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Ouvir, guardar e viver a Palavra

aureliano, 20.05.22

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6º Domingo da Páscoa [22 de maio de 2022]

[Jo 14,23-29]

Estamos no discurso de despedida de Jesus. Em breve ele será glorificado pelo Pai na sua entrega na cruz. Ao partir deste mundo, encerra sua missão terrena. De volta ao Pai deixa os continuadores de sua missão. Continua junto deles na ação Espírito Santo. Essa ação divina e trinitária se faz presente na história através da Igreja.

Existe, no entanto, um “porém”: o discípulo precisa manifestar seu amor a Jesus guardando a sua palavra. Guardar a Palavra significa ter uma vida condizente com a fé professada. Não existe fé sem amor. O amor se concretiza nas obras.

Jesus não abandona os seus. Está com eles. Envia-lhes o Consolador, aquele que os defenderá do maligno e não os deixará cair no desânimo. Aquele que não deixará o ensinamento de Jesus cair no ostracismo: “Ele vos recordará tudo o que vos tenho dito”. O que importa a Jesus é que sua mensagem não seja esquecida. Essa mensagem, Boa Nova para a humanidade, não pode ser esquecida porque é o projeto do Pai de humanização da humanidade que Jesus veio revelar.

Talvez caibam aqui algumas perguntas: O que estamos guardando de Jesus? Ou manipulamos com nossas doutrinas e conveniências o ensinamento do Mestre de Nazaré?

O Espírito Santo é a garantia de que Jesus não abandona seus discípulos à orfandade. O Consolador os defenderá do risco de se desviarem do caminho de Jesus. Ele os enviará para o meio dos pobres: “O Espírito do Senhor está sobre mim e me enviou para anunciar a boa nova aos pobres” (Lc 4,18). Essa vida segundo o Espírito educa o discípulo para viver o estilo de vida de Jesus.

Jesus deixa a paz aos discípulos. Não é a paz mundana. Mas aquela paz que garante a plenitude da vida para todos. Fruto de uma vida vivida na comunhão e intimidade com o Pai. Essa paz, haurida do coração do Pai, deve ser levada aos ambientes por onde passarmos. As pessoas de nossa convivência devem ser contagiadas por essa paz.

Um cuidado que precisamos ter é o de jamais perdermos essa paz ou nos acovardarmos diante da missão: “Não se perturbe nem se intimide o vosso coração”. Por que então há tanto medo do futuro e da sociedade moderna? Não tenhamos medo, pois o mundo tem sede e fome de Deus. Nossa missão é ajudar as pessoas a saciar sua fome e sede numa vida nova vivida de acordo com o projeto do Pai. Há grandes sinais da presença amorosa de Deus junto de nós. O Papa Francisco, por exemplo, foi um presente de Deus: ele nos convida a tornarmos nossa Igreja mais próxima do evangelho, mais fiel a Jesus. É o Senhor presente na sua Igreja.

Quero, nesse finalzinho de reflexão, deixar essas palavras tão significativas da primeira leitura de hoje (At 15,1-2.22-29), num contexto de controvérsia por causa da cultura religiosa: “Decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo, além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, das carnes de animais sufocados e das uniões ilegítimas. Vós fareis bem se evitardes essas coisas”. Qual é a questão fundamental aqui? A ameaça à comunhão da Igreja. Não há Igreja se não existe comunhão. E não há comunhão se não se eliminam as barreiras. As barreiras do preconceito, da raça, das ideologias, da intolerância, da falta de perdão. Esse relato quer nos dizer que devemos nos ater ao que é essencial: a adesão e seguimento a Jesus como Igreja, em comunhão. Não nos prendermos a crendices, a discussões ocas, a devoções vazias de sentido, a costumes que não respondem mais às necessidades de nosso tempo, a imposições religiosas, a moralismos e rigidezes doutrinárias. Precisamos, de novo, olhar para Jesus. E aprendermos dele as atitudes que nos transformam e transformam o mundo. É por isso que São Carlos de Foucauld, canonizado pela Igreja no último domingo, tinha como lema: “Gritar o evangelho com a vida”. É o que basta!

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Não haverá mais templo (cf. Ap 21,22)

O templo onde a comunidade se reúne é significativo, mas não indispensável. O templo de Jerusalém era sinal tangível da presença de Deus, ponto de referência, sinal de unidade. Mas corria o risco de ser espaço de falso culto, de formalidade litúrgica, de meio de exploração da fé do povo.

Hoje os templos se multiplicaram. Pra todo canto vemos um templo aberto. Mas não sei dizer até que ponto eles estão ali para ser sinal de Deus no meio de seu povo. Ser espaço de construção de unidade e fraternidade. Ser ambiente de encontro dos irmãos entre si e com Deus e de acolhida aos que chegam e saem. E até que ponto eles têm ajudado a colocar os fiéis em saída para o encontro com Deus presente nos pobres, no ser humano, templo vivo de Deus.

Um bispo mineiro, muito sábio e místico, anda dizendo que “estamos em tempos de tendas e jardins e não de templos... A Escuta exige abrir mão da inteligência para ouvir verdadeiramente a Palavra (com P maiúsculo) que o outro está dizendo... O momento é das virtudes femininas: beleza, delicadeza, gentileza... Estamos perdidos; necessitamos de espiritualidade e coragem para abrir picadas... Cristianismo não é religião; é um estado de espírito... Levem as crianças para a Serra Santa Helena e deixem que contemplem, ou para um bairro pobre e deixem elas conviverem... É preciso ouvir o batimento das coisas...”

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

 

E a família, como vai?

aureliano, 25.12.21

Sagrada Família - A - 29 de dezembro.jpg

Sagrada Família de Nazaré [26 de dezembro de 2021]

[Lc 2,22-40]; [2,40-52]

 PALAVRA DE DEUS: FONTE INSPIRADORA DAS FAMÍLIAS

A família não teve, desde sempre, a constituição pai, mãe e filhos, como conhecemos hoje. Os antropólogos dizem que a família se formou devido à necessidade de sobrevivência diante da escassez de alimentos e das ameaças vindas de fora.

Dessa constituição do grupo familiar para autodefesa surgiram as tribos ou clãs: grupos familiares constituídos de pai, mãe, avós, filhos, primos, tios etc. Assim viviam os israelitas. O que os diferenciava de outros clãs era a vida centrada na Palavra de Deus. Seus costumes e posturas eram orientados pelo ensinamento de Deus. Assim se entende Jesus: ele viveu dentro de um clã, e não somente com José e Maria, como pode ocorrer de imaginarmos a partir de nossa compreensão atual.

Fundante na vida de Jesus é que ele ampliou a compreensão de família. “’Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?’ E repassando com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: ‘Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe’” (Mc 3,33-35). Família, portanto, não está mais no vínculo do sangue ou de religião. Família se constitui sobre o cumprimento da vontade de Deus que é empenho para que haja “vida em abundância para todos” (Jo 10,10). A base para a construção e constituição da vida familiar é própria vida de Jesus de Nazaré.

Daqui brota uma nova compreensão de família. Sabemos que as famílias, hoje, vivem outra realidade. Pais e filhos têm pouco contato. O trabalho absorve grande parte do tempo das pessoas. A mulher-mãe não fica mais em casa para cuidar dos filhos (nem o pai). De um modo geral, pela força das circunstâncias, esse ofício foi terceirizado para a babá ou a avó. Os filhos ficam quase o tempo todo na escola ou na rua. Além de outros aspectos como a droga, a violência, a internet ou a televisão que tomam o tempo e desvirtuam as relações porque transmitem outros valores, quase sempre à revelia daqueles que os pais ensinam.

E os idosos? Ou ficam sozinhos ou são deixados nos asilos. Antigamente eles ficavam em casa sob os cuidados de todos que, normalmente, estavam por ali. Além disso, de modo geral, os filhos e netos não querem o trabalho de cuidar dos idosos e doentes. Interessam a muitos a aposentadoria e a herança. Mas a gratuidade do trabalho permanece bem distante da maioria dos casos. É bom lembrar a palavra do Eclesiástico 3,12-14: “Filho, cuida de teu pai na velhice, não o desgostes em vida. Mesmo se a sua inteligência faltar, sê indulgente com ele, não o menosprezes, tu que estás em pleno vigor. Pois uma caridade feita a um pai não será esquecida, e no lugar dos teus pecados ela valerá como reparação”.

Celebrando a Sagrada Família de Nazaré, Jesus, Maria e José, vamos deixar de lado aquela ideia de “família perfeita”. O importante é termos aquele Espírito que animou a Sagrada Família, no cuidado uns para com os outros, no respeito, na doação para que nossas famílias sejam espaço em que todos possam se sentir seguros, acolhidos, respeitados, amados, educados, em condições de desenvolver suas potencialidades. Quanto mais assumirmos a Palavra de Deus como fonte inspiradora de nossas ações, e a Eucaristia como alimento cotidiano, mais compreenderemos o modo de constituir família segundo os critérios do Reino de Deus.

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E A FAMÍLIA, COMO VAI?

É muito comum ainda ouvirmos, nos rotineiros cumprimentos, essa pergunta: “E a família: vai bem?” A resposta normalmente é positiva: “Sim. Está tudo bem, com saúde, graças a Deus”. Mesmo que a situação não esteja lá essas coisas, não faz parte do protocolo contar os problemas e dificuldades que ocorrem entre “quatro paredes” para todo aquele que pergunta. Até porque essa pergunta já supõe uma resposta positiva. E alguns fazem essa pergunta para “puxar” assunto.

Mas todos sabemos da profundidade e complexidade que envolve falar sobre família. Hoje sabe-se que família não se resume àquela constituição familiar de 30 ou 40 anos atrás: papai, mamãe, filhinhos. Todos ali, bonitinhos, arranjadinhos, obedientes... Uma estrutura patriarcal em que o macho-varão determinava, por vezes só com o olhar, o que ele queria ou o que deveria ser feito. E mesmo que a família não tivesse esse tipo de comportamento em seu interior, havia uma harmonia interna que não era ameaçada nem influenciada por fatores externos. Havia mesmo uma prevalência “religiosa” sobre os comportamentos de pais e filhos.

Hoje o mundo mudou muito. A sociedade dita as normas econômicas, sociais, relacionais, educacionais, religiosas. Há uma espécie de ditadura de interesses econômicos que impõe aos grupos e pessoas o que eles devem fazer, o que comprar, o que usar, o que comer, como conviver, até mesmo que religião seguir ou como orar etc. E se a gente ousa entrar nos comportamentos afetivo-sexuais vigentes então, a discussão não tem fim.  Hoje precisamos entender um pouco mais a “questão de gênero”. Não adianta fugir ou evitar o assunto, pois ele está na pauta do dia: redes sociais, filmes, músicas, novelas e séries, escola e rua. Isso incide diretamente nas famílias, núcleo constituinte da sociedade. E esta quer sempre impor seus ‘valores’. Isso tudo sem falar nas constituições e organizações familiares que giram em torno de pelo menos nove modalidades, segundo alguns estudiosos desse assunto. Há autores que já falam em doze modelos de família!

Então, o que fazer? É preciso voltar à família de Nazaré. Parece não haver outro caminho. Lucas, nesse belíssimo relato de hoje, desvela uma faceta da família de Nazaré que precisa ser contemplada por todos nós. Um episódio que mostra a centralidade do Pai celeste na vida da família de Nazaré. A religião vivida, praticada por José, Maria e Jesus, ajuda a compreender e a aprofundar o projeto salvífico do Pai.

Uma família que observava ‘religiosamente’ a Lei do Senhor: “Iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa” (Lc 2, 41). Não é a mera observância religiosa que salva. O ritualismo é uma realidade que mata a pessoa e a comunidade. Jesus condenou inúmeras vezes uma prática religiosa desligada da vida. Mas, quando a religião é séria, ética, próxima da Verdade, do Bem e do Belo, ajuda a pessoa e a comunidade a realizar um encontro transformador e realizador com o Criador e Pai. Os pais de Jesus procuravam fazer o que ordenava a Lei. Aliás, Mateus diz que José “era um homem justo” (Mt 1,19). Isto significa que era fiel cumpridor dos Ensinamentos de Deus, a Torah. Maria, a “cheia de graça”, a “serva do Senhor”, a “bendita entre as mulheres”, ouvinte atenta da Palavra. Essas indicações dos evangelhos nos revelam o caminho que esses pais percorriam para deixar sua marca no coração do filho Jesus. Por isso ele os segue: tendo entrado na idade adulta, doze anos para a cultura judaica, também ele sobe ao Templo.

Na viagem de volta, notam algo estranho: Cadê o Menino? Ficara em Jerusalém. É interessante notar o cuidado prestimoso dos pais para com o Menino. Aquele cuidado humano. Aquela responsabilidade paterno-maternal em não desamparar o filho, não perdê-lo de vista. E a lição veio: “Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai” (Lc 2,49). Jesus quis lhes mostrar que o seu “Pai” é do céu. Seu pai terreno, legal não podia determinar sua vida. Ele veio para fazer a vontade do Pai do céu. Aqui aparece claramente que a missão dos pais é a de ser expressão do Pai celeste na vida dos filhos. Os pais não são donos dos filhos. Nem podem gerar filhos a seu bel-prazer. Filho é dom de Deus. Não pode ser fruto do querer egoísta dos pais. Não estou dizendo que se deva ter filho a torto e a direito. É preciso planejar a família. Mas o filho deve ser sempre acolhido como dom. Como tal, não pode brotar de mero bel-prazer dos pais. Por isso deve-se acolher com todo carinho o filho que não foi planejado, o filho que nasce doentinho ou com alguma deficiência. É sempre um dom do Pai. Nós somos todos do Pai!

Nem tudo na vida é compreendido perfeitamente por nós. A fé nos coloca dentro do Mistério de Deus. Muitos acontecimentos da vida não têm explicação. Têm significado, ou seja, Deus pode nos revelar algo a partir daqueles acontecimentos. Para isso precisamos acolhê-los no coração: “Eles não compreenderam as palavras que lhes dissera... Sua mãe, porém, conservava no coração todas estas coisas” (Lc 2,50-51). A meditação e contemplação do Mistério de Deus revelado em Jesus, Palavra do Pai, é que nos possibilita compreender o que o Pai quer de nós.

Escrevendo sobre os relatos da Infância de Jesus, exatamente no episódio do evangelho de hoje, o Papa Bento XVI faz um comentário interessante sobre a importância da vida de fé: “As palavras de Jesus não cessam jamais de serem maiores que a nossa razão; superam, sempre de novo, a nossa inteligência. A tentação de reduzir e manipular as palavras de Jesus, para fazê-las entrar na nossa medida, é compreensível; faz parte de uma reta exegese precisamente a humildade de respeitar essa grandeza, que muitas vezes nos supera com as suas exigências, e não reduzir as palavras de Jesus com a pergunta sobre aquilo de que podemos ‘crê-Lo capaz’. Ele considera-nos capazes de grandes coisas. Crer significa submeter-se a essa grandeza e pouco a pouco crescer rumo a ela. Nisso, Maria é apresentada por Lucas deliberadamente como aquela que crê de modo exemplar: “Feliz aquela que acreditou” (Lc 1,45) [A Infância de Jesus, Planeta, p. 105].

Podemos concluir que, para a família caminhar bem, (note que caminhar aqui remete às idas e vindas da Sagrada Família nas estradas da Judéia e da Galiléia) precisa alimentar-se de uma profunda experiência de Deus, de intimidade com o Pai, de busca da Sua vontade. Então poder-se-á tratar de qualquer modelo de organização familiar. O que importa, acima de tudo, é se essa família está buscando fazer a vontade do Pai; se está colocando em sua vida o Pai e seu projeto de vida como prioridade, como absoluto. Então muita coisa na sociedade também poderá melhorar. É um processo lento, de conversão cotidiana, de esperar contra toda esperança. É uma questão de fé.

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN

Jesus é o novo Templo

aureliano, 02.03.18

3º domingo da quaresma B.jpg

3º Domingo da Quaresma [04 de março de 2018]

 [Jo 2,13-25]

Quaresma é tempo de preparação para a Páscoa. Consequentemente, é tempo de se aprofundar o batismo, mergulho no Mistério Pascal: “Eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” significa “Eu te mergulho...”. Por isso os textos são mais mistagógico-catequéticos, ou seja, tem a intenção de introduzir o cristão mais profundamente no mistério do amor de Deus revelado em Jesus Cristo.

O evangelho deste domingo tem como centro a automanifestação de Jesus como o novo Templo de Deus: “Destruí este Templo, e em três dias eu o levantarei”.

A Páscoa dos judeus era a celebração da libertação da escravidão do Egito. E o Templo de Jerusalém tornou-se o lugar em que os judeus e prosélitos se reuniam uma vez por ano para oferecer sacrifícios de expiação e ação de graças. Era uma forma de manifestar a Deus a gratidão. Com o gesto profético da expulsão dos vendilhões do Templo, Jesus introduz um novo modo de se relacionar com Deus: agora o Templo é o próprio Cristo. Nele se manifesta a glória de Deus: “Ele manifestou a sua glória e seus discípulos creram nele” (Jo 2, 11).

A libertação que o povo vinha celebrar em Jerusalém perdera o sentido, uma vez que novamente experimentavam a escravidão: os anciãos do povo e os sumos sacerdotes eram os grandes latifundiários que residiam em Jerusalém, engordavam os bois e carneiros para vender aos peregrinos por ocasião da festa da Páscoa. Alugavam a preços exorbitantes os espaços das barracas de modo que se fazia uma exploração escravista aos peregrinos, mormente aos mais pobres. Por isso Jesus se dirigiu especificamente aos vendedores de pombas: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”. É que os pobres, pelo baixo poder aquisitivo, ofereciam pombas, como o fizeram José e Maria (cf. Lc 2,24). A ira de Jesus se coloca mais fortemente contra os exploradores dos pobres.

Estes parecem ser os dois elementos centrais do evangelho de hoje: Jesus como o novo Templo e a expulsão dos vendilhões do templo de Jerusalém. Vamos refletir alguns elementos de nossa vida de fé cristã:

  1. É preciso que Jesus Cristo ocupe verdadeiramente o centro de nossa vida de fé e de nossas decisões. Os gestos e as palavras de Jesus devem ser determinantes e iluminadores em nossas opções cotidianas. Não bastam um culto externo, uma celebração, uma oferta, uma vela acesa, uma bíblia debaixo do braço, um grito de louvor no templo, uma proclamação do nome de Jesus, um pedido de milagre. Não bastam os “sacrifícios de touros e carneiros”. O que conta para Deus é uma atitude de fidelidade cotidiana à sua Aliança (cf. a primeira leitura de hoje: Êx 20,1-17). O sacrificium laudis (sacrifício de louvor) é nossa própria vida vivida em conformidade com os valores proclamados no Evangelho. “Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi: em romper os grilhões da iniquidade, em soltar as ataduras do jugo e pôr em liberdade os oprimidos e desapegar todo jugo? Não consiste em repartires o pão com o faminto, em recolher em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aquele que vês nu e em não te esconderes daquele que é da tua carne? (...) Se tu te privares para o faminto, e se tu saciares o oprimido, a tua luz brilhará nas trevas, e a escuridão será para ti como a claridade do meio-dia” (Is 58,6-7.10). Junte-se a isso a coragem de enfrentar oposições e desafios por causa de Cristo e do seu evangelho. “Os judeus pedem sinais milagrosos, os gregos procuram sabedoria; nós, porém pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e insensatez para os pagãos” (1Cor 1, 22-23). Vamos assumir com mais vigor nossa fé que se concretiza na defesa dos mais fracos e indefesos.
  2. Este relato do evangelho nos recorda o cuidado que devemos ter para não transformar nossas festas religiosas em campanhas comerciais: fazer do templo – lugar de intimidade com Deus, de oração, de reunião da comunidade de fé –, um espaço de exploração e arrecadação de dinheiro. Ocorre por vezes que nossos pobres nem podem participar das festividades dos padroeiros porque tudo ali é vendido, e muitas vezes a preços muito distantes do poder aquisitivo da pessoa. Vejam, por exemplo, um pai de família que leva os seus cinco filhos para participar da festa do padroeiro. Depois da missa e procissão, nas barraquinhas estão vendendo os quitutes. Imagine o pobre do pai ou da mãe que não tem dinheiro suficiente para comprar aquele feijão tropeiro ou aquele caldo para todos os filhos. Pronto! Precisam ir embora! Não podem ficar na festa! E isto sem falar naquelas “campanhas” financeiras que alguns costumam fazer, uma aberração ao evangelho: “Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”.
  3. E, por falar em barracas, pior ainda é quando ali se vende bebida alcoólica com o seguinte argumento: “Se não tiver cerveja, as pessoas não vêm”. A bebida alcoólica funciona como o atrativo para a festa religiosa! Que argumento fajuto! Se o indivíduo vai à festa religiosa por causa da cerveja, onde está seu comprometimento com a comunidade? Então é melhor que vá para o boteco. Lá ele terá mais conforto, certamente! Comunidade é lugar de celebração da ação de Deus em nossa vida. Lugar de evangelização, de confraternização saudável. Lugar de espaço para todos: crianças, idosos, enfermos, família. Lugar em que se experimenta o Reino de Deus na partilha, na acolhida, na fraternidade, onde todos se sintam em casa. Lugar de renovação da Aliança do amor de Deus por nós. Fazer das festividades um espaço de arrecadação financeira é inverter o sentido das celebrações. Os recursos para sobrevivência da comunidade devem provir de um trabalho de conscientização sobre o dízimo. O cristão comprometido e consciente ajuda a sustentar a comunidade nas suas dimensões religiosa, missionária e social.
  4. Para terminar: A Campanha da Fraternidade deste ano conclama a comunidade a superar a violência e construir fraternidade: “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8). O evangelho de hoje mostra Jesus recriminando a atitude dos chefes políticos (saduceus) de Jerusalém que se valiam da religião para se locupletarem ainda mais de bens, em detrimento dos pobres. Subjaz aí uma forma de violência muito comum em nosso País: a concentração de renda nas mãos dos mandatários: 1% detém 28% da renda nacional; ou, de outro modo, 10% detêm 55% da renda nacional. O País está nas mãos de alguns. “Pensar a superação da violência dentro do sistema capitalista, que mantém sua centralidade no lucro econômico, e não no ser humano, exige um grande esforço de identificação e compreensão das iniciativas que sinalizam possibilidades de enfrentamento e superação da violência. Estas iniciativas, pensadas e desenvolvidas em manutenção deste sistema, em que o ser humano é apenas um objeto para o consumo, tornam-se “paliativas” à cultura da não violência. Em uma cultura de paz, homens e mulheres são chamados a testemunhar o amor, e a sociedade para estabelecer a harmonia entre as relações de poder, que devem estar a serviço da vida humana” (Texto-Base, nn. 241 e 242).

Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN