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A palavra de Jesus e as “águas profundas”

aureliano, 07.02.25

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5º Domingo do Tempo Comum [09 de fevereiro de 2025]

[Lc 5,1-11]

Nos últimos dois domingos rezamos e refletimos a pessoa de Jesus, o Ungido do Pai, enviado para evangelizar os pobres. Enfrenta rejeição em sua própria terra e entre seus parentes e familiares. “O profeta só não é bem aceito em sua própria terra”.  O ungido de Deus para evangelizar os pobres é desprezado e perseguido na sua missão entre os seus.

No relato deste domingo, Lucas coloca Jesus em outra terra: às margens do lago de Genezaré. Aqui é ouvido por uma multidão que se aperta ao seu redor. Um detalhe interessante que não pode passar despercebido: as pessoas estavam ali “para ouvir a palavra de Deus”. Ao passo que, na sinagoga de Nazaré, o pessoal estava à cata de milagres: “Faze em tua terra o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum”. – Uma pergunta desconcertante: “Você frequenta a igreja para ouvir a Palavra de Deus e entrar num caminho de conversão ou para receber milagres e favores?”

No relato de hoje aparecem duas cenas: o anúncio da palavra de Deus às multidões e a pesca milagrosa. Dois acontecimentos que iluminam a caminhada e a missão da Igreja. A Palavra de Deus ilumina, aquece, inspira, fortalece, perdoa, abre caminhos. Por isso Simão Pedro dirá: “Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos. Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes”.

O trabalho sem a presença de Deus, sem a iluminação de sua Palavra, é inútil. Já rezava o salmista: “A salvação dos justos vem do Senhor, sua fortaleza no tempo da angústia. O Senhor os ajuda e liberta, ele vai libertá-los dos ímpios e salvá-los, porque neles se abrigaram” ”(Sl 37,39-40). E ainda: “Nosso refúgio e rocha firme é o Senhor” (Sl 62,8). E em outro lugar: “Se o Senhor não construir nossa cidade, em vão trabalharão os construtores” (Sl 127,1). Por isso Pedro e os demais pescadores, ainda que peritos no mar e na pesca, não conseguiram nada. – Outra pergunta: “Que lugar ocupa a Palavra de Deus na sua vida? E nas reuniões pastorais? Tem prioridade sobre trabalho, lazer e Redes Sociais?”

Esse relato quer mostrar à Igreja iniciante, representada na Barca de Simão, que a autossuficiência era a causa de prováveis desânimos na comunidade. Certamente a Palavra de Jesus, a confiança nele, a convicção de que os êxitos devem ser atribuídos a ele estavam meio distantes do horizonte da comunidade. O que os levava a voltar desanimados da “pesca”. A autossuficiência é uma praga que acaba com a comunidade, com a família, com a pessoa. Todo aquele que julga bastar-se a si mesmo, acha que não precisa de mais nada nem de ninguém, que tem todo conhecimento e dinheiro para sobreviver, que não aceita opinião nem sugestão de ninguém, está cavando seu próprio inferno e sendo um inferno para sua família e comunidade.

A abertura de Pedro, velho e experimentado pescador, em acolher a palavra de um “carpinteiro”, questiona nossos fechamentos e cabeça dura diante do novo que nos interpela. Uma mudança de época exige novos métodos de evangelização. Se as pessoas estão se afastando do evangelho, ou mesmo usando o evangelho para justificar suas falcatruas, é sinal de que precisamos rever nossa maneira de evangelizar. A “pesca” precisa ser diferente. A presença de Jesus deve ser mais concreta, real. Ele precisa “estar na barca”. A confiança nele precisa ser redobrada. O trabalho precisa ser feito em nome dele e para ele: “Em atenção à tua palavra vou lançar as redes”. Parece ser urgente retomar o lema de Carlos de Foucauld: “Gritar o evangelho com a vida”.

São Paulo VI, em 1975, ensinava: “E antes de mais nada, sem querermos estar a repetir tudo aquilo já recordado anteriormente, é conveniente realçar isto; para a Igreja, o testemunho de uma vida autenticamente cristã, entregue nas mãos de Deus, numa comunhão que nada deverá interromper, e dedicada ao próximo com um zelo sem limites, é o primeiro meio de evangelização. ‘O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, dizíamos ainda recentemente a um grupo de leigos, ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas’. São Pedro exprimia isto mesmo muito bem, quando evocava o espetáculo de uma vida pura e respeitável, ‘para que, se alguns não obedecem à Palavra, venham a ser conquistados sem palavras, pelo procedimento’. Será pois, pelo seu comportamento, pela sua vida, que a Igreja há de, antes de mais nada, evangelizar este mundo; ou seja, pelo seu testemunho vivido com fidelidade ao Senhor Jesus, testemunho de pobreza, de desapego e de liberdade frente aos poderes deste mundo; numa palavra, testemunho de santidade” (Evangelii Nuntiandi, 41).

Diante do milagre operado pela palavra do “filho do carpinteiro”, Pedro se lança aos pés de Jesus e se reconhece frágil, pecador: “Senhor, afasta-te de mim porque sou um pecador”. Notem a atitude de Jesus: diante do pedido de Pedro para que Jesus se afaste, este se aproxima ainda mais: “Não tenhas medo! De hoje em diante tu serás pescador de homens”. Essa atitude de Jesus revela a bondade e a misericórdia do Pai. O Deus de Jesus não é o Deus terrível que espanta, que amedronta, que se mantém distante. Ele está perto e diz: “Não tenhas medo!”. E ainda lhe dá uma missão. Jesus quer que aqueles discípulos sejam continuadores de sua missão no mundo. É a missão da Igreja. Perdoar o pecado. Expulsar o fantasma do medo. Ajudar a pessoas a viverem com alegria, encanto e dignidade.

As “águas profundas” por vezes espantam. É preciso ser forte e confiante para entrar em ambientes e situações desconhecidas, ameaçadoras. Mas os “peixes” estão lá. A gente muitas vezes prefere ficar com aquelas mesmas pessoas de sempre, que frequentam nossa capela/comunidade. Residem no bairro ou córrego duas mil pessoas. Mas nos contentamos com as oitenta que frequentam nossa comunidade. Ao passo que Jesus diz: “Avancem para águas mais profundas”. Além disso, o Papa Francisco nos convida a irmos às “periferias existenciais”. Ou seja, há realidades difíceis, terríveis, destruidoras de vida, dolorosas que precisam da presença missionária: “águas profundas...”.

A atitude dos primeiros discípulos de Jesus nos convida a rever nossos apegos. “Levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus”. Quais são os apegos que não nos deixam avançar? A Sagrada Escritura diz: “Não seja o vosso proceder inspirado pelo amor ao dinheiro” (Hb 13,5). E em outro lugar: “Quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; mas quem perde sua vida por causa de mim, vai salvá-la” (Lc 9,24). Como está o nosso seguimento a Jesus? Que coisas precisamos abandonar?

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

E a família, como vai?

aureliano, 26.12.20

Sagrada Família - B - 27 de dezembro 2020.jpg

Sagrada Família de Nazaré [27 de dezembro de 2020]

[Lc 2,22-40]; [2,40-52]

 PALAVRA DE DEUS: FONTE INSPIRADORA DAS FAMÍLIAS

A família não teve, desde sempre, a constituição pai, mãe e filhos, como conhecemos hoje. Os antropólogos dizem que a família se formou devido à necessidade de sobrevivência diante da escassez de alimentos e das ameaças vindas de fora.

Dessa constituição do grupo familiar para autodefesa surgiram as tribos ou clãs: grupos familiares constituídos de pai, mãe, avós, filhos, primos, tios etc. Assim viviam os israelitas. O que os diferenciava de outros clãs era a vida centrada na Palavra de Deus. Seus costumes e posturas eram orientados pelo ensinamento de Deus. Assim se entende Jesus: ele viveu dentro de um clã, e não somente com José e Maria, como pode ocorrer de imaginarmos a partir de nossa compreensão atual.

Fundante na vida de Jesus é que ele ampliou a compreensão de família. “’Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?’ E repassando com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: ‘Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe’” (Mc 3,33-35). Família, portanto, não está mais no vínculo do sangue ou de religião. Família se constitui sobre o cumprimento da vontade de Deus que é empenho para que haja “vida em abundância para todos” (Jo 10,10).

Daqui brota uma nova compreensão de família. Sabemos que as famílias, hoje, vivem outra realidade. Pais e filhos têm pouco contato. O trabalho absorve grande parte do tempo das pessoas. A mulher-mãe não fica mais em casa para cuidar dos filhos (nem o pai). De um modo geral, pela força das circunstâncias, esse ofício foi terceirizado para a babá ou a avó. Os filhos ficam quase o tempo todo na escola ou na rua. Além de outros aspectos como a droga, a violência, a internet ou a televisão que tomam o tempo e desvirtuam as relações porque transmitem outros valores, quase sempre à revelia daqueles que os pais ensinam.

E os idosos? Ou ficam sozinhos ou são deixados nos asilos. Antigamente eles ficavam em casa sob os cuidados de todos que, normalmente, estavam por ali. Além disso, de modo geral, os filhos e netos não querem o trabalho de cuidar dos idosos e doentes. Interessam a muitos a aposentadoria e a herança. Mas a gratuidade do trabalho permanece bem distante da maioria dos casos. É bom lembrar a palavra do Eclesiástico 3,12-14: “Filho, cuida de teu pai na velhice, não o desgostes em vida. Mesmo se a sua inteligência faltar, sê indulgente com ele, não o menosprezes, tu que estás em pleno vigor. Pois uma caridade feita a um pai não será esquecida, e no lugar dos teus pecados ela valerá como reparação”.

Celebrando a Sagrada Família de Nazaré, Jesus, Maria e José, vamos deixar de lado aquela ideia de “família perfeita”. O importante é termos aquele Espírito que animou a Sagrada Família, no cuidado uns para com os outros, no respeito, na doação para que nossas famílias sejam espaço em que todos possam se sentir seguros, acolhidos, respeitados, amados, educados, em condições de desenvolver suas potencialidades. Quanto mais assumirmos a Palavra de Deus como fonte inspiradora de nossas ações e a Eucaristia como alimento cotidiano, mais compreenderemos o modo de constituir família segundo os critérios do Reino de Deus.

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E A FAMÍLIA, COMO VAI?

É muito comum ainda ouvirmos, nos rotineiros cumprimentos, essa pergunta: “E a família, vai bem?” A resposta normalmente é positiva: “Sim. Está tudo bem, com saúde, graças a Deus”. Mesmo que a situação não esteja lá essas coisas, não faz parte do protocolo contar os problemas e dificuldades que ocorrem entre “quatro paredes” para todo aquele que pergunta. Até porque essa pergunta já supõe uma resposta positiva. E alguns fazem essa pergunta para “puxar” assunto.

Mas todos sabemos da profundidade e complexidade que envolve falar sobre família. Hoje sabe-se que família não se resume àquela constituição familiar de 30 ou 40 anos atrás: papai, mamãe, filhinhos. Todos ali, bonitinhos, arranjadinhos, obedientes... Uma estrutura patriarcal em que o macho determinava, por vezes só com o olhar, o que ele queria ou o que deveria ser feito. E mesmo que a família não tivesse esse tipo de comportamento em seu interior, havia uma harmonia interna que não era ameaçada nem influenciada por fatores externos. Havia mesmo uma prevalência “religiosa” sobre os comportamentos de pais e filhos.

Hoje o mundo mudou muito. A sociedade dita as normas econômicas, sociais, relacionais, educacionais, religiosas. Há uma espécie de ditadura de interesses econômicos que impõe aos grupos e pessoas o que eles devem fazer, o que comprar, o que usar, o que comer, como conviver, até mesmo que religião seguir ou como orar etc. E se a gente ousa entrar nos comportamentos afetivo-sexuais vigentes então, a discussão não tem fim.  Hoje precisamos entender um pouco mais a “questão de gênero”. Não adianta fugir ou evitar o assunto, pois ele está na pauta do dia: redes sociais, filmes, músicas, novelas e séries, escola e rua. Isso incide diretamente nas famílias, núcleo constituinte da sociedade. E esta quer sempre impor seus ‘valores’. Isso tudo sem falar nas constituições e organizações familiares que giram em torno de pelo menos nove modalidades, segundo alguns estudiosos desse assunto. Há autores que já falam em doze modelos de família!

Então, o que fazer? É preciso voltar à família de Nazaré. Não vejo outro caminho. Lucas, nesse belíssimo relato de hoje, desvela uma faceta da família de Nazaré que precisa ser contemplada por todos nós. Um episódio que mostra a centralidade do Pai celeste na vida da família de Nazaré. A religião vivida, praticada por José, Maria e Jesus, ajuda a compreender e a aprofundar o projeto salvífico do Pai.

Uma família que observava ‘religiosamente’ a Lei do Senhor: “Iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa” (Lc 2, 41). Não é a mera observância religiosa que salva. O ritualismo é uma realidade que mata a pessoa e a comunidade. Jesus condenou inúmeras vezes uma prática religiosa desligada da vida. Mas, quando a religião é séria, ética, próxima da Verdade, do Bem e do Belo, ajuda a pessoa e a comunidade a realizar um encontro transformador e realizador com o Criador e Pai. Os pais de Jesus procuravam fazer o que ordenava a Lei. Aliás, Mateus diz que José “era um homem justo” (Mt 1,19). Isto significa que era fiel cumpridor dos Ensinamentos de Deus, a Torah. Maria, a “cheia de graça”, a “serva do Senhor”, a “bendita entre as mulheres”, ouvinte atenta da Palavra. Essas indicações dos evangelhos nos revelam o caminho que esses pais percorriam para deixar sua marca no coração do filho Jesus. Por isso ele os segue: tendo entrado na idade adulta, doze anos para a cultura judaica, também ele sobe ao Templo.

Na viagem de volta, notam algo estranho: cadê o Menino? Ficara em Jerusalém. É interessante notar o cuidado prestimoso dos pais para com o Menino. Aquele cuidado humano. Aquela responsabilidade paterno-maternal em não desamparar o filho, não perdê-lo de vista. E a lição veio: “Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai” (Lc 2,49). Jesus quis lhes mostrar que o seu “Pai” é do céu. Seu pai terreno, jurídico não podia determinar sua vida. Ele veio para fazer a vontade do Pai do céu. Aqui aparece claramente que a missão dos pais é a de ser expressão do Pai celeste na vida dos filhos. Os pais não são donos dos filhos. Nem podem gerar filhos a seu bel-prazer. Filho é dom de Deus. Não pode ser fruto do querer egoísta dos pais. Não estou dizendo que se deva ter filho a torto e a direito. É preciso planejar a família. Mas o filho deve ser sempre acolhido como dom. Como tal, não pode brotar de mero bel-prazer dos pais. Por isso deve-se acolher com todo carinho o filho que não foi planejado, o filho que nasce doentinho ou com alguma deficiência. É sempre um dom do Pai. Nós somos todos do Pai!

Nem tudo na vida é compreendido perfeitamente por nós. A fé nos coloca dentro do Mistério de Deus. Muitos acontecimentos da vida não têm explicação. Têm significado, ou seja, Deus pode nos revelar algo a partir daqueles acontecimentos. Para isso precisamos acolhê-los no coração: “Eles não compreenderam as palavras que lhes dissera... Sua mãe, porém, conservava no coração todas estas coisas” (Lc 2,50-51). A meditação e contemplação do Mistério de Deus revelado em Jesus, Palavra do Pai, é que nos possibilita compreender o que o Pai quer de nós.

Escrevendo sobre os relatos da Infância de Jesus, exatamente no episódio do evangelho de hoje, o Papa Bento XVI faz um comentário interessante sobre a importância da vida de fé: “As palavras de Jesus não cessam jamais de serem maiores que a nossa razão; superam, sempre de novo, a nossa inteligência. A tentação de reduzir e manipular as palavras de Jesus, para fazê-las entrar na nossa medida, é compreensível; faz parte de uma reta exegese precisamente a humildade de respeitar essa grandeza, que muitas vezes nos supera com as suas exigências, e não reduzir as palavras de Jesus com a pergunta sobre aquilo de que podemos ‘crê-Lo capaz’. Ele considera-nos capazes de grandes coisas. Crer significa submeter-se a essa grandeza e pouco a pouco crescer rumo a ela. Nisso, Maria é apresentada por Lucas deliberadamente como aquela que crê de modo exemplar: “Feliz aquela que acreditou” (Lc 1,45) [A Infância de Jesus, Planeta, p. 105].

Podemos concluir que, para a família caminhar bem, (note que caminhar aqui remete às idas e vindas da Sagrada Família nas estradas da Judéia e da Galiléia) precisa alimentar-se de uma profunda experiência de Deus, de intimidade com o Pai, de busca da Sua vontade. Então poder-se-á tratar de qualquer modelo de organização familiar. O que importa, acima de tudo, é se essa família está buscando fazer a vontade do Pai; se está colocando em sua vida o Pai e seu projeto de vida como prioridade, como absoluto. Então muita coisa na sociedade também poderá melhorar. É um processo lento, de conversão cotidiana, de esperar contra toda esperança. É uma questão de fé.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

As tentações de Jesus são as nossas; suas armas são também as nossas

aureliano, 03.03.17

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1º Domingo da Quaresma [05 de março de 2017]

[Mt 4,1-11]

O tempo da Quaresma nos remete aos quarenta anos de travessia do deserto pelo Povo de Israel. Tempo e lugar de provação, de cansaço, de dor, de carências e privações. Lugar de encontro com Deus e com o Diabo. Lugar de fortalecer as raízes no caminho do bem.

Jesus faz também essa experiência: quarenta dias se preparando para a missão. Esse tempo representa toda a sua vida que foi tempo de prova, das tentações de um messianismo sectário, mas também de experiência do Pai a quem foi sempre fiel.

As tentações de Jesus são também as nossas. O tentador quer levá-lo a desviar-se do projeto do Pai. Primeiro sugere-lhe transformar a pedra em pão. Jesus não veio para si, mas para todos. Não veio fazer milagres; veio anunciar um Reino de partilha fundado na vivência da Palavra de Deus. Quem se alimenta da Palavra de Deus partilha, multiplica, solidariza-se. Não vive em função de si, mas do Reino do Pai.

A segunda tentação coloca Jesus no ponto mais alto do Templo sugerindo que ele se lance dali, pois os anjos o tomarão nas mãos. É a tentação da busca de prestígio pessoal, da fama, da ostentação de poder, de capricho próprio. É a tentação de deixar tudo por conta de Deus, de lançar-se na vida sem as devidas precauções, pensando que Deus deve fazer tudo por nós, sem nenhum esforço de nossa parte. Ou seja, não se pode jogar para Deus aquilo que é responsabilidade do ser humano. Essa tentação mostra explicitamente o uso da religião para busca de sucesso. Quanta gente anda atrás de promessa, de milagres, de adivinhações etc. Na verdade, cada um deveria assumir seu papel na sociedade. Como cristãos o Senhor nos chama a lançar sobre o mundo um olhar de misericórdia. Ele nos convida a deixarmos de buscar a nós mesmos, nosso bem-estar, nossos desejos realizados, nosso sucesso e voltarmos nosso olhar para fora, para o outro. O rosto do outro precisa me interpelar, me incomodar e me desacomodar. Essa foi a atitude que Jesus assumiu diante do Pai.  É diabólico organizar uma religião como um sistema de crenças e práticas para se conseguir segurança. Não se constrói um mundo mais humano refugiando-se cada um em sua religião. É preciso arriscar-se confiando em Deus, como Jesus.

A terceira e última tentação é a de servir ao projeto do diabo, abandonando o projeto de Deus em troca de poder e glória mundanos. São aquelas tentações que sofremos diante de possibilidade de ganhar mais dinheiro, de ter mais, de dominar mais, com prejuízo para muitos. É trocar o projeto do Pai pelo próprio projeto egoísta e consumista. É aquela situação que nos possibilita crescer dando prejuízo aos outros; que leva a abandonar a família, os filhos para vantagem pessoal, deixando muitos no sofrimento. É a exploração irresponsável da natureza com prejuízo para o meio ambiente: a terra geme dores de agonia. É também a troca de projetos de políticas públicas que tiram milhões da miséria, por projetos de políticas capitalistas quem entregam bens e serviços nas mãos de banqueiros, latifundiários, empresários e políticos sem consciência que só pensam em tirar proveito dos espaços de poder.

Estão aí as tentações de Jesus. Ele as venceu todas pela força da Palavra, da oração, da comunhão profunda com o Pai. E nós? Quais são os instrumentos de que lançamos mão para vencer as tentações do poder, da glória, do consumismo? Como está nossa vida de oração? Que lugar ocupa a Palavra de Deus em nossa vida? Quanto tempo tiramos por dia para fazer oração? Quanto tempo reservamos para a comunidade, para o serviço gratuito, generoso? Quando nos ocorre uma tentação, que fazemos? De que nos valemos?

Quaresma é tempo de revisão de vida, de conversão, de convergir as forças para o “único necessário” (cf. Lc 10,42). É bom que cada um de nós verifique qual pecado precisa ser excluído de sua vida a fim de curar as feridas que por vezes provocou no coração e na vida dos irmãos.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN