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aurelius

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O Senhor sempre dá uma nova chance

aureliano, 21.07.23

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16º Domingo do Tempo Comum [23 de julho de 2023]

[Mt 13,24-43]

Continuamos no capítulo 13 de Mateus no qual Jesus conta uma série de parábolas do Reino. No domingo passado pudemos rezar a parábola do semeador na qual Jesus mostra a variedade de terreno e a força da semente que é a Palavra de Deus. A grande tentação é negar-se a prestar ouvido ao que Deus pede de nós: “quem tiver ouvidos, ouça” (Mt 13,9); é negar-se a olhar para Jesus (cf. Hb 12,2) e manter os olhos fixos em si mesmo, alimentando um narcisismo perverso.

Hoje a liturgia traz a narrativa de várias parábolas: do joio e do trigo > deixar crescer juntos entregando a responsabilidade da seleção para Deus; da semente de mostarda > um Reino revestido de humildade, sem grandeza, mas que revela sua força por isso mesmo; do fermento > a força de Deus escondida, porém transformadora.

A parábola do joio e do trigo adverte nossa falta de paciência, de longanimidade (grandeza de alma) diante das fraquezas e pecados alheios. Buscamos resultados imediatos, números, mudança segundo nossos critérios, muitas vezes legalistas e exigentes demais. Ainda mais: quantas vezes nos arvoramos em juízes implacáveis das pessoas! Jesus quer que demos sempre uma nova oportunidade ao ser humano que erra.

As atitudes devem ser avaliadas e julgadas, mas a pessoa deve ser sempre respeitada. Ninguém conhece perfeitamente os recônditos do coração humano. Isso é prerrogativa divina. Por isso, somente a Deus compete o juízo definitivo.

Quando Mateus escreve este texto, provavelmente quer mostrar uma realidade da comunidade que aguardava a vinda de Jesus (Parousia) para muito em breve. Por isso exorta à paciência. Hoje o que impacienta pode ser o ativismo, o imediatismo e mesmo o radicalismo de pessoas até muito engajadas na comunidade, mas que sufocam e matam a semente no coração dos outros.

Penso que a grande lição do evangelho de hoje para nós e nossas comunidades é a de termos mais paciência com as dificuldades dos irmãos, respeitando seus passos, acolhendo suas diferenças. Muitas vezes alguém que poderia crescer muito na comunidade, acaba por minguar-se por falta de incentivo, de apoio, de perdão, de respeito, de tempo, de oportunidade. É preciso dar força ao trigo para que não seja sufocado pelo joio.

Importa, mais do que nunca, acolher a grandeza de Deus que está muito além de nossos pobres e mesquinhos juízos sobre a salvação dada por Deus a todas as pessoas. A nós compete colaborar com o Pai na obra da salvação. Julgar, selecionar, recompensar, punir etc é atributo de Deus. Quando nos deixamos conduzir pelo Espírito de Deus, assumindo o jeito de viver de Jesus, seu projeto vai se realizando no mundo.

Devemos nos colocar sempre como colaboradores de Deus espalhando a semente do bem no mundo e tendo uma atitude que sempre incomode o reino de morte.

O REINO DE DEUS É FEITO DE MISERICÓRDIA, DE SIMPLICIDADE E DE FORÇA INTERIOR

A primeira parábola quer nos ajudar a entender a misericórdia de Deus. A pessoa sempre merece ter mais uma chance, uma oportunidade. O Pai dá sempre tempo para a conversão (cf. Lc 15: parábolas da misericórdia). Isso significa também que não nos podemos escandalizar diante de uma Igreja medíocre, pecadora, longe do ideal evangélico. Feita de santos e pecadores e mergulhada no mundo, ela corre sempre o risco de se contaminar pela maldade. Por isso precisamos mudar nossa ideia de Deus: de um deus violento, intolerante, ciumento, mesquinho, avarento, a um Deus misericordioso, compassivo, paciente e justo. É o Deus revelado por Jesus. Guardemos isso: A ideia que temos de Deus determina nossas atitudes, posturas, relações com o próprio Deus, com nós mesmos, com o mundo e com as outras pessoas.

A segunda parábola lembra-nos a dimensão da simplicidade do Reino de Deus. Dá uma ideia de amplidão, de crescimento, de espaço a partir da pequenez evangélica. A pequenez da semente vem mostrar que a força do Reino não está na aparência, na exterioridade, mas no conteúdo. O Reino de Deus anunciado por Jesus cresce e se expande pela força que vem do Alto.

A terceira parábola nos remete à força interior do Reino de Deus. O fermento age sem ser visto. A gente não vê o fermento no bolo ou no pão. Sabemos que está ali e agiu pelo gosto gostoso. O verdadeiro sabor da vida cristã não vem de fora: de ritos, de shows, de ativismo etc. A força que transforma o ser humano, o mundo, a história vem de Deus. Uma vida alimentada pela mística, pela espiritualidade, pela oração é que vai produzir frutos que transformam o mundo.

Essas parábolas não nos deixam esquecer que o Reino é de Deus. Não somos nós os protagonistas da transformação da história. É Deus que age e transforma as pessoas. Nós somos instrumentos, muitas vezes, desajeitados em suas mãos. Às vezes fazemos bem, às vezes fazemos mal; às vezes ajudamos, às vezes atrapalhamos. O importante é colocar-se sempre aberto e disponível para colaborar na obra da salvação da humanidade. O resto é por conta do Pai. Porque o Reino é dele: “Porque tudo é dele, por ele e para ele. A ele a glória pelos séculos. Amém” (Rm 11,36).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

A mesa da misericórdia. O olhar de Jesus

aureliano, 10.06.23

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10º Domingo do Tempo Comum [11 de junho de 2023]

[Mt 9,9-13]

Acompanhando os passos de Jesus no evangelho percebemos que havia uma categoria de pessoas pelas quais ele tinha verdadeira aversão: aqueles que se consideravam justos. Carregam o pecado da autossuficiência: não tem necessidade de conversão nem de perdão nem de salvação. Percorrendo o evangelho de Lucas, marcado pela misericórdia, vemos o pai acolhendo com bondade o filho mais novo esbanjador dos bens e que volta arrependido (Lc 15,11-32). E, em outro lugar, enquanto o fariseu se apresenta na oração como justo, o publicano invoca a misericórdia de Deus (Lc 18,9-14).

Jesus manifesta no evangelho de hoje sua simpatia pelos pecadores, desprezados e excomungados de seu tempo. Quando acusado de amigo dos pecadores ele responde que os publicanos e as prostitutas os precederão no Reino dos céus (cf. Mt 21,31). Quer mostrar-lhes que ele veio para salvar e não para condenar. E que a justiça de Deus não se compara com a justiça dos homens, pois a justiça de Deus é misericordiosa, transbordante.

O OLHAR DE JESUS

O evangelho diz que “Jesus viu um homem chamado Mateus”. O olhar é uma realidade que tem uma força sobre as pessoas. Tem gente que acredita e tem medo de “mau-olhado”. O olhar pode ser de julgamento ou de acolhida; de condenação ou de perdão; o olhar pode ser sensual ou inocente; de cobiça ou de bendição; de inveja ou de alegria; pode ser fulminante ou de soerguimento. O olhar de uma criança, de um pedinte, de um enfermo tem teor diferente do olhar de um adulto, de um cobiçoso, de alguém dominador e prepotente. Corações petrificados, imersos no mal têm olhar que fulmina, que mata. Corações cheios de bondade e de amor têm um olhar que cura, perdoa e conforta.

O olhar de Jesus atingiu Mateus antes que este o visse. É o olhar do Senhor que nos alcança primeiro. Mateus estava parado, na mesa, desprezado e condenado pelos olhares de seus correligionários. O olhar de Jesus não condena nem julga, mas acolhe e perdoa. Mais do que isso: convida a segui-lo.

Jesus lhe oferece outra mesa. Uma mesa de perdão, de misericórdia, de acolhida, de iguais.  Uma mesa onde todos têm lugar. É a mesa da misericórdia que inclui, que comporta as diferenças, que enche o coração dos convivas de amor, de entusiasmo, de alegria. É assim a mesa de Jesus. É assim o olhar de Jesus. E nosso olhar? E nossas mesas? E nossas celebrações?

VEIO PARA OS PECADORES

Mateus é o cobrador de impostos em Cafarnaum. Odiado pelos seus correligionários por ser colaboracionista do Império Romano que dominava a Palestina naqueles tempos. Também por não observar os rigores da Lei ao manter contato com os pagãos. Portanto, era um homem considerado impuro e traidor.

Jesus, no entanto, o convida a segui-lo. E ele deixa a coletoria de impostos e segue a Jesus. Ainda mais, oferece-lhe uma refeição como gesto de gratidão e reconhecimento ao mestre que o viu e o chamou. A comunhão de mesa era algo que tinha um peso muito grande naqueles tempos culturas. Trouxe até controvérsia nas comunidades cristãs (cf. Gl 2,11-13). Tomar refeição juntos significava estar em comunhão de vida com aqueles que partilhavam o mesmo pão. E quando Jesus recebe os pecadores à mesa era como se ele estivesse comungando daquele estilo de vida levado pelos publicanos e pecadores.

Jesus, no entanto, tem uma intencionalidade muito mais profunda: quer ajudar aquelas pessoas marginalizadas a fazer uma experiência profunda de Deus, um caminho diferente. Quer mostrar-lhes que não são os ritos e práticas externas que salvam, mas uma vida de conversão para Deus. Um coração que seja capaz de amar. Aliás, quando Jesus chamou Mateus não fez apelo à conversão, mas pediu que o seguisse. A convivência com Jesus é que transforma a pessoa. Um encontra que transforma, converte e salva.

Aos fariseus, que murmuram diante da atitude de Jesus, ele lhes diz: “eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”. E ainda lembra o profeta Oséias: “Aprendei o que significa: quero misericórdia e não sacrifício”. Com essas sentenças Jesus dá uma guinada na compreensão que os fariseus e mestres da lei tinham de Deus.  Jesus quer que mudemos nosso modo de pensar  a fé, a religião, a relação com Deus.

A atitude de abertura de Jesus à humanidade pecadora com o desejo de salvá-la encontra ainda resistência em nossas comunidades. Tendemos a nos fechar em pequenos guetos ou  oásis religioso, composto de pessoas puras. Dividimos o mundo em “justos” e “ injustos”, “puros” e impuros”, “santos” e “pecadores”. Com essa mentalidade dualista e farisaica terminamos por afastar as pessoas dos sacramentos e celebrações da Igreja. A consequência é impedir a ação salvadora e libertadora de Cristo no coração dos fiéis.

Jesus à mesa com publicanos e pecadores nos remete à mesa eucarística, sacramento do Corpo e Sangue de Cristo, que nos dá também o perdão, convida à reconciliação, formando o Corpo de Cristo que é sua Igreja.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Hesed: bondade misericordiosa de Deus

aureliano, 09.09.22

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24º Domingo do Tempo Comum [11 de setembro de 2022]

 [Lc 15, 1-32]

Lucas é o evangelista que destaca o rosto misericordioso do Pai, revelado em Jesus. Um Deus amoroso e misericordioso. A Sagrada Escritura conservou um termo hebraico que quer revelar isso: Hesed, a bondade misericordiosa de Deus. Um amor que excede toda medida. Ainda que sejamos infiéis, Ele continua nos amando. Seu amor não depende de nossos méritos: amor totalmente gratuito e generoso. Uma Hesed, um amor que precisa ecoar dentro de nós e expandir ao mundo. Sobretudo nesses tempos de propagação de relações odiosas, de projeto que defende armar a população, de defesa institucional da dominação do grande sobre o pequeno, do rico sobre o pobre, de progresso e crescimento econômico às custas da eliminação dos pobres e da destruição do meio ambiente. É tempo de Hesed: bondade misericordiosa.

O capítulo 15 de Lucas mostra, através de três parábolas, aquele Pai que não quer perder ninguém. É a concretização de Is 49, 15: “Por acaso uma mulher se esquecerá de sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem, eu não me esqueceria de ti”. Quem deseja ser cristão de verdade tem nesse evangelho o ensinamento para sua vida. Este capítulo é considerado o coração do Evangelho de Lucas.

A ovelha perdida, a moeda perdida e o filho perdido lembram o grande amor do Pai que sempre está em busca, procura até encontrar. E encontrando, faz festa!

A OVELHA PERDIDA

O pensamento capitalista da sociedade contemporânea jamais concordará com a atitude do pastor: deixar as noventa e nove para buscar uma única que estava perdida. Diria o capitalista: “Ocupa-te com os ‘bons’, com os que ‘rendem’, pois com os outros perdes teu tempo. Enfraquece-os e deixa-os morrer”. Essa mentalidade se faz presente naquela ideia de que o padre ou o agente de pastoral não tem que ficar visitando as vilas e favelas, os empobrecidos que não frequentam a igreja. Devem-se ocupar do grande grupo. Não seria melhor que uma ovelha se perdesse do que o rebanho todo? É a lógica do mercado. Bem lembrada a comparação: o motorista não se preocupa com o que funciona bem no carro, mas com o que está com defeito.

Ainda existem em nós atitudes farisaicas. Gostamos de resolver os ‘casos difíceis’ pela expulsão ou repressão ou mesmo pela eliminação. Já Deus opta pela reconciliação.

A propósito deste tema, em 17 de junho de 2013 o Papa Francisco ensinava: "Quero dizer-lhes algo: No Evangelho é belo o texto que fala do pastor que, quando volta para o redil, se dá conta de que lhe falta uma ovelha; deixa as noventa e nove e vai procurá-la. Vai procurar uma. Mas nós temos uma e nos faltam as noventa e nove! Temos que sair, temos que buscá-las. Nesta cultura, digamos a verdade, temos somente uma, somos minoria. E não sentimos o fervor, o zelo apostólico de sair e procurar as outras noventa e nove?"

A MOEDA PERDIDA

“Uma mulher tinha dez moedas”. Seria bom que a gente conseguisse enumerar as moedas que temos: dons, qualidades, pessoas, virtudes...

“Perde uma moeda”. Identificadas as ‘moedas’, talvez fosse bom ver qual moeda que a gente não poderia ter perdido de jeito nenhum. Não estamos buscando mais as coisas do que as pessoas?

“Acende uma lâmpada...”. Que lâmpada precisamos acender para iluminar os espaços escuros de nossa vida onde perdemos a ‘moeda’? Nas dificuldades e contradições da vida acendemos a luz ou continuamos caminhando na escuridão? Esta lamparina pode ser uma pessoa amiga, a Palavra de Deus, a Oração, a Confissão, a Eucaristia, o exercício das Obras de Misericórdia etc.

“Varre a casa”. Que espaços de nossa vida precisamos varrer? Relações de ódio e vingança, preguiça, comodismo, apegos a coisas e pessoas, fofoca e intriga, vida afetiva desordenada, mentira e desonestidade, corrupção etc.

“Procura cuidadosamente”. Como temos procurado a ‘moeda’ perdida? Há perseverança, concentração, desejo de encontrar o que se perdeu? É uma busca amorosa? Ou sou movido por medo e escrúpulo? O que me move, mesmo, mais profundamente?

“Até encontrar a moeda”. O que é que nos faz desanimar em nossas buscas pelo essencial? Seria bom identificar aquelas coisas ou pessoas que não nos deixam crescer, que nos desestimulam, que desviam nossa atenção do foco principal e fundamental de nossa vida. Pode ser uma relação afetiva desordenada, busca gananciosa pelo dinheiro, fanatismo político-partidário, desvio do evangelho, moralismo doutrinal, o gosto perverso de mentir e de divulgar mentiras (fake news) etc.

“Quando a encontra”. Já encontramos alguma ‘moeda’ significativa em nossa vida? Qual? Quais?

“Reúne as amigas e vizinhas e diz...”. Nossos convidados, as pessoas que frenquentamos, os amigos com os quais nos reunimos, festejamos, que rosto têm? Quem são? O que eles sonham, conversam? Quais são seus principais assuntos? “A boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc 6,45).

“Alegrai-vos comigo!”. O Papa Francisco tem insistindo muito na necessidade de vivermos uma vida cristã marcada pela alegria. “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus” (EG, 1). Não existe alegria experimentada somente pelo indivíduo. A alegria tende necessariamente a ser partilhada. Experimentamos alegria verdadeira? Com quem partilhamos nossa alegria mais profunda?

“Encontrei a moeda que tinha perdido!”. Que é que estamos procurando e encontrando para deixar como legado, como herança? A alegria da mulher foi a de ter encontrado a moeda que havia perdido. Nosso encontro com o Senhor na oração/celebração tem nos dado verdadeira alegria? Tem nos ajudado na conversão do coração?

O FILHO PERDIDO

O filho mais velho representa aqui o fariseu que contabiliza suas práticas religiosas, mas mantém um coração longe de Deus. Sabe cumprir os mandamentos, mas não sabe amar. Não consegue entender o amor de seu pai para com o filho perdido e encontrado. Não acolhe nem perdoa. Não quer saber de seu irmão. Aliás, nem o reconhece como irmão: “Este teu filho”, diz ao pai. Como se dissesse: “Não é meu irmão”. E o pai se dirige a ele com toda ternura: “Meu filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu”.

O filho mais velho nos interpela, a nós que acreditamos viver juntos do Pai. O que estamos fazendo que não abandonamos a Igreja? Será que não estamos apenas cumprindo ritos e tarefas, talvez com medo de ir para inferno, ou para conseguirmos uma graça, ou apenas por formalidade social e para manter a tradição? “Meu pai era católico... e me batizou na Igreja católica!” E a vida continua como se a fé cristã não fizesse nenhuma diferença no cotidiano.

Precisamos reconhecer a alegria de estarmos sempre na presença de Deus, de podermos experimentar o seu amor. Sejamos como o pai que se alegra com a volta do filho que se afastou. Ajudemos as pessoas a encontrar o caminho de volta para a casa paterna.

Aliás, um elemento significativo das três parábolas deste domingo é a alegria do reencontro. E uma alegria compartilhada com amigos e vizinhos. O único que se aborreceu foi o filho mais velho. Aquele que se julgava dentro de casa, que estava com o Pai. Mas não estava, visto que visava recompensa, e não vivia na gratuidade. Vivia pela lei e não pelo amor.

A alegria da volta à casa do Pai deve ser um distintivo de nossa vida cristã celebrada em comunidade. As ofensas que por vezes ocorrem precisam ser perdoadas para que nossa vida de comunidade possa ser celebrada com mais alegria. Dá o que pensar a observação de Leonardo Boff: “As pessoas de hoje não aceitam mais uma Igreja autoritária e triste, como se fosse ao próprio enterro. Mas estão abertas à saga de Jesus, ao seu sonho e aos valores evangélicos”.

Como lidamos com os afastados da comunidade? Qual tem sido nossa ação missionária junto dos mais pobres e abandonados? Com quem temos sido mais parecidos: com o Pai? Com o filho mais velho? Com o filho mais novo?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Quebrar a corrente da violência

aureliano, 19.02.22

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7º Domingo do Tempo Comum [20 de fevereiro de 2022]

[Lc 6,27-38]

Um sentimento que insiste em habitar no coração humano é o da vingança: pagar o mal com o mal. Uma forma de compensar a dor sofrida é fazer o outro sofrer também. Ou, no mínimo, desejar o mal a quem nos fez mal.

Em A República, capítulo I, no diálogo em busca da definição de justiça no sentido de “dar a cada um o que lhe compete”, Sócrates faz Polemarco afirmar que “a Justiça é favorecer aos amigos e prejudicar os inimigos”. Ora, se o inimigo faz o mal, portanto deve-se-lhe devolver o que ele oferece: o mal. É muito bom prestarmos atenção nisso, pois é isso que escutamos e vemos todos os dias nas redes sociais e televisão. Pagar o mal com o mal. Quem faz o mal deve receber o mal. Recorrer às armas de fogo ou a qualquer outro armamento para combater o mal ou retribuir o mal que recebi. Já prestaram atenção naquelas frases emblemáticas de para-brisa de carro ou para-choque de caminhões? “Que você receba em dobro tudo o que me deseja”. E por aí se vai...

A compreensão de justiça na Sagrada Escritura se distancia da compreensão filosófica. Jesus vem nos ensinar como se deve entender e fazer justiça.  A justiça do Reino de Deus contesta e corrige a justiça humana. Colocar na mente e no coração a novidade trazida por Jesus que estabelece relações a partir do princípio da misericórdia não é tarefa fácil.

Nasce daqui a importância revolucionária que Jesus introduz nas relações humanas acometidas pelos conflitos e violência: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam” (Lc 6,27). Não se pode entender e praticar isso senão mediante o dom da fé. Uma relação amorosa e confiante com o Pai.

Quando Jesus fala do amor aos inimigos, não está falando de mero sentimento em relação a eles. Certamente o sentimento não será livre de dor, de mágoa, sobretudo quando ficam marcas, feridas profundas, cicatrizes que atravessam gerações. Quando deparamos com nossas dores diante do mal causado pelo inimigo, é natural dar-nos tempo para recuperar a paz. Aliás, não é possível ao ser humano simplesmente dizer que está perdoado, e pronto. O perdão não acontece de um dia para o outro. É um processo longo e trabalhoso.

Isso nos ajuda a entender que Deus também tem paciência conosco e nos espera no nosso tempo para nos perdoar.  Portanto, é bom compreendermos que Jesus está falando de atitude que brota da vontade, do querer, de se interessar pelo bem do inimigo. E não de mero sentimento. Uma realidade que parte da experiência de fé. Por causa da minha fé em Jesus, da minha adesão a ele e ao seu evangelho, quero que o meu inimigo, aquele que me fez o mal, se converta e viva, mude de vida, peça perdão, assuma uma vida nova.

Há pessoas que dizem: “Fulano pra mim não existe mais. Não faz mais diferença em minha vida!”. Isso significa que o ofensor foi assassinado no coração. Está morto. Então não houve perdão, mas assassinato. Neste caso o ódio deu lugar à indiferença. Tanto pior.

A novidade introduzida por Jesus quebra a corrente da violência. Ao morrer na cruz, vítima do ódio e violência de seus inimigos, Jesus quis que a corrente da violência terminasse nele, em sua entrega de amor. Nós, seus discípulos, queremos também quebrar a corrente da violência. Ao pagar o mal com o bem, ao abençoar quem nos amaldiçoa, ao pedir a Deus pelos inimigos e ofensores, enfraquecemos a força do mal que insiste em prevalecer no mundo.

O que está em jogo aqui é o amor de Deus que está para além e envolve toda miséria humana. Um amor gratuito, generoso, que não exige nada em troca. Não tem nada a ver com aquela liberalidade humana do chefe que, para agradar os subordinados e ser querido por eles, dá um lauto banquete e distribui presente a todos. Não! Não é isso. Trata-se de uma atitude amorosa, gratuita que se fundamenta em Deus, por causa de Deus, por amor a Deus.

A primeira leitura de hoje (1Sm 25,2.7-9.12-13.22-23) traz uma demonstração disso. Saul quis matar Davi. E este conseguiu se salvar da lança do Monarca. Quando surge uma oportunidade de Davi acabar com a vida de seu perseguidor, não o faz. Por quê?  Pelo fato de ser um ungido do Senhor: “Não o mates! Pois quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor, e ficar impune?” (1Sm 26,11). Davi entrega a Deus a causa: “O Senhor retribuirá a cada um conforme a sua justiça e fidelidade. Pois ele te havia entregue hoje em meu poder, mas eu não quis estender a mão contra o ungido do Senhor” (1Sm 26,23). Quando vejo no outro, por pior que ele me possa parecer, a imagem de Deus, me predisponho a fazer um caminho de perdão e de amor.

Essa passagem da Escritura poderia iluminar também as guerras e conflitos mundiais. Governantes que se dizem cristãos ficam de espreita para avançar e destroçar as comunidades, povos e nações. Sem piedade nem constrangimento nenhum pelo mal causado aos pequenos e fracos. Uma sede satânica de destruição, de usurpação, de avançar e tomar territórios e patrimônios dos outros! Que tristeza! Que falta de humanidade! Que falta de Deus e do evangelho em nosso mundo!

“Sede misericordiosos como vosso pai é misericordioso” (Lc 6,36). Jesus não está pedindo que sejamos perfeitos como o Pai (como está dito em Mt 5,48), mas que imitemos sua bondade, seu gesto de perdão. A medida de nosso perdão oferecido aos ofensores e inimigos faz com que o Pai não nos julgue, não nos condene, mas nos perdoe sempre (cf. Lc 6,37). Pois “com a mesma medida que medirdes, sereis medidos” (Lc 6,38).

Podemos também dizer que o gesto de perdão proposto por Jesus não é uma questão opcional. Não depende de nossa escolha, como se cada um pudesse decidir se perdoa ou não, sem implicação para a humanidade. Não! A generosidade, o perdão, a busca do bem para as pessoas são constitutivos da busca do querer de Deus. É obra de “justiça” no sentido bíblico: nossa relação filial com Deus justo e santo. No perdão acontece nossa realização como cristãos. Em síntese, poderíamos dizer que, sem esse espírito, o nome de cristãos não corresponderia ao que dizemos ser e acreditar.

O cristão é aquele que, no seguimento de Cristo, faz um caminho diferente da proposta social. Caminha na contramão da história. Coloca-se em contestação da sociedade de consumo, de vingança, de violência, de dominação, de mentira, de aparência, de busca de sucesso e poder. Suas atitudes são “estranhas”, incompreensíveis: amar os inimigos, abençoar os amaldiçoam, rezar pelos perseguidores (cf. Lc 23,24. At 7,60).

Portanto, perdoar não é esquecer. Perdoar é dar tempo ao tempo. É saber trabalhar dentro de si o desejo de vingança, o sentimento de ódio. É compartilhar com alguém a dor da ferida sofrida. É buscar a paz interior. É amar de novo. É dar nova oportunidade. É entregar o ofensor nas mãos do Pai misericordioso. Todas as vezes que se lembrar da ofensa, que sentir a dor doída no coração, oferta ao Pai do céu ambos: o ofendido e o ofensor. E poderá dizer com toda confiança: “Pai nosso... perdoai-nos como nós perdoamos”.

Contemplemos o Cristo na Cruz que disse: “Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Estêvão, nas pegadas de Jesus, também perdoou: “Senhor, não lhes leve em conta este pecado” (At 7,60).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

O perdão das ofensas

aureliano, 11.09.20

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24º Domingo do Tempo Comum [13 de setembro de 2020]

[Mt 18,21-35]

Como já dissemos em outro momento, o capítulo 18 de Mateus é um discurso com orientações de Jesus sobre a Igreja. No domingo passado a liturgia da palavra nos ajudava a rever nossa vida comunitária marcada pelo pecado. Como lidarmos, na comunidade, com o irmão que peca (Mt 18,15-20)? O caminho é a tentativa permanente de salvar a pessoa porque “não é da vontade de vosso Pai que está nos céus, que um desses pequeninos se perca” (Mt 18,14).

O evangelho deste domingo quer nos ajudar a trabalhar a realidade do perdão de ofensas interpessoais. Pedro pergunta a Jesus se deve perdoar até sete vezes. Está sendo muito generoso, pois a compreensão que se tinha do perdão recíproco era bem mesquinha. Os mestres daquele tempo explicavam que Deus perdoa até três vezes. À mulher, aos filhos e aos irmãos se recomendava que fossem perdoados certo número de vezes. Mas não se sabia ao certo quantas vezes. Prevalecia, geralmente, lei do Talião: “olho por olho e dente por dente” (cf. Ex 21,22-25).

Jesus vem trazer um ensinamento novo. Pede que se perdoe sempre: “setenta vezes sete”. Número que simboliza a plenitude. É preciso perdoar sempre, ilimitadamente. Como, aliás, já ensinara: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5,44). Também no ensinamento sobre a oração, diz: “Perdoai-nos as nossas dívidas como nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6,12).

Na parábola de hoje Jesus ilumina o caminho do cristão em dificuldade com o irmão: o perdão dado ao ofensor é precedido pelo perdão recebido do Pai. O sentido da parábola está em que Deus perdoa gratuitamente, desinteressadamente a quem lhe pede perdão. A consequência disso é que o ser humano perdoado deve aprender a perdoar seus irmãos gratuitamente, isto é, ainda que não haja nenhum merecimento ou mostras de conversão ou arrependimento da parte de quem ofendeu.

A dimensão do perdão das ofensas tem profundas consequências para a história. Nenhuma comunidade humana se constrói sem perdão. Às vezes somos induzidos por algumas ideias de que o mundo seria melhor se se aplicasse uma estrita justiça, simplesmente castigando-se os maus, sem benevolência. Alguns estão a repetir por aí: “Bandido bom é bandido morto”. Mas qual seria o futuro de uma sociedade ou de uma comunidade em que se suprimisse o perdão? Aonde queremos chegar quando defendemos e promovemos o “olho por olho e dente por dente”? Como é possível conciliar a crença no evangelho e a defesa da tortura e matança? Devemos nos convencer de que só o perdão consegue impor um limite ao mal.

“Queres ser feliz por um momento? Vinga-te. Queres ser feliz para sempre? Perdoa”. Essa expressão de Lacordaire, pensador francês, diz muito. Num primeiro momento somos tomados pela ira e desejamos vingar-nos, pagar o mal com o mal. Mas a satisfação gerada por essa atitude é muito fugaz. Depois vem o remorso, peso na consciência etc.  Por isso a Igreja reza: “Sim, ó Pai, porque é obra vossa que a busca da paz vença os conflitos, que o perdão supere o ódio, e a vingança dê lugar à reconciliação” (Oração Eucarística VIII).

Quem não perdoa irá sempre culpar alguém e vingar-se. Isso produz sofrimento físico e espiritual. Não perdoar gera amargura, azedume, tristeza. Quem perdoa não deixa a amargura enraizar-se no seu coração.

Perdoar é também não julgar, não condenar, compreender, tolerar. Quando perdoamos damos um novo significado ao fato que nos magoou. O perdão realiza o encontro com a verdade de si e do outro. Perdoar é gesto de gratuidade, de generosidade que fazemos de nós mesmos a Deus e aos irmãos.

Perdoar não quer dizer fazer de conta que o mal não existiu nem ignorar a injustiça sofrida nem tampouco esquecer tudo como se nada tivesse acontecido. Não. A injustiça precisa ser reparada de alguma forma. Os instrumentais para ajudar o processo de conversão, de mudança de atitude precisam ser aplicados. E pode ocorrer de nunca nos esquecermos do mal que alguém nos fez. Mas essa lembrança não pode se transformar em ódio e desejo de vingança. O perdão é que cura a ferida.

Sem o perdão somos pesados, doentes, depressivos, agressivos, desumanos. O ressentimento e o desejo de vingança nos envenenam, tornando-nos agressivos, doentes. Podemos ser tomados pela insônia. Morremos aos poucos. Ficamos insuportáveis. Muitas doenças e males físicos e psíquicos têm sua raiz na falta de perdão.

“As conseqüências negativas da falta de perdão são tão perigosas e destruidoras que a Bíblia aconselha a perdoar antes do pôr do sol. Não deixar para amanhã. Não ir dormir com raiva: ‘Não se ponha o sol sobre vossa ira’ (Ef 4,26). Igualmente Jesus manda perdoar setenta vezes sete, isto é, sempre, imediatamente e de todo coração. O perdão é tão benéfico que deve ser dado incondicionalmente, totalmente, incansavelmente. Na oração do Pai Nosso, o perdão está ao lado do pão de cada dia. O perdão também é pão da vida, porque é o amor sem medidas, amor de mãe, amor misericordioso. É o perdão que possibilita a fraternidade e a boa qualidade do relacionamento humano” (Dom Orlando Brandes, Arcebispo de Aparecida).

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CAMINHOS DE PERDÃO

O perdão é algo divino, mas difícil de se compreender e de se viver. O perdão nos torna parecidos com Deus. Sem perdão não se constrói comunidade, família, amizade. Sem perdão é impossível viver-se bem, ser feliz.

Quando Pedro faz essa pergunta a Jesus sobre quantas vezes deve perdoar, ele está querendo uma resposta que lhe atenda o desejo: o máximo até sete vezes! O espírito de vingança dos povos antigos e também no judaísmo era muito forte. A tolerância era quase zero.

Quando Jesus lhe responde "setenta vezes sete vezes" quer dizer que se deve perdoar sempre, sem medida, sem contabilizar. Não se deve vingar nunca, de ninguém. Como Deus é misericordioso e perdoa sempre, assim deve proceder o ser humano.

Essa medida do perdão proposta por Jesus faz lembrar Lamec que diz de si mesmo ser vingado setenta vezes por ter matado um inocente (cf. Gn 4,24). Jesus quer superar esse sentimento de vingança que leva à morte e mostra que o perdão é fonte de vida para quem perdoa e para quem é perdoado. É preciso quebrar a corrente da vingança, do ódio e da violência, como fez Jesus.

Devemos perdoar porque Deus nos perdoou primeiro. Nosso perdão dado aos outros é expressão de gratidão ao Pai pelo perdão que ele nos dá. Quem perdoa é perdoado: "Perdoai-nos como nós perdoamos". A medida do perdão de Deus é sem medida. Perdoamos com a certeza de que Deus nos perdoou primeiro.

Negar o perdão é renegar a misericórdia do Pai. É rejeitar o perdão que Ele nos dá todos os dias.

Perdoar está no nível da razão/vontade/liberdade, não do sentimento/emoção. Por isso a gente não esquece, pois a dor nos faz lembrar. Perdoar está no nível da razão iluminada pela fé, pelo evangelho. Ainda que eu me lembre e me entristeça pelo mal sofrido, digo para mim mesmo e para Deus: “Por amor de Jesus Cristo eu quero perdoar”. Jesus na cruz pediu perdão pelos seus malfeitores: “Pai, perdoa-lhes, não sabem o que fazem” (Lc 23,34). E Estêvão, secundando Jesus, rezou: “Senhor, não lhes leves em conta este pecado” (At 7,60).

Como você lida com o perdão? É capaz de rezar por aqueles que ofendem você? É capaz de desejar-lhes o bem? Fortalece no coração a capacidade de ampará-los se vierem a precisar de você? - Isso é caminho de perdão.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

A paciência de Deus

aureliano, 17.07.20

16º domingo do TC - A - 19 de julho.jpg

16º Domingo do Tempo Comum [19 de julho de 2020]

[Mt 13,24-43]

Continuamos no capítulo 13 de Mateus no qual Jesus conta uma série de parábolas do Reino. No domingo passado pudemos rezar a parábola do semeador na qual Jesus mostra a variedade de terreno e a força da semente que é a Palavra de Deus. A grande tentação é negar-se a prestar ouvido ao que Deus pede de nós: “quem tiver ouvidos, ouça” (Mt 13,9); é negar-se a olhar para Jesus (cf. Hb 12,2) e manter os olhos fixos em si mesmo, alimentando um narcisismo perverso.

Hoje a liturgia traz a narrativa de várias parábolas: do joio e do trigo > deixar crescer juntos entregando a responsabilidade da seleção para Deus; da semente de mostarda > um Reino revestido de humildade, sem grandeza, mas que revela sua força por isso mesmo; do fermento > a força de Deus escondida, porém transformadora.

A parábola do joio e do trigo adverte nossa falta de paciência, de longanimidade (grandeza de alma) diante das fraquezas e pecados alheios. Buscamos resultados imediatos, números, mudança segundo nossos critérios, muitas vezes legalistas e exigentes demais. Ainda mais: quantas vezes nos arvoramos em juízes implacáveis das pessoas! Jesus quer que demos sempre uma nova oportunidade ao ser humano que erra.

As atitudes devem ser avaliadas e julgadas, mas a pessoa deve ser sempre respeitada. Ninguém conhece perfeitamente os recônditos do coração humano. Isso é prerrogativa divina. Por isso, somente a Deus compete o juízo definitivo.

Quando Mateus escreve este texto quer, provavelmente, mostrar uma realidade da comunidade que aguardava a vinda de Jesus (Parousia) para muito em breve. Por isso exorta à paciência. Hoje o que impacienta pode ser o ativismo, o imediatismo e mesmo o radicalismo de pessoas até muito engajadas na comunidade, mas que sufocam e matam a semente do amor no coração dos outros.

Penso que a grande lição do evangelho de hoje para nós e nossas comunidades é a de termos mais paciência com as dificuldades e limitações dos irmãos, respeitando seus passos, acolhendo suas diferenças. Muitas vezes alguém que poderia crescer muito na comunidade, acaba por minguar-se por falta de incentivo, de apoio, de perdão, de respeito, de tempo, de oportunidade. É preciso dar força ao trigo para que não seja sufocado pelo joio.

Importa, mais do que nunca, acolher a grandeza de Deus que está muito além de nossos pobres e mesquinhos juízos sobre a salvação dada por Deus a todas as pessoas. A nós compete colaborar com o Pai na obra da salvação. Julgar, selecionar, recompensar, punir etc é atributo de Deus. Quando nos deixamos conduzir pelo Espírito de Deus, assumindo o jeito de viver de Jesus, seu projeto vai se realizando no mundo.

Devemos nos colocar sempre como colaboradores de Deus espalhando a semente do bem no mundo e tendo uma atitude que sempre incomode o reino de morte.

 

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O REINO DE DEUS É FEITO DE MISERICÓRDIA, DE SIMPLICIDADE E DE FORÇA INTERIOR

A primeira parábola quer nos ajudar a entender a misericórdia de Deus. A pessoa sempre merece ter mais uma chance, uma oportunidade. O Pai dá sempre tempo para a conversão (cf. Lc 15: parábolas da misericórdia). Isso significa também que não nos podemos escandalizar diante de uma Igreja medíocre, pecadora, longe do ideal evangélico. Feita de santos e pecadores e mergulhada no mundo, ela corre sempre o risco de se contaminar pela maldade. Por isso precisamos mudar nossa ideia de Deus: de um deus violento, intolerante, ciumento, mesquinho, avarento a um Deus misericordioso, compassivo, paciente e justo. É o Deus revelado por Jesus. Guardemos isso: A ideia que temos de Deus determina nossas atitudes, posturas, relações com o próprio Deus, com nós mesmos, com o mundo e com os irmãos.

A segunda parábola lembra-nos a dimensão da simplicidade do Reino de Deus. Dá uma ideia de amplidão, de crescimento, de espaço a partir da pequenez evangélica. A pequenez da semente vem mostrar que a força do Reino não está na aparência, na exterioridade (encher praças, ruas e templos), mas no conteúdo. O Reino de Deus anunciado por Jesus cresce e se expande pela força que vem do Alto.

A terceira parábola nos remete à força interior do Reino de Deus. O fermento age sem ser visto. A gente não vê o fermento no bolo ou no pão. Sabemos que está ali e agiu pelo gosto gostoso. O verdadeiro sabor da vida cristã não vem de fora: de ritos, de shows, de ativismo etc. A força que transforma o ser humano, o mundo, a história vem de Deus. Uma vida alimentada pela mística, pela espiritualidade, pela oração é que vai produzir frutos que transformam o mundo.

Essas parábolas não nos deixam esquecer que o Reino é de Deus. Não somos nós os protagonistas da transformação da história. É Deus que age e transforma as pessoas. Nós somos instrumentos, muitas vezes, desajeitados em suas mãos. Às vezes fazemos bem, às vezes fazemos mal; às vezes ajudamos, às vezes atrapalhamos. O importante é colocar-se sempre aberto e disponível para colaborar na obra da salvação da humanidade. O resto é por conta do Pai. Porque o Reino é dele: “Porque tudo é dele, por ele e para ele. A ele a glória pelos séculos. Amém” (Rm 11,36).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Cristo se oferece livremente e por amor

aureliano, 03.04.20

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Domingo de Ramos [05 de abril de 2020]

[Mt 21,1-11;26,14 – 27,66]

Estamos entrando na Semana Santa! Esta Semana passou a ser celebrada com a intenção de rememorar a Paixão do Senhor. Na Idade Média ela tomou corpo e fôlego, sobretudo pela tentativa de reviver o episódio da Paixão do Senhor descrito pelos evangelistas. Esta semana era até chamada de Semana Dolorosa, pelo fato de se dramatizarem os sofrimentos de Cristo.

Parece simples, mas o conhecimento desse dado histórico é interessante porque pode nos ajudar a entender o porquê das vias sacras e outras representações da Paixão do Senhor. Ficaremos então atentos para não nos perdermos nos folclores e dramatizações, mas adentrarmos mais profundamente no Mistério profundo da entrega de Jesus, manifestação do amor do Pai, e nos atermos ao Mistério fundante de nossa fé cristã, a Ressurreição do Senhor, vitorioso sobre o pecado e a morte.

Este domingo se chama, na verdade, Domingo da Paixão nos Ramos. Jesus entra triunfante em Jerusalém para sofrer a Paixão. Portanto celebramos dois acontecimentos: a aclamação de Jesus como o “Bendito que vem em nome do Senhor”, e a contemplação de sua Paixão. É o único domingo do ano em que a Igreja celebra a Paixão propriamente dita de Jesus, proclamando no Evangelho os relatos da Paixão.

Jesus pediu aos discípulos para buscar um jumentinho. Deviam dizer aos interrogantes: “O Senhor precisa dele”. O Senhor quer também precisar de nós. Somos os “jumentinhos” do Senhor. Nós temos nos colocado à disposição dele? Ou costumamos “empacar”, buscando nossos próprios interesses egoístas?

Ainda mais: as pessoas espalhavam roupas e ramos pelo caminho aclamando a Jesus. Poucos dias depois pediam sua crucifixão. E nós: estamos com Jesus somente no sucesso e na saúde? Ou também quando ele sofre rejeição, maus tratos, perseguições? Temos dado algo de nós para Jesus que passa diante de nós nos pobres e sofredores?

Algumas considerações:

No Crucificado vemos, não somente um inocente condenado, mas nele, nós cristãos, contemplamos todas as vítimas do preconceito, da maldade e da injustiça de todos os tempos. Na cruz com Jesus estão as vítimas da fome, as crianças abandonadas e exploradas, as mulheres vítimas de maus tratos e feminicídio, os explorados por nosso bem-estar, os quilombolas e indígenas invadidos e despejados, os esquecidos por nossa Igreja, os espoliados pela cultura da corrupção descarada e pela ganância do acúmulo, os enganados pelas mentiras e desonestidade.

Esse Deus crucificado não é o Deus controlador, que está em busca de honra e glória. Não! É o Deus paciente e humilde que respeita a liberdade de seus filhos e lhes quer sempre o bem, a felicidade e a alegria. Não é um Deus vingativo, justiceiro. Mas um Deus que manifesta sempre o perdão e a misericórdia.

Nós cristãos continuamos a celebrar o Deus crucificado porque vemos nele o Deus “louco” de amor por todos nós. Ele é a força que sustenta nossa esperança e nossa luta pela justiça e pela paz. Acreditamos que Deus não passa ao largo de nossas lágrimas, sofrimentos, lutas e fracassos. Ele está no calvário de nossa existência. A cruz erguida entre as nossas cruzes nos lembra que Deus sofre conosco.

Nesta semana a Igreja nos convida a contemplar Jesus que oferece sua vida como dom ao Pai. Ele não vai à cruz porque gosta de sofrer ou porque quer morrer. Jesus não é nenhum suicida! A paixão e sofrimento por que passa são consequências de sua fidelidade ao Pai. A contemplação de Cristo na cruz deveria nos levar a agradecer ao Pai por nos ter dado Jesus como Salvador. O Pai olha para seu Filho, vítima da maldade humana, como a olhar para todos aqueles que são injustiçados, vitimados por uma sociedade que sacrifica os que não dão lucro.

Jesus continua passando pelas nossas ruas e praças. Por vezes aplaudimos Jesus em uma celebração ou culto, depois o insultamos no rosto do desvalido! Isso é muito grave! Precisamos de um sério exame de consciência nesta Semana Santa.

Portanto, a celebração da entrada de Jesus em Jerusalém deve valorizar não tanto os ramos, mas o mistério expresso pela procissão que proclama a realeza messiânica de Cristo.

Campanha da Fraternidade: “Todos somos filhos do mesmo Deus que faz chover sobre maus e bons (Mt 5,45). Onde, portanto, está o erro quando o senhor da vinha paga por igual a trabalhadores que cumpriram jornadas diferentes (Mt 20,1-11)? Terá o Senhor Jesus errado na parábola, ou estaremos nós marcados por um conceito incompleto de justiça que não enxergamos a amplitude de um coração que é, ao mesmo tempo, justo e misericordioso? Em Jesus, justiça e misericórdia, não se contrapõem. Ao contrário, complementam-se, ampliam-se, levando-nos a tangenciar a eternidade. O Dono da vinha paga por igual, não porque os trabalhadores renderam por igual, mas porque todos são humanos e, por isso, são iguais. A justa misericórdia, ou a misericordiosa justiça de Deus, ultrapassa qualquer situação para ver a pessoa que ali está e  dela cuidar, principalmente quando não merece. “Dificilmente alguém morrerá por um justo; por uma pessoa boa, talvez alguém ouse morrer. Deus, contudo, prova o seu amor para conosco, pelo fato de que Cristo morreu por nós, quando ainda éramos pecadores” (Rm 5,7-8)" (Texto-Base, 104).

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JESUS SE ENTREGA POR NÓS

A Igreja é a comunidade pascal, nascida do “lado aberto” de Cristo, do Coração amoroso de Jesus que se entregou por nós. Ele passou da morte à vida e fundou a Igreja para que seja sempre arauto da vida nova que ele veio trazer.

A quaresma é um tempo marcadamente batismal. É um mergulho nas fontes batismais com tudo o que o batismo significa para o cristão. A espiritualidade quaresmal não se baseia somente numa postura interior e individual, mas também externa e comunitária em quatro aspectos: abominação do pecado como ofensa a Deus; conseqüências sociais do pecado; parte da Igreja na ação penitencial; oração pelos pecadores.

A Semana Santa, chamada também a “Grande Semana”, desenvolveu-se sobretudo a partir da historicização dos sofrimentos de Cristo em Jerusalém. Com isso entraram na prática celebrativa elementos devocionais que, de alguma forma, buscam reviver os acontecimentos da paixão descritos pelos evangelistas e pelos evangelhos apócrifos. Essas representações, por um lado permitem atentar para cada episódio da paixão do Senhor, por outro, pode prejudicar a unidade do mistério pascal. Em outras palavras: destacando os aspectos do sofrimento provocando certa emoção, pode-se afastar de seu aspecto salvífico na vitória sobre a morte com a ressurreição.

No intuito de enfatizar o aspecto salvífico da paixão do Senhor, queremos lembrar as principais celebrações desta semana, com destaque para o Tríduo Pascal, centro e cume da liturgia da Igreja.

Domingo de Ramos: Comemoração do Cristo Senhor que entra em Jerusalém para cumprir plenamente seu mistério pascal. A procissão dos ramos (memória da entrada de Jesus em Jerusalém) expressa a realeza messiânica de Cristo. É o único domingo do ano que celebra o mistério da morte do Senhor com a proclamação do relato da paixão. Jesus entra triunfalmente em Jerusalém para aí consumar sua páscoa de morte e ressurreição.

Quinta-feira Santa: É a conclusão da quaresma. Duas celebrações marcam esse dia: a missa do Crisma e a Instituição da Eucaristia (já no Tríduo Pascal). A missa do Crisma com a bênção do óleo dos enfermos, dos catecúmenos e, principalmente do sagrado crisma, é a oportunidade de reunir o presbitério em torno de seu Bispo e fazer da celebração uma festa do sacerdócio ministerial, através da renovação das promessas sacerdotais. O ministério presbiteral está intimamente ligado à eucaristia da qual o presbítero deve ser expressão.

Tríduo Pascal: Tem início com a missa da Ceia do Senhor, cujo ápice é a Vigília Pascal e cujo término se dá na tarde (Vésperas) do domingo da ressurreição.

Missa da Ceia do Senhor: É feita à noite com tom festivo. Os textos bíblicos realçam o fato de que Cristo nos deu sua páscoa no rito da ceia que exige, por parte da Igreja, o vínculo indissolúvel entre o serviço e a caridade fraterna: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). O lava-pés deve ser visto neste contexto, e não como mera representação do gesto de Jesus. No fim da celebração eucarística, as Sagradas Espécies (as partículas consagradas para a distribuição aos fiéis na Sexta-feira Santa) são conduzidas para um lugar previamente preparado. Faz-se a adoração ao Santíssimo até por volta de meia-noite. Não se trata de sepulcro para Jesus, mas de solene exposição e adoração ao Senhor vencedor da morte.

Sexta-feira Santa: Incluindo a Quinta à noite, é o primeiro dia do Tríduo. Dia de jejum como sinal sacramental da participação no sacrifício de Cristo. Também é um gesto de solidariedade com as vítimas da fome e da miséria. Não se celebra a eucaristia nesse dia. Faz-se a celebração solene da Liturgia da Palavra, à tarde, com adoração do Cristo na cruz e distribuição da comunhão.  Não é o dia de luto da Igreja, mas de amorosa contemplação da oferta de Cristo na cruz pela humanidade. Essa contemplação tem um caráter de ressurreição, uma vez que a morte de Cristo é inseparável de sua ressurreição. Por isso chamada de beata passio, santa e feliz paixão.

Sábado santo (dia): Nesse dia a Igreja se coloca em silêncio orante. Celebra o repouso de Cristo no sepulcro, depois da vitória na cruz. É a experiência da morte humana pela qual Cristo passou. É a esperança da vitória de Cristo sobre a sombra da morte: “O Filho do homem... deve... ser levado à morte e ressurgir ao terceiro dia”(Lc 9,22).

Sábado santo (noite): Celebração da “Mãe de todas as noites”, na expressão de Agostinho. A Vigília Pascal se caracteriza pelo sentido batismal que desemboca na celebração eucarística. Temos nesta noite a bênção do fogo novo e do círio com o canto do precônio (louvação) pascal, a liturgia da Palavra (nove leituras), liturgia batismal e liturgia eucarística. É a celebração da “noite iluminada”, da “noite vencida pelo dia”, demonstrando que a graça brotou da morte de Cristo. A passagem das trevas para a luz exprime a realidade do mistério da páscoa em Cristo e em nós.

Nosso desejo é que cada um, nesta semana de graça e de vida para a Igreja, se coloque naquela postura do Servo Sofredor, aberto à graça do Pai para colaborar na construção de um mundo mais de Deus: “O Senhor Deus me deu uma língua de discípulo para que eu soubesse trazer ao cansado uma palavra de conforto. De manhã ele desperta o meu ouvido para que eu ouça como os discípulos” (Is 50,4).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Hesed: bondade misericordiosa de Deus

aureliano, 13.09.19

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24º Domingo do Tempo Comum [15 de setembro de 2019]

 [Lc 15, 1-32]

Lucas é o evangelista que destaca o rosto misericordioso do Pai, revelado em Jesus. Um Deus amoroso e misericordioso. A Sagrada Escritura conservou um termo hebraico que quer revelar isso: Hesed, a bondade misericordiosa de Deus. Um amor que excede toda medida. Ainda que sejamos infiéis, Ele continua nos amando. Seu amor não depende de nossos méritos: amor totalmente gratuito e generoso. Uma Hesed, um amor que precisa ecoar dentro de nós e expandir ao mundo. Sobretudo nesses tempos de propagação de relações odiosas, de projeto que defende armar a população, de defesa institucional da dominação do grande sobre o pequeno, do rico sobre o pobre, de progresso e crescimento econômico às custas da eliminação dos pobres e da destruição do meio ambiente. É tempo de Hesed: bondade misericordiosa.

O capítulo 15 de Lucas mostra, através de três parábolas, aquele Pai que não quer perder ninguém. É a concretização de Is 49, 15: “Por acaso uma mulher se esquecerá de sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem, eu não me esqueceria de ti”. Quem se diz cristão tem nesse evangelho o ensinamento para sua vida. Este capítulo é considerado o coração do Evangelho de Lucas.

A ovelha perdida, a moeda perdida e o filho perdido lembram o grande amor do Pai que sempre está em busca, procura até encontrar. E encontrando, faz festa!

A OVELHA PERDIDA

O pensamento mercantilista da sociedade contemporânea jamais concordará com a atitude do pastor: deixar as noventa e nove para buscar uma única que estava perdida. Diria o mercantilista: “Ocupa-te com os ‘bons’, com os que ‘rendem’, pois com os outros perdes teu tempo. Enfraquece-os e deixa-os morrer”. Essa mentalidade se faz presente naquela ideia de que o padre ou o agente de pastoral não tem que ficar visitando as vilas e favelas, os empobrecidos que não frequentam a igreja. Devem-se ocupar do grande grupo. Não seria melhor que uma ovelha se perdesse do que o rebanho todo? É a lógica do mercado. Bem lembrada a comparação: o motorista não se preocupa com o que funciona bem no carro, mas com o que está com defeito.

Ainda existem em nós atitudes farisaicas. Gostamos de resolver os ‘casos difíceis’ pela expulsão ou repressão ou mesmo pela eliminação. Já Deus opta pela reconciliação.

A propósito deste tema, em 17 de junho de 2013 o Papa Francisco ensinava: "Quero dizer-lhes algo: No Evangelho é belo o texto que fala do pastor que, quando volta para o redil, se dá conta de que lhe falta uma ovelha; deixa as noventa e nove e vai procurá-la. Vai procurar uma. Mas nós temos uma e nos faltam as noventa e nove! Temos que sair, temos que buscá-las. Nesta cultura, digamos a verdade, temos somente uma, somos minoria. E não sentimos o fervor, o zelo apostólico de sair e procurar as outras noventa e nove?"

A MOEDA PERDIDA

“Uma mulher tinha dez moedas”. Seria bom que a gente conseguisse enumerar as moedas que temos: dons, qualidades, pessoas, virtudes...

“Perde uma moeda”. Identificadas as ‘moedas’, talvez fosse bom ver qual moeda que a gente não poderia ter perdido de jeito nenhum. Não estamos buscando mais as coisas do que as pessoas?

“Acende uma lâmpada...”. Que lâmpada precisamos acender para iluminar os espaços escuros de nossa vida onde perdemos a ‘moeda’? Nas dificuldades e contradições da vida acendemos a luz ou continuamos caminhando na escuridão? Esta lamparina pode ser uma pessoa amiga, a Palavra de Deus, a Oração, a Confissão, a Eucaristia, o exercício das Obras de Misericórdia etc.

“Varre a casa”. Que espaços de nossa vida precisamos varrer? Relações de ódio e vingança, preguiça, comodismo, apegos a coisas e pessoas, fofoca e intriga, vida afetiva desordenada, mentira e desonestidade, corrupção etc.

“Procura cuidadosamente”. Como temos procurado a ‘moeda’ perdida? Há perseverança, concentração, desejo de encontrar o que se perdeu? É uma busca amorosa? Ou sou movido por medo e escrúpulo? O que me move, mesmo, mais profundamente?

“Até encontrar a moeda”. O que é que nos faz desanimar em nossas buscas pelo essencial? Seria bom identificar aquelas coisas ou pessoas que não nos deixam crescer, que nos desestimulam, que desviam nossa atenção do foco principal e fundamental de nossa vida. Pode ser uma relação afetiva desordenada, busca gananciosa pelo dinheiro, fanatismo político-partidário, desvio do evangelho, moralismo doutrinal etc.

“Quando a encontra”. Já encontramos alguma ‘moeda’ significativa em nossa vida? Qual? Quais?

“Reúne as amigas e vizinhas e diz...”. Nossos convidados, as pessoas que frenquentamos, os amigos com os quais nos reunimos, festejamos, que rosto têm? Quem são? O que eles sonham, conversam? Quais são seus principais assuntos? “A boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc 6,45).

“Alegrai-vos comigo!”. O Papa Francisco tem insistindo muito na necessidade de vivermos uma vida cristã marcada pela alegria. “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus” (EG, 1). Não existe alegria experimentada somente pelo indivíduo. A alegria tende necessariamente a ser partilhada. Experimentamos alegria verdadeira? Com quem partilhamos nossa alegria mais profunda?

“Encontrei a moeda que tinha perdido!”. Que é que estamos procurando e encontrando para deixar como legado, como herança? A alegria da mulher foi a de ter encontrado a moeda que havia perdido. Nosso encontro com o Senhor tem nos dado verdadeira alegria? Tem nos ajudado na conversão do coração?

O FILHO PERDIDO

O filho mais velho representa aqui o fariseu que contabiliza suas práticas religiosas, mas mantém um coração longe de Deus. Sabe cumprir os mandamentos, mas não sabe amar. Não consegue entender o amor de seu pai para com o filho perdido e encontrado. Não acolhe nem perdoa. Não quer saber de seu irmão. Aliás, nem o reconhece como irmão: “Este teu filho”, diz ao pai. Como se dissesse: “Não é meu irmão”. E o pai se dirige a ele com toda ternura: “Meu filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu”.

O filho mais velho nos interpela, a nós que acreditamos viver juntos do Pai. O que estamos fazendo que não abandonamos a Igreja? Será que não estamos apenas cumprindo ritos e tarefas, talvez com medo de ir para inferno, ou apenas por formalidade social e para manter a tradição? “Meu pai era católico... e me batizou na Igreja católica!” E a vida continua como se a fé cristã não fizesse nenhuma diferença no cotidiano.

Precisamos reconhecer a alegria de estarmos sempre na presença de Deus, de podermos experimentar o seu amor. Sejamos como o pai que se alegra com a volta do filho que se afastou. Ajudemos as pessoas a encontrar o caminho de volta para a casa paterna.

Aliás, um elemento significativo das três parábolas deste domingo é a alegria do reencontro. E uma alegria compartilhada com amigos e vizinhos. O único que se aborreceu foi o filho mais velho. Aquele que se julgava dentro de casa, que estava com o Pai. Mas não estava, visto que visava recompensa, e não vivia na gratuidade. Vivia pela lei e não pelo amor.

A alegria da volta à casa do Pai deve ser um distintivo de nossa vida cristã celebrada em comunidade. As ofensas que por vezes ocorrem precisam ser perdoadas para que nossa vida de comunidade possa ser celebrada com mais alegria. Dá o que pensar a observação de Leonardo Boff: “As pessoas de hoje não aceitam mais uma Igreja autoritária e triste, como se fosse ao próprio enterro. Mas estão abertas à saga de Jesus, ao seu sonho e aos valores evangélicos”.

Como lidamos com os afastados da comunidade? Qual tem sido nossa ação missionária junto dos mais pobres e abandonados? Com quem temos sido mais parecidos: com o Pai? Com o filho mais velho? Com o filho mais novo?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Por uma Igreja Samaritana

aureliano, 12.07.19

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15º Domingo do Tempo Comum [14 de julho de 2019]

[Lc 10,25-37]

O Evangelho de hoje vem provocar os líderes religiosos a fazer um exame de consciência. O único interesse daqueles homens religiosos era exercer seu papel litúrgico no culto do templo. Uma prática religiosa totalmente separada da vida. O relato deixa entrever que, para o sacerdote e o levita, basta o culto no templo. A salvação está em realizar um rito e cumprir normas religiosas. Já a atitude do samaritano, recomendada por Jesus, vem mostrar que o mais importante na vida é o cuidado com o outro que precisa de mim, independente de quem seja. A frequência do templo deve levar ao cuidado para com os irmãos (cf. Tg 2,14-26). É o princípio da misericórdia que opera a salvação do ser humano.

Nos seminários, casas de formação, no clero de modo geral e também entre alguns leigos há uma excessiva preocupação com panos, objetos religiosos e práticas litúrgicas. Não que essa realidade da Igreja não seja importante. Desde que ela nos torne mais identificados com Cristo, nos aproxime mais dos sofredores, nos ajude a ser mais misericordiosos. O problema está no excesso. Há uma concentração no templo em detrimento daqueles que estão nas “periferias”. Olhando a vida dos santos nós os notamos envolvidos e preocupados com os marginalizados. Vejam Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce dos Pobres, Pe. Júlio Maria etc. Muita gente de Igreja, hoje, pensa que ser santo é estar dentro do templo. Não está havendo uma distância entre a santidade proposta pelo evangelho, que é viver a compaixão para com os sofredores, e a proposta que alguns grupos e líderes religiosos fazem, hoje?

Onde estamos? Como temos vivido nossa fé cristã? Que tipo de envolvimento e de apoio temos dado às pastorais sociais (pastoral da criança, pastoral carcerária, pastoral do menor, pastoral de rua, pastoral familiar, associações de bairro, conselhos municipais etc)? Como está o caminho de conversão pastoral que a Igreja deve fazer?

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“VAI E FAZE A MESMA COISA”

“Quem é o meu próximo?” Foi a segunda pergunta daquele escriba que buscava saber o caminho que conduz à vida eterna.

É interessante notar que as pessoas se apresentavam a Jesus e faziam suas perguntas e pedidos a partir de seu lugar social. Os excluídos e marginalizados pediam para andar, enxergar, ser saciados, ser reintegrados ao convívio social etc. Já aqueles que possuíam uma condição de vida estável, social e financeiramente, queriam saber o caminho da “vida eterna”: “O que devo fazer para alcançar a vida eterna?” Sua preocupação estava mais com o além, com o que vem depois da morte.

Jesus conta uma historinha que faz pensar mais concretamente. E a sua resposta àquele homem implica a vida eterna. Ou seja, a vida eterna está intimamente relacionada com a vida que levamos aqui. O mandamento do amor a Deus acima de tudo (Dt 30, 10-14) está estritamente ligado ao amor do próximo. O cristão revela Deus ao mundo com seu amor concreto pelos pobres. Nossas escolhas definem quem somos e em quem acreditamos.

Quem quiser alcançar a vida eterna precisa “perder” a sua vida pelos outros. O samaritano estava em viagem, com um programa de vida, certamente com os dias e os negócios marcados. De repente aparece aquele “estrangeiro” em sua vida. E ele socorre. Diferentemente dos ‘servidores’ do Templo, que não tinham tempo a perder nem podiam se contaminar com aquele homem semimorto.

A resposta de Jesus à conclusão óbvia do escriba (próximo foi aquele que usou de misericórdia com o homem caído) nos remete à Eucaristia: vai e faze o mesmo. O verbo fazer está nas palavras da instituição: “Fazei isto em memória de mim”. O fazer para alcançar a vida eterna se mistura com o fazer do cuidado com o próximo e o fazer isto em memória do Senhor. A eucaristia que celebramos nos envia sempre a fazer algo pelo próximo. “Tudo o que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). E a Mãe de Jesus nos convoca: “Fazei tudo o ele vos disser”(Jo 2,5).

Não basta saber quem é o meu próximo, mas fazer-me próximo daquele que precisa de mim naquele momento. Cuidar da avó ou da tia idosa visando a herdar sua casa, seus bens, usufruir de seus benefícios previdenciários não é amar. Amar é cuidar desinteressadamente, na gratuidade, oferecendo o que somos e temos: azeite, vinho, cavalgadura, dinheiro, tempo.

Se a Eucaristia que celebramos não nos move ao encontro do próximo, a sairmos de nós mesmos, a doarmos um pouquinho de nosso tempo, de nossos dons, de nossas coisas àqueles que precisam de nós, então nosso louvor estará sendo somente de lábios, vazio, longe de Deus: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Is 29,13). O Senhor recomendou em outro lugar: “De graça recebestes; de graça dai” (Mt 10,8). “A alegria do discípulo do Reino não deve se apoiar no que faz para os outros, mas no que o Senhor fez por ele: ‘Vosso nome está escrito no céu’” (Frei Gabriel).

Para ajudar um pouco mais a reflexão: Num bairro pobre, onde há muitas crianças cujas mães não podem trabalhar porque precisam cuidar de seus filhos, vivendo por isso uma vida miserável, há dois grupos de pessoas interessados em ajudar. Um grupo pensa em se organizar e fundar uma creche possibilitando melhor qualidade de vida para as crianças e para as mães. Outro grupo se preocupa em arrecadar cestas básicas, fraldas, remédios, leite etc. Como se podem entender essas diferentes práticas? Com que grupo me identifico mais? Qual grupo se aproxima mais do evangelho?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Para que serve o Sábado?

aureliano, 02.06.18

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9º Domingo do Tempo Comum [03 de junho de 2018]

Mc 2,23 – 3,6]

O relato do evangelho para esse domingo sugere dois pontos de reflexão: o repouso dominical e a transgressão da lei.

São João Paulo II escreveu uma cartinha sobre o domingo (Dies Domini). Ali ele tenta mostrar a importância de se recuperar o Domingo como Dia do Senhor, Dia da Criação, Dia do Ser Humano, Dia do Descanso.

A preocupação do Papa revelava o que estamos vivendo: o domingo perdeu quase por completo seu sentido original que traz no próprio nome: Dominica, Dies Domini: Dia do Senhor. As mudanças nas relações econômicas, culturais, sociais e religiosas pelas quais  tem passado o nosso mundo, trazem consigo esse novo modo de viver o Domingo. Isso não somente entre os agnósticos e arreligiosos, mas também entre os próprios cristãos e católicos.

Se por um lado essa espécie de indiferença diante do domingo e outras celebrações litúrgicas ditas “de preceito”, trazem certa dificuldade e tristeza, por outro, ajudam a reconsiderar  caminhos feitos e fortalecer aqueles que ainda acreditam na força e importância de celebrar o Domingo como dia do Senhor e do descanso.

A ordem de Deus a Moisés para que se guardasse o Sábado era um meio de se fazer memória da libertação do Egito operada pelo próprio Senhor. Também traz dentro de si o eterno desejo do Criador: o ser humano não é escravo; precisa viver em liberdade. Quando o texto sagrado diz que “o sétimo dia é sábado para o Senhor teu Deus” (Dt 5,14), quer nos lembrar que o “Sábado” não é mera prescrição ou observância legal, mas uma exigência de liberdade e diálogo entre Deus e seu povo. É um dia de descanso “para o Senhor”. - Não é preciso dizer que o Sábado dos judeus se converteu no Domingo para nós cristãos por causa da Ressurreição do Senhor.

Outra reflexão que fazemos a partir do evangelho de hoje é referente à transgressão das leis e normas. Até que ponto a Lei deve ser cumprida e desde quando deve ser transgredida?

Nos tempos de Jesus a observância do Sábado se transformara num peso insuportável. Em vez de ser dia de repouso, de descanso, tornou-se dia de peso, de cansaço. Uma escravidão. O culto sabático caiu numa ação externa e formal.

Jesus veio dar novo sentido à Lei, ao Sábado. Ele não transgride nem suprime a Lei, mas vem dar-lhe pleno sentido (cf. Mt 5,17). Para isso ele parte de dois princípios: a misericórdia e a consciência. Uma realidade divina e outra humana. Apelo do Alto e resposta humana.

No princípio da Misericórdia ele parte da realidade do ser humano e suas necessidades imediatas que precisam estar acima de qualquer lei. Uma legislação ou código de normas que não leva em conta o ser humano como prioridade é vazia de sentido. “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). A misericórdia deve prevalecer sobre as exigências legais. Por isso Jesus cura aquele homem no dia de Sábado. Quem quiser viver o princípio da Misericórdia coloca em risco sua vida à semelhança de Jesus: é uma atitude eucarística.

Um dado interessante no relato do evangelho de hoje é que, estando dentro da sinagoga, num momento de culto a Deus, enquanto as atenções se voltam para Deus, Jesus volta seu olhar para aquele homem doente. E pede que ele “fique no meio”. Foi, certamente, uma afronta aos dirigentes do culto. Deus não deve ocupar o primeiro e absoluto lugar no culto? Será que Jesus está invertendo o sentido da celebração? O que levou Jesus a colocar o homem doente no centro? – Jesus não inverte o sentido do culto, mas quer ensinar que um culto que não nos compromete com os irmãos é vazio para o Pai. É como se ele dissesse: “O culto que agrada ao Pai é aquele que converte o coração do ser humano e o coloca em empatia, em solidariedade, em atitude de misericórdia para com aqueles que sofrem” (cf. Is 58,6-7). – Convenhamos: há atitudes dentro de nossas celebrações eivadas de egoísmo, vaidade, desprezo, indiferença, discriminação... (cf. Tg 2,2-4).

Jesus veio mostrar um novo modo de se relacionar com Deus. O culto que não leva a cuidar do ser humano não chega ao coração do Pai. Podemos afirmar então que a grande contribuição de Jesus em relação às outras religiões é a de revelar um Deus que não existe para si mesmo. Deus criou o ser humano para que participasse de sua vida e glória. Deus é amor que se doa, que sai de si, que se interessa pelo ser humano. E sua glória consiste em buscar o bem de todas as criaturas.

Portanto, não basta defender a ordem no País, - lembrando que o lema do governo atual é “Ordem e Progresso” -, se não se busca a defesa e os cuidados dos direitos fundamentais da pessoa humana. O Estado existe para administrar e distribuir equitativamente os bens da Nação. Se, em nome da ordem, o Estado prejudica o ser humano, tal ordem não pode ser cumprida. É um pecado e um crime empenhar-se num progresso que se faz em detrimento da humanidade. O “descartado”, o “inválido”, o “sobrante”, o “invisível” precisa estar “no meio”: para receber visibilidade e cuidado.

O mesmo pode-se dizer em relação à Igreja. Suas leis devem estar sempre a serviço da humanidade. Não podem constituir-se em uma carga pesada que sufoca e oprime. Não é suficiente defender uma disciplina da Igreja por si mesma. Se tal disciplina não ajuda a comunidade a ser mais generosa, mais tolerante, mais misericordiosa, mais inclusiva precisa ser revista, refeita na medida do Evangelho.

A primeira missão da Igreja não é impor leis morais, mas ajudar o ser humano a descobrir que Deus o ama. Ajudá-lo a encontrar aquele ponto no qual descobre a bondade e o amor de Deus por ele e pela humanidade toda, manifestado em Jesus de Nazaré. E levá-lo a perceber que ele é chamado por Deus a colaborar na obra da salvação e cuidados da humanidade.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN