conduzido pelo Espírito Santo. Suas ações e palavras eram iluminadas e orientadas pelo Espírito Santo.

Quando na cruz Jesus “entrega o espírito” (cf. Jo 19,30) significa, não que ele morre, mas que ele derrama sobre a humanidade o Espírito que sempre o animou. A morte de Jesus na cruz e seu Coração traspassado são como o vaso de alabastro quebrado pela mulher na unção de Betânia e que perfuma toda a casa (cf. Jo 12,3-8). “Jesus é o frasco que se quebrou e se espalhou pelo mundo inteiro. Quando dizemos ‘vinde Espírito Santo’ não olhamos para o céu ou para o nada, mas olhamos para a cruz de Cristo e pedimos: ‘vinde Espírito Santo, perfuma esse mundo que precisa tanto de ti’” (Ir. Aíla Pinheiro, comentando as Catequeses Mistagógicas dos Padres da Igreja).

Nossa vida cristã deve ser inundada por esse Espírito de Jesus que nos torna parecidos com ele, nos configura a ele. Nossas ações já não são mais das trevas, mas da luz. Movidos pelo Espírito Santo produzimos os frutos que dele procedem: “caridade, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, lealdade, mansidão, continência” (Gl 5,22-23).

Rezemos: Vem Espírito Santo e liberta-nos do pecado, fortalece nossa pequenez, dá-nos tua força contra o mal. Não nos deixes desanimar, desistir de caminhar na direção do bem. Mais do que fazer o bem, ajuda-nos a ser bons, justos, solidários, fraternos. Enche-nos de tua bondade, de tua sabedoria para reproduzirmos em nossa vida as ações de Jesus que “passou pelo mundo fazendo o bem”. Faze que nossa vida manifeste a todos o amor do Pai, prefigurado em Jesus de Nazaré. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Santos Reis: uma busca de novos caminhos

aureliano, 06.01.24

Epifania 2018.jpg

Epifania do Senhor [07 de janeiro de 2024]

[Mt 2,1-12]

A solenidade que celebramos hoje é uma festa popularmente chamada de “Santos Reis”. Caiu bem no imaginário popular a cena pintada por Mateus sobre a visita que os Magos fizeram a Jesus por ocasião do seu nascimento. O quadro é deveras bonito. Mas é bom lançarmos um olhar com mais profundidade, pois aí se esconde um grande Mistério.

Primeiro não podemos ler a cena do evangelho de hoje como um relato jornalístico. Os fatos certamente não se deram historicamente tais como estão narrados. A leitura deve ser feita numa ótica de fatos interpretados teologicamente. Mateus pretende dar uma catequese para a comunidade. Vamos então tomar os pontos essenciais e tentar descobrir o que Deus nos está revelando de novo nesta Palavra da festa de hoje.

O fato de relatar Belém como local do nascimento de Jesus parece mostrar que Mateus quer convencer alguns que não podiam acreditar que o Messias pudesse nascer em Nazaré pelo fato de as Escrituras prometerem que sairia de Belém, a cidade de Davi. Belém é “casa do pão”. O Pão da vida que veio alimentar a humanidade dá-se em alimento num coxo onde os animais comiam. O alimento, o pão que ali se encontra, veio para saciar a fome da humanidade.

Os magos não eram necessariamente adivinhos, mas estudiosos dos astros. Dizem os entendidos da cultura e história daquela época que, por ocasião do nascimento de pessoas importantes, uma estrela avisava. Mateus vale-se da crença para mostrar que Alguém nasceu e foi visto através de uma estrela.

A visita e adoração dos magos contrapõem-se ao orgulho de Herodes e de todo o Israel que se recusou a dobrar a cerviz à Palavra que se fez carne no seio de Maria. Considerava inadmissível que Deus pudesse nascer tão pobre e simples. Ademais se sentia ameaçado pelo “rei dos judeus” que acabara de nascer. Uma vez que aqueles para quem ele veio não o reconheceram (cf. Jo 1,11), manifesta-se aos pagãos, representados pelos magos. Veio para todos. É o universalismo da salvação de Deus manifestado em Jesus de Nazaré.

A estrela de que fala o texto simboliza os sinais pelos quais Deus nos fala. Ele se manifesta de muitas formas. É preciso estar com o “coração no alto”. Esse olhar para cima, para o céu quer indicar a vida de oração, de intimidade com o Pai que nos ajuda a perceber os caminhos pelos quais devemos caminhar. Herodes e os habitantes de Jerusalém, levando uma vida perversa e ambiciosa, criaram em torno de si uma nuvem tão espessa que ofuscou o brilho da estrela sobre a cidade. Somente depois que saíram da cidade é que a estrela foi novamente vista pelos magos. O que lhes causou grande alegria. A alegria da luz de Deus que ilumina e fortalece o coração do justo.

Quando o relato diz que os magos tomaram outro caminho de volta para sua pátria, o texto nos quer dizer que é preciso ter coragem de assumir um caminho novo. Trata-se da conversão. Converter-se é mudar de trajetória, de rota. É ter coragem de assumir um novo modo de viver. E isso se dá a partir do encontro com o Senhor. Foi o que aconteceu aos magos. Aquele encontro com o Senhor da vida, reclinado na manjedoura, foi tão decisivo e envolvente que os levou a assumir um caminho novo em defesa da vida ameaçada por Herodes. O caminho de conversão nos faz contrapor-nos aos ameaçadores da vida. É preciso ter coragem de enfrentar aqueles que buscam “matar o menino”. Aqueles que querem tirar a vida a todo custo. Aqueles para quem o dinheiro vale mais do que a vida. Aqueles para quem o crescimento econômico tem prioridade sobre a saúde da população.

Que a Luz resplandecente que brota do presépio nos envolva e nos faça missionários transformados por esse Mistério que nos arrebata e nos faz pessoas renovadas para a missão. Que o Senhor nos dê a graça da coragem de assumirmos caminhos novos de uma verdadeira conversão.

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NÃO TER MEDO DA LUZ

Esta festa, outrora celebrada no dia 06 de janeiro, dia dos Santos Reis (Natal das Igrejas Orientais), quer nos ajudar a entender que Aquele cujo nascimento celebramos no Natal veio para todos os povos. É a Luz que ilumina as nações. Deus não veio salvar um só povo, mas todas as pessoas de todos os tempos e lugares.

O evangelho de Mateus termina com o envio dos discípulos para evangelizar “todas as nações” (Mt 28, 19). E no início ele traz o relato da visita dos Reis Magos, prefigurando exatamente isso. Os doutores de Jerusalém sabiam onde devia nascer o Messias, mas a estrela da fé não os conduzia até lá. Daqui se depreende que não basta conhecer com a cabeça. O coração precisa crer e se inclinar para os sinais dos tempos. Herodes e os doutores não viram a estrela porque estavam ofuscados pelo próprio brilho. Uma vaidade tal que escondia os sinais reveladores de Deus que oculta estas coisas aos sábios e entendidos e as revela aos pequeninos (cf. Mt 11, 25). Junte-se a isso a sede de poder de Herodes, que vê na indicação da profecia, uma ameaça à sua condição de rei e senhor.

É bom ainda observarmos o medo que toma conta de Herodes: manda matar as crianças da redondeza de Belém. O medo de perder o poder, o sucesso, o dinheiro faz-nos matar aqueles pelos quais nos sentimos ameaçados: uma palavra difamatória e arrogante, um gesto ofensivo, uma atitude de indiferença, fuga de responsabilidades, decisões políticas visando a vantagens pessoais com grave prejuízo para os pobres etc.

Além disso, quantas crianças vítimas da fome, dos maus-tratos, da exploração, de abusos sexuais! Investe-se pesado em armamento, em reformas de apartamentos públicos luxuosos que atendem aos interesses mercadológicos e vaidosos de seus moradores, enquanto que a educação, a saúde e o cuidado com os pequenos ficam relegados a segundo plano. Mesmo dentro de nossas comunidades: investimos muito recurso econômico em obras, reformas, objetos litúrgicos caríssimos ou em atividades que são vistosas, e investimos pouco em atividades sociais e missionárias que atendem às reais necessidades das crianças, dos idosos, doentes ou dos pobres e sofredores.

Peçamos ao Senhor que nos ajude a nos comprometermos na construção de um mundo mais humanizado, mais solidário, mais comprometido com os pequeninos do Reino. Todos aqueles que se empenham pela vida cabem dentro do projeto salvador de Deus. Precisamos nos unir mais em parcerias, a partir de nossas próprias comunidades e pastorais, e também com outras entidades que lutam pela vida do ser humano e do planeta, para que a luz brilhe para todos trazendo a esperança que supera o medo, o amor que supera o ódio, o serviço que vence a sede de poder e a ganância de ter sempre mais.

As pessoas de boa vontade encontram Jesus, mas os que vivem em função de seu próprio interesse (Herodes e companhia) têm medo de encontrá-lo: “Quem faz o mal odeia luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus” (Jo 3, 20-21).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Viver é arriscar-se pela vida

aureliano, 17.11.23

33º Domingo do TC - A - 15 de novembro.jpg

33º Domingo do Tempo Comum [19 de novembro de 2023]

[Mt 25,14-30]

Estamos diante de uma parábola que causa estranheza à primeira vista. Um patrão ambicioso que vai viajar e entrega uma quantia de dinheiro a alguns de seus empregados para que eles façam esse dinheiro multiplicar. A atitude com o terceiro empregado revela que esse patrão ambicioso que se enriquece às custas dos empregados: “Tu sabias que colho onde não plantei e ceifo onde não semeei”. E sua atitude violenta com o empregado “medroso”, denominado por ele de “mau e preguiçoso” produz uma impressão ruim dentro da gente.

Em primeiro lugar é preciso considerar que é uma parábola, com os limites das comparações. Depois, uma parábola que tem como pano de fundo os escribas e fariseus e a comunidade de Mateus proveniente do judaísmo. Mateus pretende mostrar aos escribas e fariseus que não basta o cumprimento da Lei, mas é preciso viver de modo vigilante e criativo, correndo risco de “perder a vida” para ganhá-la. Aos judeu-cristãos que, certamente, começaram a se acomodar, esperando para breve a vinda do Senhor Jesus, com dificuldade em viver a proposta do Evangelho, permanecendo fechados num sistema religioso legalista e excludente, Mateus está lembrando a necessidade da vigilância produtiva: é preciso colocar os dons a serviço da comunidade, assumindo assim a grande causa de Jesus que foi a vida fraterna, o lava-pés “para que todos tenham vida” (Jo 10,10).

A parábola não pode ser interpretada na lógica capitalista como se estivesse legitimando produção econômica. Ela quer ajudar a comunidade a sair da “zona de conforto”, de uma vida fechada, egoísta, comodista para atitudes de serviço e generosidade a fim de que aqueles que não contam na sociedade sejam incluídos. Jesus não quer ninguém de fora.

Para isso ele quer contar com nossa participação na obra da “salvação” da humanidade. Quando ‘arriscamos’ nossa vida, à semelhança de Jesus, estamos vivendo a Eucaristia que celebramos: “Isto é o meu corpo que é dado por vós”. Deus não tem o hábito de transtornar as leis da natureza, fazendo ‘milagres’ a toda hora. Ele quer agir no mundo através de nós pela força do Espírito Santo.

Deixemos Deus agir em nós e empreguemos nossa diligência em fazer multiplicar os dons que Ele nos deu, como a mulher virtuosa (sabedoria) da primeira leitura: “Abre suas mãos ao necessitado e estende suas mãos ao pobre” (Pr 3, 20). Assumir a causa de Deus é torná-la nossa. Então nossa vida será uma constante preparação para a “prestação de contas” que o Pai pedirá de nós um dia. Julgamento que terá como critério absoluto a misericórdia. 

Ademais, podemos concluir da parábola que, ao elogiar os dois primeiros servos que arriscaram a sorte para fazer o talento multiplicar-se, e ao reprovar o terceiro que teve medo e enterrou o talento, Jesus se opõe à postura de escravo que faz somente o que foi estabelecido (a mentalidade rabínica em relação à Lei). O discípulo de Jesus deve assumir uma postura de risco, de liberdade, de sair de suas próprias seguranças, fazendo valer os seus dons como presente de Deus e se esforça para fazê-los multiplicarem-se. O Reino de Deus pressupõe iniciativa, criatividade, saída de si, risco. Somente assim ele é capaz de crescer e produzir frutos.

Assumir a obra de Cristo é a única preparação válida para sua nova vinda, vivendo cada dia como se fosse o último.

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“TIVE MEDO E ESCONDI TEU TALENTO”

Esse terceiro empregado a quem foi confiada menor quantia e que reagiu de modo diferente dos outros dois, merece mais algumas considerações. A pergunta que se coloca é: “Por que ele não fez render o talento recebido, à semelhança dos outros?” – Ele mesmo responde: “Sabia que tu és um homem duro, que colhes onde não semeaste e recolhes onde não plantaste. Por isso tive medo e fui esconder teu talento na terra. Eis aqui, toma o que te pertence” (Mt 25,24-25). Esse relato faz lembrar Adão depois do pecado: “Ouvi teu passo no jardim, tive medo porque estou nu e me escondi” (Gn 3,10).

Quero me ater àquela palavra do empregado: “Tive medo”. À primeira vista parece que Jesus está ameaçando seus discípulos com essa parábola. Quase metade do texto se destina a narrar o ocorrido com esse empregado. Por isso vale a pena nos debruçarmos um pouco sobre a atitude do patrão e do empregado.

Olhando mais de perto, notamos o medo muito presente no coração humano diante daquelas situações que o ultrapassam. Vejamos: medo de adoecer, medo de sofrer, medo de morrer, medo de ir para o inferno, medo de perder o céu, medo de ser castigado, medo de mau-olhado, medo de feitiço, medo de “encosto”, medo de macumba, medo de... São realidades referentes à sua relação com um poder que o ultrapassa.

Claro que precisamos distinguir uma relação de medo doentio com o sagrado e o “Timor Dei” (Temor de Deus) (Sl 111,10; Pr 1,7) que denota profundo respeito e reconhecimento de Deus como Senhor, Criador e Pai a quem devemos amar e servir de todo coração.

O fato é que o servo da parábola agiu movido pelo medo. Faltou-lhe atitude de amor, de gratuidade, de arriscar-se. Demonstra que não amava o seu senhor. Não teve coragem de correr o risco. Não se empenhou em nada. Na verdade, aquele medo parece mais preguiça e comodismo. Para não sair de si, para não trabalhar, “enterra o talento”. Recebe por isso a repreensão do patrão: “Servo mau e preguiçoso” (Mt 25,26).

Uma religião vivida na base do medo, de proselitismo, numa relação de “toma lá, dá cá” parece não corresponder à proposta do Reino de Deus trazido por Jesus. Pois a entrada de Deus em nossa história foi exatamente para estabelecermos com Ele uma nova relação, uma relação filial, de gratuidade, de generosidade, de serviço amoroso a exemplo de Jesus: “Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, vós o façais” (Jo 13,15).

A Escritura nos exorta: “Deus não nos deu um espírito de medo, mas um espírito de força, de amor e de sobriedade” (2Tm 1,7). E quantas vezes o Divino Mestre proclamou: “Não tenhais medo!” (Mt 14,27 e correlatos).

A afirmação de um historiador social contemporâneo faz a gente pensar: “O medo enche muito mais as igrejas do que o amor”. Certamente isso não significa que, necessariamente, nossas igrejas se enchem de pessoas movidas pelo medo. Penso que não. Mas há muita gente que frequenta cultos e orações à cata de milagres, de proteção contra isso ou aquilo, ou com medo de algum castigo ou punição divina. Há muita superstição nas rezas e cultos, e muitos charlatães aproveitando-se do medo ou da boa-fé das pessoas simples.

A participação na vida da comunidade de fé deve ir se depurando, amadurecendo de tal maneira que nossa participação tenha como motivação a bondade de Deus, seu amor por nós, a entrega de seu Filho pela nossa salvação. Ainda que Ele não tivesse nada a nos oferecer, queremos amá-Lo e servi-Lo. E, consequentemente, colocarmos nosso “talento” a serviço da construção de um mundo mais irmão para a Glória do Pai e o bem de todas as pessoas.

Podemos concluir, portanto, que o grave problema daquele terceiro servo foi o fechamento, o medo de arriscar-se, o egoísmo que o levou a “enterrar” o dom que recebera: “Quem vive para si, empobrece o seu viver. / Quem doar a própria vida, vida nova há de colher”.

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19 DE NOVEMBRO: VII DIA MUNDIAL DOS POBRES

“Nunca afastes de algum pobre o teu olhar” (Tb 4,7)

“’Nunca afastes de algum pobre o teu olhar’ (Tb 4, 7). Esta recomendação ajuda-nos a compreender a essência do nosso testemunho. Deter-se no Livro de Tobite, um texto pouco conhecido do Antigo Testamento, eloquente e cheio de sabedoria, permitir-nos-á penetrar melhor no conteúdo que o autor sagrado deseja transmitir. Abre-se diante de nós uma cena de vida familiar: um pai, Tobite, despede-se do filho, Tobias, que está prestes a iniciar uma longa viagem. O velho Tobite teme não voltar a ver o filho e, por isso, deixa-lhe o seu ‘testamento espiritual’. Foi deportado para Nínive e agora está cego; é, por conseguinte, duplamente pobre, mas sempre viveu com a certeza que o próprio nome exprime: ‘O Senhor foi o meu bem’. Este homem que sempre confiou no Senhor, deseja, como um bom pai, deixar ao filho não tanto bens materiais, mas sobretudo o testemunho do caminho que há de seguir na vida. Por isso diz-lhe: ‘Lembra-te sempre, filho, do Senhor, nosso Deus, em todos os teus dias, evita o pecado e observa os seus mandamentos. Pratica a justiça em todos os dias da tua vida e não andes pelos caminhos da injustiça’ (Tb 4, 5)”.

(...) “Vivemos um momento histórico que não favorece a atenção aos mais pobres. O volume sonoro do apelo ao bem-estar é cada vez mais alto, enquanto se põe o silenciador relativamente às vozes de quem vive na pobreza. Tende-se a ignorar tudo o que não se enquadre nos modelos de vida pensados sobretudo para as gerações mais jovens, que são as mais frágeis perante a mudança cultural em curso. Coloca-se entre parênteses aquilo que é desagradável e causa sofrimento, enquanto se exaltam as qualidades físicas como se fossem a meta principal a alcançar. A realidade virtual sobrepõe-se à vida real, e acontece cada vez mais facilmente confundirem-se os dois mundos. Os pobres tornam-se imagens que até podem comover por alguns momentos, mas quando os encontramos em carne e osso pela estrada, sobrevêm o fastio e a marginalização. A pressa, companheira diária da vida, impede de parar, socorrer e cuidar do outro. A parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37) não é história do passado; desafia o presente de cada um de nós. Delegar a outros é fácil; oferecer dinheiro para que outros pratiquem a caridade é um gesto generoso; envolver-se pessoalmente é a vocação de todo o cristão” (Papa Francisco).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“Não tenhais medo!”

aureliano, 23.06.23

12º Domingo do TC - A - 25 de junho.jpeg

12º Domingo do Tempo Comum [25 de junho de 2023]

[Mt 10,26-33]

Estamos no capítulo 10º de Mateus. Ele chama os discípulos e os envia em missão. Depois de transmitir aos seus discípulos sua própria autoridade (Mt 9,35 – 10,16), Jesus não lhes esconde que deverão enfrentar perseguição e sofrimento por causa dEle. Ao enviar os discípulos, Jesus lhes transmite algumas orientações. São sentenças orientadoras de Jesus para a ação missionária das comunidades. As orientações no relato de hoje querem fortalecer e prevenir o discípulo contra o medo. Não ter medo de ser perseguido por causa do evangelho.

Um dado interessante na vida é que sofrimento e perseguição são realidades diferentes. Enquanto o sofrimento é uma realidade angustiante que atinge a todas as pessoas, inocentes e culpados, a perseguição, na perspectiva da Sagrada Escritura, atinge os justos exatamente por serem justos. O amor e a fidelidade à Palavra de Deus trazem como consequência a perseguição. Nem sempre o sofrimento é fruto de perseguição. Mas a perseguição gera sofrimento. A confiança em Deus dá serenidade para lidar com a dor. É o que podemos notar em Jeremias, como nos atesta a primeira leitura deste domingo: Jr 20,10-13. Elemento fundamental neste relato é a confiança em Deus: “O Senhor está ao meu lado”.  “A ti confiei a minha causa”. “Ele livrou a vida do pobre das mãos dos malvados”.

Por três vezes o Senhor adverte: “Não tenhais medo.” Por que será que Jesus insiste tanto nesse ponto? Na verdade, o medo é um dos maiores impedimentos ao anúncio do evangelho. E este não pode permanecer escondido: “O que escutais ao pé do ouvido, proclamai-o sobre os telhados”. Além disso, o medo expõe o discípulo ao risco de ser renegado: “Aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus”.

Outra dimensão do medo está na linha existencial: medo de ser rejeitado pelo grupo, medo de perder oportunidades, medo de perder o emprego, medo de passar necessidades, medo de perder privilégios, medo de ser criticado, medo de perder o amigo, medo de ser contaminado por alguma doença, medo de ... Na verdade é sempre medo de perder. A gente só quer ganhar. Na hora de perder, de entregar algo de nós ou nosso, “o bicho pega”. E a vida é um “perde-ganha”. Não há ninguém que sempre ganhe na vida. Todo mundo perde alguma coisa: perde os cabelos, perde a beleza juvenil, perde parentes e amigos, perde oportunidade, perde a eleição, perde tempo, perde a alegria, perde demanda judicial, perde encantamento, perde...

Acho que a gente precisa aprender a perder, a lidar com os fracassos e frustrações da vida. Um dos grandes dramas da moçada nova (e velha também!) é lidar com os fracassos, com as perdas. Tem gente que acha que vai ser “brotinho” a vida toda! E começa a pintar aqui, espichar ali, cortar acolá, malhar pra ganhar corpo “sarado”, “bombado”. E onde vai parar? Não há jeito: o tempo é irreversível; a finitude humana é implacável. Todo mundo caminha para o fim. Então a gente precisa dar um novo sentido à vida. E Cristo veio dar esse sentido: “Se o grão de trigo caído na terra não morrer, permanece só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24).

Proclamar o Evangelho do Reino, na comunhão com Cristo, significa empenho pela paz, pela fraternidade, pela justiça. Há duas forças que pressionam o discípulo de Jesus para desistir da empreitada. Podemos nomeá-las em forças externas (perseguições, ameaças de morte, matança de líderes comunitários e agentes de pastorais) e forças internas (desânimo, acomodação, busca de vantagens pessoais, ganância, sede de ter e de poder etc).

Estas forças, de dentro e de fora do ser humano, podem criar uma estrutura fechada, impenetrável, egoísta, que o leva a colocar-se indiferente ao Evangelho. Poderá, talvez, escutá-lo todos os dias na igreja, mas não se deixa penetrar pela Palavra porque criou uma carapaça de busca de si mesmo, de fechamento, de egoísmo, de medo de se doar a quem mais precisa.

A grande questão que precisa ser colocada é que, se o evangelho não é vivido e anunciado, os ídolos, realidades que assumem o lugar de Deus Criador, vão consumindo a humanidade. Idolatria é uma realidade que suga todas as forças e energias que a pessoa tem. Ela mata tudo e todos. A busca do prazer, do ter e do poder a qualquer preço é vislumbre da idolatria. É colocar-se no lugar de Deus, invertendo o processo criacional. Em vez de reconhecer o Senhor como seu Deus, quer submeter o Criador ao seu domínio. Fomos criados por Deus; ele criou tudo para nós; e nós existimos por Ele e para Ele. Este é o sentido da Criação.

Podemos dizer que a mensagem principal do relato de hoje é que o discípulo de Jesus não pode se deixar levar pelo medo, pois Jesus prometeu estar com os seus. Ele não nos abandona, jamais. O medo é paralisante e contrário ao evangelho. Para anunciar o evangelho é preciso vencer o medo e ter a coragem de desapegar-se da própria vida. A confiança e a esperança devem superar o medo. Também é preciso enfrentar os inimigos internos: o comodismo, a preguiça, o envergonhar-se de assumir uma postura cristã, a busca do lucro a qualquer preço, querer sempre levar vantagem em cima dos outros etc. Vive como cristão aquele que coloca Jesus Cristo como centro de sua vida e de suas opções e decisões. O caminho que Jesus nos mostra é o caminho da vida. Sigamos por ele!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

O perdão e a paz vencem o medo

aureliano, 27.05.23

Pentecostes 2020 - 31 de maio.jpg

Solenidade de Pentecostes [28 de maio de 2023]

[Jo 20,19-23] 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Inicialmente celebrada pelos israelitas, Pentecostes era a comemoração da colheita dos primeiros frutos do trigo. Porque marcava o 50º dia depois do início da colheita, era, por esse motivo, chamada de Pentecostes. (Confira Ex 23, 14-17; 34, 22; Lv 23,15-21; Dt 16, 9-12). É a festa da colheita. Portanto, tempo de muita alegria e fartura.       

A narrativa de At 2, 1-11 mostra a importância que ganhou na Igreja esta festa. Fazendo uso de um recurso literário, Lucas faz o Pentecostes cristão coincidir com o Pentecostes judaico. O Espírito se manifesta confirmando a missão que os discípulos haviam recebido do Mestre. Pentecostes marca o nascimento da Igreja. É a celebração dos frutos do Ressuscitado: o perdão e a paz que brotam de seu Coração bondoso, superando o egoísmo e a maldade do coração humano.

A MENSAGEM DO EVANGELHO

No próprio dia da Páscoa Jesus vem entregar o Dom do Espírito Santo aos seus discípulos. Este Dom garante a continuação da missão de Jesus no mundo. A missão de dar a paz e de tirar o pecado do mundo: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19); “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23). É o próprio Jesus agindo por meio de sua Igreja.

“As portas estavam fechadas por medo dos judeus”: Esse relato nos faz pensar no medo que tomava conta dos discípulos antes de serem revestidos do Dom do Pai. Como o medo nos paralisa, nos fecha em nós mesmos, nos impede de servir! O medo é um sentimento que precisa ser assumido e trabalhado em nós. Quando agimos movidos pelo medo fazemos muito mal a nós e aos outros. Medo de assumir um trabalho na comunidade; medo de arriscar; medo de assumir a própria vida; medo de romper com relações que escravizam e destroem a própria vida e a vida dos outros; medo de falar e de viver a verdade; medo movido pela preocupação excessiva com a própria imagem: o que vão pensar ou dizer? Medo de chamar para conversar sobre dificuldades interrrelacionais. Medo da doença, medo da morte, medo de ser abandonado, desprezado, ridicularizado. É preciso vencer o medo! O medo fecha a porta para Deus e para os irmãos! “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33).

Mas há o outro lado da moeda: aqueles que querem amedrontar, causar pânico, intimidar os outros, gritar, esbravejar, calar a boca. Quantas pessoas se satisfazem provocando medo para dominar! Querem se impor pela força física, pela pressão psicológica, pelo cargo que exercem, pelas ameaças que fazem, pelo poder financeiro. Há muitas pessoas que sofrem terrivelmente debaixo de gente perversa, dominadora, satânica. Há gente que domina os outros até mesmo servindo-se da religião ou da boa-fé da pessoa. Crianças, mulheres, idosos, pobres, pessoas vulneráveis e indefesas são as principais vítimas dos dominadores. Um pecado que brada aos céus e pede a Deus vingança! Jesus nunca se impôs aos outros, nunca amedrontou ninguém. Pelo contrário, sempre mostrou-se afável, acolhedor, doador do perdão e da paz.

“Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Palavra de Jesus aos discípulos antes de comunicar-lhes do Dom do Espírito Santo. É um elemento essencial na missão. O Pai enviou o Filho para comunicar seu amor ao mundo. Agora o Filho envia aqueles que ele escolheu e consagrou com essa mesma missão: o Pai nos ama e quer salvar a todos. Quer comunicar-nos o perdão e a paz. A Igreja é a mensageira e portadora dessa Boa Nova.

ABRIR O CORAÇÃO PARA A MISSÃO

Ao longo de seu ministério Jesus havia prometido o Espírito Santo aos seus discípulos para auxiliá-los na tarefa que lhes confiaria. Ele teria a missão de inspirá-los, fortalecê-los, lembrar-lhes o que lhes havia ensinado. Desde então lhes restava plantar, pois o Pai garantiria a colheita.

Compete a nós abrir o coração para a ação do Espírito Santo em nossa vida a fim de que nossa vida e nossas comunidades se renovem. Aquele vigor concedido aos primeiros discípulos continua sendo dado a quem se abre à sua ação libertadora. Deixemos o Espírito agir em nós, pois sem a sua força a Igreja fica estéril e confusa, sem ternura e sem missão.

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A FORÇA DO ALTO PERDOA E ANIMA

A festa de Pentecostes tem sua história na comunidade israelita. Inicialmente era o agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Uma festa agrícola. Posteriormente foi associada à entrega da Lei no Sinai, tornado-se assim a festa da Aliança de Deus com seu povo.

No cristianismo, Pentecostes celebra a manifestação pública da Igreja. Embora, segundo João, o Espírito Santo seja dado no dia da Páscoa, na Ressurreição, a comunidade lucana a coloca cinquenta dias depois da Páscoa, para evocar e celebrar a manifestação pública da Igreja. Em forma de “línguas de fogo” para dizer do testemunho e da palavra dos discípulos de Jesus manifestando a ação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. No Sinai foi entregue a Lei a Moisés, escrita em tábuas de pedra. Aqui celebramos a Lei derramada nos nossos corações.

 O evangelho deste domingo mostra a comunidade dos discípulos acuada, medrosa. Os discípulos não tinham iniciativa nem coragem de anunciar a experiência que haviam feito de Jesus. Aquele em quem haviam depositado a esperança frustrou-lhes as expectativas: morrera na cruz como um malfeitor. Porém, a divina “Ruah” do alto, aquele Sopro vital os encheu de novo ânimo, de coragem. Começam então a anunciar, com todo ardor e entusiasmo, aquela realidade que haviam experimentado: a vida de Jesus e a vida em Jesus é o caminho para se viver de maneira justa, alegre e mais feliz.

Soprou sobre eles e disse...”. Esta passagem nos faz lembrar aquele sopro vital que o Criador fez penetrar no homem formado da argila: “Ele insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo” (Gn 2,7). Ou mesmo aquele Sopro de vida de que fala o profeta Ezequiel: “Porei meu sopro em vós para que vivais” (Ez 37,14). Somos cristãos leigos de barro, padres de barro, bispos de barro. É o Sopro Santo de Deus que nos comunica vida. Jesus comunica a nova vida que ele veio trazer do Pai: o Espírito Santificador que nos inspira, nos ilumina, nos fortalece para darmos testemunho da ressurreição do Senhor.

É interessante notar que o Espírito Santo não desceu somente sobre os “Onze”. Ele veio sobre todos que estavam no Cenáculo. Ali havia muitas outras pessoas além dos Apóstolos. O Espírito de Jesus penetra no coração daquelas pessoas e lhes dá novo vigor, novo sentido de vida. Sem o Espírito Santo a vida fica sem sentido, vazia, deslocada daquele centro vital para o qual o Pai nos criou. Desfocada, a vida começa a perder o sentido e o pecado encontra guarida dentro de nós. É a destruição de nossa vida. A alegria dá lugar à tristeza, a paz cede a brigas e intrigas, a partilha perde terreno para o egoísmo, o perdão é substituído pelo desejo de vingança, a fraternidade é suplantada pela dominação e coisificação das pessoas, a fé perde para a dúvida e o ceticismo.  Quando Jesus sopra sobre os discípulos e lhes dá o Espírito Santo com o poder de perdoar os pecados, ele quer mostrar que a missão da Igreja, pela força do Espírito Santo, deve ser a de tirar o pecado do mundo.

O pecado, segundo Pe. Antônio Pagola, é a “força de gravidade que nos impede de ir a Deus”. Muito mais do que culpa, é peso, escravidão. Mais do que falar de perdão, é preciso, pois, falar de libertação. Por isso chamamos a Jesus de Salvador. Nota-se, pois, uma vez mais, que o Evangelho não é um ligeiro verniz que se passa no ser humano, mas é tomá-lo a partir do seu ser mais profundo, assim como é, e tornar possível sua volta para Deus. Este é o primeiro fruto do Espírito de Jesus: a libertação. Este é o Espírito, o Espírito do Filho, o Espírito dos filhos, aquele que nos resgata da escravidão da terra e nos abre o horizonte luminoso de filhos.

Esse Espírito traz e atualiza a novidade de Cristo: “Sem o Espírito Santo, Deus está distante; o Cristo permanece no passado; o evangelho, uma letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um poder; a missão, uma propaganda; o culto, um arcaísmo; e a ação moral, uma ação de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é enobrecido pela geração do Reino, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho se faz força do Reino, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a ação humana se deifica” (Atenágoras I, Patriarca de Constantinopla).

Todos nós sentimos dificuldades. Todos sentimos a fraqueza na fé, a fragilidade da existência, a força do pecado em nós. Por vezes o mal parece prevalecer. O bem fica apagado. Fazemos o bem, nos empenhamos na construção de um mundo melhor, mas parece que nossa luta é em vão. Então peçamos ao Espírito Santo que, como aos discípulos e discípulas no Cenáculo, nos encha de seu amor, de sua luz, de sua força:

Vem Espírito Santo e liberta-nos do pecado, fortalece nossa pequenez, dá-nos tua força contra o mal. Não nos deixes desanimar, desistir de caminhar na direção do bem. Mais do que fazer o bem, ajuda-nos a ser bons, justos, solidários, fraternos. Enche-nos de tua bondade, de tua sabedoria para reproduzirmos em nossa vida as ações de Jesus que passou pelo mundo “fazendo o bem”. Faze que nossa vida manifeste a todos o amor do Pai, manifestado em Jesus de Nazaré. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Luz que dissipa as trevas e afasta o medo

aureliano, 14.04.23

2º Domingo da Páscoa - A - 16 de abril.jpg

2º Domingo da Páscoa [16 de abril de 2023]

[Jo 20,19-31]

“Era noite e as portas estavam fechadas por medo”. Não nos pode passar despercebida essa realidade vivida pelos discípulos logo após a tragédia do Calvário. Para eles não havia luz: era noite. Não tinham horizonte. Não podiam vislumbrar novas possibilidades. Aquele em quem depositaram sua confiança “fracassara na cruz”.

As portas estavam fechadas. A missão lhes era impossível. Não tinham coragem de sair.  Portas fechadas para que ninguém entrasse. Também ninguém podia se beneficiar da ação deles, pois se prenderam dentro da casa. Quem está de portas fechadas não sai nem permite alguém entrar. Uma espécie de morte: sem presença, sem oxigenação, sem vida. No Apocalipse temos aquelas provocadoras palavras: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele” (Ap 3,20). Comunidade cristã, discípulo de Jesus não combina com porta fechada. Aliás, o Papa Francisco tem alertado para nossos templos católicos com portas fechadas: “A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais concretos dessa abertura é ter, por todo lado, igrejas com portas abertas” (EG, 47).

E o medo? Realidade terrível! Esse sentimento paralisa as pessoas. Impede que se façam boas ações. Muitas vezes reduz a pessoa dentro de seu eu, tornando-a ensimesmada. O medroso não arrisca. Mantém a porta fechada. Investe em sua própria segurança, por vezes em detrimento dos demais. O medo não permite amar. Impede de amar o mundo como Jesus amou. Não lhe confere o ‘sopro’ da vida e da esperança.

Eis que Jesus entra na casa. Para ele não há noite nem portas fechadas nem, muito menos, medo. Ele vem libertar os discípulos desses males que emperram a missão que lhes confiara. Não lhes impõe as mãos nem lhes dá a bênção, como sói fazer aos doentes. Jesus sopra sobre eles o sopro da força que vence o medo e lhes comunica a esperança. O sopro santo que tira o pecado e os envia em missão. As portas então se abrem, o medo se dissipa, pois a Luz venceu a escuridão que os envolvia.

É Jesus ressuscitado que salva a Igreja. É ele que vence o medo que nos envolve e paralisa. É ele que abre as portas do egoísmo e da indiferença. É ele que dá a esperança. Na força dele realizamos a missão. Cremos que ele continua vivo em nosso meio. Conhecedor de nossa fragilidade, ele continua a nos dizer: “Recebei o Espírito Santo”.

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ACOMUNIDADE BROTA E SE ALIMENTA DO RESSUSCITADO

O evangelho narra a aparição de Jesus aos Apóstolos no dia da Páscoa, primeiro dia da semana, e o episódio de Tomé oito dias depois. Por isso, ao primeiro dia da semana, chamamos Domingo: o dia do Senhor. É o dia da Ressurreição de Jesus, dia da Criação, dia do descanso do Homem/Mulher criados por Deus à sua imagem. Dia em que a comunidade cristã se reúne para dar graças ao Pai na celebração eucarística.

O relato mostra a identidade entre aquele que ressuscitou e o que foi crucificado. Por isso o Ressuscitado mostra a Tomé as marcas da paixão. Tomé representa a comunidade que duvida e que depois acredita. Aqueles que devem crer no testemunho dos apóstolos. Se no início a comunidade é acometida pelo medo, agora é tomada pelo novo vigor e alegria de crer no Cristo ressuscitado, presente em seu meio.

“Bem-aventurados os que crerem sem terem visto”. Em vez de provas palpáveis, nos é transmitido o testemunho escrito das testemunhas oculares de tudo quanto Jesus fez e ensinou. Vivemos num mundo em que se exigem provas para acreditar. Muitos correm atrás de “milagres”. Se para acreditar precisamos de provas, de sinais do céu, restar-nos-ia acreditar em quê? Nossa fé não vem de provas palpáveis, mas das “testemunhas designadas por Deus” (At 10, 41). Nós acreditamos naquelas realidades que elas acreditaram e no-las anunciaram. Sabemos que seremos felizes se crermos sem ter visto.

Acreditamos na comunidade que os Apóstolos fundaram a partir da fé na ressurreição. É nesta comunidade que somos iniciados na fé, no discipulado. “A fé e o tesouro da mensagem evangélica são realidades que não se recebem pessoalmente, mas através da comunidade. A iniciação cristã pressupõe uma comunidade de fé” (Dom A. Possamai). Não é possível ser cristão sem estar inserido numa comunidade de fé. Nossa fé não é privada, mas apostólica e eclesial. “Para ser fiel a Cristo não basta orar e celebrar; é preciso fazer o que ele fez: repartir a vida com os irmãos. Crer não é somente aceitar verdades. É agir segundo a verdade do ser discípulo e seguidor de Cristo” (Pe. J. Konings).

Mais. Enquanto Tomé não fizera o encontro com o Senhor Ressuscitado tocando-lhe a chaga, não acreditara naquele a quem seguira por anos. O texto não diz que Tomé tocou a chaga do Mestre, mas permite perceber que ele a vira: “Estende tua mão e põe-na no meu lado... Porque viste, creste...” (Jo 20,27.29). Concluímos que, somente aquele que “tocar” a chaga do Ressuscitado poderá fazer uma profissão de fé que brota de dentro, isto é, verdadeira e comprometida. E que “chaga” é esta? Os pobres, preferidos do Senhor com quem ele se identifica: “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Em outras palavras: quem diz crer em Jesus Ressuscitado e não o reconhece (“toca”) nos pobres e sofredores, mostra uma fé cristã imatura e inadequada. E se Tomé representa a comunidade cristã, o que foi dito vale para a comunidade que se diz cristã, mas não “toca” os pobres.

A propósito ainda de Tomé, esta figura controvertida do evangelho de João, podemos afirmar que suas dúvidas e objeções transformaram-se em bênçãos para nós. Quando na Ceia Jesus afirmou: “Para onde eu vou, vós já conheceis o caminho”, Tomé responde: “Senhor, não sabemos para onde vais; como podemos conhecer o caminho?” Esta objeção de Tomé arrancou de Jesus uma das mais sublimes palavras do evangelho: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,4-6). São Gregório Magno, a propósito de Tomé, escreveu em uma de suas homilias: “A incredulidade de Tomé foi para nós mais útil do que a fé dos discípulos que haviam acreditado”. Suas dúvidas beneficiaram a fé na ressurreição.

Mais um pouquinho de Tomé. O Mestre, naquele encontro com seu apóstolo “incrédulo”, faz com que eleve seu nível de fé. Restabelecido pela presença do Ressuscitado, Tomé pronuncia aquelas palavras que ainda nenhum apóstolo atrevera a dizer, ao menos que se tenha registrado nos Evangelhos, a respeito de Jesus: “Meu Senhor e meu Deus”.

Peçamos ao Senhor que nos ajude na nossa pouca fé para que as sombras da dúvida, as incertezas e mesmo a perseguição ou o fracasso não nos dominem impedindo de levar a alegria da boa nova àqueles que jazem no desencanto, na desesperança, no isolamento. A experiência do encontro com o Ressuscitado deu novo vigor à comunidade para que pudesse continuar a missão de Jesus. E, já que não podemos “tocar” ou “ver” as chagas do Ressuscitado, Ele, como fizera ao leproso que lhe suplicara: “Senhor, se queres podes curar-me”, ao que responde: “Quero; fica curado!” (cf. Mt 8,2-3), toque e cure nossas chagas, incontestavelmente diversas das suas, pois produzidas pelo pecado ou pela nossa própria condição humana. Que a Eucaristia que celebramos, encontro com o Ressuscitado, nos liberte do medo, nos encha de alegria e de ardor para partilharmos com os mais necessitados o pão, a palavra, o afeto, a acolhida, a solidariedade, o perdão.

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UM ENCONTRO QUE TRANSFORMA

O evangelho deste domingo nos convida a lançar um olhar sobre nossas assembleias dominicais: como celebramos e que sentido continua tendo o domingo para nós cristãos? As celebrações não precisam ser teatrais nem shows para “atrair” as pessoas. Nem se destinam a isso! Precisamos de celebrações que ajudem os fiéis a fazer uma verdadeira experiência de Deus. E o domingo, o dia do Senhor, dia do descanso, dia da Criação, dia da Ressurreição, precisa recuperar seu sentido na vida do cristão.

Vivemos um tempo de crise sem precedentes na história da Igreja. Também a trajetória política e econômica de nosso País nos desencanta e entristece. Se não nos voltarmos para Jesus Cristo, realizando um encontro profundo com ele, um encontro capaz de renovar nossas estruturas mentais, de romper as dobras de nosso coração, não se manterá viva na história a memória de Jesus Ressuscitado. Pois há motivos de sobra para nos desacorçoarmos e desistirmos de nossa missão profética na história. Assim a Igreja ficaria omissa na sua missão de continuadora e atualizadora, pela força do Espírito Santo, dos gestos e palavras de Jesus.

O encontro com Jesus ressuscitado transformou a vida dos discípulos. E Tomé foi movido por aquela alegria contagiante de seus companheiros que lhe disseram: “Vimos o Senhor!” Embora tenha, inicialmente, relutado a crer, a fé dos seus irmãos o motivou a continuar dentro da comunidade. E Jesus lhe confirma a fé.

Tomé duvidou. O relato tem duas intenções: primeiro, quer mostrar que fora da comunidade é muito difícil de se crer e se salvar; segundo, esse relato quer dizer que é preciso crer no testemunho dos discípulos. Não é preciso ver para crer. Confirma o que ocorreu ao discípulo que Jesus amava: viu o túmulo vazio e creu (cf. Jo 20,8). Sem ter visto o Senhor ressuscitado, acreditou. Quem ama, crê. Isso veio desfazer uma mentalidade crescente, na época, que todos os que quisessem aderir à fé cristã precisavam “ver” o Ressuscitado. De ora em diante se confirmou: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto”.

Ainda um elemento que não pode ser esquecido no relato de hoje é o dom da Paz que Jesus dá aos discípulos e o dom do Perdão, grande presente pascal. A alegria da comunidade é experimentar, em meio ao medo da perseguição das autoridades judaicas, a paz que brota do coração amoroso de Cristo. E Jesus, sabendo das fraquezas humanas e dos pecados que daí provinham, oferece a “segunda tábua de salvação”, o sacramento da Reconciliação: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados”.

Mais do que nunca é urgente reafirmar nossa fé no Ressuscitado e na sua presença em nosso meio. Não se trata de pregar, de falar, de tentar convencer com afirmações doutrinais apenas, num proselitismo fanático. Isso vale muito pouco para o mundo em que vivemos. É preciso fazer experiência de um encontro verdadeiro. É notável quando uma comunidade está verdadeiramente imbuída do espírito de Jesus Ressuscitado. Ela procura viver como Jesus viveu: sabe escutar, tem sensibilidade, está atenta ao mais sofrido e necessitado. Não se rege por normas e leis, mas pela misericórdia. Não tem medo de enfrentar dificuldades e perseguições por causa de Cristo e em defesa dos pequenos e sofredores. Essa comunidade não se deixa levar pelo medo nem pela mania de grandeza nem pela ganância do dinheiro, do poder e da competição. Ela manifesta, no seu agir, o agir de Cristo. A comunidade se torna um espaço em que se experimenta a presença viva do Ressuscitado.

Sem a força do Cristo ressuscitado continuaremos com medo e de portas fechadas. Se não buscamos nele a força e orientação de como lidar com os desafios atuais, não conseguiremos alimentar a esperança daqueles que ainda permanecem em nossas comunidades e, muito menos, atingiremos os ‘de fora’.

A paz, o perdão e a alegria são frutos da ressurreição. Quando participamos das celebrações e atividades de nossas comunidades precisamos voltar para casa mais animados, mais apaixonados por Jesus Cristo, mais confiantes, mais seguros de que estamos no caminho certo, mais vibrantes em nossa fé, mais dispostos a colaborar e em construir fraternidade. Se isso não estiver acontecendo, precisamos rever nossas celebrações, nossas comunidades e nossa vida.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Espírito Santo, Senhor que dá a vida

aureliano, 03.06.22

Pentecostes - 05 de junho 2022.jpg

Solenidade de Pentecostes [05 de junho de 2022]

[Jo 20,19-23 ou Jo 14,15-16.23-26] 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Inicialmente celebrada pelos israelitas, Pentecostes era a comemoração da colheita dos primeiros frutos do trigo. Porque marcava o 50º dia depois do início da colheita, era, por esse motivo, chamada de Pentecostes. (Confira Ex 23, 14-17; 34, 22; Lv 23,15-21; Dt 16, 9-12). É a festa da colheita. Portanto, tempo de muita alegria e fartura.       

A narrativa de At 2, 1-11 mostra a importância que ganhou na Igreja esta festa. Fazendo uso de um recurso literário, Lucas faz o Pentecostes cristão coincidir com o Pentecostes judaico. O Espírito se manifesta confirmando a missão que os discípulos haviam recebido do Mestre. Pentecostes marca o nascimento da Igreja. É a celebração dos frutos do Ressuscitado: o perdão e a paz que brotam de seu Coração bondoso, superando o egoísmo e a maldade do coração humano.

A MENSAGEM DO EVANGELHO

No próprio dia da Páscoa Jesus vem entregar o Dom do Espírito Santo aos seus discípulos. Este Dom garante a continuação da missão de Jesus no mundo. A missão de dar a paz e de tirar o pecado do mundo: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19); “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23). É o próprio Jesus agindo por meio de sua Igreja.

“As portas estavam fechadas por medo dos judeus”: Esse relato nos faz pensar no medo que tomava conta dos discípulos antes de serem revestidos do Dom do Pai. Como o medo nos paralisa, nos fecha em nós mesmos, nos impede de servir! O medo é um sentimento que precisa ser assumido e trabalhado em nós. Quando agimos movidos pelo medo fazemos muito mal a nós e aos outros. Medo de assumir um trabalho na comunidade; medo de arriscar; medo de assumir a própria vida; medo de romper com relações que escravizam e destroem a própria vida e a vida dos outros; medo de falar e de viver a verdade; medo movido pela preocupação excessiva com a própria imagem: o que vão pensar ou dizer? Medo de chamar para conversar sobre dificuldades interrrelacionais. Medo da doença, medo da morte, medo de ser abandonado, desprezado, ridicularizado. É preciso vencer o medo! O medo fecha a porta para Deus e para os irmãos! “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33).

