Um encontro, uma palavra, um olhar...
3º Domingo da Quaresma [12 de março de 2023]
[Jo 4,5-42]
A liturgia da Palavra deste domingo nos coloca diante da sede de um povo no deserto (Ex 19,3-7) e da sede da mulher à beira do poço. O que é a sede? Você já experimentou sede? Esse desejo e necessidade não sendo saciados com certa imediatez levam a desfalecimento. A gente pode passar dias sem alimento sólido, mas sem água, não. A sede (de água) é símbolo de uma sede maior, mais profunda. A experiência de habitar em terra estrangeira, longe do Templo, numa vida escravizada leva o israelita a dizer a Deus: “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada, sem água” (Sl 63,2). Muitas vezes a experiência de dor e sofrimento nos faz voltar para Deus como “terra seca e sedenta”.
Veja o que aconteceu com a mulher samaritana neste belíssimo relato de João que mostra Jesus como do Dom do Pai, a Água Viva que preenche o coração humano, representado nas buscas até então insatisfeitas da mulher samaritana: “Vai chamar teu marido”... “Eu não tenho marido”... “Tiveste cinco maridos, e que tens agora não é teu marido” (Jo 4,16-18). Jesus é aquele que preenche o coração daquela mulher. Não tem preconceito, não julga, não condena. Apenas acolhe e mostra-lhe o dom da água viva que brota para a vida eterna. Jesus não lhe apresenta a doutrina e a censura, mas o Dom. E ela acolhe, reconhece, rende-se diante de uma realidade que responde às suas buscas mais profundas.
No caminho da Judéia para a Galiléia era preciso passar pela Samaria. Um território constituído por um povo que tinha alguns costumes diferentes e divergentes dos costumes dos judeus. Havia entre eles uma inimizade histórica e cultural mortal. Jesus estabelece uma nova relação com esse povo. A mulher samaritana aqui significa também a própria Samaria. Jesus veio também para eles. Não somente para os judeus.
Aqui temos o fruto de um encontro verdadeiro, honesto, na busca da verdade do ser humano. Encontro que desperta um desejo para além daqueles que se deram ao longo da história em redor do poço: Isaac e Rebeca; Jacó e Raquel; Moisés e Séfora. Não se dá ali uma “paquera” para casamento, mas um encontro que transforma a partir de dentro e envolve toda uma cidade: “Muitos samaritanos daquela cidade creram nele, por causa da palavra da mulher”.
O Desejo de Jesus se encontrou com o desejo da mulher, que a princípio estava marcada pelo sentimento de ódio, de decepção, de desencanto. O Desejo puro de Jesus contagia aquela mulher, purifica seu desejo e lhe dá uma nova perspectiva de vida. Aquele Desejo oculto de felicidade, ínsito por Deus em seu coração na criação, foi despertado.
Jesus é o dom do Pai, a água viva capaz de saciar o desejo humano que não se sacia com coisas e pessoas: “Já tiveste cinco maridos e o que agora tens não é teu marido”. Ele sacia de vez a sede profunda daqueles que o buscam: “Dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede”.
Nossos jovens, nossas famílias, nossas crianças estão buscando saciar a sede servir a Deus “em espírito e verdade”. Mas o que lhes é oferecido pela televisão, pela internet, até mesmo em alguns cultos ditos cristãos é veneno. Algo parecido com água, mas que leva à morte, à secura, a uma busca frenética de bens de consumo, de festas desmedidas, de bebidas e drogas, de sítios e quintais, de gozo e de vazio. O resultado nós o temos visto: assassinatos, vinganças e mortes; cadeias e bandidagem; corrupção política e roubos de todo jeito; desesperança e “fossa”, preconceito e desejo de morte. Onde está o remédio? No encontro transformador com Jesus Cristo, a Água Viva que nos dá vida nova, que abre nossos horizontes, que dá sentido à vida, que nos faz discípulos missionários, como aconteceu com a samaritana. Bento XVI dizia que o “ser cristão não é fruto de uma decisão ética ou de uma grande ideia, mas de um encontro com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, um rumo decisivo”.
Esse relato do encontro de Jesus com a Samaritana nos questiona também em relação à falta de espaço de acolhida em nossas comunidades. Jesus sentou-se, esperou, acolheu, ouviu, foi rejeitado inicialmente. E ele se manteve ali, resiliente, esperançoso, confiante. Não se pode apresentar em primeiro lugar a lei, a doutrina, o “carão” à pessoa que procura a comunidade: “Você está no pecado!” “Você precisa mudar de vida!” “Você sumiu da igreja!” “Você não pode comungar!” “Você não pode receber os sacramentos!”. - A pessoa precisa de espaço de diálogo, de partilha, de alguém que a ouça sem julgamento, que a compreenda, que lhe apresente um Deus que ama incondicionalmente toda pessoa. Santo Agostinho dizia: “Se queres conhecer uma pessoa, não pergunte o que ela pensa, mas o que ela ama”. Se você quer conhecer a sua comunidade, as pessoas da comunidade, observe não o que elas dizem ou pensam, mas o que elas amam. Como demonstram o afeto, a acolhida, o respeito, a atenção e zelo, particularmente pelos pequenos e simples.
Teremos um mundo novo na medida em que cada cristão, assumindo seu batismo, fonte de vida nova em Deus, continuar fazendo seu encontro com Jesus Cristo na sua comunidade, na Palavra de Deus, na celebração, junto àqueles que sofrem. De uma mentalidade consumista e capitalista, egoísta e gananciosa, fratricida, feminicida, preconceituosa e maledicente, transformar-se em discípulo de Jesus como a samaritana do evangelho. Não basta pensar como Jesus pensou. O fundamental é amar como Jesus amou.
O encontro com Jesus “ao redor do poço” deve levar à missão. A participação na celebração deve encantar e entusiasmar o discípulo de Jesus a fim de levá-lo a partilhar com os outros a experiência feita no encontro vivificador com Jesus Cristo. Há muita gente esperando um pouquinho de nossa “água” haurida nas fontes do Salvador.
Concluindo também com Santo Agostinho: “Ama e faze o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos”.
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OS MARIDOS DA SAMARITANA
É importante relembrar de que o tempo litúrgico da quaresma tem um forte apelo batismal. Os textos da Sagrada Escritura querem nos ajudar a fazer o caminho do discipulado: as tentações por que passa o cristão e que são vencidas pela força da Palavra de Deus (1º domingo); o batismo que nos reconfigura/incorpora a Cristo e nos coloca como ouvintes do Filho Amado do Pai (2º domingo); a Água Viva que nos purifica e alimenta a partir do encontro transformador e libertador com Jesus (3º domingo); a Luz, o próprio Jesus, que cura nossa cegueira e nos faz enxergar o mundo com as lentes do Evangelho (4º domingo); o batismo nos faz criaturas novas, ressuscitados com Cristo, que é ressurreição e vida. As narrativas dos textos do evangelho desse período propõem-nos um itinerário novo, fascinante e interpelativo.
A menção que o evangelho faz à Samaria nos desperta para saber que lugar é esse. Com a morte de Salomão, no século X antes de Cristo, o Reino de Israel de dividiu: Reino do Sul (Judá), tendo como capital Jerusalém, e Reino do Norte (Israel), tendo como capital Samaria. No ano 721 a Assíria invadiu o Reino do Norte e trouxe cinco povos diferentes com suas divindades para Samaria, erigindo para cada uma delas um altar (cf. 2Rs 17,24-33). Essa miscigenação de religião, de cultura e de raça levou Israel e Samaria a viver uma espécie de sincretismo religioso. Mais tarde foi erigido por um israelita piedoso, um templo no monte Garizim para culto ao Senhor, em oposição ao Templo de Jerusalém. João Hircano em 129 a.C destruiu o templo do monte Garizim.
Está aí, em síntese, a história dos “seis maridos”. Quando Jesus diz à mulher: “tiveste cinco maridos, e o que tens agora não é teu marido”, quer dizer que os samaritanos ainda não conheciam o verdadeiro Deus que Jesus veio revelar. Diga-se de passagem que, na ocasião em que o evangelho de João foi escrito, já haviam se passado cerca de trinta anos da destruição do Templo de Jerusalém. Portanto, nem no monte Garizim nem em Jerusalém se adorava verdadeiramente a Deus, mas agora se deveria “adorá-lo em espírito e em verdade”. Quer dizer, Deus está para além de templos e lugares. Jesus é o verdadeiro templo, habitação de Deus. E nele, todo ser humano, imagem e semelhança de Deus, é templo do Espírito Santo.
A palavra “marido” era usada também para divindades pagãs. Baal pode ser traduzido por mestre, dono, senhor, marido. No tempo de Jesus os samaritanos eram considerados impuros, por causa de sua relação com os adoradores de Baal. Tanto que, apenas o fato de entrar na Samaria era considerado contaminador. Por isso era impensável que Jesus entrasse nessa terra ou falasse com uma mulher desta cidade.
Com isso compreendemos as razões que levaram os israelitas da Palestina, considerados fiéis ao Deus da Aliança a evitarem fazer contato com os samaritanos, considerados idólatras e infiéis ao Deus de Israel, portanto, impuros.
E agora Jesus propõe à Samaria, na pessoa da mulher samaritana, uma “fonte de água viva que jorra para a vida eterna”. Agora é o próprio Jesus que será seu “marido”, seu esposo fiel, remetendo a Os 2,7-25. “Vou seduzi-la, levando-a ao deserto e falando-lhe ao coração”. A salvação trazida por Jesus não pertence somente aos judeus, mas se estende a toda a humanidade.
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O QUE SIGNIFICA ADORAR (Frei Cantalamessa)
A propósito da palavra de Jesus: “os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (Jo 4,23), reproduzo aqui excertos de uma pregação do Frei Cantalamessa, que podem ajudar a compreender e a realizar esta adoração de que fala Jesus.
“Mas, mais do que o significado e o desenvolvimento do termo, estamos interessados em saber em que consiste e como podemos praticar a adoração. A adoração pode ser preparada por uma longa reflexão, mas termina com uma intuição e, como qualquer intuição, ela não dura muito tempo. É como um clarão de luz na noite. Mas de uma luz especial: não tanto a luz da verdade, mas a luz da realidade. É a percepção da grandeza, da majestade, da beleza e, ao mesmo tempo, da bondade de Deus e da sua presença que tira o fôlego. É uma espécie de naufrágio no oceano sem costas e sem fundo da majestade de Deus. Adorar, segundo a expressão de Santa Ângela de Foligno mencionada no início, significa “recolher-se em unidade e mergulhar no abismo infinito de Deus”.
Uma expressão de adoração, mais eficaz que qualquer palavra, é o silêncio. Na verdade, ele diz por si mesmo que a realidade está muito além de qualquer palavra. Na Bíblia, a insinuação ressoa alto: “Toda a terra está em silêncio diante dele! (Hab 2,20) e: “Silêncio na presença do Senhor Deus!” (Sof 1, 7). Quando “os sentidos estão envoltos em silêncio sem limites e as memórias envelhecem com a ajuda do silêncio”, disse um Padre do deserto, então tudo o que resta é adorar.
(...) Portanto, não é Deus que precisa ser adorado, mas o homem que precisa adorar. Um prefácio da Missa diz: “Tu não precisas do nosso louvor, mas por um dom do teu amor nos chamas a dar-te graças; os nossos hinos de bênção não aumentam a tua grandeza, mas obtêm para nós a graça que nos salva, por Cristo nosso Senhor”[5]. F. Nietzsche estava completamente fora do caminho quando definiu o Deus da Bíblia como “aquele oriental ganancioso por honras em seu assento celestial”[6].
(...) A adoração eucarística é também uma das formas mais eficazes de evangelização. Muitas paróquias e comunidades que a colocaram no seu horário diário ou semanal fazem uma experiência direta dela. A visão de pessoas que à tarde ou à noite estão em adoração silenciosa diante do Santíssimo Sacramento, numa Igreja iluminada, levou muitos transeuntes a entrar e depois de parar por um momento a exclamar: “Aqui está Deus! Assim como está escrito que acontecia nas primeiras assembleias dos cristãos (cf. 1 Cor 14, 25).
(...) A contemplação cristã nunca é de sentido único. Não consiste em olhar, como dizem, para o umbigo, em busca do próprio eu mais profundo. Consiste sempre em dois olhares cruzados. Aquele camponês da paróquia de Ars, que passava horas e horas imóvel na igreja, com os olhos voltados para o tabernáculo e que, quando perguntado pelo Santo Cura o que fazia o dia todo, respondeu: “Nada, eu olho para ele e ele olha para mim!” (https://franciscanos.org.br/noticias/frei-cantalamessa-adoraras-ao-senhor-teu-deus.html#gsc.tab=0)
Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN