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aurelius

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Meu pai, muito obrigado!

aureliano, 13.08.23

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13 de agosto de 2023, domingo, dia dos pais. Exatos um ano e quatro meses sem nosso velho pai, José Lopes de Lima. Ele foi para a casa do Pai, definitivamente, para sempre. Foi para a morada que Jesus preparou para ele: "Na casa de meu Pai há muitas moradas. Vou prepar-vos um lugar, a fim de que onde eu estiver, estejais também vós" (Jo 14,2-3). 

Tenho certeza de que ele está no coração de Deus. Sua vida, suas palavras, seu zelo, seus cuidados conosco, com a mamãe; seu respeito e cuidados para com as pessoas, particularmente mais simples e pobres, me dão a certeza de que o Bom Pastor da humanidade o transportou em seus ombros para as pastagens eternas.

Ele gostava de escrever cartas aos filhos. Ao nosso irmão mais velho, José de Anchieta, então no seminário de Juiz de Fora, dentre muitas  notícias dadas, escrevia nos idos de 1976: "Meu filho, não estou triste, mas... dinheiro para pagar as custas do seminário é neca; espero em Deus e Ele certamente, com o esforço de minha parte, poderá me apontar um caminho que conduza-me a uma saída feliz".

Essas palavras revelam sua alma confiante. Em meio às tribulações da vida, não perde a confiança e a esperança em Deus. É consciente de que precisa se esforçar, participar da ação divina que lhe abrirá as portas. Papai não tinha uma fé mágica. Sua fé era madura, responsável, iluminada pela razão. E não queria viver dependente dos outros nem ser pesado a ninguém. Empenhava-se com suas forças em busca de saída, sempre confiante no auxílio divino.

Nesta mesma carta de 30 de março de 1976, ele escreve carinhosamente ao Anchieta: "Outra novidade é esta, sua mamãe está ao lado de mais uma filhinha, nascida dia 25 deste. Tanto a Juracy, como a menina estão gozando saúde, graças a Deus". Demonstra muito carinho em suas missivas. Não cobra, não aborrece, não censura. Uma cartinha que conforta.

 E continua: "Outra: Felipe está animado no ginásio, está tirando boas notas". Sempre entusiasmado com os filhos, animando-os a estudar. Zeloso no acompanhamento dos estudos, diz ao Anchieta: "O boletim, você pode trazê-lo quando vier, também não precisa me responder porque está breve sua vinda, se você conseguir licença". E ainda reverente às orientações da vida no seminário.

Valoriza o trabalho do filhote seminarista duarante as férias do final daquele ano: "O feijão que você ajudou a plantar não está prestando, já plantei uma boa porção e vou plantar mais. O arroz é que está ótimo, só você vendo!..." Ler o papai conforta a alma!

E ainda faz um "N.B." (Note bem): "A sua vovó Jacyra é quem ficou em companhia de sua mamãe". É assim que o papai deixava sua alma transbordar. Naqueles tempos difíceis para sobreviver, para tratar da "ruma" de filhos, no dizer do cearense. Naqueles tempos defíceis de conseguir papel para escrever. Até mesmo uma mesa como apoio era difícil. Sair da roça, ir à cidade, selar a carta e postar... Tudo complicado. Mas o papai o fazia com todo carinho e amor.

Desde jovem ele buscou sempre as coisas de Deus. Era congregado mariano, vicentino. Participava dos retiros anuais. Não perdia a celebração da Eucaristia. O terço, expressão de sua alma orante e de sua devoção e amor a Maria, era seu companheiro fiel, todos os dias.

Dedicava tempo às leituras da Sagrada Escritura e de boas revistas, coisa rara naquele tempo: "Santuário de São Geraldo"; "Estrela do mar" etc. Sua formação religiosa e cultural não caiu do céu, não. Foi buscada, alimentada, cultivada por ele com todo afinco. Custou-lhe muito sacrifício e suor. Até mesmo lágrimas, que nunca vimos corrê-las de seus olhos, mas certamente marejaram seu coração. 

Neste dia louvo e agradeço a Deus pela vida do papai. Suas palavras, sua atitude de fé, sua conformidade com a vontade de Deus, sua busca de viver uma vida santa, tudo isso me inspira e me estimula. Sua serenidade diante das tribulações e necessidades, seus cuidados firmes e ternos para conosco nos ajudam a refletir sobre a beleza e a seriedade da vida. 

Obrigado, papai, pela doação de sua vida em forma de eucaristia para nos ajudar a ser humanos, honestos, responsáveis, respeitosos, zelosos e afetuosos.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Obs.: A foto que ilustra esse texto me é muito cara. Ela revela as profundezas da alma do papai. A Lindinha que ele toma no colo é a Maria Júlia, filha da Vanessa e do Sandro, neta do meu irmão, João Vianei e de minha cunhada, Elvira.

 

Amados e envolvidos pelo Amor Trinitário

aureliano, 02.06.23

Santíssima Trindade - 07 de junho 2020.jpg

Solenidade da Santíssima Trindade [04 de junho de 2023]

[Jo 3,16-18]

O Mistério Trinitário

Celebramos neste domingo a solenidade da Santíssima Trindade, o mistério de um só Deus em três Pessoas. Não se trata de uma realidade matemática, pois então pediria uma solução, mas trata-se de um Mistério que nos é superior e nos envolve, uma realidade que não cabe dentro de nossa cabeça, mas que nos convida a colocar nossa cabeça dentro desse Mistério.

 O Pai ama o Filho e o gera desde toda a eternidade; e desse amor entre o Pai e o Filho procede o Espírito Santo. O Pai enviou seu Filho ao mundo pela ação do Espírito Santo. Cumprida sua missão nessa terra, o Filho volta ao Pai e nos envia, da parte do Pai, o Espírito Consolador para animar e santificar a Igreja, Sacramento de Cristo no mundo.

O que o texto nos diz

O evangelho deste domingo está no contexto do encontro de Jesus com Nicodemos. Jesus lhe mostra a necessidade de um novo nascimento para se entrar no Reino de Deus. Um caminho que se faz a partir da fé no Filho de Deus, aquele que desceu do céu para dar vida ao mundo (cf. Jo 3, 7.13.15).

Jo 3, 16-18 é o núcleo do evangelho de João, o anúncio fundamental que mostra o imenso amor do Pai que envia seu Filho para salvar o mundo.

"Mundo" no evangelho de João significa aquela realidade que se opõe ao projeto de Jesus, ao Reino de Deus. São todas as forças de morte, toda a maldade que destrói a vida, que afirma a ganância, a mentira, a violência, a sede desordenada do lucro e da dominação, a sedução do dinheiro, do poder e do prazer (cf. 1Jo 2,16).

Mas Deus vem, em seu amor manifestado em Jesus Cristo, salvar este mundo. O Pai não quer a morte das pessoas, mas quer que todos sejam salvos pela fé em Jesus, aquele que ele enviou "não para julgar, mas para salvar".

O gesto do Pai de "entregar" o Filho nos remete ao gesto de oferta de sua própria vida. É o gesto eucarístico de Jesus que celebramos todos os domingos: "Isto é o meu corpo entregue por vós". No encalço deste gesto eucarístico, queremos também nós colaborar na salvação do mundo. Quando participamos da Eucaristia nós estamos dizendo com Jesus também: "Ofereço minha vida, minhas energias, minhas possibilidades e dons para participar na salvação do mundo". O 'dom' do Pai na pessoa de Jesus deve conter também nosso 'dom', isto é, nossa pessoa, nossas atitudes 'conformadas' ao gesto de Jesus: "Tenham em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus" (Fl 2, 5).

Deus quer contar conosco

Deus não precisa de nós, nem de nossas coisas. “Ainda que nossos louvores não vos sejam necessários, vós nos concedeis o dom de vos louvar. Eles nada acrescentam ao que sois, mas nos aproximam de vós por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso” (Prefácio Comum IV). Deus quer que sejamos no mundo a sua imagem, que manifestemos a sua presença. Cada atitude de acolhida, de perdão, de denúncia da maldade, de renúncia a vantagens espúrias, de apoio a iniciativas que promovem a justiça  e a paz; cada esforço de fidelidade à família, de cuidado com os filhos, com os idosos, com os pais, com os doentes, com a Criação; cada palavra que fortalece, que acalenta, que conforta; tudo isso é “oferenda” unida à “entrega” de Jesus, é gesto eucarístico para a salvação e libertação do mundo.

Não crer em Jesus Cristo é recusar-se a se colocar em favor da vida. Por isso "Quem não crê já está julgado", pois se coloca numa atitude de morte, de trevas, de recusa a reconhecer a Luz que veio a este mundo: "Quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis" (Jo 3, 20).

Crer na Trindade Santa é orientar a vida pelo amor. Não bastam palavras bonitas, definições dogmáticas, afirmações fantásticas a respeito de Deus. O Mistério que celebramos hoje nos transcende, está para além de nossa capacidade de compreensão racional. A razão não dá conta do mistério senão quando se deixa banhar por ele. Por isso Santo Agostinho afirmava: Credo ut intelligam. Ou seja, para entender o mistério - que é razoável e não racional – eu, primeiro, creio. Uma vez conformadas nossa inteligência e vontade a essa realidade que nos transcende e nos envolve, começamos a compreender a beleza, a grandeza e profundidade dessa realidade de nossa fé cristã.

Pai, dai-nos a graça de realizarmos em nossa vida de família e de comunidade aquela comunhão que procede do Seio de vossa vida Trinitária. Comunidade Santíssima, na qual fomos mergulhados pelo batismo, inspirai e fortalecei nossa comunidade terrestre. Amém.

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UM POUCO DE DOUTRINA

 “O credo elaborado nos concílios ecumênicos de Nicéia (325) e Constantinopla (381) encontrou fórmulas que se tornaram depois dogmas. O dogma básico acerca da Santíssima Trindade reza assim: Em Deus há uma única natureza divina que subsiste em três Pessoas realmente distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Essa formulação abstrata não quer exprimir outra coisa senão aquilo que Jesus experimentou: que estava sempre em comunhão com o Pai, sentia-se Filho amado e que agia e falava com uma Força que o tomava, o Espírito Santo.

O importante não é afirmar os divinos Três. Isso até pode nos levar a uma heresia, vale dizer, a um erro na compreensão da fé, a heresia do triteísmo, como se houvesse três deuses. A centralidade se encontra na relação entre eles. As próprias palavras já supõem relação. Assim não existe pai simplesmente. Alguém é pai porque tem filho. Ninguém é filho simplesmente. É filho porque tem pai. Espírito, no sentido originário, significa sopro. Não há sopro sem alguém que assopre. O Espírito é o sopro do Pai para o Filho e do Filho para o Pai. Como se depreende, os Três sempre vêm juntos e se encontram eternamente entrelaçados. Em outras palavras, dizer Trindade é dizer relação, como disse o Papa João Paulo II quando esteve pela primeira vez na América Latina em 1979, em Puebla, no México: ‘A natureza íntima de Deus não é solidão, mas comunhão, porque Deus é família, é Pai, Filho e Espírito Santo’. Esse entrelaçamento foi expresso pela tradição teológica pela palavra grega pericorese que significa ‘a interrelação entre as Pessoas divinas’. Elas são distintas para poderem se relacionar. E essa relação mútua é tão profunda e radical que elas se uni-ficam. Elas ficam um só Deus-comunhão, um só Deus-amor, um só Deus-relação.

Precisamos superar a terminologia tradicional com a qual se pretendia expressar a natureza íntima de Deus. Ela é, para nossos ouvidos contemporâneos, demasiadamente formal e abstrata. No nível da experiência de fé diríamos de forma mais simples e compreensível: Deus que está acima de nós e que é nossa origem chamamos de Pai-e-Mãe eternos; Deus que está  conosco e que se faz companheiro de caminhada se chama Filho; e Deus que habita nosso interior como entusiasmo e criatividade se chama Espírito Santo. Como se depreende, não são três deuses, mas o mesmo e único Deus-comunhão que atua em nós e nos insere em sua rede de relações. Dentro de nós se realiza a eterna relação de amor e de comunhão entre Pai, Filho e Espírito Santo. Deus-comunhão está sempre nascendo dentro de nós. Por isso somos seres de comunhão e um nó permanente de relações. No início de tudo está a comunhão dos divinos Três” (L. Boff, Experimentar Deus, p. 108-110).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

A distância entre o dizer e o fazer

aureliano, 25.09.20

26º Domingo do TC - A - 27 de setembro.jpg

26º Domingo do Tempo Comum [27 de setembro de 2020]

[Mt 21,28-32]

Neste e nos dois domingos subsequentes temos três parábolas de Mateus mostrando o que acontece àqueles que, embora conhecendo, rejeitam a graça de Deus. É próprio da liturgia, na aproximação do final do ano litúrgico, acentuar os temas da conversão e da graça, mostrando, com clareza, o final escatológico pelo qual deve passar todo ser humano. Quando o justo se desvia do caminho de Deus, ele se perde. Porém, quando o malvado se converte, ele se salva.

Na parábola de hoje não está em jogo a mudança de postura - ambos mudaram -, mas o objeto da adesão: a vontade do pai. Estamos acostumados a dizer “sim, senhor” a tudo. Há uma tendência dentro de nós em buscar sempre agradar para resolvermos nossa situação ou para não experimentarmos os dissabores por vezes provocados pela atitude coerente e verdadeira. Se atende a meus interesses, se me for vantajoso, faço o que o Evangelho propõe ou a Igreja pede, mas se exigir de mim esforço, conversão, mudança de mentalidade, então procuro dar o ‘jeitinho brasileiro’. Em outras palavras: costumamos dizer “sim”, mas fazemos o que queremos ou o que mais nos convém.

Jesus conta esta parábola aos chefes da religião: liderança religiosa. Estes eram peritos em explicá-la aos outros, em dizer o que Deus queria. Cuidavam do templo, das sinagogas, dos livros sagrados. Mas não viviam o que ensinavam. Uma religião de fachada. Ter a bíblia nas mãos, falar sobre a fé para os outros, frequentar o templo são atitudes muito comuns em nosso meio. Mas viver uma vida coerente é muito raro. Parece que o problema do mundo não está na descrença - pois ‘crentes’ os há aos milhões -, mas na falta de coerência de vida. Que sentido tem pronunciar com os lábios minha fé em Jesus se minha vida não expressa esforço em segui-lo? Corremos o risco de transformar a fé em ‘religião semanal’. Ou seja, nos cercamos de atos religiosos em casa ou no templo, mas não permitimos que Deus penetre e perpasse nossa vida, nossa família, nossas decisões, nossos negócios, nosso trabalho etc. Uma religião de conveniência.

As contundentes palavras de Jesus: “as prostitutas e os publicanos vos precederão no Reino de Deus” nos fazem pensar mais seriamente sobre nossa vida quando nos julgamos “bons” e “justos”. Os que estão à margem, aqueles que não contam, acolhem a Jesus, ao passo que as elites o rejeitam. Há mulheres que se prostituem para ganhar o pão de cada dia e dar de comer a seus filhos. E os “bons” compram seus ‘serviços’. Há ‘publicanos’ que subornam e sonegam porque há “bons” que usam seus serviços ou lhes favorecem a pilantragem. Há corruptos porque existem aqueles que se deixam corromper. Algum dia as meretrizes e os publicanos poderão descobrir que há outro caminho para viverem com dignidade e honestidade sua vida, se forem ajudados pelos que buscam fazer a vontade do Pai.

Percebemos pela parábola que os “bons” precisam de conversão para entrar no Reino. Aos pecadores talvez seja mais fácil fazer um caminho de conversão: não tem mesmo nada a perder nem de que se envergonhar. Aos “bons”, acostumados aos primeiros lugares, certamente custa muito deixar seu posto de “justos” para assumir um caminho de humildade, de simplicidade, de discipulado.

Não adianta ter o rótulo de justo dizendo que vai à missa, que recebe os sacramentos, que está em dia com os mandamentos de Deus e as leis da Igreja. Estar de bem com Deus não é direito adquirido. É preciso fazer a vontade de Deus, viver como Deus quer. A vida que agrada a Deus não se contabiliza por uma somatória de práticas e ritos realizados, mas a integração fé e vida. Ou seja: o sim da fé deve ser o sim da vida. A confissão dos lábios deve tornar-se ação e gestos das mãos. O “sim” e o “não” não passam pela observância externa das leis, mas através da vida. A verdade do ser humano se descobre por suas obras. É aí que ele se dá a conhecer. É pelos frutos que se conhece a árvore.

O futuro do ser humano, da família, da criação depende de como cada um responde e executa o apelo: “Filho, vai trabalhar hoje na vinha”. O cristão de verdade é reconhecido pelos seus atos e não pelas suas intenções.

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*Hoje a Igreja celebra um santo muito significativo na vida dos pobres: São Vicente de Paulo. “Nasceu na França no ano de 1581 em uma família de camponeses, sendo o 3º filho de cinco irmãos e foi ordenado sacerdote aos 19 anos. A conjuntura na qual o nosso Vicente encontrava-se inserido era marcada pelo avesso social e econômico, considerando que naquele período tínhamos a França como uma das mais importantes potências europeias, porém, grande parte de sua população era composta por miseráveis, homens, mulheres e crianças entregues ao completo abandono, tornando-se assim indigentes sociais, negligenciados pelos ricos e poderosos daquela época, que viviam em meio ao conforto e a todo tipo de luxo que o dinheiro e o prestigio social poderia obter. Ao contrário do que muitos pensam, São Vicente de Paulo não nasceu santo, a sua tão conhecida santidade só foi alcançada após uma longa jornada de purificação e desprendimento trilhado pelos caminhos da caridade, que o levaram a atuar em diferentes vias” (revistamissoes.org.br/2019/10).

É oportuno que se leiam os ensinamentos de São Vicente, muitíssimo atuais. Sobretudo nesses tempos em que se matam os pobres e se perseguem seus defensores. Vejam o que dizia ele orientava aos seus congregados nos idos do século XVII:

“Não temos de avaliar os pobres por suas roupas e aspecto, nem pelos dotes de espírito que pareçam ter. Com frequência são ignorantes e curtos de inteligência. Mas muito pelo contrário, se considerardes os pobres à luz da fé, então percebereis que estão no lugar do Filho de Deus que escolheu ser pobre. De fato, em seu sofrimento, embora quase perdesse a aparência humana – loucura para os gentios, escândalo para os judeus – apresentou-se, no entanto, como o evangelizador dos pobres: Enviou-me para evangelizar os pobres (Lc 4,18). Devemos ter os mesmos sentimentos de Cristo e imitar aquilo que ele fez: ter cuidado pelos indigentes, consolá-los, auxiliá-los, dar-lhes valor.

(...) Deve-se preferir o serviço dos pobres a tudo o mais e prestá-lo sem demora. Se na hora da oração for necessário dar remédios ou auxílio a algum pobre, ide tranquilos, oferecendo a Deus esta ação como se estivésseis em oração. Não vos perturbeis com angústia ou medo de estar pecando por causa de abandono da oração em favor do serviço dos pobres. Deus não é desprezado, se por causa de Deus dele nos afastarmos, quer dizer, interrompermos a obra de Deus, para realizá-la de outro modo.

Portanto, ao abandonardes a oração, a fim de socorrer a algum pobre, isto mesmo vos lembrará que o serviço é prestado a Deus. Pois a caridade é maior do que quaisquer regras, que, além do mais, devem todas tender a ela. E como a caridade é uma grande dama, faz-se necessário cumprir o que ordena. Por conseguinte, prestemos com renovado ardor nosso serviço aos pobres; de modo particular aos abandonados, indo mesmo à sua procura, pois nos foram dados como senhores e protetores” (Ofício das Leituras, na Memória de São Vicente de Paulo).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Amados e envolvidos pelo Amor Trinitário

aureliano, 05.06.20

Santíssima Trindade - 07 de junho 2020.jpg

Solenidade da Santíssima Trindade [07 de junho de 2020]

[Jo 3,16-18]

Celebramos neste domingo a solenidade da Santíssima Trindade, o mistério de um só Deus em três Pessoas. Não se trata de uma realidade matemática, pois então pediria uma solução, mas trata-se de um Mistério que nos é superior e nos envolve, uma realidade que não cabe dentro de nossa cabeça, mas que nos convida a colocar nossa cabeça dentro desse Mistério.

 O Pai ama o Filho e o gera desde toda a eternidade; e desse amor entre o Pai e o Filho procede o Espírito Santo. O Pai enviou seu Filho ao mundo pela ação do Espírito Santo. Cumprida sua missão nessa terra, o Filho volta ao Pai e nos envia, da parte do Pai, o Espírito Consolador para animar e santificar a Igreja, Sacramento de Cristo no mundo.

O evangelho deste domingo está no contexto do encontro de Jesus com Nicodemos. Jesus lhe mostra a necessidade de um novo nascimento para se entrar no Reino de Deus. Um caminho que se faz a partir da fé no Filho de Deus, aquele que desceu do céu para dar vida ao mundo (cf. Jo 3, 7.13.15).

Jo 3, 16-18 é o núcleo do evangelho de João, o anúncio fundamental que mostra o imenso amor do Pai que envia seu Filho para salvar o mundo.

"Mundo" no evangelho de João significa aquela realidade que se opõe ao projeto de Jesus, ao Reino de Deus. São todas as forças de morte, toda a maldade que destrói a vida, que afirma a ganância, a mentira, a violência, a sede desordenada do lucro e da dominação, a sedução do dinheiro, do poder e do prazer (cf. 1Jo 2,16).

Mas Deus vem, em seu amor manifestado em Jesus Cristo, salvar este mundo. O Pai não quer a morte das pessoas, mas quer que todos sejam salvos pela fé em Jesus, aquele que ele enviou "não para julgar, mas para salvar".

O gesto do Pai de "entregar" o Filho nos remete ao gesto de oferta de sua própria vida. É o gesto eucarístico de Jesus que celebramos todos os domingos: "Isto é o meu corpo entregue por vós". No encalço deste gesto eucarístico, queremos também nós colaborar na salvação do mundo. Quando participamos da Eucaristia nós estamos dizendo com Jesus também: "Ofereço minha vida, minhas energias, minhas possibilidades e dons para participar na salvação do mundo". O 'dom' do Pai na pessoa de Jesus deve conter também nosso 'dom', isto é, nossa pessoa, nossas atitudes 'conformadas' ao gesto de Jesus: "Tenham em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus" (Fl 2, 5).

Deus não precisa de nós, nem de nossas coisas. “Ainda que nossos louvores não vos sejam necessários, vós nos concedeis o dom de vos louvar. Eles nada acrescentam ao que sois, mas nos aproximam de vós por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso” (Prefácio Comum IV). Deus quer que sejamos no mundo a sua imagem, que manifestemos a sua presença. Cada atitude de acolhida, de perdão, de denúncia da maldade, de renúncia a vantagens espúrias, de apoio a iniciativas que promovem a justiça  e a paz; cada esforço de fidelidade à família, de cuidado com os filhos, com os idosos, com os pais, com os doentes, com a Criação; cada palavra que fortalece, que acalenta, que conforta; tudo isso é “oferenda” unida à “entrega” de Jesus, é gesto eucarístico para a salvação e libertação do mundo.

Não crer em Jesus Cristo é recusar-se a se colocar em favor da vida. Por isso "Quem não crê já está julgado", pois se coloca numa atitude de morte, de trevas, de recusa a reconhecer a Luz que veio a este mundo: "Quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis" (Jo 3, 20).

Crer na Trindade Santa é orientar a vida pelo amor. Não bastam palavras bonitas, definições dogmáticas, afirmações fantásticas a respeito de Deus. O Mistério que celebramos hoje nos transcende, está para além de nossa capacidade de compreensão racional. A razão não dá conta do mistério senão quando se deixa banhar por ele. Por isso Santo Agostinho afirmava: Credo ut intelligam. Ou seja, para entender o mistério - que é razoável e não racional – eu, primeiro, creio. Uma vez conformadas nossa inteligência e vontade a essa realidade que nos transcende e nos envolve, começamos a compreender a beleza, a grandeza e profundidade dessa realidade de nossa fé cristã.

Pai, dai-nos a graça de realizarmos em nossa vida de família e de comunidade aquela comunhão que procede do Seio de vossa vida Trinitária. Comunidade Santíssima, na qual fomos mergulhados pelo batismo, inspirai e fortalecei nossa comunidade terrestre. Amém.

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UM POUCO DE DOUTRINA

 “O credo elaborado nos concílios ecumênicos de Nicéia (325) e Constantinopla (381) encontrou fórmulas que se tornaram depois dogmas. O dogma básico acerca da Santíssima Trindade reza assim: Em Deus há uma única natureza divina que subsiste em três Pessoas realmente distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Essa formulação abstrata não quer exprimir outra coisa senão aquilo que Jesus experimentou: que estava sempre em comunhão com o Pai, sentia-se Filho amado e que agia e falava com uma Força que o tomava, o Espírito Santo.

O importante não é afirmar os divinos Três. Isso até pode nos levar a uma heresia, vale dizer, a um erro na compreensão da fé, a heresia do triteísmo, como se houvesse três deuses. A centralidade se encontra na relação entre eles. As próprias palavras já supõem relação. Assim não existe pai simplesmente. Alguém é pai porque tem filho. Ninguém é filho simplesmente. É filho porque tem pai. Espírito, no sentido originário, significa sopro. Não há sopro sem alguém que assopre. O Espírito é o sopro do Pai para o Filho e do Filho para o Pai. Como se depreende, os Três sempre vêm juntos e se encontram eternamente entrelaçados. Em outras palavras, dizer Trindade é dizer relação, como disse o Papa João Paulo II quando esteve pela primeira vez na América Latina em 1979, em Puebla, no México: ‘A natureza íntima de Deus não é solidão, mas comunhão, porque Deus é família, é Pai, Filho e Espírito Santo’. Esse entrelaçamento foi expresso pela tradição teológica pela palavra grega pericorese que significa ‘a interrelação entre as Pessoas divinas’. Elas são distintas para poderem se relacionar. E essa relação mútua é tão profunda e radical que elas se uni-ficam. Elas ficam um só Deus-comunhão, um só Deus-amor, um só Deus-relação.

Precisamos superar a terminologia tradicional com a qual se pretendia expressar a natureza íntima de Deus. Ela é, para nossos ouvidos contemporâneos, demasiadamente formal e abstrata. No nível da experiência de fé diríamos de forma mais simples e compreensível: Deus que está acima de nós e que é nossa origem chamamos de Pai-e-Mãe eternos; Deus que está  conosco e que se faz companheiro de caminhada se chama Filho; e Deus que habita nosso interior como entusiasmo e criatividade se chama Espírito Santo. Como se depreende, não são três deuses, mas o mesmo e único Deus-comunhão que atua em nós e nos insere em sua rede de relações. Dentro de nós se realiza a eterna relação de amor e de comunhão entre Pai, Filho e Espírito Santo. Deus-comunhão está sempre nascendo dentro de nós. Por isso somos seres de comunhão e um nó permanente de relações. No início de tudo está a comunhão dos divinos Três” (L. Boff, Experimentar Deus, p. 108-110).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN