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aurelius

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Escutar Jesus para transfigurar as vidas

aureliano, 14.03.25

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2º Domingo da Quaresma [16 de março de 2025]

[Lc 9,28b-36]

O segundo domingo da quaresma apresenta-nos o relato da Transfiguração do Senhor. Antes de tudo é preciso notar que Jesus “subiu a montanha para rezar”. Lucas é o evangelista que mostra a particularidade da oração na vida de Jesus. E não vai rezar sozinho desta vez. Leva consigo alguns dos discípulos. Na oração, seu rosto se transfigura e sua roupa torna-se brilhante. Parece que este relato quer-nos dizer que nossa oração precisa nos transfigurar, nos encher de luz. Fomos iluminados no batismo. Essa luz precisa ganhar cada vez mais força. É a luz de Deus. O pecado quer sempre obscurecê-la. Por isso a necessidade da luta permanente contra o pecado, pois obscurece a mente e o coração.

A propósito do pecado que obscurece a mente e endurece o coração, podemos interpretar que, ao chamar esses três - Pedro, Thiago e João - Jesus tencionava trabalhar o coração deles para melhor compreensão de sua pessoa e missão. Pedro queria demover Jesus do caminho de fidelidade ao Pai (cf. Mt 16,22); renegou o Mestre (Jo 18,17); recusou que lhe lavasse os pés (Jo 13,6-9). Thiago e João, filhos de Zebedeu, pediram para ocupar os primeiros lugares, ambicionando poder e glória (Mc 10,35ss). Pediram castigo para aqueles samaritanos que se recusaram receber Jesus (cf. Lc 9,54). Enfim, esses três precisavam de fazer uma experiência mais profunda a fim de perceberem quem era mesmo Jesus. Então não foram chamados e escolhidos para estarem com o Mestre por serem melhores do que os outros, mas por necessitarem de fazer um caminho de luz e conversão. Nas palavras do Evangelho, precisavam ser transfigurados.

A sonolência de Pedro e demais companheiros simboliza nossa indolência diante da graça e da vida em Deus. Paulo, que compreendeu bem a oposição entre pecado e graça, trevas e luz, exorta: “Eis a hora de sairdes  do vosso sono; hoje, com efeito, a salvação está mais próxima de nós do que no momento em que abraçamos a fé. A noite vai adiantada, o dia está bem próximo. Rejeitemos as obras das trevas e revistamos as armas da luz. Comportemo-nos, honestamente, como em pleno dia, sem comezainas nem bebedeiras, sem licenciosidades nem devassidões, sem brigas nem invejas. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,11-13).

Diante da beleza contemplada, Pedro manifesta o desejo de ficar por ali: “Mestre, é bom estarmos aqui”. Mas ele “não sabia o que estava dizendo”. Pensava que era suficiente estar na montanha em oração. Não queria “descer para Nazaré”. As “Nazarés” da vida são o lugar de confronto com aquilo que rezamos no “monte”. Uma oração que não se encarna na realidade, no cotidiano da vida, não faz sentido. É oca, vazia, alienante como os ídolos que são um “nada” (1Cor 8,4; Sl 96,5). Buscamos a Deus para enfrentar os embates da vida e estes nos fazem buscar a Deus.

Além do mais, Pedro pensou em três tendas iguais. Não soube distinguir o rosto do Senhor. Moisés e Elias não estavam no mesmo nível de Jesus. Seus rostos não resplandeciam. É preciso distinguir o rosto do Senhor. A palavra do Pai é reveladora do seu Filho: alguém a quem se deve escutar: “Este é o meu Filho, o Eleito; ouvi-o” (Lc 9,35). Jesus deve ser sempre ouvido. Nossas decisões, atitudes, gestos devem se inspirar nele.

O rosto transfigurado de Jesus nos leva a pensar nos rostos desfigurados de tantos sofredores, oprimidos, esquecidos, “invisíveis”, marginalizados, vítimas das tragédias-crime. Sobretudo de rostos de jovens violentados, assassinados, desencaminhados, desesperançados, usados, desiludidos. Os rostos dos idosos abandonados, maltratados, incompreendidos, desprezados. Rostos de estudantes sem vibração, desiludidos, amedrontados, sem sonhos. Rostos de educadores cansados, desvalorizados, desencantados. O rosto da Mãe Terra envenenada, maltratada, sucateada. Tanto a Casa Comum como as pessoas esperam por uma reconfiguração à imagem de Jesus. Essa missão é nossa. Como dar uma figura renovada a esses rostos? O que estamos fazendo?

A voz que brota da nuvem confirma Aquele que foi transfigurado: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz”. Jesus, transfigurado na montanha, mostrou aos discípulos a beleza de sua interioridade. Habitado pelo Pai e pelo Espírito Santo. Portanto, eles podiam ouvi-lo e segui-lo sem medo, pois é o Filho querido do Pai. Não vão se decepcionar nem se frustrar. É habitado pela divindade e quer transmiti-la àqueles que nele acreditam e o seguem. Quem se compromete com Jesus é tomado por essa Luz e será também transfigurado na ressurreição dos justos.

Ali estavam Moisés e Elias, figuras representativas da Antiga Aliança: a Lei e o Profetismo. A voz do Pai, porém, não pede para ouvi-los, e sim, o Filho. Escutar o que Jesus diz é o que dá identidade à fé cristã. Não basta olhar para Jesus. Não basta admirar a vida que ele levou nem o que ele fez. É preciso nos comprometermos com ele, ouvindo e colocando em prática seus ensinamentos. Assumindo em nossa vida a forma de vida de Jesus (cf. Fl 2,5).

A escuta deve ser a primeira atitude do discípulo. Ouvir é interiorizar, colocar dentro do coração aquela realidade que cremos, em que esperamos. No meio da nuvem os discípulos ficaram com medo. E escutaram a “voz” que lhes trouxe conforto e esperança. Assim também ocorre conosco: em tempos nebulosos, e acometidos pelo medo, o Senhor sempre suscitará uma “voz” e pronunciará uma palavra que desperta a esperança e afugenta o medo. Em tempos de proclamação de muitas vozes, há que se retirar ao “monte” para ouvir e discernir a voz do Pai.  Jesus é a voz, a palavra do Pai. Escutemo-lo. Confiemos nele. Ele não nos decepciona!

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Configurar nossa vida à de Cristo Jesus

aureliano, 23.02.24

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2º Domingo da Quaresma [25 de fevereiro de 2024]

 [Mc 9,2-10]

O finalzinho do capítulo 8 de Marcos relata as exigências do seguimento de Jesus: “Se alguém quer vir em meu seguimento, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. Em seguida traz o relato da Transfiguração como a convidar o discípulo a dar uma ‘espiadinha’ no céu. É Jesus revelando sua glória a seus discípulos para que confiassem nele: é o Filho de Deus, Salvador.

Domingo passado (1º da quaresma) acompanhamos Jesus, levado pelo Espírito ao deserto, sendo tentado pelo adversário do projeto salvífico e libertador do Pai. Na força do mesmo Espírito Jesus venceu o tentador. Aquele tempo de preparação para a sua missão foi árduo. Mas Jesus não se deixou abater. Venceu a tentação que queria desviá-lo da vontade do Pai.

Hoje Jesus sobe a montanha. Se no deserto ele passou pela tentação, aqui ele faz um encontro com o Pai. O Deserto é lugar da prova, da tentação: ouve-se a voz sedutora de Satanás. A Montanha é lugar do encontro com o Senhor: ouve-se a voz confortadora de Deus. Essa realidade nos remete à doutrina dos “dois caminhos” de que falava a Lei de Moisés: “Eu te proponho a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida para que vivas” (cf. Dt 30, 15-20). E também aquela divisão interna que há dentro de nós e que fazia Paulo exclamar: “Querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero” (cf. Rm 7, 14-20).

Na montanha Moisés e Elias se encontraram com Deus e receberam d’Ele as instruções para a sua missão. Por isso o evangelista apresenta essas duas figuras memoráveis do Primeiro Testamento. Moisés representa a Lei e a libertação do povo das mãos do Faraó. Elias representa o profetismo, pois libertou o povo da idolatria que oprimia Israel. Jesus aparece na cena como alguém superior a Moisés e Elias. As roupas brilhantes, o fato de eles estarem conversando com ele, tudo mostra Jesus como centro do relato. Isso significa que Jesus está para além dessas figuras proeminentes do passado: é o “Filho amado do Pai”.

Pedro gostou daquela amostragem do paraíso. Queria ficar por ali. “É bom ficarmos aqui. Façamos três tendas”. Representa o discípulo acomodado, que quer experimentar a Páscoa sem passar pela Sexta-feira da Paixão. Que quer fugir dos embates cotidianos, da luta cotidiana pelo Reino. Quer glória sem cruz. Não quer “descer” a montanha para a missão.

A voz do Pai identifica seu filho: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!”. É ele que veio oferecer sua vida pela salvação da humanidade. O Pai o entrega, como Abraão outrora entregou seu filho Isaac (cf. Gn 22, primeira leitura da missa de hoje). “Deus, com efeito, amou tanto o mundo que deu o seu Filho, o seu Único, para que todo homem que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). No batismo o Pai se dirige ao próprio filho: “Tu és o meu Filho bem amado” (Mc 1, 11). Aqui o Pai apresenta seu filho ao mundo: “Este é o meu Filho amado”. Aquele que fora consagrado e confirmado no batismo e no deserto, deve ser acreditado, seguido, ouvido. Por isso a insistência: “Escutai-o”. É preciso prestar atenção, ouvir com ouvido de discípulo, a cada manhã (cf. Is 50, 4-5; 55, 3).

“Olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles”. Isto é, os discípulos não têm outro mestre (nem Moisés nem Elias), a não ser Jesus: “Um só é o vosso mestre” (Mt 23, 10).

O relato da transfiguração do Senhor, na liturgia quaresmal, quer ajudar o discípulo de Jesus a firmar-se na fé n’Aquele que será contemplado sem figura de homem na cruz, reconhecendo-o como o Filho de Deus, cheio da beleza divina, por alguns momentos oculta no véu da carne, mas que será manifestada na glória do Pai.

O discípulo deve também, por sua vez, rezar sua própria transfiguração em Cristo. E trabalhar para que os rostos desfigurados pela dor e sofrimento produzidos por uma sociedade que exclui, discrimina, escraviza e mata, que se pauta pela competição e que valoriza a pessoa pelo que tem e não pelo que é, sejam reconfigurados ao rosto do Cristo transfigurado. Na medida em que ajudamos os irmãos sofredores a minimizarem sua dor, estamos transfigurando seu rosto no Cristo ressuscitado.

O dar-se de Cristo pela salvação do mundo, mistério que celebramos em cada Eucaristia, nos move a sair do nosso egoísmo na direção de uma entrega mais generosa e gratuita, tornando mais visíveis os frutos da Eucaristia: fraternidade, simplicidade, alegria, generosidade, solidariedade, partilha, perdão.

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Campanha da Fraternidade 2024:

Um dos grandes desafios a ser superado e caminho de conversão a ser feito é a capacidade de ouvir e de escutar. Como é difícil escutar o outro, no sentido de ouvir e prestar atenção no que a pessoa diz, entrar em sintonia com sua realidade, compreender, acolher. Como é difícil silenciar-se para que o outro possa falar com confiança. Como é difícil acolher a partilha e a dor do outro sem julgamento ou condenação. Nossa sociedade nos prepara para falar, julgar, condenar, doutrinar, ser donos da verdade e do mundo, donos das pessoas e de suas histórias. Jesus nos ensina a escutar, a acolher a dor, a ver a angústia, a perceber as batidas do coração. Jesus nos ensina a “alargar a tenda” (Is 54,2) e acolher quem chega, a quem encontramos pelo caminho, a quem muitas vezes é ignorado, invisibilizado. Jesus nos ensina a chamar pelo nome, a olhar nos olhos, a sentir a dor muitas vezes expressa no olhar. Jesus nos ensina a devolver a alegria, a dignidade, o sonho de um horizonte luminoso.

“Nosso desafio é ‘ser ainda mais uma Igreja que escuta: escuta do Espírito por meio da escuta da Palavra, da escuta dos acontecimentos da história e da escuta mútua como indivíduos e entre as comunidades eclesiais, desde o nível local até os níveis continental e universal (...) Este estilo de ouvir precisa marcar e transformar seus membros, bem como com outras comunidades religiosas e com a sociedade como um todo, especialmente em relação àqueles cuja voz é mais frequentemente ignorada’” (TB, 126).

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Em tempos de vírus nas relações humanas e nas redes sociais, rezemos com o Cardeal Tolentino:

Livra-nos do vírus do pânico disseminado, que em vez de construir sabedoria nos atira desamparados para o labirinto da angústia.

Livra-nos do vírus do desânimo que nos retira a fortaleza de alma com que melhor se enfrentam as horas difíceis.

Livra-nos do vírus do pessimismo, pois não nos deixa ver que, se não pudermos abrir a porta, temos ainda possibilidade de abrir janelas.

Livra-nos do vírus do isolamento interior que desagrega, pois o mundo continua a ser uma comunidade viva.

Livra-nos do vírus do individualismo que faz crescer as muralhas, mas explode em nosso redor todas as pontes.

Livra-nos do vírus da comunicação vazia em doses massivas, pois essa se sobrepõe à verdade das palavras que nos chegam do silêncio.

Livra-nos do vírus da impotência, pois uma das coisas mais urgentes a aprender é o poder da nossa vulnerabilidade.

Livra-nos, Senhor, do vírus das noites sem fim, pois não deixas de recordar que Tu Mesmo nos colocaste como sentinelas da aurora (Texto-Base da CFE 2021, p. 66).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

Vida cristã: ser configurado a Cristo

aureliano, 04.08.23

Transfiguração.jpg

Transfiguração do Senhor [06 de agosto de 2023]

[Mt 17,1-9]

A festa da Transfiguração do Senhor já era celebrada no Oriente no século IX. Foi estendida ao Ocidente no século XV pelo Papa Calisto II, em memória da vitória dos cristãos contra as forças otomanas, no cerco de Belgrado, em 1456.

O relato da transfiguração é apresentado logo após o anúncio da paixão, seguido da ‘repreensão’ que Pedro fizera a Jesus (cf. Mt 16,22-23), pois ele esperava um Messias poderoso para libertá-los das mãos dos romanos. Por isso entendemos que nesse relato estão entrelaçados dois aspectos paradoxais: sofrimento e glória. Lucas o confirma ao relatar que a conversa entre Moisés, Elias e Jesus versava sobre “sua partida que iria se consumar em Jerusalém” (Lc 9, 31). A glória ilumina a cruz. A perspectiva da Glória nos ajuda a dar sentido às dificuldades e cruzes da vida. É um apelo aos discípulos a reconhecerem a verdadeira identidade de Jesus, o Filho amado do Pai, ao mesmo tempo que evidencia o crime hediondo daqueles que tramam sua morte.

Quando vemos, nesse relato, sofrimento e glória articulados, não devemos interpretar como sendo o sofrimento o preço da glória; como se Deus barganhasse conosco. Não. A cruz ou sofrimento é consequência da fidelidade ao projeto do Pai. Faz parte da vida do discípulo de Jesus que busca viver um estilo de vida que se opõe à proposta mundana que conduz e gera a morte. “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16, 24). Como o Pai glorificou e confirmou seu Filho, ele fará o mesmo com aqueles que buscarem configurar sua vida com a vida de Jesus. No ser humano de Jesus toda a humanidade foi transfigurada, glorificada.

Moisés e Elias: este, representante dos profetas e aquele, representante da Lei. Ambos se encontraram com Deus na montanha. O episódio da transfiguração mostra Jesus, o Filho amado do Pai, que realiza e sintetiza em sua própria vida a Lei e os Profetas. Agora é Ele que deve ser ouvido.

A voz do Pai deve continuar ressoando em nossa vida: “Este é o meu Filho bem-amado, aquele que me aprouve escolher. Ouvi-o”. Essas palavras nos remetem ao relato do batismo de Jesus: “Este é meu Filho bem-amado, aquele que me aprouve escolher” (Mt 3, 17). Consequentemente, nos levam ao nosso batismo pelo qual nos foi dada a vida nova em Jesus Cristo.

Escutar a voz do Filho, revelador do amor do Pai, deve ser a meta de todo cristão. Abraão ouviu, acreditou e “partiu” (cf. Gn 12, 1-4). Por isso se tornou a grande bênção para a sua posteridade. O cristão batizado, ouvindo a voz do Filho, confirmado pelo pedido de sua mãe: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2, 5), será sempre uma bênção para sua família e comunidade. Não se esqueça, porém, que é uma realidade que demanda a cruz. O que conforta e anima é a perspectiva da ressurreição, da vida nova, da serenidade, da alegria verdadeira que “ninguém poderá tirar” (Jo 16,22).

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O MEDO DE ESCUTAR JESUS

“Ao ouvirem isso, os discípulos caíram de rosto em terra tomados de grande medo” (Mt 17,6). Os discípulos não suportaram ouvir aquela voz que confirmava a vida de Jesus. E não suportaram também a ordem: “Escutai o que ele diz”. Parece que os discípulos ainda não queriam ouvir a Jesus. Preferiam continuar ouvindo outras vozes.

Quão frequente é a tentação da recusa em ouvir a voz do Senhor que clama dentro de nós, em nossa consciência e nos fala pelas nossas comunidades e sinais dos tempos! Por isso a Igreja reza com o salmista: “Hoje, não fecheis o vosso coração, mas ouvi a voz do Senhor” (Sl 95). Preferimos, muitas vezes, permanecer na ignorância, na mesmice, no “deixa pra lá”. Não é tarefa fácil prestar ouvido ao apelo à conversão, à mudança de vida, pois pede desacomodo.

É preciso deixar-se tocar pelo Senhor: “Jesus aproximou-se, tocou neles e disse: ‘Levantai-vos! Não tenhais medo’” (Mt 17,7). É o toque do Senhor que nos acorda, que nos faz perceber e ver a história com outros olhos. Deixar-se tocar pelo Senhor é desenvolver a capacidade de ouvir as pessoas, de olhar o mundo com um olhar de Deus; de debruçar-se todos os dias sobre a Palavra de Deus e orientar a própria vida por ela. É deixar que o projeto do Pai ilumine nossos próprios projetos. É lançar-se com mais confiança nas mãos do Pai, sabendo que Ele cuida de todos nós.

O Servo de Deus, Pe. Júlio Maria De Lombaerde, fundador de nossa Congregação, comentando este evangelho, falava da importância de se retirar para ouvir o Senhor. Jesus – observava ele – conduziu os discípulos à parte sobre uma alta montanha. Significa que é preciso deixar de lado as distrações e preocupações mundanas para estar com o Senhor e ouvi-lo. “Enquanto uma alma está entregue às preocupações das noticias, aos devaneios, ao tumulto dos vãos pensamentos, fica escravizada pela imaginação e pelas distrações, e Deus não é para ela senão o Deus desconhecido de Atenas (At 17,23)”. E continua: “O homem distraído não se conhece a si mesmo, não vê o que deve reformar em si, não descobre razões de melhorar, de praticar a virtude. Toda a sua vida decorre no esquecimento de Deus e na ignorância dos próprios defeitos. (...) O homem espiritual, porém quer elevar-se da terra, aproximar-se de Jesus transfigurado, transfigurar-se com Ele pela prática da virtude” (Comentário Litúrgico, p. 164-165).

Sobe, pois, a montanha! Escuta o Mestre! Deixa-te tocar por ele! Põe-te de pé e segue a Jesus! Não tenhas medo de ouvi-lo e de segui-lo! O movimento é sempre este: subida e descida: subir a Montanha para estar com ele. Descer a Montanha para estar com os outros de modo novo, iluminado, transfigurado, encantado, fortalecido.

*Lembramos hoje a vocação ao ministério ordenado: diácono, padre e bispo. Seria bom fazermos, hoje, uma prece pelo nosso pároco, pelos padres que conhecemos, por aqueles que nos marcaram na fé, por aqueles padres que passam por dificuldades, tribulações, desencanto e enfermidades, por aqueles que vivem em situação de risco, de violência, de miséria. E vamos pedir ao Pai que envie padres profetas e santos para sua Igreja. Sacerdotes configurados a Cristo-Servo.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

“Escutai o que Ele diz”

aureliano, 03.03.23

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2º Domingo da Quaresma [05 de março de 2023]

[Mt 17,1-9]

O relato da transfiguração é apresentado logo após o anúncio da paixão, seguido da repreensão de Pedro que esperava um messias poderoso para libertá-los das mãos dos romanos. Por isso dizemos que nesse relato estão entrelaçados dois aspectos paradoxais: sofrimento e glória. Lucas o confirma ao relatar que a conversa entre Moisés, Elias e Jesus versava sobre “sua partida que iria se consumar em Jerusalém” (Lc 9, 31).

O que esse relato nos quer transmitir? É um apelo aos discípulos a reconhecerem a verdadeira identidade de Jesus, o Filho amado do Pai, ao mesmo tempo que evidencia o crime hediondo daqueles que tramam sua morte.

Moisés e Elias: este ultimo, representante dos profetas e aquele, da Lei. Ambos encontraram-se com Deus na montanha. Aqui, porém, eles nem têm o rosto transfigurado nem ensinam os discípulos, mas conversam com Jesus.  O episódio da transfiguração mostra Jesus, o Filho amado do Pai, que realiza e sintetiza em sua própria vida a Lei e os Profetas. Agora é Ele que deve ser ouvido.

Quando vemos, nesse relato, sofrimento e glória articulados, não devemos interpretar que o sofrimento é o preço da glória; como se Deus barganhasse conosco. Não. A cruz ou sofrimento é consequência da fidelidade ao projeto do Pai. Faz parte da vida do discípulo de Jesus que busca viver um estilo de vida que se opõe à proposta mundana de morte. “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16, 24). Como o Pai glorificou e confirmou seu Filho, ele fará o mesmo com aqueles que buscarem conformar sua vida com a vida de Jesus. No ser humano de Jesus toda a humanidade foi glorificada.

A voz do Pai deve continuar ressoando em nossa vida: “Este é o meu Filho amado em quem me comprazo, ouvi-o”. Essas palavras nos remetem ao relato do batismo de Jesus: “Este é meu Filho amado em quem me comprazo” (Mt 3, 17). Consequentemente nos levam ao nosso batismo, realidade que nos incorpora a Cristo, nos dá vida nova, novo nascimento. E a quaresma sempre foi, na Igreja, desde os primórdios, tempo de preparação para o batismo (para os catecúmenos), e de retomada dos compromissos batismais para fiéis cristãos.

Escutar a voz do Filho, revelador do amor do Pai, deve ser a meta de todo cristão. Abraão ouviu, acreditou e “partiu” (cf. Gn 12, 1-4). Por isso se tornou a grande bênção para a sua posteridade. O cristão batizado, ouvindo a voz do Filho, confirmado pelo pedido de sua mãe: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2, 5), será sempre uma bênção para sua família e comunidade. Não se esqueça, porém, que é uma realidade que demanda a cruz. O que conforta é a perspectiva da ressurreição, da vida nova, da serenidade, da alegria verdadeira que “ninguém poderá tirar” (Jo 16,22).

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O MEDO DE ESCUTAR JESUS

“Ao ouvirem isso, os discípulos caíram de rosto em terra tomados de grande medo” (Mt 17,6). Os discípulos não suportaram ouvir aquela voz que confirmava a vida de Jesus. E não suportaram também a ordem: “Escutai o que ele diz”. Parece que os discípulos ainda não queriam ouvir a Jesus. Preferiam continuar ouvindo outras vozes.

Quão frequente é a tentação da recusa de ouvir a voz do Senhor tanto em nós e em nossas comunidades! Por isso a Igreja reza com o salmista: “Hoje, não fecheis o vosso coração, mas ouvi a voz do Senhor” (Sl 95). Preferimos, muitas vezes, permanecer na ignorância, na mesmice. Preferimos, muitas vezes, a recusa em ouvir os clamores dos pobres, uma opinião de quem pensa diferente, o chamado à conversão.

Então é preciso deixar-se tocar pelo Senhor: “Jesus aproximou-se, tocou neles e disse: ‘Levantai-vos! Não tenhais medo’” (Mt 17,7). É o toque do Senhor que nos acorda, que nos faz perceber e ver a história com outros olhos. Deixar-se tocar pelo Senhor é desenvolver a capacidade de ouvir as pessoas, de olhar o mundo com um olhar de Deus; de debruçar-se todos os dias sobre a Palavra de Deus e orientar a própria vida por ela. É deixar que o projeto do Pai ilumine os próprios projetos. É lançar-se com mais confiança nas mãos do Pai, sabendo que Ele cuida de todos nós.

O Servo de Deus, Pe. Júlio Maria De Lombaerde, comentando este evangelho, falava da importância de se retirar para ouvir o Senhor. Jesus – observava ele – conduziu os discípulos à parte sobre uma alta montanha. Significa que é preciso deixar de lado as distrações e preocupações mundanas para estar com o Senhor e ouvi-lo. “Enquanto uma alma está entregue às preocupações das noticias, aos devaneios, ao tumulto dos vãos pensamentos, fica escravizada pela imaginação e pelas distrações, e Deus não é para ela senão o Deus desconhecido de Atenas (At 17,23)”. E continua: “O homem distraído não se conhece a si mesmo, não vê o que deve reformar em si, não descobre razões de melhorar, de praticar a virtude. Toda a sua vida decorre no esquecimento de Deus e na ignorância dos próprios defeitos. (...) O homem espiritual, porém quer elevar-se da terra, aproximar-se de Jesus transfigurado, transfigurar-se com Ele pela prática da virtude” (Comentário Litúrgico, p. 164-165).

Sobe, pois, a montanha! Escuta o Mestre! Deixa-te tocar por ele! Põe-te de pé e segue a Jesus! Não tenhas medo de ouvi-lo e de segui-lo! O movimento é sempre este: subida e descida: subir a Montanha para estar com ele. Descer a Montanha para estar com os outros de modo novo, iluminado, transfigurado, encantado, fortalecido.

*Campanha da Fraternidade 2023: Encontramos resistência por parte de alguns grupos em trabalhar o tema da fome, julgando ser coisa de política, de esquerda, de comunista etc. Vale a pena relembrar aquela famosa palavra do Servo de Deus, Dom Helder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”. A Campanha da Fraternidade este ano, à luz do Evangelho, quer nos sensibilizar sobre o flagelo da fome que afeta e ceifa a vida de milhões de brasileiros. E nos ajuda a olhar mais de perto as causas estruturais da fome. “As raízes da fome estão, especialmente, na distribuição iníqua da renda e das riquezas, que se concentram nas mãos de poucos, deixando, na pobreza, enormes contingentes populacionais nas periferias urbanas e nas áreas rurais. Esta concentração de renda e riqueza vem de longa data e segue uma lógica na qual o crescimento econômico do Brasil sempre aumenta a riqueza dos ricos, sem estender seus benefícios a quem não tem poder no mercado. A desregulamentação e a flexibilização dos mercados vêm retirando do Estado sua função social e política, em prejuízo do seu dever de justa intervenção na economia e na redistribuição da renda. Entregue à lógica do jogo de concorrência que lhe é própria, o mercado premia os fortes e pune os fracos, aumenta o desemprego e oferece remuneração tão baixa aos trabalhadores e à maioria dos aposentados que não lhes permite adquirir alimento para uma subsistência saudável” (Texto-base, 54).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Reconfigurar-nos à imagem do Filho

aureliano, 23.02.18

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2º Domingo da Quaresma [25 de fevereiro de 2018]

 [Mc 9,2-10]

O finalzinho do capítulo 8 de Marcos relata as exigências do seguimento de Jesus: “Se alguém quer vir em meu seguimento, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. Em seguida traz o relato da Transfiguração como a convidar o discípulo a dar uma ‘espiadinha’ no céu. É Jesus revelando sua glória a seus discípulos para que confiassem nele: é o Filho de Deus, Salvador.

No último domingo (1º da quaresma), acompanhamos Jesus, levado pelo Espírito ao deserto, sendo tentado pelo adversário do projeto salvífico e libertador do Pai. Na força do mesmo Espírito Jesus venceu o tentador. Aquele tempo de preparação para a sua missão foi árduo. Mas Jesus não se deixou abater. Venceu a tentação que queria desviá-lo da vontade do Pai.

Hoje Jesus sobe a montanha. Se no deserto ele passou pela tentação, aqui ele faz um encontro com o Pai. O Deserto é lugar da prova, da tentação: ouve-se a voz de Satanás. A Montanha é lugar do encontro com o Senhor: ouve-se a voz de Deus. Essa realidade nos remete à doutrina dos “dois caminhos” de que falava a Lei de Moisés: “Eu te proponho a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida para que vivas” (cf. Dt 30, 15-20). E também aquela divisão interna que há dentro de nós e que fazia Paulo exclamar: “Querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero” (cf. Rm 7, 14-20).

Na montanha, Moisés e Elias se encontraram com Deus e receberam d’Ele as instruções para a sua missão. Por isso o evangelista apresenta essas duas figuras memoráveis do Primeiro Testamento. Moisés representa a Lei e a libertação do povo das mãos do Faraó. Elias representa o profetismo, pois libertou o povo da idolatria que oprimia Israel. Jesus aparece na cena como alguém superior a Moisés e Elias. As roupas brilhantes, o fato de eles estarem conversando com ele, tudo mostra Jesus como centro do relato. Isso significa que Jesus está para além dessas figuras proeminentes do passado: é o “Filho amado do Pai”.

Pedro gostou daquela amostragem do paraíso. Queria ficar por ali. “É bom ficarmos aqui. Façamos três tendas”. Representa o discípulo acomodado, que quer experimentar a Páscoa sem passar pela Sexta-feira da Paixão. Que quer fugir dos embates cotidianos, da luta cotidiana pelo Reino. Quer glória sem cruz. Não quer “descer” a montanha para a missão.

A voz do Pai identifica seu filho: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!”. É ele que veio oferecer sua vida pela salvação da humanidade. O Pai o entrega, como Abraão outrora entregou seu filho Isaac (cf. Gn 22, primeira leitura da missa de hoje). “Deus, com efeito, amou tanto o mundo que deu o seu Filho, o seu Único, para que todo homem que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). No batismo o Pai se dirige ao próprio filho: “Tu és o meu Filho bem amado” (Mc 1, 11). Aqui o Pai apresenta seu filho ao mundo: “Este é o meu Filho amado”. Aquele que fora consagrado e confirmado no batismo e no deserto, deve ser acreditado, seguido, ouvido. Por isso a insistência: “Escutai-o”. É preciso prestar atenção, ouvir com ouvido de discípulo, a cada manhã (cf. Is 50, 4-5; 55, 3).

“Olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles”. Isto é, os discípulos não têm outro mestre (nem Moisés nem Elias), a não ser Jesus: “Um só é o vosso mestre” (Mt 23, 10).

O relato da transfiguração do Senhor, na liturgia quaresmal, quer ajudar o discípulo de Jesus a firmar-se na fé n’Aquele que será contemplado sem figura de homem na cruz, reconhecendo-o como o Filho de Deus, cheio da beleza divina, por alguns momentos oculta no véu da carne, mas que será manifestada na glória do Pai.

O discípulo deve também, por sua vez, rezar sua própria transfiguração em Cristo. E trabalhar para que os rostos desfigurados pela dor e sofrimento produzidos por uma sociedade que exclui, discrimina e escraviza, que se pauta pela competição e que valoriza a pessoa pelo que tem e não pelo que é, sejam reconfigurados ao rosto do Cristo transfigurado. Na medida em que ajudamos os irmãos sofredores a minimizarem sua dor, estamos transfigurando seu rosto no Cristo ressuscitado.

O dar-se de Cristo pela salvação do mundo, mistério que celebramos em cada Eucaristia, nos move a sair do nosso egoísmo na direção de uma entrega mais generosa e gratuita, tornando mais visíveis os frutos da Eucaristia: fraternidade, simplicidade, alegria, generosidade, solidariedade, partilha, perdão.

Campanha da Fraternidade 2018: superar a violência social e familiar.

“A desigualdade gera violência. Isso não quer dizer que os excluídos reajam violentamente. Bem mais grave do que isso, o sistema econômico pautado na promoção da desigualdade produz violência, na medida em que favorece o bem-estar de uma pequena parcela enquanto nega oportunidades de desenvolvimento a milhões de pessoas. Não parece razoável esperar que haja tranqüilidade enquanto, sistematicamente, pessoas são marginalizadas. A injustiça social traz consigo a morte” (Texto-Base, n. 72).

“O Mapa da Violência registra que, no ano de 2014, diariamente, 405 mulheres demandaram atendimento médico em unidades de saúde por terem sofrido algum tipo de violência doméstica, sexual ou outras formas de agressão. A cada três vítimas de violência, duas eram mulheres. Quando se consideram as formas de violência não letal, os números são diversos, mas se mantém a mesma realidade que faz do lar um lugar preponderante para as agressões contra as mulheres” (Texto-Base, n. 86).

“Em todo o mundo, conforme revela a Organização Mundial da Saúde, aproximadamente, uma em cada seis pessoas (16%) com mais de 60 anos de idade já sofreu algum tipo de abuso. O agressor quase sempre é um familiar, notadamente filhos ou cônjuge. A obrigatoriedade da notificação dos maus tratos contra pessoas idosas é recente, mas os números vêm se avolumando a cada ano. Refletem, talvez, um maior esclarecimento” (Texto-Base, n. 91).

“Outro grupo que é vítima de violência dentro de casa é composto pelas crianças e adolescentes. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), não há dados que revelem a extensão dessa forma de violência. Muitas situações de agressão são naturalizadas e não chegam a ser nomeadas como casos de violência: são percebidas como práticas normais da educação e da convivência familiar. O abuso sexual, os ataques verbais ou físicos e a negligência constituem as formas de violência mais comuns enfrentadas por crianças e adolescentes no ambiente familiar” (Texto-Base, n. 92).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN