VALE A PENA IR AO VALE
Leonardo Boff define ex-peri-ência como “a ciência ou o conhecimento (ciência) que o ser humano adquire quando sai de si mesmo (ex) e procura compreender um objeto por todos os lados (peri). A experiência não é um conhecimento teórico ou livresco. Mas é adquirido em contato com a realidade que não se deixa penetrar facilmente e que até se opõe e resiste ao ser humano. Por isso em toda a experiência há um quociente forte de sofrimento e de luta” (BOFF, Leonardo. Experimentar Deus, p. 31).
Pois bem, foi mais menos isto que acabei de fazer. Uma experiência marcante em minha vida: Semana Santa em São João do Vacaria, Virgem da Lapa, paróquia de São Domingos, diocese de Araçuaí/MG. O tempo certamente foi pequeno. Embora já tenha estado lá o ano passado nesta mesma ocasião. Mas pude aprofundar um pouco mais o contato, o conhecimento, a experiência.
Uma comunidade cujo modo de viver e de se relacionar, revela o rosto de Deus. As crianças, os jovens e os idosos: um modo de ser e de viver diferenciado. As famílias conservam costumes e práticas devocionais e relacionais que marcam os filhos.
Os idosos são uma bênção, um poço de sabedoria para a comunidade local. Muito religiosos, fiéis às tradições recebidas, participam o quanto podem e como podem das celebrações. Evoco aqui a figura sem par do Seu Cristiano: beirando os 104 anos, com a esposa, Dona Geralda, já na segunda casa dos noventa e com o mal de alzheimer. Seu Cristiano ali por perto, firme. Neste casal quero homenagear todos os idosos de São João.
“Como tem passado, Seu Cristiano? – Ah, moço, eu tô aqui: já quase não enxergo mais; tô escutando muito pouco; as pernas estão fracas; uma friagem nas costas que não passa. Esperando Deus me chamar”. Lá pelas tantas pergunto: “O senhor já ‘pegou o jabá’, hoje?” – “Não, moço – responde de imediato – Hoje não como jabá, não. Hoje é Sábado do Aleluia, e jabá tem carne. Hoje eu não como carne. Aprendi de minha mãe e dos antigos. Hoje eu vou ‘pegar o grude’”. Assim Seu Cristiano mostra a marca que ficou no seu coração daquilo que aprendeu dos pais. O casal tem em torno de 76 anos de casados. Dona Geraldo fraturou o fêmur às vésperas da Semana Santa. Está hospitalizada. E Seu Cristiano por ali, agoniado e saudoso da prestimosa esposa.
Não dá para enumerar todos os idosos: são muitos, e muito sábios! E muito participativos. Acolhem a gente com uma alegria que só pode brotar do coração do Pai.
Como esta comunidade acolhe bem, meu Deus! Todos querem nossa visita. Aonde a gente passa precisa tomar um cafezinho, comer um biscoitinho de polvilho assado (normalmente no forno a lenha), quitanda peculiar da região! O almoço, o jantar, tudo farto. Sem mesquinhez. Partilham o que são e o que têm com a gente. Oferecem sempre o melhor. Não medem esforços, sacrifícios.
Fiquei ainda mais encantado com cada família. Durante oito dias, almoçando aqui, jantando acolá, numa escala já de antemão preparada. Mas houve gente que reclamou porque ficou de fora. Gostaria também de oferecer a refeição aos missionários. Sem contar o que enviavam à nossa casa para o café. Foi preciso de pedir que parassem de enviar para que não se estragasse.
Mas vejam bem: as famílias são pobres. Sobrevivem com dificuldade, a duras penas, com muito trabalho e economia. Mas porque são pobres sabem partilhar com tanta generosidade! Dificilmente a gente vê um rico generoso. Quando começa a oferecer muita coisa costuma ser em busca de alguma troca de benefício. Por isso Jesus disse que “um rico dificilmente entrará no Reino dos Céus” (Mt 19,23).
A solidariedade na comunidade é notável. Há grande preocupação de uns para com os outros. Se alguém adoece todos ficam sabendo e perguntam e providenciam o que for preciso e buscam alternativas. José Nilson e Helena são agentes de saúde da comunidade há 27 anos. Fazem do trabalho uma missão. Vão muito além do salário, que, aliás, é bastante minguado. São uma espécie de “anjos da guarda” da comunidade.
As pessoas que sofrem deficiência mental são tratadas com carinho e respeito. Todos as conhecem e se solidarizam com elas. Cuidam delas com carinho e respeito.
Um detalhe interessante: ao se referir à morte de alguém, eles não dizem que morreu, mas que “Deus levou” ou “Deus chamou”. Uma compreensão intuitiva e na fé de que a morte não põe fim à vida da pessoa. Ela continua vivendo junto de Deus.
Há, na minha opinião, dois grandes males na comunidade: a violência por parte de uma “meia dúzia” de pessoas perversas que praticam crimes (impunes) contra os moradores, levando medo e causando insegurança na população. A administração pública precisa olhar com mais carinho a dimensão da segurança pública para a comunidade de São João.
O outro mal é a falta de perspectiva de vida para os jovens: concluído o Ensino Médio, partem para outras cidades em busca de estudo e trabalho. Junte-se a isto a situação das estradas de acesso à cidade do município e a política do abastecimento de água.
Se o poder público tiver a sensibilidade de olhar com mais carinho para a comunidade de São João do Vacaria, certamente a comunidade se firmará ainda mais na dinâmica de uma espécie de “plano piloto” para outras comunidades. Vamos esperar e acreditar.
Em tempos de Reformas (previdência, política, trabalhista) vou entrar aqui numa espécie de delírio e convidar o “presidente” Temer e sua turma para visitar São João do Vacaria. Também os Congressistas do Planalto, sobretudo os parlamentares mineiros. Deveriam passar pelo menos cinco dias na comunidade, mas sem os privilégios da corte palaciana! Podem ficar tranqüilos: não vão passar fome, não: a comunidade é generosa. Não vão sobrar, não: a comunidade é acolhedora. Vocês verão como a comunidade faz milagre com o salário mínimo que alguns ganham e sustentam a todos, e que muitos de vocês, de Brasília, querem tirar através da proposta de Reforma da Previdência. Vão ver como o salário mínimo faz a diferença na vida daquele povo. Vão ver que a alegria verdadeira não está em ter muitos bens e altos salários. Não! A verdadeira alegria está em partilhar, em se solidarizar, em abrir-se ao outro.
Senhor Michel Temer, não é o salário mínimo do aposentado que está quebrando a Previdência, não! Não é o pobre trabalhador rural ou a pessoa com deficiência (BPC) que provocam rombo na Previdência, não! Vá visitar o pessoal do Vale do Jequitinhonha e veja como vive. Desça às bases, às famílias carentes. Sinta como vive aquele povo. Com pouca coisa eles experimentam alegria na vida. Coloque a mão na consciência! Faça experiência de viver com um salário mínimo por um mês!
Senhor “presidente” Temer, senhores e senhoras congressistas, se não houver corte nos privilégios, não há dinheiro que baste em nosso país. Se não se cobrar das grandes empresas devedoras da Previdência, não será possível reaver recurso suficiente para minimizar a dor dos pobres.
São João do Vacaria, uma comunidade que mostra um jeito de viver que vale a pena no Vale do Jequitinhonha. E há numerosas comunidades daquela região que passam por muitas dificuldades nos elementos básicos como alimentação e saúde por faltarem políticas públicas que contemplem sua realidade.
Agradeço a Deus por me ter dado a graça de poder, mais uma vez, fazer esta experiência de missão, organizada pela CRB/Minas, no convite e acolhida do Pe. Ederson Guedes. Uma graça. Um apelo. Um convite. Uma provocação. Uma experiência!
Pe. Aureliano de Moura Lima, SDN