Mas há o outro lado da moeda: aqueles que querem amedrontar, causar pânico, intimidar os outros, gritar, esbravejar, fazer calar a boca. Quantas pessoas se satisfazem provocando medo para dominar. Querem se impor pela força física, pela pressão psicológica, pelo cargo que exercem, pelas ameaças que fazem, pelo poder econômico ou político. Há muitas pessoas que sofrem terrivelmente debaixo de gente perversa, dominadora, satânica. Há gente que domina os outros até mesmo servindo-se da religião ou da boa-fé da pessoa. Crianças, mulheres, idosos, pobres, pessoas vulneráveis e indefesas são as principais vítimas dos dominadores. Um pecado que brada aos céus e pede a Deus vingança! Jesus nunca se impôs aos outros, nunca amedrontou ninguém. Pelo contrário, sempre mostrou-se afável, acolhedor, doador do perdão e da paz.

“Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Palavra de Jesus aos discípulos antes de comunicar-lhes do Dom do Espírito Santo. É um elemento essencial na missão. O Pai enviou o Filho para comunicar seu amor ao mundo. Agora o Filho envia aqueles que ele escolheu e consagrou com essa mesma missão: o Pai nos ama e quer salvar a todos. Quer comunicar-nos o perdão e a paz. A Igreja é a mensageira e portadora dessa Boa Nova.

ABRIR O CORAÇÃO PARA A MISSÃO

Ao longo de seu ministério Jesus havia prometido o Espírito Santo aos seus discípulos para auxiliá-los na tarefa que lhes confiaria. Ele teria a missão de inspirá-los, fortalecê-los, lembrar-lhes o que lhes havia ensinado. Desde então lhes restava plantar, pois o Pai garantiria a colheita.

Compete a nós abrir o coração para a ação do Espírito Santo em nossa vida a fim de que nossa vida e nossas comunidades se renovem. Aquele vigor concedido aos primeiros discípulos continua sendo dado a quem se abre à sua ação libertadora. Deixemos o Espírito agir em nós, pois sem a sua força a Igreja fica estéril e confusa, sem ternura e sem missão.

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A FORÇA DO ALTO PERDOA E ANIMA

A festa de Pentecostes tem sua história na comunidade israelita. Inicialmente era o agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Uma festa agrícola. Posteriormente foi associada à entrega da Lei no Sinai, tornado-se assim a festa da Aliança de Deus com seu povo.

No cristianismo, Pentecostes celebra a manifestação pública da Igreja. Embora, segundo João, o Espírito Santo seja dado no dia da Páscoa, na Ressurreição, a comunidade lucana a coloca cinquenta dias depois da Páscoa, para evocar e celebrar a manifestação pública da Igreja. Em forma de “línguas de fogo” para dizer do testemunho e da palavra dos discípulos de Jesus manifestando a ação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. No Sinai foi entregue a Lei a Moisés, escrita em tábuas de pedra. Aqui celebramos a Lei derramada nos nossos corações.

 O evangelho deste domingo mostra a comunidade dos discípulos acuada, medrosa. Os discípulos não tinham iniciativa nem coragem de anunciar a experiência que haviam feito de Jesus. Aquele em quem haviam depositado a esperança frustrou-lhes as expectativas: morrera na cruz como um malfeitor. Porém, a divina “Ruah” do alto, aquele Sopro vital os encheu de novo ânimo, de coragem. Começam então a anunciar, com todo ardor e entusiasmo, aquela realidade que haviam experimentado: a vida de Jesus e a vida em Jesus é o caminho para se viver de maneira justa, alegre e mais feliz.

Soprou sobre eles e disse...”. Esta passagem nos faz lembrar aquele sopro vital que o Criador fez penetrar no homem formado da argila: “Ele insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo” (Gn 2,7). Ou mesmo aquele Sopro de vida de que fala o profeta Ezequiel: “Porei meu sopro em vós para que vivais” (Ez 37,14). Somos cristãos leigos de barro, padres de barro, bispos de barro. É o Sopro Santo de Deus que nos comunica vida. Jesus comunica a nova vida que ele veio trazer do Pai: o Espírito Santificador que nos inspira, nos ilumina, nos fortalece para darmos testemunho da ressurreição do Senhor.

É interessante notar que o Espírito Santo não desceu somente sobre os “Onze”. Ele veio sobre todos que estavam no Cenáculo. Ali havia muitas outras pessoas além dos Apóstolos. O Espírito de Jesus penetra no coração daquelas pessoas e lhes dá novo vigor, novo sentido de vida. Sem o Espírito Santo a vida fica sem sentido, vazia, deslocada daquele centro vital para o qual o Pai nos criou. Desfocada, a vida começa a perder o sentido e o pecado encontra guarida dentro de nós. É a destruição da vida da pessoa. A alegria dá lugar à tristeza, a paz cede a brigas e intrigas, a partilha perde terreno para o egoísmo, o perdão é substituído pelo desejo de vingança, a fraternidade é suplantada pela dominação e coisificação das pessoas, a fé perde para a dúvida e o ceticismo.  Quando Jesus sopra sobre os discípulos e lhes dá o Espírito Santo com o poder de perdoar os pecados, ele quer mostrar que a missão da Igreja, pela força do Espírito Santo, deve ser a de tirar o pecado do mundo.

O pecado, segundo Pe. Antônio Pagola, é a “força de gravidade que nos impede de ir a Deus”. Muito mais do que culpa, é peso, escravidão. Mais do que falar de perdão, é preciso, pois, falar de libertação. Por isso chamamos a Jesus de Salvador. Nota-se, pois, uma vez mais, que o Evangelho não é um ligeiro verniz que se passa no ser humano, mas é tomá-lo a partir do seu ser mais profundo, assim como é, e tornar possível sua volta para Deus. Este é o primeiro fruto do Espírito de Jesus: a libertação. Este é o Espírito, o Espírito do Filho, o Espírito dos filhos, aquele que nos resgata da escravidão da terra e nos abre o horizonte luminoso de filhos.

Esse Espírito traz e atualiza a novidade de Cristo: “Sem o Espírito Santo, Deus está distante; o Cristo permanece no passado; o evangelho, uma letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um poder; a missão, uma propaganda; o culto, um arcaísmo; e a ação moral, uma ação de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é enobrecido pela geração do Reino, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho se faz força do Reino, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a ação humana se deifica” (Atenágoras I, Patriarca de Constantinopla).

Todos nós sentimos dificuldades. Todos sentimos a fraqueza na fé, a fragilidade da existência, a força do pecado em nós. Por vezes o mal parece prevalecer. O bem fica apagado. Fazemos o bem, nos empenhamos na construção de um mundo melhor, mas parece que nossa luta é em vão. Então peçamos ao Espírito Santo que, como aos discípulos e discípulas no Cenáculo, nos encha de seu amor, de sua luz, de sua força:

Vem Espírito Santo e liberta-nos do pecado, sustenta nossa pequenez, dá-nos tua força contra o mal. Não nos deixes desanimar, desistir de caminhar na direção do bem. Mais do que fazer o bem, ajuda-nos a ser bons, justos, solidários, fraternos, promotores da paz. Enche-nos de tua bondade, de tua sabedoria para reproduzirmos em nossa vida as ações de Jesus que “passou pelo mundo fazendo o bem”. Amém.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

O perdão e a paz: dons do Espírito Santo

aureliano, 22.05.21

Pentecostes 2018.jpg

Solenidade de Pentecostes [23 de maio de 2021]

[Jo 20,19-23] 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Inicialmente celebrada pelos israelitas, Pentecostes era a comemoração da colheita dos primeiros frutos do trigo. Celebrada no 50º dia depois do início da colheita, era, por esse motivo, chamada de Pentecostes. (Confira Ex 23, 14-17; 34, 22; Lv 23,15-21; Dt 16, 9-12). É a festa da colheita, portanto, tempo de muita alegria e fartura.

A narrativa de At 2, 1-11 mostra a importância que ganhou na Igreja esta festa. Fazendo uso de um recurso literário, Lucas faz o Pentecostes cristão coincidir com o Pentecostes judaico. O Espírito se manifesta confirmando a missão que os discípulos haviam recebido do Mestre. Pentecostes marca o nascimento da Igreja. É a celebração dos frutos do Ressuscitado: o perdão e a paz que brotam de seu Coração bondoso, superando o egoísmo e a maldade do coração humano.

A MENSAGEM DO EVANGELHO

No próprio dia da Páscoa Jesus vem entregar o Dom do Espírito Santo aos seus discípulos. Este Dom garante a continuação da missão de Jesus no mundo. A missão de dar a paz e de tirar o pecado do mundo: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19); “Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23). É o próprio Jesus agindo por meio de sua Igreja.

“As portas estavam fechadas por medo dos judeus”: Esse relato nos faz pensar no medo que tomava conta dos discípulos antes de serem revestidos do Dom do Pai. Como o medo nos paralisa, nos fecha em nós mesmos, nos impede de servir! O medo é um sentimento que precisa ser assumido e trabalhado em nós. Quando agimos movidos pelo medo fazemos muito mal a nós e aos outros. Medo de assumir um trabalho na comunidade; medo de arriscar; medo de assumir a própria vida; medo de romper com relações que escravizam e destroem a própria vida e a vida dos outros; medo de falar e de viver a verdade; medo movido pela preocupação excessiva com a própria imagem: o que vão pensar ou dizer? Medo de chamar a outra pessoa para conversar sobre dificuldades interrrelacionais. É preciso vencer o medo! O medo fecha a porta para Deus e para os irmãos!

“Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Palavra de Jesus aos discípulos antes de comunicar-lhes do Dom do Espírito Santo. É um elemento essencial na missão. O Pai enviou o Filho para comunicar seu amor ao mundo. Agora o Filho envia aqueles que ele escolheu e consagrou com essa mesma missão: o Pai nos ama e quer salvar a todos. Quer comunicar-nos o perdão e a paz. A Igreja é a mensageira e portadora dessa Boa Nova.

ABRIR O CORAÇÃO PARA A MISSÃO

Ao longo de seu ministério Jesus havia prometido o Espírito Santo aos seus discípulos para auxiliá-los na tarefa que lhes confiaria. Ele teria a missão de inspirá-los, fortalecê-los, lembrar-lhes o que lhes havia ensinado. Desde então lhes restava plantar, pois o Pai garantiria a colheita.

Compete a nós abrir o coração para a ação do Espírito Santo em nós a fim de que nossa vida e nossas comunidades se renovem. Aquele vigor concedido aos primeiros discípulos continua sendo dado a quem se abre à sua ação libertadora. Deixemos o Espírito agir em nós, pois sem a sua força a Igreja fica estéril e confusa, sem ternura e sem missão.

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A FORÇA DO ALTO PERDOA E ANIMA

A festa de Pentecostes tem sua história na comunidade israelita. Inicialmente era o agradecimento a Deus pelos frutos da terra. Uma festa agrícola. Posteriormente foi associada à entrega da Lei no Sinai, tornado-se assim a festa da Aliança de Deus com seu povo.

No cristianismo, Pentecostes celebra a manifestação pública da Igreja. Embora, segundo João, o Espírito Santo seja dado no dia da Páscoa, na Ressurreição, a comunidade lucana a coloca cinquenta dias depois da Páscoa, para evocar e celebrar a manifestação pública da Igreja. Em forma de “línguas de fogo” para dizer do testemunho e da palavra dos discípulos de Jesus manifestando a ação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. No Sinai foi entregue a Lei a Moisés, escrita em tábuas de pedra. Aqui celebramos a Lei derramada nos nossos corações.

 O evangelho deste domingo mostra a comunidade dos discípulos acuada, medrosa. Os discípulos não tinham iniciativa nem coragem de anunciar a experiência que haviam feito de Jesus. Aquele em quem haviam depositado a esperança frustrou-lhes as expectativas: morrera na cruz como um malfeitor. Porém, a “Ruah” do alto, aquele Sopro vital os encheu de novo ânimo, de coragem. Começam então a anunciar, com todo ardor e entusiasmo, aquela realidade que haviam experimentado: a vida de Jesus e a vida em Jesus é o caminho para se viver de maneira justa, alegre e mais feliz.

“Soprou sobre eles e disse...”. Esta passagem nos faz lembrar aquele sopro vital que o Criador fez penetrar no homem formado da argila: “Ele insuflou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser vivo” (Gn 2,7). Ou mesmo aquele Sopro de vida de que fala o profeta Ezequiel: “Porei meu sopro em vós para que vivais” (Ez 37,14). Somos cristãos leigos de barro, padres de barro, bispos de barro. É o Sopro Santo de Deus que nos comunica vida. Jesus comunica a nova vida que ele veio trazer do Pai: o Espírito Santificador que nos inspira, nos ilumina, nos fortalece para darmos testemunho da ressurreição do Senhor.

É interessante notar que o Espírito Santo não desceu somente sobre os “Onze”. Ele veio sobre todos que estavam no Cenáculo. Ali havia muitas outras pessoas além dos Apóstolos. O Espírito de Jesus penetra no coração daquelas pessoas e lhes dá novo vigor, novo sentido de vida. Sem o Espírito Santo a vida fica sem sentido, vazia, deslocada daquele centro vital para o qual o Pai nos criou. Desfocada, a vida começa a perder o sentido e o pecado encontra guarida dentro de nós. É a destruição da vida da pessoa. A alegria dá lugar à tristeza, a paz cede a brigas e intrigas, a partilha perde terreno para o egoísmo, o perdão é substituído pelo desejo de vingança, a fraternidade é suplantada pela dominação e coisificação das pessoas, a fé perde para a dúvida e o ceticismo.  Quando Jesus sopra sobre os discípulos e lhes dá o Espírito Santo com o poder de perdoar os pecados, ele quer mostrar que a missão da Igreja, pela força do Espírito Santo, deve ser a de tirar o pecado do mundo.

O pecado, segundo Pe. Antônio Pagola, é a “força de gravidade” que nos impede de ir a Deus. Muito mais do que culpa, é peso, escravidão. Mais do que falar de perdão, é preciso, pois, falar de libertação. Por isso chamamos a Jesus de Salvador. Nota-se, pois, uma vez mais, que o Evangelho não é um ligeiro verniz que se passa no ser humano, mas é tomá-lo a partir do seu ser mais profundo, assim como é, e tornar possível sua volta para Deus. Este é o primeiro fruto do Espírito de Jesus: a libertação. Este é o Espírito, o Espírito do Filho, o Espírito dos filhos, aquele que nos resgata da escravidão da terra e nos abre o horizonte luminoso de filhos.

Esse Espírito traz e atualiza a novidade de Cristo: “Sem o Espírito Santo, Deus está distante; o Cristo permanece no passado; o evangelho, uma letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um poder; a missão, uma propaganda; o culto, um arcaísmo; e a ação moral, uma ação de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é enobrecido pela geração do Reino, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho se faz força do Reino, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade se transforma em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a ação humana se deifica” (Atenágoras I, Patriarca de Constantinopla).

Todos nós sentimos dificuldades. Todos sentimos a fraqueza na fé, a fragilidade da existência, a força do pecado em nós. Por vezes o mal parece prevalecer. O bem fica apagado. Fazemos o bem, nos empenhamos na construção de um mundo melhor, mas parece que nossa luta é em vão. Então peçamos ao Espírito Santo que, como aos discípulos e discípulas no Cenáculo, nos encha de seu amor, de sua luz, de sua força:

Vem Espírito Santo e perdoa nosso pecado, fortalece nossa pequenez, dá-nos tua força contra o mal. Não nos deixes desanimar, desistir de caminhar na direção do bem. Mais do que fazer o bem, ajuda-nos a ser bons, justos, solidários, fraternos. Enche-nos de tua bondade, de tua sabedoria para reproduzirmos em nossa vida as ações de Jesus que passou pelo mundo “fazendo o bem”.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Atitude confiante: “Senhor, salva-me”

aureliano, 07.08.20

19º Domingo do TC - A - 09 de agosto.jpg

19º Domingo do Tempo Comum [09 de agosto de 2020]

[Mt 14,22-33]

O relato de hoje está em continuidade com o relato da multiplicação dos pães (Mt 14,13-21). Aquele Jesus que multiplicou os pães, dando um sinal do Reino anunciado nas parábolas do capítulo 13 de Mateus, tem poder também sobre a tempestade do mar (como nos relatos teofânicos do Antigo Testamento). N’Ele se pode confiar. O discípulo pode assumir a participação em sua vida: “Dai-lhes vós mesmos de comer”, pois nas tempestades da vida, ele está junto, não abandona.

É interessante fazer a leitura da simbologia presente neste relato: o mar revolto, na mitologia antiga, representava o domínio das forças do mal. Aquilo que o homem não conseguia explicar ou dominar ele o atribuía a forças superiores: ou deuses, ou anjos, ou demônios, ou monstros marinhos. A noite significava o domínio das trevas. O barco, a realidade de cada um em meio aos desafios: ondas e ventos. Pode também significar a comunidade que faz experiências diferentes: sem a presença de Jesus, é tomada pelo medo; com Jesus, acalma-se e continua sua missão.

O evangelho de hoje nos ajuda a repensar muitas coisas. Primeiro, mostra Jesus orante. Mateus mostra Jesus orando apenas duas vezes: aqui, depois da multiplicação dos pães, e no Monte das Oliveiras, antes da sua prisão. Lucas já é mais farto em mostrar essa dimensão de Jesus. O fato é que Jesus reservava tempos fortes de oração ao Pai. E o fazia muitas vezes sozinho. Essa atitude de Jesus apresentado nos evangelhos nos faz perguntar: qual o tempo que reservo para a oração, a leitura orante da bíblia, para a celebração? Sem oração, vida de intimidade como o Pai, não se podem vencer as “tempestades” da vida.

Outro elemento é a relação de Jesus com os discípulos e com Pedro, particularmente: não os abandona à mercê das tempestades. Os discípulos quando viram Jesus, pensaram que fosse um fantasma e ficaram com medo. Ninguém podia dominar o mar, caminhar sobre ele! Jesus diz aquelas confortadoras palavras: “Tende confiança, sou eu, não tenhais medo”. A certeza de que Deus caminha conosco, que não nos abandona no meio das dificuldades é muito confortador! Sem a presença dele ficamos apavorados e com medo. Com ele ficamos serenos e confiantes. Pedro até arrisca caminhar sobre as águas! Mas a atitude de Pedro serviu de lição para si mesmo e também para nós. Jesus não pretende que seu discípulo caminhe sobre as águas, faça espetáculo, sinais mirabolantes. Por isso Pedro afunda. Todo aquele que confia em si mesmo, que busca o poder, assume atitude de dominação, assume atitudes de autossuficiência está na contramão do ensinamento de Jesus. E, consequentemente, afunda-se a si mesmo e aos outros. Nossa atitude deve ser sempre parecida com a de Jesus: confiar no Pai e estender a mão àqueles que estão afundando no mar da maldade, da injustiça, do sofrimento. Quantas pessoas a nos dizer todos os dias: “salva-me!”.

Um elemento que não pode passar despercebido é também a dimensão da fé. Muitas vezes entende-se fé como o conhecimento intelectual de um conjunto de verdades e doutrinas proclamadas e proferidas com os lábios. O relato do evangelho de hoje manifesta claramente que fé é um dom de Deus que precisa ser cultivado e que se manifesta em atitude de vida.  É uma abertura confiante a Jesus Cristo como sentido último da existência. É ter a coragem de “caminhar sobre as águas”. Ou seja, entregar-se confiante a Deus e não aos ídolos cotidianos que nos iludem, sugam nossas energias e desviam nossa atenção do caminho do bem. É viver sustentados não por nossas seguranças materiais e argumentos puramente racionais, mas por nossa confiança n’Aquele que nos toma pela mão. Aquele que nos move a dar a mão a quem está sendo sufocado pela maldade humana ou pelas dores da vida. É egoísmo rezar: “Senhor acalma minha tempestade”, quando não me sensibilizo diante da tempestade do outro que pode ser maior do que a minha. Ou pior ainda, quando sou motivo de tempestade na vida do outro trazendo-lhe dor, sofrimento, angústia, miséria.

Por outro lado, este relato dá margem para refletir sobre as incertezas e falta de fé muito presentes em nossa sociedade contemporânea. Hoje já se fala de sociedade pós-cristã. Experimentamos uma realidade social religiosa, porém sem fé cristã. Muitos buscam expressões e manifestações religiosas, mas não querem se comprometer com a fé proclamada. Fazem da religião uma espécie de supermercado. Cada um busca na religião o que lhe convém, aquilo que mais lhe agrada ou atende a seus anseios e sentimentos do momento. A falta de fé, as dúvidas, as incertezas não estão longe de nós. Estão dentro de nossas casas, de nossas comunidades, até mesmo dentro de nós ocorre experimentarmos aquele sentimento de Pedro e a atitude dos discípulos - medo, insegurança, incerteza - que mereceram a advertência de Jesus: “Homem fraco na fé, por que duvidaste?” (Mt 14,31). Por outro lado, Jesus o tomou pela mão, bem como dissera aos discípulos: “Tende confiança, sou eu, não tenhais medo” (Mt 14,27).

Finalmente, um grande ensinamento deste relato é o modo como Deus se manifesta: na brisa suave (1Rs 19, 9-13). Nosso Deus não é um Deus da ameaça, do medo, da punição, do castigo. De jeito nenhum. O Deus que Jesus revela é um Deus misericordioso, manso, que se dá a conhecer nas pequenas coisas. Isso não significa que seja um Deus de moleza, complacente, pois tem mais força do que o mar. Ele quer que não tenhamos medo, mas uma fé confiante. E essa fé não é de momento, de entusiasmo, como fogo de palha, mas constante, indo até Ele sem se deixar “levar pelas ondas”.

Senhor, salva-nos da corrupção, da falta de ética, da mentira, da perversidade de coração que ameaça milhões de brasileiros desempregados, injustiçados e invisíveis. Salva-nos, Senhor, de gente corrupta, mentirosa e depravada. Salva-nos, Senhor, quando a mesquinhez e a ganância ameaçam tomar conta de nosso coração. Salva-nos, Senhor, quando a fé, a confiança, a esperança se mostrarem enfraquecidas e ressequidas pelas ondas do materialismo, do hedonismo, do narcisismo, do desencanto e do relativismo. Salva-nos, Senhor! Toma-nos pela mão, sobretudo quando nos faltarem forças, quando o desânimo nos ameaçar, quando a escuridão embaçar nossos horizontes. Salva-nos, Senhor! Toma-nos pela mão! Tira todo medo de nosso coração. Ajuda a nossa pouca fé! Amém.

*Nesse mês consagrado às vocações seria bom intensificarmos nossa oração pelas vocações e também promovermos o trabalho vocacional em nossas comunidades. Muitas pessoas não assumem ministérios na comunidade ou mesmo não entram para a vida consagrada e presbiteral por falta de motivação, apoio. Que você tem feito pelas vocações?

**Comemoramos neste domingo o Dia dos Pais. Penso que seria oportuno lembrarmos, com mais piedade e carinho, de nossos pais, vivos ou falecidos. Fazer uma viagem na nossa própria história e descobrirmos aí motivos para agradecermos ao Pai do céu o dom de nossa vida cuidada pelos nossos pais. Quanta luta, quanto trabalho, quantas angústias nossos pais sofreram e enfrentaram para nos criar e educar! Também seria bom exercitarmos a atitude de perdão para com nosso pai se porventura temos motivo para isso: naquelas situações que nosso pai não exerceu com seriedade e responsabilidade a paternidade. Enfim, cada qual sabe como deverá se colocar diante de Deus para louvar e agradecer.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“Não tenhais medo!”

aureliano, 19.06.20

!2º Domingo do TC (Pe. Valdecir -  Caminho Infini

12º Domingo do Tempo Comum [21 de junho de 2020]

[Mt 10,26-33]

Estamos no capítulo 10º de Mateus. Ele chama os discípulos e os envia em missão. Depois de transmitir aos seus discípulos sua própria autoridade (Mt 9,35 – 10,16), Jesus não lhes esconde que deverão enfrentar perseguição e sofrimento por causa dEle. Ao enviar os discípulos, Jesus lhes transmite algumas orientações. São sentenças orientadoras de Jesus para a ação missionária das comunidades. As orientações no relato de hoje querem fortalecer e prevenir o discípulo contra o medo. Não ter medo de ser perseguido por causa do evangelho.

Um dado interessante na vida é que sofrimento e perseguição são realidades diferentes. Enquanto o sofrimento é uma realidade angustiante que atinge a todas as pessoas, inocentes e culpados, a perseguição, na perspectiva da Sagrada Escritura, atinge os justos exatamente por serem justos. O amor e a fidelidade à Palavra de Deus trazem como consequência a perseguição. Nem sempre o sofrimento é fruto de perseguição. Mas a perseguição gera sofrimento. A confiança em Deus dá serenidade para lidar com a dor. É o que podemos notar em Jeremias, como nos atesta a primeira leitura deste domingo: Jr 20,10-13. Elemento fundamental neste relato é a confiança em Deus: “O Senhor está ao meu lado”.  “A ti confiei a minha causa”. “Ele livrou a vida do pobre das mãos dos malvados”.

Por três vezes o Senhor adverte: “Não tenhais medo.” Por que será que Jesus insiste tanto nesse ponto? Na verdade, o medo é um dos maiores impedimentos ao anúncio do evangelho. E este não pode permanecer escondido: “O que escutais ao pé do ouvido, proclamai-o sobre os telhados”. Além disso, o medo expõe o discípulo ao risco de ser renegado: “Aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus”.

Outra dimensão do medo está na linha existencial: medo de ser rejeitado pelo grupo, medo de perder oportunidades, medo de perder o emprego, medo de passar necessidades, medo de tomar decisão, medo de perder privilégios, medo de ser criticado, medo de perder a amizade, medo de ser contaminado por alguma doença, medo de ... Na verdade é sempre medo de perder. A gente só quer ganhar. Na hora de perder, de entregar algo de nós ou nosso, “o bicho pega”. E a vida é um “perde-ganha”. Não há ninguém que sempre ganhe na vida. Todo mundo perde alguma coisa: perde os cabelos, perde a beleza, perde parentes e amigos, perde oportunidade, perde a eleição, perde tempo, perde a alegria, perde demanda judicial, perde encantamento, perde...

Acho que a gente precisa aprender a perder, a lidar com os fracassos e frustrações da vida. Um dos grandes dramas da moçada nova (e velha também!) é lidar com os fracassos, com as perdas. Tem gente que acha que vai ser “brotinho” a vida toda! E começa a pintar aqui, espichar ali, cortar acolá, malhar pra ganhar “sarado”, “bombado”. E aonde vai parar? Não há jeito: o tempo é irreversível; a finitude humana é implacável. Todo mundo caminha para o fim. Então a gente precisa dar um novo sentido à vida. E Cristo veio dar esse sentido: “Se o grão de trigo caído na terra não morrer, permanece só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24).

Proclamar o Evangelho do Reino, na comunhão com Cristo, significa empenho pela paz, pela fraternidade, pela justiça. Há duas forças que pressionam o discípulo de Jesus para desistir da empreitada. Podemos nomeá-las em forças externas (perseguições, ameaças de morte, matança de líderes comunitários e agentes de pastorais) e forças internas (desânimo, acomodação, busca de vantagens pessoais, ganância, sede de ter e de poder etc).

Estas forças, de dentro e de fora do ser humano, podem criar uma estrutura fechada, impenetrável, egoísta, que o leva a colocar-se indiferente ao Evangelho. Poderá, talvez, escutá-lo todos os dias na igreja, mas não se deixa penetrar pela Palavra porque criou uma carapaça de busca de si mesmo, de fechamento, de egoísmo, de medo de se doar a quem mais precisa.

A grande questão que precisa ser colocada é que, se o evangelho não é vivido e anunciado, os ídolos, realidades que assumem o lugar de Deus Criador, vão consumindo a humanidade. Idolatria é uma realidade que suga todas as forças e energias que a pessoa tem. Ela mata tudo e todos. A busca do prazer, do ter e do poder a qualquer preço é vislumbre da idolatria. É colocar-se no lugar de Deus, invertendo o processo criacional. Em vez de reconhecer o Senhor como seu Deus, quer submeter o Criador ao seu domínio. Fomos criados por Deus; ele criou tudo para nós; e nós existimos por Ele e para Ele. Este é o sentido da Criação.

Podemos dizer que a mensagem principal do relato de hoje é que o discípulo de Jesus não pode se deixar levar pelo medo, pois Jesus prometeu estar com os seus. Ele não nos abandona, jamais. O medo é paralisante e contrário ao evangelho. Para anunciar o evangelho é preciso vencer o medo e ter a coragem de desapegar-se da própria vida. A confiança e a esperança devem superar o medo. Também é preciso enfrentar os inimigos internos: o comodismo, a preguiça, o envergonhar-se de assumir uma postura cristã, a busca do lucro a qualquer preço, querer sempre levar vantagem em cima dos outros etc. Vive como cristão aquele que coloca Jesus Cristo como centro de sua vida e de suas opções e decisões. O caminho que Jesus nos mostra é o caminho da vida. Sigamos por ele!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN